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sado. Passei os dias em casa fazendo<br />
todo o possível para que ela não<br />
percebesse a gravidade de meu estado<br />
de saúde.<br />
Certa ocasião mamãe estava sentadinha<br />
junto à mesa da sala de jantar,<br />
eu passei pelo hall e tive um<br />
tombo sem que ela visse. A empregada<br />
me disse num tom meio atrevido<br />
e revoltado:<br />
– Mas o que é que tem? O senhor<br />
informe a ela de uma vez sobre o estado<br />
em que o senhor se encontra!<br />
Eu manifestei desagrado com ela<br />
e afirmei:<br />
– A senhora não está vendo que<br />
eu não quero aborrecê-la?<br />
– Mas assim, até esse ponto?<br />
– Até esse ponto. Quem gradua<br />
isso sou eu.<br />
Entrei na sala pensando: “O que<br />
eu tinha previsto está se realizando...<br />
Esse negócio que tenho aqui é<br />
uma gangrena.” Mandei chamar os<br />
médicos e afundei num túnel. Cogitei:<br />
“Um vendaval vai me tomar e<br />
ela ainda morrerá por esses dias...”<br />
Ficava transido de pena de mamãe<br />
ao pensar o que poderia<br />
acontecer se eu morresse antes<br />
dela. E me punha o seguinte<br />
problema: Recomendo que<br />
não digam a ela que eu faleci?<br />
Porque o problema<br />
se punha. Quer dizer, para<br />
não lhe comunicarem que<br />
eu morri, tinha que entrar<br />
pelo caminho das mentiras.<br />
Mas ela, no estado em<br />
que se encontrava, tinha o<br />
direito à verdade?<br />
Mas, de outro lado, se<br />
Deus a queria provar, possuía<br />
eu o direito de poupá-<br />
-la dessa prova? Quer dizer…<br />
uma coisa tremenda!<br />
A cadeira de rodas<br />
de Dona Lucilia<br />
mar o café da manhã e de ler o jornal.<br />
Dirigi-me ao quarto dela tão rápido<br />
quanto minhas condições físicas<br />
permitiam e, ao chegar, ela já<br />
estava morta. Chorei muito e, afinal<br />
de contas, fui para o meu quarto.<br />
Inexplicavelmente – creio que foi<br />
uma graça obtida por ela – invadiu-<br />
-me uma paz, uma tranquilidade que<br />
era quase uma alegria.<br />
Fui ao cemitério para o enterro,<br />
mas não ousei ir até a sepultura.<br />
No dia seguinte parti para nossa<br />
sede, em Amparo, voltando de lá para<br />
a Missa de sétimo dia durante a<br />
qual se deu aquele fenômeno do raio<br />
de sol sobre as orquídeas, que tomei<br />
como sendo o sinal pedido por mim<br />
a Nossa Senhora de que mamãe não<br />
estava mais no Purgatório 2 .<br />
Lembro-me, por exemplo, de<br />
uma bagatela. Eu me desagradava<br />
Quando me vieram avisar que ela<br />
estava morrendo, eu acabara de tomuito<br />
da cadeira de rodas dela. Eu<br />
gostaria que mamãe caminhasse. O<br />
passinho dela era uma das muitas<br />
coisas que me encantavam. Como<br />
ela conseguia andar com gravidade e<br />
com um passinho rápido! Dona Lucilia<br />
era muito grave no que ela fazia,<br />
mas rápida no andar. Não sei como<br />
ela conciliava isso.<br />
Apesar de antiga e de já não se<br />
usar mais cadeiras de rodas daquele<br />
tipo, por ser mais alta tinha mais<br />
dignidade do que os modelos recentes.<br />
E eu não queria vê-la metida<br />
nessas cadeiras muito melhores,<br />
porém menos dignas. Então arranjei<br />
aquela mesma. Ela, então, vinha altinha<br />
sobre aquilo.<br />
Quando ela morreu, mandei devolver<br />
a cadeira de rodas à Santa<br />
Casa e pagar o preço de um aluguelzinho.<br />
Uns cinco dias depois, comecei<br />
a sentir saudades da cadeira de<br />
rodas e ordenei perguntar à Santa<br />
Casa se podiam me vender.<br />
São recordações que me dizem<br />
muito. Embora o recuo do tempo,<br />
neste caso, não melhore a perspectiva,<br />
nem me leve a querê-la<br />
mais bem por causa disso, por<br />
alguns lados convida a uma<br />
atitude mais admirativa em<br />
relação a mamãe. v<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
(Extraída de<br />
conferência de<br />
20/4/1991)<br />
1) Em dezembro de 1967, em<br />
consequência de uma grave crise<br />
de diabetes, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> teve<br />
gangrena no seu pé direito, sendo<br />
submetido a uma cirurgia no Hospital<br />
Sírio-Libanês, em São Paulo, para<br />
debelar a infecção. (Cf. <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> n. 117, pp. 4-5).<br />
2) Cf. <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, n. 121, p. 19.<br />
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