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Música, Mito e Ritual entre os Wauja do alto Xingu - Universidade ...

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3SUMÁRIOResumo/AbstractAgradeciment<strong>os</strong>Nota sobre a Língua <strong>Wauja</strong>457Nota preliminar 8Cap. IO trabalho de Campo 14Cap. IIO Alto <strong>Xingu</strong>O Sistema <strong>Xingu</strong>anoPesquisas sobre música no Alto <strong>Xingu</strong>Os <strong>Wauja</strong>C<strong>os</strong>mologia e xamanismo: da <strong>do</strong>ença à curaBiografia d<strong>os</strong> principais informantesCap. IIIO complexo Iamurikuma- KawokáComplexo das “flautas sagradas”Aunaki, “mito”Uma abordagem da mitologia: flautas, transformações eperspectivismoAunaki de Iamurikuma3437434964839697102109122Cap. IVEtnografia <strong>do</strong> ritual de Iamurikuma 143Cap. V<strong>Ritual</strong>: coreografia, movimentação, adensamentoMúsicas KanupáSobre análise musicalRepertóri<strong>os</strong> feminino e masculinoTerm<strong>os</strong> de análiseAnálise das peçasComentári<strong>os</strong> sobre as análises228238242247250252279Considerações Finais 282Bibliografia 309Anex<strong>os</strong>327Os crédit<strong>os</strong> das fot<strong>os</strong> apresentadas são de Maria Ignez Mello eAcácio Tadeu Piedade


4RESUMOEsta tese é uma etnografia <strong>do</strong> ritual de iamurikuma <strong>entre</strong> <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>,<strong>do</strong> Alto <strong>Xingu</strong>, MT. Com base na mitologia e no discurso nativo, o universoem torno deste ritual é analisa<strong>do</strong> especialmente em sua dimensão musical.O ritual de iamurikuma, realiza<strong>do</strong> pelas mulheres, é entendi<strong>do</strong> como um d<strong>os</strong>lad<strong>os</strong> de um complexo músico-ritual que envolve human<strong>os</strong> e “espírit<strong>os</strong>”apapaatai, ten<strong>do</strong> como sua outra face o mun<strong>do</strong> das flautas kawoká, que sãotocadas pel<strong>os</strong> homens e não podem ser vistas pelas mulheres. A música,através de sua formalização e <strong>do</strong> jogo em torno d<strong>os</strong> sentid<strong>os</strong> e dasproporções, é considerada o elemento central <strong>do</strong> ritual, constituin<strong>do</strong> a formaideal de expressão d<strong>os</strong> afet<strong>os</strong>. Serão discutid<strong>os</strong> <strong>os</strong> vári<strong>os</strong> nex<strong>os</strong> deste ritualcom a c<strong>os</strong>mologia, as relações de gênero, a ética, a estética, a musicalidadee a política, destacan<strong>do</strong> questões como a necessidade de controle <strong>do</strong>desejo, a quebra da reciprocidade e o papel fundamental d<strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong>de ciúme e inveja na socialidade <strong>Wauja</strong>.ABSTRACTThis dissertation is an ethnography of the iamurikuma ritual amongst the<strong>Wauja</strong> Indians from the Upper <strong>Xingu</strong>, State of Mato Gr<strong>os</strong>so. Based onnative discourse and mythology, the universe surrounding this ritual isanalysed particularly in its musical dimension. The iamurikuma ritual, whichis performed only by women, is understood as one side of a musical-ritualcomplex involving humans and apapaatai “spirits”, and its other face is theworld of the kawoká flutes, which are played only by men and can’t be seenby women. Through the formalization and the play of senses andproportions, music is considered the ritual’s central element, constitutingthe ideal way for the expression of affects. The many connections betweenthis ritual and c<strong>os</strong>mology, gender relations, ethics, aesthetics, musicality,and politics will be discussed, stressing questions such as the need ofcontrol of desire, the break of reciprocity, and the fundamental role of thesentiments of jealousy and envy in <strong>Wauja</strong> sociality.


5AGRADECIMENTOSAgradeço a tod<strong>os</strong> que tornaram p<strong>os</strong>sível a realização deste trabalho, acomeçar pel<strong>os</strong> professores e colegas de mestra<strong>do</strong> e <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> <strong>do</strong> Programa dePós-Graduação em Antropologia Social da <strong>Universidade</strong> Federal de SantaCatarina, PPGAS/UFSC, que me forneceram conheciment<strong>os</strong>, estímulo ediscussões instigantes durante toda minha formação acadêmica. DestePrograma destaco especialmente a orientação sempre precisa e amiga <strong>do</strong> Prof.Rafael J<strong>os</strong>é de Menezes Bast<strong>os</strong>, responsável por minha inserção na etnologiaamazônica, campo que me enriqueceu não só academicamente, mas tambémcomo pessoa. Sua orientação foi a base segura para minhas viagens ao campoe a<strong>os</strong> text<strong>os</strong>, sem as quais nada <strong>do</strong> que aqui se segue poderia existir. Agradeçoa<strong>os</strong> membr<strong>os</strong> <strong>do</strong> MUSA, núcleo de pesquisa <strong>do</strong> PPGAS/UFSC <strong>do</strong> qual faço parte,que propiciaram importantes discussões no campo das artes em suas interfacescom a política, a partir de uma visão antropológica, e especialmente a LuísFernan<strong>do</strong> Hering Coelho, pelo apoio na editoração das partituras com o Finale.Ainda nesta <strong>Universidade</strong>, devo agradecer ao Laboratório de Energia Solar, peloempréstimo de uma placa de energia solar, tão útil durante a pesquisa, eespecialmente ao então Pró-reitor de Pesquisa, Prof. Álvaro Prata, por seuapoio e incentivo em moment<strong>os</strong> crític<strong>os</strong> deste trabalho.Agradeço ao CNPQ pela bolsa de <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> que me foi concedida, e àajuda financeira para o desenvolvimento de minha pesquisa de campo através<strong>do</strong> Projeto Integra<strong>do</strong> de Pesquisa “Arte, C<strong>os</strong>mologia e Fil<strong>os</strong>ofia nas TerrasBaixas da América <strong>do</strong> Sul”, coordena<strong>do</strong> por meu orienta<strong>do</strong>r. À FundaçãoBradesco, pelo apoio financeiro para a viagem ao <strong>Xingu</strong>. À FUNAI,especialmente, a<strong>os</strong> funcionári<strong>os</strong> <strong>do</strong> DEPIMA e ao diretor <strong>do</strong> Museu <strong>do</strong> Índio <strong>do</strong>Rio de Janeiro, J<strong>os</strong>é Levinho, pelo apoio à realização <strong>do</strong> “Encontro <strong>Wauja</strong>-Bakairí”, cuja importância extravasa <strong>os</strong> limites desta tese. À lingüista JoanRichards, pelo material que cedeu sobre a língua <strong>Wauja</strong>, e por sua gentileza emresponder às minhas questões.A<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, meu respeito e admiração serão etern<strong>os</strong>. Agradeçoespecialmente a família de Atamai, que sempre me h<strong>os</strong>pe<strong>do</strong>u com muitapaciência e gener<strong>os</strong>idade. A Kalupuku, minha irmã, cantora excepcional e


6mulher de muita fibra, a quem serei sempre grata. A Kaomo, meu pai, homemgentil e carinh<strong>os</strong>o, sempre atento a<strong>os</strong> meus pedid<strong>os</strong> e questionament<strong>os</strong>.Tupanumaká, meu irmão tradutor, a quem devo muito <strong>do</strong> que será exp<strong>os</strong>tonesta tese. A lista das pessoas a quem g<strong>os</strong>taria de agradecer envolvidas nestetrabalho seria muito grande para caber n<strong>os</strong> limites que aqui se impõe.No entanto, não p<strong>os</strong>so deixar de lembrar de minhas amigas fiéis, MárciaMathias e Ligia Mathias de Oliveira, pela retaguarda que me deram n<strong>os</strong> mesesem que me ausentei das atividades de mãe e <strong>do</strong>na-de-casa. A minha mãe, quetambém deu suporte às minhas ausências, além <strong>do</strong> incentivo e das rezas. Aminha filha, Júlia, parceira de campo, companheira para toda hora. E muitoespecialmente quero agradecer a meu companheiro de campo, de vida e desonh<strong>os</strong>, Acácio Tadeu de Camargo Piedade, cuja seriedade como pesquisa<strong>do</strong>rsempre foi um modelo para mim. Pude contar com sua ajuda tanto naspequenas coisas <strong>do</strong> cotidiano como na busca de soluções para <strong>os</strong> mais difíceisimpasses teóric<strong>os</strong> musicais e antropológic<strong>os</strong>.> |


8• Nota preliminarOs índi<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, <strong>do</strong> Alto <strong>Xingu</strong>, afirmam que não se deve desejar aquiloque não se pode ter, buscan<strong>do</strong> incessantemente controlar o fluxo de seusdesej<strong>os</strong>. Eles falam que o ciúme, devidamente controla<strong>do</strong>, é bom para asociedade. E dizem também que a música <strong>do</strong> ritual de iamurikuma, cantada pormulheres, é música de kawoká, flautas tocadas por homens e proibidas à visãofeminina. Esta tese é um esforço para compreender estas três afirmações apartir da idéia de que elas estão relacionadas <strong>entre</strong> si. Para tanto, seránecessário iniciar a investigação com um estu<strong>do</strong> sobre o povo <strong>Wauja</strong> em suainserção na sociedade xinguana. E em seguida, adentrar sua c<strong>os</strong>mologia, paraentão falar <strong>do</strong> princípio, <strong>do</strong> tempo mítico e de suas histórias, no esforço decompreender como surgiram e a que vieram estas amazonas, mulherestransformadas em espírit<strong>os</strong> cantantes, profundamente conectadas ao mun<strong>do</strong>masculino das flautas sagradas. Esta jornada pr<strong>os</strong>segue na etnografia <strong>do</strong> ritualde iamurikuma mergulhan<strong>do</strong> em seu cerne: suas belas e sofisticadas canções.Ao final, percorren<strong>do</strong> <strong>os</strong> caminh<strong>os</strong> tomad<strong>os</strong> e abrin<strong>do</strong> outr<strong>os</strong>, a reflexão sobre anatureza <strong>do</strong> gênero e das emoções levará à descoberta da importância damúsica na tentativa de resp<strong>os</strong>ta às três afirmações acima.> |


9Durante a pesquisa de mestra<strong>do</strong>, observei uma ênfase na delimitaçãod<strong>os</strong> espaç<strong>os</strong> sociais ocupad<strong>os</strong> por homens e mulheres, tanto n<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> enarrativas quanto nas prescrições comportamentais que norteiam a vidacotidiana. Constatei que esta forte marcação d<strong>os</strong> limites dada a<strong>os</strong> papéis degênero é uma questão central <strong>do</strong> éth<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> que tem como pont<strong>os</strong>nevrálgic<strong>os</strong> <strong>os</strong> rituais das flautas kawoká e <strong>do</strong> iamurikuma 3 . Com a investigaçãod<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> e músicas, das exegeses e traduções de canções, e <strong>do</strong> discursonativo sobre a música, surgiu em minha dissertação a temática das relações degênero como um fator a ser problematiza<strong>do</strong> e discuti<strong>do</strong>, visto que dentro d<strong>os</strong>estud<strong>os</strong> etnológic<strong>os</strong> nas terras baixas da América <strong>do</strong> Sul este tema ainda eratrata<strong>do</strong> de forma incipiente. Com base nas análises musicológicas e d<strong>os</strong> mit<strong>os</strong>,busquei compreender a ligação <strong>entre</strong> a música vocal <strong>do</strong> iamurikuma (ritualfeminino) e a instrumental das flautas kawoká (ritual masculino), pois asmulheres afirmavam que “música de iamurikuma é música de flauta” 4 . A partirdesta investigação, pareceu-me que a questão colocada por estes rituaismusicais não diz respeito nem à <strong>do</strong>minação masculina, nem à inversão depapéis sexuais, e nem à hierarquia sexual. Os rituais e a vida cotidiana sãoesferas inseparáveis para <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>: há um <strong>entre</strong>laçamento d<strong>os</strong> poderescriativ<strong>os</strong> masculin<strong>os</strong> e feminin<strong>os</strong> 5 , não haven<strong>do</strong> antagonismo ou <strong>do</strong>minação.Muitas destas questões serão abordadas nesta tese, pois creio que o horizontedas relações de gênero se mantém como um forte nexo para a compreensão dasocialidade <strong>Wauja</strong>.Para além da questão de gênero, o trabalho norteou-se na mitologia<strong>Wauja</strong>, ali buscan<strong>do</strong> o pensamento nativo e, sobretu<strong>do</strong>, <strong>os</strong> páthoi que colocam<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> em movimento. Uma análise preliminar d<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> c<strong>os</strong>mogônic<strong>os</strong>3 <strong>Ritual</strong> de kawoká é um rito masculino, de abrangência xinguana, que carrega forteinterdição visual para as mulheres. O Iamurikuma é um ritual feminino, também deabrangência xinguana, e amb<strong>os</strong> serão objeto de análise mais detalhada no decorrer datese.4 Esta relação <strong>entre</strong> as músicas de flauta e <strong>os</strong> repertóri<strong>os</strong> vocais feminin<strong>os</strong> já foiapontada por Menezes Bast<strong>os</strong> -de acor<strong>do</strong> com seus informantes Kamayuráapresentan<strong>do</strong><strong>os</strong> <strong>do</strong>is repertóri<strong>os</strong> -no caso as flautas yakui e <strong>os</strong> cant<strong>os</strong> de amurikumãcomocomplementares (1999[1978]:164). Basso também apresenta uma correlaçãoestreita <strong>entre</strong> o repertório de yamurikumalu e as flautas kagutu para <strong>os</strong> Kalapalo(1987b:163-176). No entanto, em nenhum destes cas<strong>os</strong> foi apresentada alguma análisemusicológica que desse suporte às observações.5 Seguin<strong>do</strong> aqui de perto as pistas deixadas por Lagrou, (1998), McCallum (1994) eOvering, (1986).


10xinguan<strong>os</strong> resultou em uma odisséia revela<strong>do</strong>ra de várias facetas da vida socialxinguana, como aspect<strong>os</strong> <strong>do</strong> casamento e residência, da divisão social <strong>do</strong>trabalho, da concepção e da gemelaridade, <strong>do</strong> perigo e da afinidade 6 . Jánaquele momento, a questão da quebra da reciprocidade despontou comomarco funda<strong>do</strong>r da socialidade na mitologia xinguana. No caso da mitologia emtorno <strong>do</strong> complexo iamurikuma-kawoká, o sentimento de me<strong>do</strong> pareceu-me sera tônica: não um me<strong>do</strong> difuso, mas sim um sentimento específico que impõedistância e respeito <strong>entre</strong> homens, mulheres e <strong>os</strong> demais seres que povoam ac<strong>os</strong>mologia <strong>Wauja</strong>. No caso das flautas kawoká, a p<strong>os</strong>sibilidade de uma mulhersofrer o “estupro coletivo” por infringir a regra de proibição visual d<strong>os</strong>instrument<strong>os</strong> gera um me<strong>do</strong> tão forte nas mulheres que elas não querem nemmesmo falar sobre este assunto, fican<strong>do</strong> este sentimento, muitas vezes,expresso apenas n<strong>os</strong> sonh<strong>os</strong> 7 . Por parte d<strong>os</strong> homens, há um grande esforço nadelimitação d<strong>os</strong> espaç<strong>os</strong> físic<strong>os</strong> da aldeia, como pode ser nota<strong>do</strong> pela instituiçãoda “casa d<strong>os</strong> homens”, também chamada de “casa das flautas”. Uma hipótesepara a ameaça <strong>do</strong> estupro coletivo, apresentada nesta dissertação, é a de que amulher carregaria em seu corpo um “veneno” potencialmente contamina<strong>do</strong>rpara <strong>os</strong> homens - o sangue menstrual 8 . De acor<strong>do</strong> com a visão expressa nestetrabalho inicial, a potencialidade das mulheres em causar o mal seria retribuídana mesma “moeda”. Isto quer dizer que <strong>os</strong> homens não ten<strong>do</strong> este “veneno”,mas sim a força física e a união <strong>entre</strong> eles, imporiam às mulheres um mal e umme<strong>do</strong> que estaria à mesma altura <strong>do</strong> mal e <strong>do</strong> me<strong>do</strong> sentid<strong>os</strong> por eles: o temorda visão das flautas kawoká e <strong>do</strong> conseqüente estupro ritual coletivo. Contu<strong>do</strong>,estas interpretações sofrerão uma revisão no decorrer da presente tese.Neste primeiro trabalho, investi em análises musicológicas de umapequena parcela <strong>do</strong> repertório d<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> das mulheres e da música de flautas,e pude perceber, ainda que de forma inicial, que uma fusão de características6 Há análises semelhantes em Ag<strong>os</strong>tinho (1970) e Serra (2004).7 Segun<strong>do</strong> Gregor (1985:103), as mulheres Mehinaku relataram muit<strong>os</strong> pesadel<strong>os</strong>envolven<strong>do</strong> agressões físicas sofridas por elas e imp<strong>os</strong>tas pel<strong>os</strong> homens. De acor<strong>do</strong> comsua análise, isto m<strong>os</strong>tra o quanto este me<strong>do</strong> permeia a vida consciente e inconscientedas mulheres Mehinaku. Se considerarm<strong>os</strong> que as interdições, as pressões e aspunições sofridas pelas mulheres xinguanas são basicamente as mesmas em todas asaldeias, pode-se generalizar tais conclusões.8 Esta hipótese está baseada em amplo corpus mitólogico xinguano e também emobservações cotidianas na aldeia. Alguns d<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> relacionad<strong>os</strong> ao tema damenstruação estão incluíd<strong>os</strong> nesta dissertação.


11masculinas e femininas em uma só unidade ocorre na música e, de formasimilar, em cert<strong>os</strong> mit<strong>os</strong>. Nestas análises, verifiquei que um conjunto decanções de iamurikuma, e a música instrumental das flautas kawoká p<strong>os</strong>suíamuma raiz musical comum. Notei que <strong>os</strong> temas principais em amb<strong>os</strong> <strong>os</strong>repertóri<strong>os</strong> são frases muito próximas <strong>do</strong> ponto de vista rítmico-melódico, comovariações de uma frase básica realizada tanto pelas flautas quanto pelo cantofeminino. A partir d<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> recolhid<strong>os</strong> em campo e das músicas analisadas,concluí que o repertório de flautas kawoká seria como que “transponível” para<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> feminin<strong>os</strong>, ou vice-versa, partin<strong>do</strong> da hipótese de que as homologiasmusicais são abundantes nestes <strong>do</strong>is repertóri<strong>os</strong>. Desta forma, afirmei que amúsica de iamurikuma representa uma versão cantada e feminina da música dekawoká, fican<strong>do</strong> claro que seu aspecto sonoro não é objeto de proibição. E maisainda, que são estes sons comuns que unem a extrema masculinidade,exclusiva e interdita às mulheres, representada pelo complexo simbólico dasflautas kawoká, e a feminilidade em sua expressão mais marcante, oiamurikuma. Enten<strong>do</strong>, hoje, que estes <strong>do</strong>is rit<strong>os</strong> constituem uma unidade, oumelhor, um complexo mítico-musical.Toda a análise desenvolvida em minha dissertação de mestra<strong>do</strong> apontoupara uma forte inter-relação <strong>entre</strong> gênero, música e sociedade e, de formamais precisa, para o fato de que o poder e o controle social agem, através dasrelações de gênero, de forma similar à forma como a música é pensada eorganizada. Deste mo<strong>do</strong>, a música também é percebida como uma arte <strong>do</strong>controle, <strong>do</strong> tempo e <strong>do</strong> espaço, em conexão com a dança, bem como umamanifestação de divers<strong>os</strong> poderes, como <strong>os</strong> de cura e de transformação. Nocaso <strong>do</strong> repertório iamurikuma, um poder concentra<strong>do</strong> pela fusão decaracterísticas masculinas e femininas, operan<strong>do</strong> na perig<strong>os</strong>a fronteira daambigüidade sexual. Portanto, nesta dissertação, ao interconectar mito emúsica <strong>Wauja</strong>, surgiram temáticas indissociáveis com: o poder, o controle, apolítica, o erotismo, o me<strong>do</strong> e a morte.Creio que as conclusões a que cheguei durante o mestra<strong>do</strong> forambastante instigantes, mas alcançadas às custas de uma certa d<strong>os</strong>e de intuição,pois não havia presencia<strong>do</strong> <strong>os</strong> rituais a que me reportei e contava apenas comgravações realizadas em situação fora <strong>do</strong> contexto ritual. Com a presente tese,


12preten<strong>do</strong> seguir vári<strong>os</strong> pont<strong>os</strong> abert<strong>os</strong> pela pesquisa de mestra<strong>do</strong>, no senti<strong>do</strong>de elaborar uma etnografia densa <strong>do</strong> ritual de iamurikuma e estabelecer umarelação deste com outr<strong>os</strong> rituais e com a mitologia xinguana. A música, nestecenário, representa uma via de acesso privilegiada à c<strong>os</strong>mologia e àsociabilidade <strong>Wauja</strong> visto que é através da música que o mito se transforma emrito e o tempo c<strong>os</strong>mológico é recria<strong>do</strong> e projeta<strong>do</strong> no espaço <strong>do</strong> presentecronológico 9 .No Capítulo I, procuro basicamente m<strong>os</strong>trar como foi meu trabalho decampo, e como tenho desde então procura<strong>do</strong> desenvolver uma relação de mãodupla com <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>. Trato <strong>do</strong> papel <strong>do</strong> trabalho de campo feito em família,seus desafi<strong>os</strong> e benefíci<strong>os</strong>. Apresentan<strong>do</strong> a casa de Atamai, onde me h<strong>os</strong>pedeicom meu mari<strong>do</strong> e filha, e comento questões da socialidade, especialmente aimportância das trocas e das fofocas. Termino este capítulo falan<strong>do</strong> sobre <strong>os</strong>rituais que observei, sobre como obtive <strong>os</strong> dad<strong>os</strong> da pesquisa, sobre as viagense <strong>os</strong> diferentes cenári<strong>os</strong> de onde se originou esta tese.No Capítulo II, comento a sociedade xinguana a partir de vári<strong>os</strong> autores:trato, aí, de seu caráter contrastivo em relação a<strong>os</strong> não-xinguan<strong>os</strong>, <strong>do</strong> sistemasócio-cultural, da questão da comunicação, das línguas e da p<strong>os</strong>sível origemaruak de alguns rituais. Detenho-me n<strong>os</strong> rituais xinguan<strong>os</strong>, espaç<strong>os</strong> de diálog<strong>os</strong>cerimoniais, discutin<strong>do</strong> seus nex<strong>os</strong> e complementaridades. Do papel central damúsica n<strong>os</strong> rituais xinguan<strong>os</strong>, passo para o comentário sobre as pesquisassobre música xinguana que representam <strong>os</strong> alicerces de meu trabalho. Apósisto, apresento <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, suas aldeias, subsistência, atividades sazonais, seupensamento sobre o que significa ser xinguano e sobre a importância da troca,alguns aspect<strong>os</strong> <strong>do</strong> parentesco, <strong>do</strong> sistema de chefia e <strong>do</strong> faccionalismo. Davida ritual <strong>Wauja</strong>, comento seus vári<strong>os</strong> rit<strong>os</strong> e apresento uma classificaçãotripartite. Adentro, então, a c<strong>os</strong>mologia e o xamanismo deste povo,comentan<strong>do</strong> sua c<strong>os</strong>mogonia e o mun<strong>do</strong> d<strong>os</strong> espírit<strong>os</strong> apapaatai, sua concepçãode <strong>do</strong>ença e as terapias xamânicas, tu<strong>do</strong> em term<strong>os</strong> de uma ética-estética queenvolve as paixões e seu controle. No final desta seção, há uma breve biografiade meus principais informantes.9 Sobre esta relação <strong>entre</strong> mito e rito, ver Menezes Bast<strong>os</strong> (1999a). Sobre tempoc<strong>os</strong>mológico e cronológico, ver Leach (1974: 191-203).


13No capítulo III, trato da conjunção <strong>entre</strong> o ritual de iamurikuma e o dasflautas kawoká, passan<strong>do</strong> por uma discussão sobre as flautas sagradas e a casad<strong>os</strong> homens. Este é a abertura para a apresentação e comentário de umconjunto de mit<strong>os</strong> relacionad<strong>os</strong> ao complexo iamurikuma-kawoká, m<strong>os</strong>tran<strong>do</strong> apertinência <strong>do</strong> código sonoro-visual, das substâncias transforma<strong>do</strong>ras e de umaestética <strong>do</strong> logro. Uma narrativa <strong>do</strong> mito de iamurikuma é, então, apresentada,juntamente com transcrições musicais de seus cant<strong>os</strong>, sen<strong>do</strong> objeto decomentári<strong>os</strong> que procuram chegar ao coração <strong>do</strong> complexo iamurikumakawoká,onde residem as diferenças de gênero, a quebra da reciprocidade, atransformação em apapaatai, <strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong> e a musicalidade.O Capítulo IV é uma descrição densa <strong>do</strong> ritual de iamurikuma queobservei em 2001. Sigo <strong>os</strong> aconteciment<strong>os</strong> de forma cronológica, apresentan<strong>do</strong>transcrições musicais e exegeses de um conjunto substancial de canções.No Capítulo V, o ritual tem vári<strong>os</strong> de seus aspect<strong>os</strong> comentad<strong>os</strong>, como asformações coreográficas, a saliência <strong>do</strong> político na rede de relações sociais<strong>entre</strong> <strong>os</strong> protagonistas <strong>do</strong> rito, e o senti<strong>do</strong> das músicas sagradas kanupá. Nestecapítulo se encontram análises musicais detalhadas das canções, enfocan<strong>do</strong>principalmente o nível rítmico-motívico e as diversas operações que são alipraticadas. M<strong>os</strong>tra-se aqui as diferenças <strong>entre</strong> <strong>os</strong> repertóri<strong>os</strong> de iamurikuma ekawokakuma, bem como a complementaridade <strong>entre</strong> este último e a música deflautas kawoká.Finalmente, nas Considerações Finais tratarei da questão d<strong>os</strong> rituais degênero e seus nex<strong>os</strong> com a ética e a política <strong>Wauja</strong>, destacan<strong>do</strong> a questão dareciprocidade e <strong>do</strong> sentimento de ciúme-inveja como motor da socialidade, amúsica constituin<strong>do</strong>-se a forma ideal de expressão destes sentiment<strong>os</strong>.Com esta tese, preten<strong>do</strong> estar contribuin<strong>do</strong> simultaneamente para ocampo da etnologia indígena, da antropologia da música e d<strong>os</strong> estud<strong>os</strong> dasrelações de gênero. Ao tratar d<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> das iamurikuma, espero tambémpoder trazer, mais especificamente, o ponto de vista das mulheres <strong>Wauja</strong> paraas discussões da etnologia amazônica, contribuin<strong>do</strong> para que o universofeminino também venha compor o quadro destes estud<strong>os</strong> de forma maisconsistente.


14CAPÍTULO IO trabalho de campo <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>Meu primeiro contato com <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> se deu na aldeia Piulaga, durante oprimeiro semestre de 1998, quan<strong>do</strong> fui realizar pesquisa de campo para omestra<strong>do</strong> e constituir uma coleção etnográfica de objet<strong>os</strong> de sua culturamaterial para o Museu de Arqueologia e Etnologia da <strong>Universidade</strong> Federal daBahia 10 . Nesta primeira incursão, permaneci <strong>do</strong>is meses <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>. Elesestavam enlutad<strong>os</strong> e muito preocupad<strong>os</strong> com as conseqüências que a morterecém ocorrida de um jovem recluso poderia trazer para tod<strong>os</strong>, visto que foraatribuída à feitiçaria.Não era, portanto, um tempo de festas, mas de tristeza e preocupação.No entanto, como sabiam de meu interesse por festas e rituais, algumaspessoas se aproximaram para m<strong>os</strong>trar-me algo <strong>do</strong> que conheciam nesta área.De outras pessoas eu me aproximei por ficar saben<strong>do</strong> de sua excelênciamusical. Desta forma, fui reunin<strong>do</strong> gravações de uma série de cant<strong>os</strong>,informações sobre <strong>os</strong> rituais em que se inseriam estes cant<strong>os</strong>, bem como sobremit<strong>os</strong> relacionad<strong>os</strong> a<strong>os</strong> rit<strong>os</strong>.Um informante importante, desde o princípio, foi Kaomo, um d<strong>os</strong>homens mais velh<strong>os</strong> da aldeia, considera<strong>do</strong> o principal flautista. Este senhor seaproximou de mim e resolveu me a<strong>do</strong>tar como filha. A princípio não entendimuito bem o porque deste seu interesse, afinal não morávam<strong>os</strong> na mesmacasa, n<strong>os</strong>sas conversas eram bastante truncadas pela minha total ignorância dalíngua <strong>Wauja</strong> naquele momento e por seu desconhecimento <strong>do</strong> português. Alémdisso, Kaomo era um homem muito reserva<strong>do</strong>, de pouca fala, mesmo nasreuniões cotidianas <strong>entre</strong> outr<strong>os</strong> homens da aldeia. Contu<strong>do</strong>, tomei de bomgra<strong>do</strong> sua simpatia por mim e não declinei desta amável a<strong>do</strong>ção. A partir deentão, fui inserida no quadro <strong>do</strong> parentesco local, adquirin<strong>do</strong> imediatamentemuit<strong>os</strong> irmã<strong>os</strong>, prim<strong>os</strong>, cunhad<strong>os</strong>, ti<strong>os</strong> e sobrinh<strong>os</strong>. Pouco mais tarde, me dei10 Esta coleção, realizada conjuntamente com meu colega de mestra<strong>do</strong> AristótelesBarcel<strong>os</strong> Neto, é comp<strong>os</strong>ta de 282 peças e faz parte <strong>do</strong> acervo <strong>do</strong> MAE/UFBA sob o título“Coleção Aristóteles Barcel<strong>os</strong> e Maria Ignez Mello”.


15conta de que Kaomo seria um informante chave para toda a pesquisa, pois éum d<strong>os</strong> pouc<strong>os</strong> que <strong>do</strong>mina to<strong>do</strong> o complexo iamurikuma-kawoká.Depois deste primeiro contato, outr<strong>os</strong> se seguiram, porém, desta vez,fora <strong>do</strong> <strong>Xingu</strong>. Em novembro <strong>do</strong> mesmo ano, a convite d<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, fui meencontrar com um grupo de <strong>do</strong>ze homens e uma mulher <strong>Wauja</strong> em uma feirade artesanato da qual iriam participar em Belo Horizonte. Eles haviam si<strong>do</strong>contratad<strong>os</strong> para construir uma casa "típica" xinguana no espaço deexp<strong>os</strong>ições, e também para participar da feira dançan<strong>do</strong>, cantan<strong>do</strong> e vendend<strong>os</strong>eu artesanato.Um outro encontro se deu em São J<strong>os</strong>é <strong>do</strong> Rio Preto, no esta<strong>do</strong> de SãoPaulo, por ocasião da Semana <strong>do</strong> Índio de 1999. Desta vez, dezessete pessoas<strong>Wauja</strong> - contan<strong>do</strong> agora quatro moças - foram contratad<strong>os</strong> pelo SESC paraprocederem da mesma forma que em Belo Horizonte, ou seja, construir umacasa, cantar e dançar para <strong>os</strong> visitantes <strong>do</strong> espaço de exp<strong>os</strong>ições. Estes <strong>do</strong>isencontr<strong>os</strong> tiveram uma duração de aproximadamente dez dias cada 11 .Em outubro de 2000, h<strong>os</strong>pedei em minha casa por quinze dias um casal<strong>Wauja</strong> e seu filho de um ano. O rapaz, Tupanumaká, havia si<strong>do</strong> meu tradutorna aldeia e estava procuran<strong>do</strong> alguma forma de desenvolver projet<strong>os</strong> querevertessem em favor de seu povo. Assim, nesta sua estadia em Florianópolis,iniciam<strong>os</strong> a redação de um projeto visan<strong>do</strong> realizar um velho desejo destesíndi<strong>os</strong>: uma viagem à aldeia d<strong>os</strong> índi<strong>os</strong> Bakairí, fora d<strong>os</strong> limites da TerraIndígena <strong>do</strong> <strong>Xingu</strong>, para visitar seus antig<strong>os</strong> vizinh<strong>os</strong> 12 .Já inician<strong>do</strong> minha pesquisa de campo <strong>do</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>, em ag<strong>os</strong>to de2001, não sem antes passar por muita dificuldade para levantar <strong>os</strong> recurs<strong>os</strong>necessári<strong>os</strong> para uma viagem tão cara, cheguei à aldeia Piulaga. Desta vez, fuiem família, juntamente com meu companheiro Acácio, também pesquisa<strong>do</strong>r eantropólogo, e n<strong>os</strong>sa filha Júlia, na época com nove an<strong>os</strong> de idade.Permanecem<strong>os</strong> to<strong>do</strong> o segun<strong>do</strong> semestre de 2001 <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, perío<strong>do</strong> emque ocorreram muit<strong>os</strong> rituais, d<strong>entre</strong> <strong>os</strong> quais destaco o <strong>do</strong> pequi, o de kawoká,e o de iamurikuma. Esta etapa durou cinco meses.11 Estes encontr<strong>os</strong> foram ocasiões excelentes para poder observar algumas questõesrelativas ao contato d<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> com a vida urbana. Em Mello (2003), desenvolvoalgumas idéias, relacionan<strong>do</strong> a c<strong>os</strong>mologia às experiências deste contato.12 Esta viagem deu-se em junho de 2002 com o apoio da Funai através <strong>do</strong> Museu <strong>do</strong>Índio/RJ. A etnografia deste encontro é tema de um trabalho em elaboração.


16Ter volta<strong>do</strong> para o campo com minha família representou uma grandemudança na relação d<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> comigo. Até então, durante to<strong>do</strong> o tempo emque estive <strong>entre</strong> eles, sempre fui questionada por dizer que era casada e, aindaassim, permanecer tanto tempo longe <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Para alguns, não pareciarazoável que uma mulher ficasse tanto tempo “sem namorar”, enquanto que,para outr<strong>os</strong>, havia dúvida sobre a veracidade da minha identidade de mulhercasada e com uma filha, dúvida que era por vezes assim verbalizada: “será quevocê tem mari<strong>do</strong> mesmo? Será que tem filha de verdade?”. Sen<strong>do</strong> assim, tervolta<strong>do</strong> para a aldeia e ter i<strong>do</strong> com minha família resolveu esta dúvida epromoveu um aprofundamento n<strong>os</strong> laç<strong>os</strong> com as pessoas junto às quaispesquisei.Estar em família no campo me fez perceber o quanto é importante, paraa própria qualidade d<strong>os</strong> dad<strong>os</strong>, que as pessoas com as quais n<strong>os</strong> relacionam<strong>os</strong>p<strong>os</strong>sam ter mei<strong>os</strong> de n<strong>os</strong> avaliar. Ou seja, que p<strong>os</strong>sam também observar n<strong>os</strong>socomportamento e freqüentar um pouco de n<strong>os</strong>sa intimidade, desta formaconstruin<strong>do</strong> uma imagem mais ampliada e realista a n<strong>os</strong>so respeito. Creio quea oportunidade d<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> de terem visto como me relaciono com minha famíliae de terem podi<strong>do</strong> tirar melhores conclusões não só a meu respeito, mastambém daqueles com quem vivo, produziu um s<strong>alto</strong> p<strong>os</strong>itivo na qualidade den<strong>os</strong>sas relações: afinal, eles também poderiam pesquisar um pouco, poderiammatar algumas curi<strong>os</strong>idades que têm a respeito de como nós, kajaopa 13 ,vivem<strong>os</strong>.No entanto, sei que esta preocupação em estabelecer uma relação demão dupla com as pessoas que pesquisam<strong>os</strong> não é unânime <strong>entre</strong> <strong>os</strong>pesquisa<strong>do</strong>res. Muit<strong>os</strong> fogem da responsabilidade que uma relação deste tipocoloca: saben<strong>do</strong>-se em uma p<strong>os</strong>ição economicamente melhor que seu “objetode pesquisa”, muit<strong>os</strong> procuram não se fazer acessíveis quan<strong>do</strong> estão na cidade,ou mesmo ignoram qualquer pleito que parta d<strong>os</strong> índi<strong>os</strong> com me<strong>do</strong> de se verem“espoliad<strong>os</strong>”, de se sentirem “usad<strong>os</strong>” ou de estarem fazen<strong>do</strong> um papelassistencialista que não lhes cabe.Não existe uma fórmula ou cartilha que ensine ao pesquisa<strong>do</strong>r o quantoele deve dar e o quanto pode esperar receber, ou, a partir de quan<strong>do</strong> e quanto13 Kajaopa é a palavra <strong>Wauja</strong>, de origem tupi, para designar <strong>os</strong> “caraíba”, <strong>os</strong> não índi<strong>os</strong>.


17se está sen<strong>do</strong> paternalista, ou egoísta. Ninguém detém a medida correta dareciprocidade. Assim como qualquer relação, aquela que estabelecem<strong>os</strong> emcampo deve ser criada em conjunto, a partir de expectativas convergentes, eassim as regras vão se estabelecen<strong>do</strong> pela prática e pelo c<strong>os</strong>tume. É de umaconvivência de confiança e respeito que se pode esperar uma relação men<strong>os</strong>assimétrica <strong>entre</strong> as partes e a projeção dela sobre um texto etnográfico, assimcertamente mais consistente 14 .Ter aberto a p<strong>os</strong>sibilidade d<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> virem à minha casa, bem como deresponder a seus chamad<strong>os</strong> quan<strong>do</strong> eles estão na cidade 15 , pareceu-me ser omínimo que poderia fazer na medida em que compactuo com uma corrente daantropologia que crê em uma relação dialógica <strong>entre</strong> pesquisa<strong>do</strong>r e pesquisa<strong>do</strong>,que ap<strong>os</strong>ta em uma relação que promova também a compreensão <strong>do</strong> outro an<strong>os</strong>so respeito 16 .Logo na primeira semana que chegam<strong>os</strong> na aldeia Piulaga, ten<strong>do</strong> recémtermina<strong>do</strong> um ritual de kwaryp, Kaomo, meu pai a<strong>do</strong>tivo, n<strong>os</strong> chamou ao centroda aldeia para que participássem<strong>os</strong> de uma cerimônia de nominação que estavaocorren<strong>do</strong> naquele fim de tarde. Quan<strong>do</strong> chegam<strong>os</strong> no centro da aldeia, váriaspessoas já haviam troca<strong>do</strong> de nomes e, depois de n<strong>os</strong> batizarem, outr<strong>os</strong> tant<strong>os</strong>ainda o fizeram. Cerca de vinte pessoas mudaram de nome neste dia.Passaram a me chamar Ulupukumalu, um d<strong>os</strong> nomes da falecida mãe deKaomo, enquanto que minha filha Júlia passou a ser chamada de Mawanalu,14 A idéia de uma busca por relações mais simétricas <strong>entre</strong> pesquisa<strong>do</strong>r e pesquisa<strong>do</strong> édensamente tratada por Card<strong>os</strong>o de Oliveira (1998). Também se encontra em Schapiro& Sica (1984) uma discussão semelhante, tratan<strong>do</strong> da perspectiva hermenêutica napesquisa antropológica. A antropologia pós-moderna m<strong>os</strong>tra como tal p<strong>os</strong>tura temimplicações diretas sobre o texto etnográfico, fazen<strong>do</strong> com que a etnografia seja maisvívida e acessível através das vozes d<strong>os</strong> nativ<strong>os</strong>, tornan<strong>do</strong> presentes as relações depoder, imprevist<strong>os</strong> e a subjetividade (Clifford, 1988; Crapanzano, 1992; Marcus &Fisher, 1986). Como n<strong>os</strong> lembram, em diferentes moment<strong>os</strong>, D. Tedlock (1983) eStoller (1989), buscar este tipo de aproximação com <strong>os</strong> nativ<strong>os</strong> significa também tornara etnografia mais científica, já que expõe de forma mais fiel a realidade <strong>do</strong> trabalho decampo.15 Freqüentemente <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> se h<strong>os</strong>pedam na casa de minha mãe em São Paulo,ocasiões em que levam artesanato para vender.16 Tal é o caso <strong>do</strong> “caminho dialógico” na escrita antropológica, conforme apresenta<strong>do</strong>por D. Tedlock (1986), no qual são ressaltad<strong>os</strong> aspect<strong>os</strong> que, na tradição “analógica”,são normalmente ocultad<strong>os</strong> –tradição aquela da etnografia clássica, onde a voz <strong>do</strong>nativo é sistematicamente subtraída e cuja forma <strong>do</strong>minante é o monólogo.


18um d<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> nomes desta minha “avó”. Acácio ganhou o nome de Wajai 17 , efoi inseri<strong>do</strong> em uma grande rede de relações de afinidade, passan<strong>do</strong> a ter, apartir de então, sogro, muit<strong>os</strong> cunhad<strong>os</strong> e alguns sobrinh<strong>os</strong> 18 .Um outro ponto importante a ser esclareci<strong>do</strong> sobre as condições <strong>do</strong>trabalho de campo refere-se ao fato de que, em minha primeira estadia naaldeia Piulaga, fui informada de que não teria permissão para pesquisar asflautas kawoká pelo fato de ser mulher. O material de que dispus para minhastranscrições e análises da música destas flautas na dissertação foi provenientede uma fita cassete gravada pel<strong>os</strong> própri<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> em um ritual ocorri<strong>do</strong> em1997, e que me foi dada de presente por eles, como uma espécie de consolopor não ter podi<strong>do</strong> ver as flautas sagradas. Como a interdição visual das flautaskawokatãi 19 não é tão estrita quanto a das flautas kawoká, meu pai, Kaomo,tocou para mim uma série de músicas de kawoká, porém executadas nakawokatãi. No mesmo dia em que fiz estas gravações, Atamai, o chefe daaldeia e <strong>do</strong>no da casa em que eu vivia, sugeriu que eu voltasse uma outra vezacompanhada de meu mari<strong>do</strong> para que ele gravasse as flautas. Apesar <strong>do</strong> chefedesconhecer o que meu companheiro fazia profissionalmente, sua sugestãoveio muito a calhar: além de ser antropólogo, ele também pesquisava a músicaindígena amazônica, com especial interesse na música no complexo das flautassagradas, inicialmente <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Tukano no Alto Rio Negro (Piedade, 1997,1999).Desta forma, a sugestão de Atamai foi providencial para queorganizássem<strong>os</strong> n<strong>os</strong>sas pesquisas de <strong>do</strong>utoramento em conjunto, o que n<strong>os</strong>pareceu abrir um novo campo de p<strong>os</strong>sibilidades na troca de dad<strong>os</strong> etnográfic<strong>os</strong>.De imediato, surge a questão de gênero como um aspecto geral de n<strong>os</strong>sas17 Ulupukumalu quer dizer “urubu rei + superlativo feminino”, Mawanalu, “sem braço +feminino” e Wajai é o nome de um peixe.18 É curi<strong>os</strong>o notar que minha filha e eu tenham<strong>os</strong> recebi<strong>do</strong> nomes de uma mesmapessoa visto que, na lógica <strong>do</strong> sistema onomástico local, <strong>os</strong> nomes são passad<strong>os</strong> porgeração alternada. No entanto, credito esta exceção ao fato de não pertencerm<strong>os</strong>efetivamente à sociedade <strong>Wauja</strong>, não levan<strong>do</strong> a maiores conseqüências futuras.19 Kawokatãi é uma pequena flauta kawoká (tãi é sufixo diminutivo em <strong>Wauja</strong>, poden<strong>do</strong>também indicar uma criança ou um filho). É utilizada em alguns rituais de cura e paraaprendizagem da flauta maior, sen<strong>do</strong> que sua interdição visual para mulheres é maisbranda; ou seja, se uma mulher olhar para um flautista tocan<strong>do</strong> esta pequena flautapoderá ser recriminada, não ocorren<strong>do</strong> maiores complicações, como no caso das flautaskawoká.


19pesquisas, inclusive no que concerne a meto<strong>do</strong>logia 20 . Além das questõesmusicais e d<strong>os</strong> dad<strong>os</strong> relativ<strong>os</strong> a<strong>os</strong> rituais, poderíam<strong>os</strong> fornecer um ao outro <strong>os</strong>pont<strong>os</strong> de vista de homens e mulheres em amb<strong>os</strong> <strong>os</strong> rituais, contribuin<strong>do</strong> assimpara uma maior qualidade d<strong>os</strong> dad<strong>os</strong> e para a apresentação de uma visãomulti-centrada da sociedade <strong>Wauja</strong>, tanto no que diz respeito a<strong>os</strong> rituaisquanto à vida cotidiana. A presente tese é, portanto, fruto de um trabalhoconjunto que, apesar de produzir duas obras independentes, foi basea<strong>do</strong> emestratégias comuns de pesquisa, no compartilhamento d<strong>os</strong> dad<strong>os</strong> de amb<strong>os</strong> <strong>os</strong>pesquisa<strong>do</strong>res e na constante interlocução sobre tod<strong>os</strong> as hipóteses levantadase resultad<strong>os</strong> obtid<strong>os</strong> 21 .Ir com a família para o campo, no entanto, não foi tarefa fácil, pois,cuidar de uma menina de nove an<strong>os</strong>, ac<strong>os</strong>tumada com tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> confort<strong>os</strong> dacidade, requer tempo e paciência. Para Júlia também não foi nada fácil seadaptar a uma existência prolongada em ambiente tão diverso: ir ao banheiroonde não há banheiro e sim um mato fecha<strong>do</strong> cheio de inset<strong>os</strong> e com animaispotencialmente perig<strong>os</strong><strong>os</strong> à espreita, ter que <strong>do</strong>rmir em rede por quase seismeses, não poder ter cert<strong>os</strong> desej<strong>os</strong> gastronômic<strong>os</strong>, pois sabia que não seriamrealizad<strong>os</strong>. Além disso, a maior dificuldade para ela talvez tenha si<strong>do</strong> ainteração com as outras crianças, visto que não falam português e nós, <strong>os</strong> pais,20Segun<strong>do</strong> Bellier (1993) e Obeler (1986), as mulheres etnólogas teriam certavantagem sobre <strong>os</strong> homens em campo, na medida em que podem circular <strong>entre</strong> asmulheres com mais desenvoltura que <strong>os</strong> pesquisa<strong>do</strong>res homens, ao mesmo tempo emque também, por serem "estrangeiras", são tomadas como p<strong>os</strong>síveis interlocutoras d<strong>os</strong>homens. Porém, como n<strong>os</strong> lembra Barbara Tedlock (1995), d<strong>entre</strong> as muitas estratégiasdas mulheres antropólogas -tanto para serem aceitas no campo quanto para verem seutrabalho reconheci<strong>do</strong> academicamente- está a de a<strong>do</strong>tar uma p<strong>os</strong>tura de "homemhonorário" que, ao final, as coloca no incômo<strong>do</strong> papel de "pseu<strong>do</strong>-homem", nãorepresentan<strong>do</strong> assim qualquer vantagem para o resulta<strong>do</strong> final de seu trabalho. Devoconcordar com ambas as p<strong>os</strong>ições pois senti, em minha primeira estadia na aldeia, quealgumas mulheres me tratavam de maneira um tanto fria pelo fato de eu estarfreqüentan<strong>do</strong> a “casa d<strong>os</strong> homens”, espaço que me foi libera<strong>do</strong> pelo chefe da aldeiadesde minha chegada. Ao mesmo tempo, apesar de estrangeira, não fui considerada“homem honorário” suficientemente para poder ver as flautas sagradas. Já em meuretorno, acompanhada de mari<strong>do</strong> e filha, senti que essa frieza se dissipou e fui maisbem aceita por tod<strong>os</strong>. No entanto, o fato de ser mulher permitiu que eu circulasse commais desenvoltura tanto <strong>entre</strong> as rodas de homens quanto de mulheres, diferentementede meu companheiro, que sempre manteve certa evitação em relação a<strong>os</strong> grup<strong>os</strong>feminin<strong>os</strong>. Sobre questões de gênero que envolvem a pesquisa de campo feita pormulheres, ver também Jackson (1986).21 Na etnologia, pesquisas em casal não são tão raras, como vem<strong>os</strong> n<strong>os</strong> exempl<strong>os</strong> deYolanda e Robert Murphy, Cristine e Stephen Hugh-Jones, Hélène e Pierre Clastres, paran<strong>os</strong> manterm<strong>os</strong> apenas nas Terras Baixas da América <strong>do</strong> Sul.


20também não poderíam<strong>os</strong> ajudá-la muito, já que n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> conheciment<strong>os</strong> em<strong>Wauja</strong> eram, de início, muito restrit<strong>os</strong>. Algumas brincadeiras d<strong>os</strong> menin<strong>os</strong>deixaram Júlia revoltada, como a caça a passarinh<strong>os</strong>, ou a tortura a quesubmeteram uma ema que, por azar, apareceu na aldeia. Em outras atividadesela <strong>os</strong> acompanhava, como n<strong>os</strong> passei<strong>os</strong> pelo mato para colher mangaba, ousimplesmente as corridas até o local de banho. Com o passar <strong>do</strong> tempo, e coma insistência das meninas da aldeia em se aproximarem de Júlia, sua adaptaçãofoi evoluin<strong>do</strong>. À medida que ia aprenden<strong>do</strong> um pouco mais da língua, asp<strong>os</strong>sibilidades de interação aumentavam, e a brincadeira de pular corda, queaparentemente as crianças <strong>Wauja</strong> não conheciam, acabou levan<strong>do</strong> a umainteração muito boa. Isto a ponto de, ao se aproximar o dia de n<strong>os</strong>so retorno àcidade, Júlia desatar a falar em <strong>Wauja</strong> e não querer mais ir embora. N<strong>os</strong>últim<strong>os</strong> dias na aldeia, Júlia começou a ficar triste e melancólica, já preven<strong>do</strong> asaudade que sentiria de tu<strong>do</strong> e de tod<strong>os</strong>. Curi<strong>os</strong>amente, Atamai resolveu oproblema da seguinte forma: ele se aproximou de Júlia e n<strong>os</strong> disse: “podedeixar a menina aqui que a gente cuida dela. Quan<strong>do</strong> ela ficar moça a gentearranha ela, prende, faz tu<strong>do</strong> direito pra ela ficar forte. Pode deixar ela aquimesmo”. Neste mesmo instante, Júlia deu uma risada e se pôs a arrumar suascoisas para ir embora, não queren<strong>do</strong> passar por to<strong>do</strong> o ritual de iniciação quehavia presencia<strong>do</strong> acontecer com uma de suas amiguinhas da aldeia que haviamenstrua<strong>do</strong> durante n<strong>os</strong>sa estadia em Piulaga 22 .Estar com Júlia na aldeia chamou-me a atenção para vári<strong>os</strong> dad<strong>os</strong> queteriam passa<strong>do</strong> despercebid<strong>os</strong> caso ela não estivesse junto. Principalmenteaqueles relacionad<strong>os</strong> ao mun<strong>do</strong> infantil, à convivialidade e à formação <strong>do</strong>indivíduo <strong>Wauja</strong>. A forte delimitação de espaç<strong>os</strong> e atividades ocupadas porhomens e mulheres se inicia muito ce<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> as crianças nem sequeraprenderam a falar direito. É raro ver meninas e menin<strong>os</strong> brincan<strong>do</strong> junt<strong>os</strong>, anão ser que se trate de alguma disputa, como no futebol, ou de brincadeirasque imitam as disputas físicas d<strong>os</strong> adult<strong>os</strong> durante a festa <strong>do</strong> pequi. Gregordescreve, <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Mehinaku (1982, 1985), que é muito comum haver22 Assim que esta garota menstruou, ela desapareceu <strong>do</strong> convívio <strong>do</strong> grupo e ficou,durante toda n<strong>os</strong>sa estadia na aldeia, enclausurada em casa, como é o c<strong>os</strong>tume. Paranós isto foi um acontecimento normal, amplamente divulga<strong>do</strong> na etnografia xinguana.Mas para Júlia, a ausência forçada e abrupta, bem como a imp<strong>os</strong>sibilidade dereencontrar a amiga, foram impressionantes.


21brincadeiras de grup<strong>os</strong> de meninas e menin<strong>os</strong> pré-a<strong>do</strong>lescentes envolven<strong>do</strong>atividades que chamaríam<strong>os</strong> de “iniciação sexual precoce”. Geralmente taisbrincadeiras ocorrem no mato, longe d<strong>os</strong> olh<strong>os</strong> d<strong>os</strong> adult<strong>os</strong>, apesar daconstante vigilância. Não estou certa se as crianças seriam reprimidas pel<strong>os</strong>adult<strong>os</strong> se flagradas com estas brincadeiras. O fato é que nenhum de nós trêspresenciou nada disto. Talvez até mesmo por um excesso de zelo de minhaparte, procurei manter Júlia sempre por perto. Afinal, se <strong>entre</strong> eles taisbrincadeiras aparentemente fazem parte <strong>do</strong> leque de p<strong>os</strong>sibilidades concretas,elas pareceram-me prematuras para uma menina criada na cidade, cujarealidade não inclui práticas sexuais infantis tão explicitas quanto lá.De mo<strong>do</strong> geral, as crianças ficam soltas pela aldeia, poden<strong>do</strong> entrar emqualquer casa, diferentemente d<strong>os</strong> adult<strong>os</strong>, que devem guardar certa distânciaem relação a determinadas casas. Porém, esta liberdade é vigiada: tod<strong>os</strong>cuidam para que nada aconteça, e o que é mais importante, sem intervençãodireta. Por exemplo, é muito comum ver crianças pequenas manusean<strong>do</strong>grandes facões e ninguém dizer nada: <strong>os</strong> adult<strong>os</strong> ficam só olhan<strong>do</strong> de longe.Mas, quan<strong>do</strong> ocorre algum acidente, as mães são as primeiras a darem broncasnas crianças, dizen<strong>do</strong> que já avisaram que não era para fazer aquilo, que andarde bicicleta e mexer com faca é perig<strong>os</strong>o, que não devem brincar na caçamba<strong>do</strong> trator porque é perig<strong>os</strong>o, etc; ou seja, parece-me que <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> ap<strong>os</strong>tam emuma educação que parte da experiência concreta para o aprendiza<strong>do</strong>, seja umaexperiência segura ou com a presença de erro e perigo.Esta ampla liberdade de descobrir o mun<strong>do</strong> em sua crueza é antecedidapor um <strong>do</strong>ce perío<strong>do</strong> de total proximidade com a mãe: até que uma criançap<strong>os</strong>sa andar, ela praticamente não perde o contato físico com o corpo materno.Até o desmame total, a criança está sempre próxima à mãe, <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> junto aela, o que certamente confere segurança emocional e tranqüilidade. Quan<strong>do</strong>nasce um irmãozinho, porém, há uma passagem um tanto abrupta para a dura“liberdade”: a criança passa a <strong>do</strong>rmir em sua própria rede e, se for menino, aficar mais com o pai. À noite, pude ouvir <strong>os</strong> melodi<strong>os</strong><strong>os</strong> lament<strong>os</strong> de um meninoque perdera o “trono” para uma irmãzinha recém-nascida. Perdi<strong>do</strong> este lastrofísico com a mãe, inicia-se então uma fase de passar o dia a brincar e correrpor toda a aldeia. Ao observar crianças nesta fase, parece que o mun<strong>do</strong> é


22delas: entram onde querem, saem, voltam, comem em qualquer das casas,fazem o que querem, incluin<strong>do</strong> experimentar o sexo e lidar com artefat<strong>os</strong>perig<strong>os</strong><strong>os</strong>. A pedagogia <strong>Wauja</strong> é empírica, a prevenção não é aplicada. Somenteapós o acidente surge o discurso da moralidade.Durante to<strong>do</strong> o tempo em que estive na aldeia Piulaga, me h<strong>os</strong>pedei nacasa de Atamai. Ele vem representan<strong>do</strong>, por muito tempo, a segunda chefia daaldeia, ou seja, aquela que é voltada para o mun<strong>do</strong> d<strong>os</strong> kajaopa, enquanto queseu irmão mais velho, Iutá, é o chefe principal, aquele que conhece <strong>os</strong> rituais eas práticas locais corretas. Esta dupla chefia é comum atualmente em to<strong>do</strong> o<strong>alto</strong> <strong>Xingu</strong>, mas é uma questão sensível <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, que discutirei maisadiante. Por hora, basta dizer que o chefe político, aquele que conduz asdecisões, é Atamai. Este senhor sempre demonstrou desconfiança de tu<strong>do</strong> queviesse de fora, de qualquer novidade que envolvesse saídas de pessoas daaldeia ou entrada de estrangeir<strong>os</strong> 23 . Creio que esta desconfiança se deve emgrande parte ao convívio estreito de Atamai com Orlan<strong>do</strong> Villas Boas, durantesua a<strong>do</strong>lescência e a longa permanência <strong>do</strong> sertanista no <strong>Xingu</strong>.Sem pretender diminuir a importância d<strong>os</strong> irmã<strong>os</strong> Villas Boas na região,creio que a “engenharia indigenista” (Menezes, 2001) empregada por elescomeça com uma sedução, mas acaba com um tipo de aban<strong>do</strong>no (Ram<strong>os</strong>,1995), pois se mantém um tom paternalista que excluiu sistematicamente asopiniões d<strong>os</strong> índi<strong>os</strong> sobre várias questões. O próprio Atamai, em algumas den<strong>os</strong>sas conversas, esboçou um certo ressentimento em relação à forma comoera trata<strong>do</strong> por Orlan<strong>do</strong> que, segun<strong>do</strong> ele, sempre o tratou como se f<strong>os</strong>se umacriança incompetente. O feito histórico d<strong>os</strong> irmã<strong>os</strong> Villas Boas, para além de suaimportância para <strong>os</strong> pov<strong>os</strong> xinguan<strong>os</strong> e para o cenário indígena nacional,merece hoje ser revisto sob uma perspectiva crítica. A desconstrução destahistória pode revelar muito acerca da forma como vivem e pensam <strong>os</strong>xinguan<strong>os</strong>. Desta forma, Atamai não agiria de forma diferente con<strong>os</strong>co e,apesar de sua explícita simpatia por Júlia, durante to<strong>do</strong> o tempo senti suadesconfiança pairan<strong>do</strong> sobre nós.Viviam cerca de vinte pessoas na casa de Atamai, <strong>entre</strong> filhas, genr<strong>os</strong> enet<strong>os</strong>, além de sua esp<strong>os</strong>a, Pakairu, uma mulher Trumai muito inteligente e23 Ver outr<strong>os</strong> dad<strong>os</strong> sobre a biografia d<strong>os</strong> informantes ao final <strong>do</strong> Capítulo II.


23poliglota, e sua mãe, Kauné, a mulher mais velha da aldeia. Para tristeza deJúlia, só havia uma menina pequena em n<strong>os</strong>sa casa, as demais crianças erammenin<strong>os</strong>, tod<strong>os</strong> disp<strong>os</strong>t<strong>os</strong> a provocá-la: afinal não é sempre que se tem umamenina kajaopa em casa para irritar. Eles davam nó em seus cabel<strong>os</strong> ousumiam com suas canetinhas coloridas, um d<strong>os</strong> pouc<strong>os</strong> <strong>entre</strong>teniment<strong>os</strong> deJúlia na aldeia.A casa de Atamai era a maior da aldeia. Construída de acor<strong>do</strong> com aestrutura oval típica das casas xinguana, com cerca de vinte e cinco metr<strong>os</strong> decomprimento, oito de altura, e uma largura de aproximadamente onze. Todasas casas da aldeia têm apenas duas pequenas aberturas, uma de frente para aoutra, voltadas uma para o centro da aldeia e a outra para o fun<strong>do</strong>, local ondeas pessoas c<strong>os</strong>tumam cozinhar, ralar mandioca, ou passar o tempo sentadasem família, fazen<strong>do</strong> pequen<strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong> ou cuidan<strong>do</strong> da aparência pessoal,como depilação, pintura corporal, corte de cabelo, <strong>entre</strong> outras coisas.Assim que chegam<strong>os</strong>, n<strong>os</strong> alojaram em um d<strong>os</strong> setores da casa.Tínham<strong>os</strong>, portanto, um cantinho para nós. Apesar de não haver qualquerdivisão interna feita com paredes, cada setor da casa é habita<strong>do</strong> por umafamília nuclear, ou seja, pai, mãe e filh<strong>os</strong>. Se houver algum tipo de divisória éporque há alguém na reclusão pubertária viven<strong>do</strong> ali. Nesta casa, por ser a <strong>do</strong>chefe, ficava instala<strong>do</strong> o rádio-ama<strong>do</strong>r e, para alimentar a bateria <strong>do</strong> rádio,contavam com uma pequena placa de energia solar, to<strong>do</strong> este equipamentopertencen<strong>do</strong> à FUNASA, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> empresta<strong>do</strong> à aldeia.[croqui <strong>do</strong> interior da casa de Atamai]


24Nós também levam<strong>os</strong> uma placa de energia solar, que o Laboratório deEnergia Solar da UFSC gentilmente n<strong>os</strong> emprestou. Esta era n<strong>os</strong>sa alternativapara recarregar uma grande quantidade de pilhas e baterias que usam<strong>os</strong>durante a pesquisa. Esta placa ficou instalada em frente à casa de Atamai,assim como a outra, d<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>.N<strong>os</strong>so equipamento audio-visual consistiu de uma pequena filma<strong>do</strong>ra(handcam VHS-C), duas máquinas fotográficas Canon (mecânicas), <strong>do</strong>isaparelh<strong>os</strong> Sony de gravação de mini disc, <strong>do</strong>is microfones estéreo comcondensa<strong>do</strong>r de eletreto e <strong>do</strong>is grava<strong>do</strong>res de fitas cassete para <strong>entre</strong>vistas. Ocuida<strong>do</strong> com <strong>os</strong> equipament<strong>os</strong> envolveu tanto uma grande atenção no que dizrespeito à sua integridade física (havia mudanças bruscas de temperatura <strong>entre</strong>as frias madrugadas e <strong>os</strong> dias tórrid<strong>os</strong>, um excesso de umidade na épocachuv<strong>os</strong>a e muita poeira na época seca), quanto as precauções de não vê-l<strong>os</strong>subtraíd<strong>os</strong>, principalmente pel<strong>os</strong> jovens ávid<strong>os</strong> por pilhas e aparelh<strong>os</strong> de som.Há muitas histórias de roubo de pertences de visitantes nas aldeiasxinguanas, de mo<strong>do</strong> que fom<strong>os</strong> preparad<strong>os</strong> com baús de madeira comcadea<strong>do</strong> 24 . Certo dia, parte de n<strong>os</strong>so pacote de pilhas sumiu. Ficam<strong>os</strong>,primeiramente brav<strong>os</strong>, depois tristes, e finalmente preocupad<strong>os</strong> em saber com<strong>os</strong>eria dali para frente. Contu<strong>do</strong>, a questão se resolveu rapidamente. Contam<strong>os</strong>o fato para o pessoal de n<strong>os</strong>sa casa e tod<strong>os</strong> desconfiaram da mesma pessoa:um rapaz de quinze an<strong>os</strong>, também mora<strong>do</strong>r da casa e ouvinte voraz de músicade “branco”. Bem, o pai <strong>do</strong> garoto e o chefe Atamai resolveram dizer que iriampedir para o pajé sonhar e, assim, ficariam saben<strong>do</strong> quem foi que roubou aspilhas. Neste mesmo dia, após voltarm<strong>os</strong> <strong>do</strong> banho no final da tarde,encontram<strong>os</strong> as pilhas dentro de n<strong>os</strong>sa sacola. Este fato me chamou a atençãopara o papel disciplina<strong>do</strong>r <strong>do</strong> pajé iakapá, aquele que sonha e vê as coisasclaramente (cf. Piedade, 2004): na medida em que ele tu<strong>do</strong> pode ficarsaben<strong>do</strong>, restaria para tod<strong>os</strong> andar direito, caso contrário estas pessoas semprepoderiam ser denunciadas pelo pajé 25 .Atravessam<strong>os</strong> o final da seca e início das chuvas na região, perío<strong>do</strong> emque passam<strong>os</strong> da fartura de peixe à escassez de alimento. Ao longo desses24 Para uma abordagem de práticas envolven<strong>do</strong> o roubo no <strong>Xingu</strong> e particularmentesobre a perspectiva dada pel<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> Suyá a elas, ver Seeger (1993: 433-444).25 Estes aspect<strong>os</strong> polític<strong>os</strong> <strong>do</strong> xamanismo serão discutid<strong>os</strong> no Capítulo II.


25meses, acompanham<strong>os</strong> vári<strong>os</strong> rituais, a começar pela noite em que chegam<strong>os</strong>na aldeia, quan<strong>do</strong> era festejada a grande noite final <strong>do</strong> kwaryp, festa que <strong>entre</strong><strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> recebe o nome de kaumai. Chegam<strong>os</strong> na aldeia no final da tarde deonze de ag<strong>os</strong>to de 2001, ao mesmo tempo em que chegavam <strong>os</strong> convidad<strong>os</strong> deoutras trib<strong>os</strong>. Eles ficaram acampad<strong>os</strong> nas cercanias da aldeia Piulaga,aguardan<strong>do</strong> a noite de vigília que sempre deve anteceder à manhã das lutascorporais. Ao longo da noite, acompanham<strong>os</strong> a coreografia das entradassucessivas de grup<strong>os</strong> xinguan<strong>os</strong> na aldeia para buscar fogo. Também ouvim<strong>os</strong><strong>os</strong> cant<strong>os</strong> noturn<strong>os</strong> feit<strong>os</strong> a partir da aldeia, corresponden<strong>do</strong> a envi<strong>os</strong> de azarpara <strong>os</strong> convidad<strong>os</strong>/inimig<strong>os</strong> que estão acampad<strong>os</strong> ao re<strong>do</strong>r (sobre o kaumai,ver Ag<strong>os</strong>tinho, 1974). Vim<strong>os</strong> as lutas corporais durante toda a manhã <strong>do</strong> diaseguinte e, antes da partida d<strong>os</strong> convidad<strong>os</strong>, observam<strong>os</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> distribuíremcastanha de pequi para alguns chefes convidad<strong>os</strong>, ato realiza<strong>do</strong> por uma jovemrecém saída da reclusão 26 .Assim que tod<strong>os</strong> descansaram da festa, por volta das cinco horas datarde deste mesmo dia, fom<strong>os</strong> <strong>entre</strong>gar n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> presentes. A <strong>entre</strong>ga depresentes é também um ritual já bastante consolida<strong>do</strong> na região, pois to<strong>do</strong>pesquisa<strong>do</strong>r que quiser permanecer na aldeia por algum tempo deve <strong>entre</strong>garuma quantidade expressiva de objet<strong>os</strong> que serão distribuíd<strong>os</strong> pelo chefe paratod<strong>os</strong>. É importante frisar que tal prática, ao men<strong>os</strong> no cenário xinguano, nãoderiva de um tipo de paternalismo ou assistencialismo, e sim de um sistemanativo de trocas 27 . A obtenção de conheciment<strong>os</strong> faz parte igualmente destesistema, é algo pelo que <strong>os</strong> própri<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> devem pagar. Seguin<strong>do</strong> a lógica datroca, não seria diferente com <strong>os</strong> pesquisa<strong>do</strong>res, visto que estes levam emboracoisas e informações que pertencem a eles: seus mit<strong>os</strong>, suas músicas, suaspalavras, seus hábit<strong>os</strong>, etc. A quantidade e a qualidade d<strong>os</strong> itens a serempresentead<strong>os</strong> são também conhecid<strong>os</strong> pel<strong>os</strong> que freqüentam a região:miçangas (de cerâmica, importadas [checas]), anzóis (de preferência26 Não apresentarei a etnografia <strong>do</strong> kaumai nesta tese, mas em estud<strong>os</strong> futur<strong>os</strong>.27 Praticamente tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> pesquisa<strong>do</strong>res que estiveram na região <strong>do</strong> Alto <strong>Xingu</strong> dãoconta da importância que as trocas e <strong>os</strong> pagament<strong>os</strong> por objet<strong>os</strong> e serviç<strong>os</strong> assumemnas relações intra e intertribais, bem como <strong>entre</strong> índi<strong>os</strong> e não-índi<strong>os</strong>. Não se trata de<strong>entre</strong>ga de meras merca<strong>do</strong>rias, mas uma troca de dádivas (Mauss, 2003[1925]:185-314; Gregory, 1982). Este princípio é amplamente emprega<strong>do</strong> na economia xinguana, eigualmente tematiza<strong>do</strong> na mitologia, constituin<strong>do</strong> um importante aspecto da socialidadelocal.


26noruegueses), pilhas, linhas de pesca, tecid<strong>os</strong> ou vestid<strong>os</strong>, camisetas, bonés,facas, tabaco, fumo, papel de cigarro, isqueir<strong>os</strong> e outr<strong>os</strong> itens que porventuraestejam precisan<strong>do</strong> na época. Como vivem cerca de trezentas pessoas naaldeia, é cust<strong>os</strong>o realizar uma <strong>entre</strong>ga de presentes que satisfaça à maioria, eparece mesmo de praxe que haja reclamações quanto à quantidade insuficientede determinad<strong>os</strong> itens ou da qualidade de outr<strong>os</strong>. Entre <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> <strong>os</strong> objet<strong>os</strong>são constantemente trocad<strong>os</strong>, ocorren<strong>do</strong> freqüentemente rituais de trocachamad<strong>os</strong> huluki 28 .De alguns an<strong>os</strong> para cá as “lideranças” 29 da região chegaram à conclusãode que <strong>os</strong> objet<strong>os</strong> levad<strong>os</strong> pel<strong>os</strong> pesquisa<strong>do</strong>res não são suficientes paraestabelecer uma troca justa e, desta forma, tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> grup<strong>os</strong> <strong>do</strong> Alto <strong>Xingu</strong>estão cobran<strong>do</strong>, além d<strong>os</strong> presentes, o que eles convencionaram a chamar de“taxa de entrada”: ou seja, devem<strong>os</strong> pagar em dinheiro por n<strong>os</strong>sa permanênciana aldeia. Toda esta partilha é um tanto estressante, pois não há nada muitoclaro, e as negociações feitas com o chefe nem sempre agradam a<strong>os</strong> demaismembr<strong>os</strong> da aldeia. Além disso, sempre que há dinheiro envolvi<strong>do</strong> nanegociação, as suspeitas de mau uso dele vêm à tona e uma série de acusaçõesem tom de fofoca começa a surgir. Como não poderíam<strong>os</strong> fazer de formadiferente, assim procedem<strong>os</strong>, <strong>entre</strong>gam<strong>os</strong> <strong>os</strong> presentes e o dinheiro para ochefe Atamai, que cui<strong>do</strong>u da distribuição d<strong>os</strong> objet<strong>os</strong> e, segun<strong>do</strong> as "máslínguas", <strong>entre</strong>gou to<strong>do</strong> o dinheiro para seu filho que vive fora da aldeia 30 .Como eu já conhecia as pessoas da aldeia, sabia quem poderia trabalharcomigo, conhecia <strong>os</strong> tradutores e tinha mesmo desenvolvi<strong>do</strong> uma sistemáticade trabalho com estes, principalmente com Tupanumaká e Ianahim, não foi28 A palavra huluki também significa “an<strong>do</strong>rinha”, animal que está no mito de origemdas trocas. Este mito relata o momento em que <strong>os</strong> animais resolveram adequar seustimbres vocais ao seu tamanho e personalidade. Retomarei isto n<strong>os</strong> comentári<strong>os</strong> finaisda tese.29 O conceito de “liderança” é toma<strong>do</strong> aqui de empréstimo de uma terminologia utilizadaamplamente no discurso indigenista. Estes “líderes”, no entanto, não sãonecessariamente aqueles que ocupam a p<strong>os</strong>ição de chefia em suas aldeias. Estacategoria está muito mais ligada às relações estabelecidas com o mun<strong>do</strong> d<strong>os</strong> branc<strong>os</strong>, oque por vezes é ignora<strong>do</strong> pel<strong>os</strong> indigenistas que <strong>os</strong> tomam por “chefes” em um senti<strong>do</strong>amplo, geran<strong>do</strong> assim, cert<strong>os</strong> constrangiment<strong>os</strong> e desequilíbri<strong>os</strong> nas relações sociaislocais.30 A acumulação excessiva ou indevida é mal vista e perig<strong>os</strong>a, pois aquele quedemonstra ganância pode ser acusa<strong>do</strong> de feitiçaria e corre o risco de ser assassina<strong>do</strong>.Galvão (1953), ao tratar d<strong>os</strong> sistemas de parentesco no Alto <strong>Xingu</strong>, já observa isto, queparece ter um espectro amazônico (Clastres, 1978; Fausto, 2001).


27difícil começar a trabalhar. To<strong>do</strong> o material musical que fui registran<strong>do</strong> duranteo ritual de iamurikuma, que ocorreu <strong>entre</strong> catorze de ag<strong>os</strong>to e um de novembrode 2001, foi sen<strong>do</strong> checa<strong>do</strong> com Kalupuku, a principal cantora desta festa, queme forneceu vali<strong>os</strong>íssimas explicações sobre algumas canções. P<strong>os</strong>teriormente,estas explicações foram traduzidas para o português, assim como parte dasletras das canções transcritas. Ao final deste ciclo ritual, eu já contava com boaparte <strong>do</strong> material registra<strong>do</strong> traduzi<strong>do</strong>, faltan<strong>do</strong>, logicamente, to<strong>do</strong> o trabalhode gabinete, como transcrição musical e análise.Outr<strong>os</strong> rituais também se sucederam nestes meses. Após o florescimentod<strong>os</strong> pequizeir<strong>os</strong>, assim que <strong>os</strong> frut<strong>os</strong> amadureceram, <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> deram início àakãinaakai, “festa <strong>do</strong> pequi”. Este ritual começou em treze de outubro eencerrou em dezoito de novembro de 2001. Neste ínterim, acompanham<strong>os</strong>também outr<strong>os</strong> <strong>do</strong>is rituais: kagapa e tankuwara 31 , cada um com duração deapenas um dia. Estas duas festas foram patrocinadas pelo pajé Itsautakudurante o trabalho coletivo de cobertura de sua casa com sapé, efetua<strong>do</strong> porvári<strong>os</strong> homens da aldeia. O akãinaakai de 2001, que foi parcialmente descritoem Piedade (2004), será comenta<strong>do</strong> brevemente no final desta tese,principalmente no que tange à sociabilidade, relações de gênero e causação deciúme relacionad<strong>os</strong> à ele.Pude ainda observar o ambiente no interior das casas e as mulheresdurante as sessões de flauta kawoká, interditas à visão feminina, que sesucederam em algumas tardes e noites de setembro e outubro, enquanto meucompanheiro fazia o registro destas performances.Muitas vezes é difícil para o etnógrafo xinguanista diferenciar <strong>os</strong>moment<strong>os</strong> rituais d<strong>os</strong> event<strong>os</strong> que compõe a vida cotidiana, visto que estasduas esferas estão imbricadas uma na outra. Por exemplo, no ritual de kaumai,ao longo de to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> luto (que pode durar por volta de um ano),várias atividades acontecem: o enterramento propriamente, a construção de31 O ritual de kagapa é mais conheci<strong>do</strong> regionalmente pelo nome Kamayurá deTawurawãnã, no qual <strong>do</strong>is cantores p<strong>os</strong>icionad<strong>os</strong> no centro da aldeia e executan<strong>do</strong> uaũ,“chocalho” e tõka, “bastão rítmico”, cantam em uníssono as canções kagapa, sen<strong>do</strong> queum grupo de dançarin<strong>os</strong> e dançarinas, tod<strong>os</strong> paramentad<strong>os</strong>, dançam e gritam ao re<strong>do</strong>rdeste núcleo. No ritual de tankuwara, o conjunto de cinco clarinetes homônimo éexecuta<strong>do</strong> por cinco homens, acompanhad<strong>os</strong> na dança por jovens garotas, constituin<strong>do</strong>um grupo que percorre a aldeia casa à casa por várias vezes. Ver descrição d<strong>os</strong>instrument<strong>os</strong> citad<strong>os</strong> em Mello (1999:105-110).


28uma cerca sobre a sepultura, a oferta de peixe e beijú para <strong>os</strong> que trabalharamnestas atividades, a preparação e <strong>entre</strong>ga de polvilho a<strong>os</strong> patrocina<strong>do</strong>res <strong>do</strong>ritual, etc. Contu<strong>do</strong>, tais atividades se confundem (a<strong>os</strong> olh<strong>os</strong> <strong>do</strong> etnógrafo) comas atividades cotidianas, pois pagament<strong>os</strong>, trocas recíprocas, pescarias,produção de alimento, são todas atividades corriqueiras, mudan<strong>do</strong>, dependen<strong>do</strong>de cada caso, as motivações por trás destas atividades 32 . Se parece fácilidentificar a semana em que acontece a “festa” 33 , o mesmo não se dá com afase preliminar que antecede o evento. Muitas vezes, sem que o pesquisa<strong>do</strong>rsaiba, o ritual já está ocorren<strong>do</strong> em sua fase preliminar. Todas estas atividadesestão inseridas numa estrutura de longa duração, característica d<strong>os</strong> rituaismusicais xinguan<strong>os</strong>. Como verem<strong>os</strong> adiante, o ritual de iamurikuma quepresenciei tem uma projeção que remonta a fat<strong>os</strong> ocorrid<strong>os</strong> há, no mínimo, dezan<strong>os</strong>, e a duração das performances propriamente vinculadas a este ritual foide <strong>do</strong>is meses e meio. Como durante este perío<strong>do</strong> estavam acontecend<strong>os</strong>imultaneamente outr<strong>os</strong> <strong>do</strong>is rituais, o das flautas kawoka e o ritual <strong>do</strong> pequi,era complexa a tarefa de distinguir onde acabava um e começava outro. Taldificuldade é acentuada pelo fato destes rituais serem dialógic<strong>os</strong>, ou seja,provocações e event<strong>os</strong> realizad<strong>os</strong> em um ritual podem encontrar eco em outro.Creio que para se atingir uma certa clareza d<strong>os</strong> cicl<strong>os</strong> rituais queocorrem no contexto xinguano é necessário que se empreenda uma pesquisade vári<strong>os</strong> an<strong>os</strong> na região, a investigação deven<strong>do</strong> se dar a partir <strong>do</strong> ponto devista de um d<strong>os</strong> grup<strong>os</strong> <strong>do</strong> sistema xinguano (<strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, ou Kamayurá,Kuikuro, etc.), ainda assim corren<strong>do</strong>-se o risco de não conseguir compor umquadro de maneira totalmente nítida em vista da dificuldade concreta deatingirm<strong>os</strong> uma compreensão total, profunda e dinâmica de event<strong>os</strong> que têmuma projeção espaço-temporal tão ampla.Quan<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> de chuvas constantes se instalou, em mead<strong>os</strong> dedezembro, n<strong>os</strong> preparávam<strong>os</strong> para ir embora da aldeia, e então um avião caiua pouc<strong>os</strong> quilômetr<strong>os</strong> dali, matan<strong>do</strong> <strong>os</strong> cinco tripulantes da aeronave: piloto,32 Ver capítulo 3 de Ag<strong>os</strong>tinho (1974) sobre esta fase preliminar <strong>do</strong> kwaryp. Apesar deAg<strong>os</strong>tinho não a ter presencia<strong>do</strong>, obteve boas descrições a respeito.33 Na semana propriamente da “festa” <strong>do</strong> kaumai, acontecem pescarias coletivas,acampament<strong>os</strong> de convidad<strong>os</strong>, grup<strong>os</strong> ajudantes pernoitan<strong>do</strong> na aldeia anfitriã, muitascantorias, danças, execuções de flautas watana (mais conhecidas pelo nome Kamayuráde uruá), e lutas <strong>entre</strong> <strong>os</strong> homens das várias etnias xinguanas participantes.


29co-piloto, um casal e seu filho. O acidente trágico n<strong>os</strong> deixou apavorad<strong>os</strong>, poisestávam<strong>os</strong> planejan<strong>do</strong> voltar a Canarana em um avião bi-motor semelhante.Como é um c<strong>os</strong>tume <strong>Wauja</strong> sempre zombar <strong>do</strong> outro, alguns “engraçadinh<strong>os</strong>”ficaram n<strong>os</strong> provocan<strong>do</strong> com brincadeiras de final trágico, dizen<strong>do</strong> que n<strong>os</strong>soavião iria cair também, com todas aquelas panelas de barro que estávam<strong>os</strong>carregan<strong>do</strong>. De mo<strong>do</strong> geral, eles sempre fazem ironias deste tipo, que se podechamar de “humor negro”: a gozação <strong>do</strong> terrível ou temível. Alia<strong>do</strong> a estehumor, há também um comportamento de indiferença quanto ao destino, comoespelham frases que ouvi, como: “este meu filho vai morrer mesmo, porque éfraquinho”, ou “eu quero morrer, tenho vontade”, frases ditas com umanaturalidade serena. O éth<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> é uma combinação de várias facetastrágicas e cômicas, sempre rondan<strong>do</strong> as temáticas <strong>do</strong> sexo, <strong>do</strong> ciúme e damorte.Era verdade que n<strong>os</strong>so avião estava pesa<strong>do</strong>, pois n<strong>os</strong> últim<strong>os</strong> dias muitaspessoas foram n<strong>os</strong> presentear com panelas e panelinhas de cerâmica, aespecialidade artesanal d<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>. Além <strong>do</strong> peso mensurável das panelas,havia o peso simbólico a elas agrega<strong>do</strong>: a cerâmica não é algo apenas utilitário,vasilhas que servem para conter algo, elas são, assim como máscaras e flautas,“espírit<strong>os</strong>” temid<strong>os</strong> e respeitad<strong>os</strong>. Felizmente, o vôo foi excelente. Fom<strong>os</strong>embora ten<strong>do</strong> prometi<strong>do</strong> a<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> n<strong>os</strong> empenharm<strong>os</strong> para a realização daviagem até a aldeia d<strong>os</strong> Bakairí.E assim aconteceu. No início de junho de 2002, portanto cerca de cincomeses depois, eu e Acácio voltam<strong>os</strong> para a aldeia <strong>Wauja</strong>, desta vez sem Júlia, ecom Marcelo Fiorini 34 , um colega antropólogo que convidam<strong>os</strong> para, junt<strong>os</strong>,etnografarm<strong>os</strong> o encontro <strong>entre</strong> estes <strong>do</strong>is pov<strong>os</strong> indígenas, separad<strong>os</strong> por umséculo de história. A viagem para a aldeia Pakuera 35 aconteceu durante asetapas finais da copa <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> de futebol, e o retorno ao <strong>Xingu</strong> ocorreuexatamente no dia em que o Brasil se tornou pentacampeão de futebol, fatomuito comemora<strong>do</strong> por tod<strong>os</strong> que estavam no P<strong>os</strong>to Leonar<strong>do</strong>, porta deentrada para o Alto <strong>Xingu</strong>. Esta casualidade foi muito interessante <strong>do</strong> ponto de34 Antropólogo e professor da Hofstra University em Nova Iorque. Produziu e realizoutrabalh<strong>os</strong> de antropologia visual, com destaque para o filme etnográfico “Katsa Baba: <strong>os</strong>dramas <strong>do</strong> humor”, roda<strong>do</strong> <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Rikbaktsa em 1999.35 Pakuera é o lugar onde vivem parte d<strong>os</strong> Bakairí que antigamente habitavam a região<strong>do</strong> rio Batovi, também ocupada pel<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> desde aquela época.


30vista etnográfico, principalmente na temática <strong>do</strong> papel d<strong>os</strong> esportes nac<strong>os</strong>mologia indígena, e na questão das diferentes identidades que emergiramali (xinguana, indígena, kajaopa, brasileira).Logo após o retorno a Piulaga, n<strong>os</strong>so colega foi embora enquanto eu eAcácio permanecem<strong>os</strong> até o início de ag<strong>os</strong>to <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>. Neste perío<strong>do</strong>,além de aprofundar questões que surgiram na etapa anterior da pesquisa, etambém observar as discussões d<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> sobre <strong>os</strong> Bakairí, pude participar deuma festa, cantan<strong>do</strong>, dançan<strong>do</strong> e fornecen<strong>do</strong> alimento, sobre a qual ainda nãop<strong>os</strong>suía muitas referências: o ritual de kukuho, um d<strong>os</strong> apapaatai “<strong>do</strong>n<strong>os</strong>” damandioca 36 . Este ritual durou dez dias e será objeto de uma descrição maisaprofundada nesta tese, notadamente por conter um material musical muitointeressante, comp<strong>os</strong>to por mais de cem canções kapojai, constituin<strong>do</strong> umgênero musical com forte senti<strong>do</strong> político. A participação das mulheres nesteritual também merecerá destaque n<strong>os</strong> comentári<strong>os</strong> que farei adiante.Por fim, saím<strong>os</strong> da aldeia Piulaga no início de ag<strong>os</strong>to de 2002.Carregan<strong>do</strong> toda n<strong>os</strong>sa bagagem, juntamente com um grupo de mais de cempessoas, seguim<strong>os</strong> em direção à aldeia d<strong>os</strong> Yawalapití, onde aconteceria okwaryp <strong>do</strong> chefe Parú, pai de Aritana, que havia morri<strong>do</strong> no ano anterior. Os<strong>Wauja</strong> eram <strong>os</strong> convidad<strong>os</strong> ajudantes da festa, aqueles que lutariam <strong>do</strong> mesmola<strong>do</strong> d<strong>os</strong> anfitriões, <strong>os</strong> Yawalapití, contra <strong>os</strong> demais visitantes. N<strong>os</strong>so plano eraobservar esta festa e, após seu término, partir de barco da aldeia Yawalapití.N<strong>os</strong> h<strong>os</strong>pedam<strong>os</strong> junto com <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, dentro da aldeia, em uma velha casaquase aban<strong>do</strong>nada. Acompanham<strong>os</strong> este kwaryp mais atentamente que oanterior, gravam<strong>os</strong> toda uma noite de cantorias, e ficam<strong>os</strong> acordad<strong>os</strong>conversan<strong>do</strong> com <strong>os</strong> futur<strong>os</strong> luta<strong>do</strong>res que, bravamente e à custa de muitocafé, permaneceram firmes até a hora de lutarem, com o sol já quase a pino 37 .Assim foi meu trabalho de campo no <strong>Xingu</strong>. Desde que voltei, em ag<strong>os</strong>tode 2002, tenho manti<strong>do</strong> freqüentes contat<strong>os</strong> telefônic<strong>os</strong> com <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, ocasiãoem que eles me mantêm informada sobre as novidades na aldeia,36 Conceit<strong>os</strong> como “<strong>do</strong>no” ou apapaatai serão elaborad<strong>os</strong> adiante, quan<strong>do</strong> abordareiquestões ligadas à c<strong>os</strong>mologia <strong>Wauja</strong>. À guisa de esclarecimento, a categoria apapaataipode ser traduzida aproximadamente por “espírito”.37 Como já foi dito em nota anterior, não apresentarei aqui a etnografia deste eventopor crer que to<strong>do</strong> este material merece um estu<strong>do</strong> mais pontual, o qual espero poderrealizar futuramente.


31principalmente em assunt<strong>os</strong> fundamentais como fofocas sobre quem casou,quem se separou, quem traiu quem, e assim por diante 38 . Também meencontrei, em julho de 2004, com um grupo de vinte e cinco <strong>Wauja</strong>, dezmulheres e quinze homens, que foram dançar durante o Fórum Cultural Mundialque ocorreu em São Paulo. Neste evento, <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> fizeram apresentações detrech<strong>os</strong> de rituais e também participaram em um concerto no SESC VilaMariana juntamente com um grupo feminino de world music chama<strong>do</strong>"Mawaka". Esta ocasião, bem como as já mencionadas etnografias em São J<strong>os</strong>é<strong>do</strong> Rio Preto e Belo Horizonte, foram oportunidades muito significativas paraobservar como <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> compreendem o mun<strong>do</strong> d<strong>os</strong> kajaopa, principalmenteporque pude compreender seus comentári<strong>os</strong> na língua nativa. Creio que <strong>os</strong><strong>Wauja</strong> agem de forma muito diferente em cenári<strong>os</strong> tão divers<strong>os</strong> como a própriaaldeia, a aldeia de um outro povo indígena, ou ainda as grandes aldeiaskajaopa, as cidades.Desta forma, penso que poder ter participa<strong>do</strong> destes moment<strong>os</strong> tãopeculiarmente divers<strong>os</strong> também influenciou a qualidade de meus dad<strong>os</strong>etnográfic<strong>os</strong>. É importante relatar que minha formação em música (bacharela<strong>do</strong>em comp<strong>os</strong>ição) foi muito importante nesta pesquisa, que tem como foco amúsica <strong>do</strong> ritual de iamurikuma. Levei para campo uma cópia de minhadissertação para <strong>entre</strong>gar a<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, e foi interessante apresentá-la a<strong>os</strong>nativ<strong>os</strong> e ouvir seus comentári<strong>os</strong>, o que funcionou como uma espécie de ediçãodialógica (Feld, 1982) que muito contribuiu para a construção desta tese. Porexemplo, ao cantar para <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> uma de suas canções, len<strong>do</strong> uma partituraque constava em minha dissertação, percebi que aquilo a<strong>os</strong> seus olh<strong>os</strong> eracomo “mágica”: escrever a música, poden<strong>do</strong> depois relê-la sempre. Alguns seinteressaram muito por esta tradução da música no papel, tentan<strong>do</strong>acompanhar com <strong>os</strong> ded<strong>os</strong> na partitura a parte que eu cantava, às vezesdizen<strong>do</strong> “bonito, assim mesmo!”, e algumas outras “está erra<strong>do</strong> aqui!”. Comisto, puderam compreender melhor porque eu necessitava fazer as gravações:para depois realizar a “mágica” da transcrição. Estes moment<strong>os</strong>, aliad<strong>os</strong> aoutr<strong>os</strong> n<strong>os</strong> quais eu e Acácio cantam<strong>os</strong> e tocam<strong>os</strong> para <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> (levam<strong>os</strong>38Enten<strong>do</strong> a “fofoca”, kuhuki, como uma categoria nativa fundamental para acompreensão da socialidade, conforme tratarei mais adiante.


32violão, escaleta e flauta <strong>do</strong>ce), foram fundamentais para que <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>pudessem compreender meu interesse pela música 39 .Apresentad<strong>os</strong> <strong>os</strong> cenári<strong>os</strong> em que se deu a pesquisa, tratarei agora dedescrever brevemente o sistema social xinguano, no senti<strong>do</strong> de proporcionar aoleitor não familiariza<strong>do</strong> com a região <strong>do</strong> Alto <strong>Xingu</strong> alguns dad<strong>os</strong> importantes.Ao que se seguirá uma descrição geral <strong>do</strong> povo <strong>Wauja</strong>, com ênfase nac<strong>os</strong>mologia, e na centralidade das práticas rituais em sua vida cotidiana.39 O procedimento de tocar-cantar músicas para <strong>os</strong> nativ<strong>os</strong> é uma técnica de trabalhode campo já há muito empregada na etnomusicologia (ver Barz & Cooley, 1997). Estesmoment<strong>os</strong> dão muito mais sustentação no momento <strong>do</strong> aprendiza<strong>do</strong> de canções ou deinstrument<strong>os</strong> nativ<strong>os</strong>, abrin<strong>do</strong> caminho para a bi-musicalidade (Hood, 1960).


[Terra Indígena <strong>do</strong> <strong>Xingu</strong>]33


34CAPÍTULO IIO Alto <strong>Xingu</strong>Os pov<strong>os</strong> indígenas que habitam a área d<strong>os</strong> forma<strong>do</strong>res <strong>do</strong> rio <strong>Xingu</strong>, regiãocorrespondente à parte sul da Terra Indígena <strong>do</strong> <strong>Xingu</strong> (TIX) no Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> MatoGr<strong>os</strong>so, são: <strong>Wauja</strong>, Mehináku e Yawalapiti (língua aruak), <strong>os</strong> Kamayurá eAwetí (tupi), Kuikúro, Kalapálo, Matipú e Nahukuwá (karib) e Trumaí (línguaisolada). Estes pov<strong>os</strong> são conhecid<strong>os</strong> como xinguan<strong>os</strong>.Os primeir<strong>os</strong> contat<strong>os</strong> de que se tem notícia <strong>entre</strong> <strong>os</strong> xinguan<strong>os</strong> e <strong>os</strong>não-índi<strong>os</strong> datam <strong>do</strong> final <strong>do</strong> século XIX, quan<strong>do</strong> ocorreram duas expediçõeslideradas pelo médico e etnólogo alemão Karl von den Steinen 40 . Somente n<strong>os</strong>an<strong>os</strong> 40 a região voltou a ser palco de novas expedições, desta vez umaempreitada governamental cujo objetivo principal era o “desbravamento” <strong>do</strong>Brasil Central Em 1943, foi organizada a Expedição Ronca<strong>do</strong>r-<strong>Xingu</strong> (ERX), quepretendia abrir estradas e construir camp<strong>os</strong> de pouso no centro <strong>do</strong> Brasil, eassim facilitar a comunicação aérea <strong>entre</strong> Rio de Janeiro e Manaus. Logo após acriação da ERX, o governo federal instituiu a Fundação Brasil Central (FBC), quepassou a presidir e administrar a ERX. Em 1946, a expedição, liderada pel<strong>os</strong>irmã<strong>os</strong> Villas Boas, alcançou as cabeceiras <strong>do</strong> rio Culuene, quan<strong>do</strong> entãoestabeleceram um p<strong>os</strong>to com pista de pouso em local onde havia si<strong>do</strong> umaantiga aldeia Trumai. A partir de então, com a implantação <strong>do</strong> P<strong>os</strong>to Jacaré, <strong>os</strong>contat<strong>os</strong> <strong>entre</strong> <strong>os</strong> grup<strong>os</strong> indígenas da região e a sociedade envolvente seintensificaram, sen<strong>do</strong> sempre mediad<strong>os</strong> pel<strong>os</strong> irmã<strong>os</strong> Villas Boas, queassumiram a chefia d<strong>os</strong> P<strong>os</strong>t<strong>os</strong> que foram sen<strong>do</strong> implantad<strong>os</strong> na região.A demarcação e homologação definitivas <strong>do</strong> Parque se deram em 1961,fican<strong>do</strong> estipulada uma extensão de 2,8 milhões de hectares e um perímetro de920 km, número muito inferior a<strong>os</strong> 20.075.000 hectares previst<strong>os</strong> no projetoinicial, data<strong>do</strong> <strong>do</strong> início d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> 50. Esta brutal diferença de área deveu-se à40 Apesar de várias tradições orais xinguanas registrarem contat<strong>os</strong> com caraíbas antesde von den Steinen, foi a partir destas expedições que obtivem<strong>os</strong> <strong>os</strong> primeir<strong>os</strong> relat<strong>os</strong>sistemátic<strong>os</strong> sobre o <strong>Xingu</strong>. Steinen publicou <strong>do</strong>is volumes que são marc<strong>os</strong> da pesquisaetnológica na região (1940[1894]; 1942[1886]). Além destes, também publicou umlivro sobre a língua Bakairí (1892), língua com a qual teve maior contato por ter ti<strong>do</strong> umBakairí como guia das expedições.


35especulação em torno da venda de terras promovida pelo Esta<strong>do</strong> durante esteperío<strong>do</strong> 41 . Até início d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> 70, as populações xinguanas se mantiverampraticamente isoladas de um contato mais intenso com <strong>os</strong> “branc<strong>os</strong>” 42 , quan<strong>do</strong>então se iniciaram vári<strong>os</strong> projet<strong>os</strong> agropecuári<strong>os</strong> e de colonização no entorno<strong>do</strong> Parque, projet<strong>os</strong> tanto privad<strong>os</strong> quanto governamentais. Como ademarcação de 1961 havia deixa<strong>do</strong> de fora as nascentes d<strong>os</strong> ri<strong>os</strong>, um acelera<strong>do</strong>desmatamento provoca<strong>do</strong> pel<strong>os</strong> fazendeir<strong>os</strong> passou a assorear e a poluir estesri<strong>os</strong>, fonte principal <strong>do</strong> alimento na região. A presença protecionista <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>brasileiro se manteve forte até mead<strong>os</strong> d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> 80, perío<strong>do</strong> em que aassistência governamental começou a diminuir e <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> da região passarama lutar contra a situação de vulnerabilidade ambiental a que estavam e estã<strong>os</strong>ujeit<strong>os</strong> até o presente. Data deste perío<strong>do</strong> a fundação de uma série deassociações indígenas, que continuam atuan<strong>do</strong> até hoje, e que têm como umde seus principais foc<strong>os</strong> a questão da manutenção e preservação territorial 43 .A partir d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> 90, <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> assumiram a chefia d<strong>os</strong> p<strong>os</strong>t<strong>os</strong> dentro daTIX, bem como a direção desta. Desde a demarcação até mead<strong>os</strong> d<strong>os</strong> 90, aregião ficou conhecida como Parque Indígena <strong>do</strong> <strong>Xingu</strong>, no entanto, estanomenclatura não é mais utilizada hoje, e sim Terra Indígena <strong>do</strong> <strong>Xingu</strong> por sermais apropriada a um contexto que abriga seres human<strong>os</strong>, e não apenas flora efauna, como pode ficar sugeri<strong>do</strong> pela palavra “parque”. Esta alteração tambémparece adequada na medida em que, ao distanciar o índio da idéia de “ser danatureza”, o libera da representação de “ser primitivo”, congela<strong>do</strong> no tempo eno espaço.Os xinguan<strong>os</strong> constituem um sistema social peculiar, conheci<strong>do</strong> naliteratura etnológica como sociedade xinguana, que não é compartilha<strong>do</strong> pel<strong>os</strong>pov<strong>os</strong> que habitam a TIX em sua parte central e setentrional. Estes outr<strong>os</strong>pov<strong>os</strong> não-xinguan<strong>os</strong> são: Yudjá (conhecid<strong>os</strong> também como Juruna) e Kayabí41 Sobre o processo de institucionalização <strong>do</strong> Parque, ver Menezes (2000).42 Esta é uma categoria muito presente nas falas d<strong>os</strong> índi<strong>os</strong> para se referirem a<strong>os</strong> nãoíndi<strong>os</strong>.43 São 3 as associações indígenas atualmente, com enfoque n<strong>os</strong> interesses de grup<strong>os</strong>específic<strong>os</strong>: a Associação Mavutsinin, d<strong>os</strong> Kamayurá, a Jakuí, d<strong>os</strong> Kalapalo e, maisrecentemente (1998), a Associação Tulukai, d<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>. De abrangência geral às 14etnias que compões a TIX, a Associação Terra Indígena <strong>do</strong> <strong>Xingu</strong> (ATIX), fundada em1994, tem atua<strong>do</strong> principalmente na luta pela proteção e fiscalização territorial, com oapoio da Rainforest Foundation da Noruega e assessoria <strong>do</strong> Instituto Sócio Ambiental(ISA). Mais dad<strong>os</strong> em www.socioambiental.org/website/pib/epi/xingu/associa.shtm


(amb<strong>os</strong> de língua tupi), Suyá (falantes de língua jê) e <strong>os</strong> Ikpeng (tambémconhecid<strong>os</strong> como Txikão, de língua karib) 44 .Do ponto de vista antropológico, o Alto <strong>Xingu</strong> já foi bastante descrito,começan<strong>do</strong> pel<strong>os</strong> relat<strong>os</strong> de von den Steinen (1940, 1942), Schmidt(1942[1917]), Oberg (1953), Murphy & Quain (1955), passan<strong>do</strong> pormonografias importantes, tais como Ag<strong>os</strong>tinho (1974), Basso (1985,1987a),Emmerich (1984), Franchetto (1986), Galvão (1979a; 1979b), Gregor (1982,1985), Heckenberger (1996), Menezes Bast<strong>os</strong> (1990, 1999a), Monod-Becquelin(1975), Menget (1977), Seeger (1981), Verani (1990), Viveir<strong>os</strong> de Castro(1977), haven<strong>do</strong> também recentes dissertações e teses, tais como Barcel<strong>os</strong>Neto (1999, 2004), Mello (1999), Piedade (2004) e Veras (2000), além deinúmer<strong>os</strong> artig<strong>os</strong>, bem como as importantes coletâneas organizadas por Coelho(1993) e por Franchetto & Heckenberger (2001).Os xinguan<strong>os</strong> são, atualmente, cerca de 2.800 mil pessoas viven<strong>do</strong> nointerior da TIX, uma região de grande diversidade lingüística. Entretanto, cadamembro de um grupo fala quase que exclusivamente sua própria língua, além<strong>do</strong> português, que é fala<strong>do</strong> por uma minoria, e que também é a língua decomunicação com o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> branco 45 . Entre <strong>os</strong> xinguan<strong>os</strong>, não falar a língua<strong>do</strong> outro parece ser uma questão de honra, pois mesmo que se entenda o queas pessoas de um outro grupo estão dizen<strong>do</strong>, segue-se falan<strong>do</strong> a próprialíngua, como em uma atitude de insubmissão. Este aspecto <strong>do</strong> monolingüismo éum importante da<strong>do</strong> da socialidade, na medida em que a língua falada é umd<strong>os</strong> fortes sinais diacrític<strong>os</strong> das múltiplas identidades étnicas na região 46 . Aindaassim, verifica-se um discreto polilingüismo, decorrente d<strong>os</strong> estreit<strong>os</strong> laç<strong>os</strong> deparentesco que <strong>os</strong> casament<strong>os</strong> por aliança fomentam. Este quadro é bemdiferente em outras regiões onde há também uma concentração de diferenteslínguas e grup<strong>os</strong> indígenas como, por exemplo, o Uaupés, no noroesteamazônico. Lá, o polilingüismo é muito forte, fazen<strong>do</strong> parte das trocasmatrimoniais, visto que as regras locais de casamento giram em torno da44 Sobre <strong>os</strong> Yudja, ver Lima (1995); sobre <strong>os</strong> Kayabi, Travass<strong>os</strong> (1984); Suyá, Seeger(1981); Ikpeng, Menget (1977). Para outr<strong>os</strong> dad<strong>os</strong> sobre <strong>os</strong> pov<strong>os</strong> <strong>do</strong> Médio e Baixo<strong>Xingu</strong>, ver Lea (1997) e Ferreira (1994). Dad<strong>os</strong> gerais sobre toda a região podem serencontrad<strong>os</strong> na internet, n<strong>os</strong> sites http://www.socioambiental.org/prg/xng.shtm (ondeainda é seguida a denominação “Parque Indígena”) e também http://www.funai.gov.br.45 Sobre língua de contato na região, ver Emmerich (1984).46 Sobre este ponto ver Franchetto (2001).36


37exogamia lingüística (Jackson, 1983; Piedade, 1997). Se, para Jackson(op.cit.), a exogamia lingüística (e o conseqüente polilingüismo) é funcional emterm<strong>os</strong> sociológic<strong>os</strong>, o monolingüismo xinguano remete muito mais à esfera <strong>do</strong>político, constituin<strong>do</strong> unidades de fala. Segun<strong>do</strong> Franchetto (2001), apesar <strong>do</strong>Alto <strong>Xingu</strong> ser um exemplo de sistema de heterogeneidade lingüística, chamaatenção o fato deste sistema não corresponder ao conceito de “comunidade defala” (Gumperz, 1968, cf. Franchetto op.cit:139), este conceito poden<strong>do</strong> serutiliza<strong>do</strong> somente ao que se refere a<strong>os</strong> grup<strong>os</strong> locais (op.cit:139). Assim,aplican<strong>do</strong>-se este conceito ao grupo local, entende-se que cada grupo xinguanocoloca-se em interação freqüente e regular por meio de sign<strong>os</strong> verbais (e nãoverbais)compartilhad<strong>os</strong>, separan<strong>do</strong>-se d<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> grup<strong>os</strong> locais por diferençassignificativas no uso peculiar da linguagem. Já no caso da interação intergrupal,a comunicação é melhor compreendida através da noção de “rede decomunicação” (no senti<strong>do</strong> da<strong>do</strong> por Hymes, 1968 - cf. Basso, 1973a), ou seja,ela depende <strong>do</strong> estabelecimento de um conjunto de regras e padrõescomunicativ<strong>os</strong> <strong>entre</strong> as comunidades, conjunto este que interageprofundamente com as c<strong>os</strong>mologias xinguanas. Com esta perspectiva,lembran<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> monolingüismo característico, o sistema sócio-culturalxinguano depende de uma instância na qual tais regras e padrõescomunicativ<strong>os</strong> são constituíd<strong>os</strong>: este espaço é o ritual intertribal. Esta definiçãoabre espaço para uma compreensão <strong>do</strong> ritual xinguano como eventocomunicativo por excelência no qual a música desempenha papel central(Menezes Bast<strong>os</strong> 1999a, Basso 1985). Portanto, o sistema sócio-culturalxinguano pode ser compreendi<strong>do</strong>, para além da problemática dahomogeneidade ou heterogeneidade, através da investigação d<strong>os</strong> grandesrituais intertribais e cerimoniais associad<strong>os</strong>.• O sistema xinguanoOs grup<strong>os</strong> que vivem ao sul da TIX formam uma rede de relações queconstitui um sistema sócio-cultural compartilha<strong>do</strong> chama<strong>do</strong> sistema xinguano(Menget, 1993), no qual se observa uma rede intertribal de casament<strong>os</strong>,cerimônias e comércio que antecede historicamente ao contato com <strong>os</strong> branc<strong>os</strong>.Segun<strong>do</strong> Menget, este sistema tem a capacidade de absorver e incorporar


38alteridades, imprimin<strong>do</strong> em si mesmo dinâmica e coesão. Por outro la<strong>do</strong>,Menezes Bast<strong>os</strong> (1988, 1995, 2001) chama a atenção para o profun<strong>do</strong>movimento articulatório-processual que extravasa as fronteiras existentesneste sistema. De acor<strong>do</strong> com esta visão, pode-se entender melhor como quecert<strong>os</strong> grup<strong>os</strong> neste contexto não apenas podem ser absorvid<strong>os</strong>, mas tambémacontece de alguns serem expelid<strong>os</strong>, como <strong>os</strong> Bakairí, que saíram da região noinício <strong>do</strong> séc. XX após terem permaneci<strong>do</strong> por cerca de duzent<strong>os</strong> an<strong>os</strong> asu<strong>do</strong>este <strong>do</strong> que hoje é a TIX.A relevância deste sistema aponta para o Alto <strong>Xingu</strong> como uma áreaculturalmente estável e, em um primeiro olhar, homogênea. De fato, observaseque tanto o discurso da mídia sobre o Alto <strong>Xingu</strong> quanto o de indigenistas(Villas-Boas, 1970:19) e mesmo o de alguns pesquisa<strong>do</strong>res (Galvão, 1979b;Basso, 1985), há muito tempo tem enfatiza<strong>do</strong> a homogeneidade cultural naregião. Contu<strong>do</strong>, neste sistema há uma lógica de diferenciação interna, cujadinâmica passa pela língua, pela etnohistória, pelas especializações técnicas,musicológicas e iconográficas, articulan<strong>do</strong>-se em de um sistema intertribal detrocas. Esta lógica prevê tanto solidariedade e cooperação quanto conflito. Éesta convivência na diferença que chama a atenção <strong>do</strong> pesquisa<strong>do</strong>r xinguanista,especialmente no caso d<strong>os</strong> rituais intertribais. Nas palavras de Franchetto, háno Alto <strong>Xingu</strong>“uma convivência delicada, alimentada pela execução periódica derituais intertribais, n<strong>os</strong> quais <strong>os</strong> representantes de cada aldeia sedefrontam em diálog<strong>os</strong> cerimoniais em que as diferentes línguas sesobrepõem em uníssono polifônico, celebran<strong>do</strong> as identidades d<strong>os</strong>grup<strong>os</strong>, vistas em sua processualidade histórica a partir deancestrais epônim<strong>os</strong>” (2001:146)Desta forma, é através d<strong>os</strong> rituais intertribais, quan<strong>do</strong> vári<strong>os</strong> pov<strong>os</strong> daregião se encontram, lutam, cantam e dançam, que <strong>os</strong> diferentes grup<strong>os</strong>xinguan<strong>os</strong> dialogam e se relacionam. Por meio destas práticas, <strong>entre</strong>tanto, umaforte tensão é expressa: a tensão que advém da necessidade de haver umaaceitabilidade comunicatória dentro de um quadro que inclui, de formacongênita, a diferença e mesmo a divergência (Menezes Bast<strong>os</strong>, 2001). Durante<strong>os</strong> rituais intertribais, apesar de um povo não falar a língua <strong>do</strong> outro, a maioria


39d<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> são entoad<strong>os</strong> na língua de origem <strong>do</strong> ritual, sen<strong>do</strong>, desta forma,legítimo pronunciar uma língua alheia, mas somente no contexto músico-ritual.Há, assim, uma rígida etiqueta servin<strong>do</strong> de base para o contato <strong>entre</strong> estesgrup<strong>os</strong>, alguns autores remeten<strong>do</strong> este complexo ritual xinguano a um modeloprototípico aruak-karib.De acor<strong>do</strong> com pesquisas arqueológicas realizadas no Alto <strong>Xingu</strong>(Ag<strong>os</strong>tinho, 1993; Dole, 1962; Heckenberger, 1996, 2001; Simões, 1967,1972; Simonsen & Pass<strong>os</strong> de Oliveira, 1976, 1980), <strong>os</strong> pov<strong>os</strong> de língua aruakpertencentes à família ou sub-tronco maipure foram <strong>os</strong> primeir<strong>os</strong> a povoar aregião d<strong>os</strong> forma<strong>do</strong>res <strong>do</strong> <strong>Xingu</strong> por volta <strong>do</strong> ano 800 d.C. 47 . Segun<strong>do</strong> estesautores, <strong>os</strong> pov<strong>os</strong> de língua karib parecem ter ali chega<strong>do</strong> por volta <strong>do</strong> séc. XV,e <strong>os</strong> de língua tupi somente no séc. XVIII 48 . Em se tratan<strong>do</strong> <strong>do</strong> universo ritualpresente no sistema xinguano atual, estas informações enfatizam a idéia deuma formação prototípica aruak-karib <strong>do</strong> sistema. Para Heckenberger, estemodelo, que reforça a idéia de uma linha estrutural geral de base aruak,procura dar conta da persistência e plasticidade cultural de to<strong>do</strong> o simbolismo,ideologia e padrões culturais que resistem a mudanças demográficasdramáticas, alterações na orientação ecológica, na escala econômica e nasrelações sociopolíticas (2001:58) 49 . São de especial relevância aqui asafirmações de Franchetto sobre a origem aruak de importantes rituais, comunsa tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> grup<strong>os</strong>, cuja centralidade é a dramatização das op<strong>os</strong>ições sexuais(2001:148), um tema importante para esta tese, que será desenvolvi<strong>do</strong>adiante. Segun<strong>do</strong> esta autora,“é <strong>entre</strong> <strong>os</strong> waurá que se celebram “festas” com essa temáticaextremamente elaborada e pictoricamente expressa em seusartefat<strong>os</strong> de cerâmica. Entre <strong>os</strong> kuikuro, muitas das “festas”ligadas a<strong>os</strong> “espírit<strong>os</strong>”, nduhe e itseke em kuikuro, sãomencionadas pel<strong>os</strong> própri<strong>os</strong> índi<strong>os</strong> como de proveniência aruak”(op.cit.:148).47 Corroboran<strong>do</strong> as pistas anteriormente deixadas por Schmidt (1942).48 Como também atesta Menezes Bast<strong>os</strong> (1995).49 Em sua pesquisa arqueológica, Heckenberger sugere que, ao contrário <strong>do</strong> que se dizde forma genérica, a densidade demográfica das sociedades indígenas da região <strong>do</strong> Alto<strong>Xingu</strong> era bastante alta por volta <strong>do</strong> séc. XVI, sofren<strong>do</strong> uma drástica redução a partir deentão.


40A mesma autora segue afirman<strong>do</strong> que <strong>os</strong> cant<strong>os</strong> e o mito deJamugikumalu (o mesmo que iamurikuma) são também de origem aruak. Noentanto, creio que esta mesma origem não se estende a tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> rituais alipraticad<strong>os</strong>, visto que dentro <strong>do</strong> complexo ritual xamânico há um forte substratotupi (ver Menezes Bast<strong>os</strong>, 1999a). Além disso, não se deve atribuir umaexclusividade originária na esfera ritual a<strong>os</strong> pov<strong>os</strong> mais antig<strong>os</strong> na região, istoporque o próprio sistema xinguano, como já foi dito, é aberto e criativo,“movente” nas palavras de Menget (1977), e está sempre absorven<strong>do</strong> aalteridade de forma ritual 50 . Um exemplo disto é a complementaridade <strong>entre</strong> <strong>os</strong>rituais de yawari, de origem Trumai-tupi, e o ritual <strong>do</strong> kwarỳp, de provávelorigem aruak, amb<strong>os</strong> giran<strong>do</strong> em torno das temáticas da morte e da chefia. Oritual presumivelmente de maior abrangência xinguana, o kwarỳp (kaumai em<strong>Wauja</strong>), é dedica<strong>do</strong> a<strong>os</strong> chefes mort<strong>os</strong>. Apesar deste ritual contar com aseminal etnografia de Ag<strong>os</strong>tinho (1974), não se pode afirmar algo maisconclusivo a respeito de sua origem, o que, talvez pudesse ser contorna<strong>do</strong> casohouvesse maiores referências a<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> deste ritual. P<strong>os</strong>so apenas dizer que, apartir de uma análise e escuta superficial de <strong>do</strong>is kwarỳp que presenciei, estescant<strong>os</strong> devem ter uma origem aruak 51 .Desta forma, pode-se pensar que diferentes vetores concorrem emrelação à origem d<strong>os</strong> principais rituais intertribais no Alto <strong>Xingu</strong>. Ten<strong>do</strong> em vistaque o sistema xinguano funciona incorporan<strong>do</strong> alteridades, de forma que o quevem de "fora" pode vir a ser tão legítimo quanto o que poderia estar mais"dentro", parece inadequa<strong>do</strong> querer chegar às origens deste ou daquele rito de50 Como se pode notar atualmente com <strong>os</strong> campeonat<strong>os</strong> de futebol (feminino emasculino) da região, o que m<strong>os</strong>tra que até <strong>os</strong> rituais “de branco” podem fazer partedeste contexto.51 Barcel<strong>os</strong> Neto também ap<strong>os</strong>ta em uma origem aruak para este ritual, na medida emque reconhece a centralidade da produção da chefia e da necessidade dereconhecimento regional destes chefes através deste e de outr<strong>os</strong> rituais (como opohoka, de iniciação masculina) para a manutenção <strong>do</strong> sistema xinguano (2004).Lembro ainda que, <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, o repertório musical deste ritual está diretamenteliga<strong>do</strong> ao mito de Arakoni, personagem responsável, segun<strong>do</strong> a mitologia respectiva,pela criação d<strong>os</strong> padrões gráfic<strong>os</strong> utilizad<strong>os</strong> em toda a região. Como já foi dito, omodelo aruak-karib está na gênese <strong>do</strong> sistema, e é bem provável que um ritual como okwarỳp, emblema de xinguanidade, deva ter esta matriz como ponto de partida.Entretanto, como outr<strong>os</strong> autores afirmam que este ritual é de especialidade Kamayurá(Dole, 1993:390; Carneiro, 1993:407), creio que somente uma análise detalhada <strong>do</strong>material cancional <strong>do</strong> kwarỳp poderá ajudar a elucidar tal questão, tarefa a qual meproponho realizar em trabalh<strong>os</strong> futur<strong>os</strong>.


41forma inequívoca. O yawari, por exemplo, parece advir de uma origemTrumai/Tupi, segun<strong>do</strong> a densa etnografia deste ritual apresentada por MenezesBast<strong>os</strong> (1990) 52 . Este ritual dedica<strong>do</strong> a<strong>os</strong> guerreir<strong>os</strong> mort<strong>os</strong> traz a disputa <strong>entre</strong>diferentes grup<strong>os</strong> xinguan<strong>os</strong> para o centro da cena. Ao penetrar no pensamentoKamayurá sobre o yawari, Menezes Bast<strong>os</strong> afirma que este rito trata <strong>do</strong>princípio da aliança, da guerra e da paz (op. cit.:569). Segun<strong>do</strong> este autor, asexegeses nativas “apontam para o Kwarỳp como um ritual de temporalidademito-c<strong>os</strong>mológica original, e para o Yawari, de cronologia histórica”(1989:397).Se há uma complementaridade kwarỳp-yawari, se estes <strong>do</strong>is rit<strong>os</strong>, dealgum mo<strong>do</strong>, formam uma unidade em term<strong>os</strong> temátic<strong>os</strong>, pode-se afirmar quehá igualmente outr<strong>os</strong> bloc<strong>os</strong> de rituais que se complementam, forman<strong>do</strong> outrasunidades: tal é o caso de iamurikuma e kawoká. Neste caso, mais <strong>do</strong> que umaunidade temática ou complementaridade, no senti<strong>do</strong> acima menciona<strong>do</strong>, creioque estes <strong>do</strong>is rit<strong>os</strong> constituem um complexo <strong>do</strong> qual são as duas faces: amb<strong>os</strong>têm fundamento em questões de gênero, manten<strong>do</strong> um caráter dialógico e umarelação músico-c<strong>os</strong>mológica muito particular 53 . Pode-se sugerir que a estecomplexo iamurikuma/kawoká corresponderia também um forte substratoaruak (Dole, 1993: 393). Para esta sup<strong>os</strong>ição, pode-se a<strong>do</strong>tar a perspectivaprop<strong>os</strong>ta por Piedade de que haveria um “fun<strong>do</strong> aruak <strong>do</strong> complexo das flautassagradas” (2004:116-19), da<strong>do</strong> pel<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> e por evidências de dispersãodestes instrument<strong>os</strong> <strong>entre</strong> pov<strong>os</strong> aruak desde o noroeste amazônico até aregião <strong>do</strong> Brasil Central, forman<strong>do</strong> como que uma ferradura passan<strong>do</strong> por sobreo Acre e in<strong>do</strong> até o Mato Gr<strong>os</strong>so. Piedade, a título de hipótese, ao estabeleceruma correspondência <strong>entre</strong> sociedades com “casa de homens” e “sociedadescom flautas sagradas”, vê o Alto <strong>Xingu</strong> como um exemplo amazônico da52Ao passo que Dole (1993) e Guirardello (2002) afirmam ser ele Trumai porexcelência.53 Faz parte <strong>do</strong> argumento central deste trabalho tratar estes <strong>do</strong>is rit<strong>os</strong> como lad<strong>os</strong> deum único complexo ritual, cada um constituin<strong>do</strong> uma de suas faces. Este ponto serámais bem esclareci<strong>do</strong> na medida em que as homologias <strong>entre</strong> <strong>os</strong> repertóri<strong>os</strong> musicais deamb<strong>os</strong> <strong>os</strong> rituais forem apresentadas adiante. Por ora, lembro que as mesmas flautaschamadas de kawoká <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, recebem diferentes nomes no Alto <strong>Xingu</strong>, deacor<strong>do</strong> com o grupo: yaku’i em Kamayurá; kagutu em Kuikuro e Matipu; apapalu, emYawalapití.


42ocorrência de uma junção <strong>do</strong> complexo aruak das flautas com o da instituiçãodas casas d<strong>os</strong> homens tupi.Já em relação especificamente ao iamurikuma, obtive de meusinformantes <strong>Wauja</strong> a explicação de que a história que deu origem ao ritoaconteceu perto d<strong>os</strong> Kalapalo, e que estes devem ter si<strong>do</strong> <strong>os</strong> primeir<strong>os</strong> a fazero ritual. Por outro la<strong>do</strong>, Franchetto (2001), Dole (1993), Schultz e Chiara(1976) ap<strong>os</strong>tam nas evidências de uma origem aruak para o ritual. Segun<strong>do</strong>Franchetto, tais evidências podem ser apreendidas diretamente através d<strong>os</strong>cant<strong>os</strong> pois, ao observá-l<strong>os</strong> <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Kuikuro (povo de língua karib), conclui que<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> “são aruak, assim como o termo Jamurikumalu, traduzi<strong>do</strong>literalmente em Kuikuro como itão kuegü, “hípermulher” (op.cit:149). Contu<strong>do</strong>,não encontrei <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> tradução para a palavra iamurikuma (e nem paraiamurikumalu) 54 . Se kuma é um sufixo superlativo, e que confere um carátersobrenatural à palavra à qual é anexa<strong>do</strong>, o que significaria iamuri? Obtiveinformações que levam a crer que esta palavra não tem nenhuma traduçãopara <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, nunca sen<strong>do</strong> utilizada nesta forma isolada. No entanto, apósobservar, durante a narrativa <strong>do</strong> mito de iamurikuma 55 a proximidade <strong>entre</strong> asMakaojoneju, “mulheres Bakairí”, e as iamurikuma, ocorreu-me verificar alíngua Bakairi. E nesta língua há a palavra iamyra, que significa as “almas d<strong>os</strong>mort<strong>os</strong>” (iamy= escuro; ra= partícula que indica a direção para onde se vai;literalmente: “que vai para o escuro”, cf. Barr<strong>os</strong>, 2003:157). Tal designaçãoaponta para um movimento próximo àquele empreendi<strong>do</strong> no mito pelas54 O sufixo kuma (fem. kumálu), presente nas línguas aruak <strong>do</strong> Alto <strong>Xingu</strong>, aponta para,no mínimo, cinco significad<strong>os</strong>, de acor<strong>do</strong> com Viveiro de Castro (2002:29-32) e tambémconstatad<strong>os</strong> por mim <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> durante o trabalho: pode servir para indicar umtamanho “grande”, ou, em se tratan<strong>do</strong> de animais, a maior espécie de umadeterminada ordem; também pode indicar uma derivação de uma certa espécie, oucomumente dito, um “outro”; também pode indicar um ser ou objeto exótico para <strong>os</strong>padrões xinguan<strong>os</strong>, mas que guarda alguma analogia com objet<strong>os</strong> e seres encontrad<strong>os</strong>na região; principalmente para indicar uma correspondência <strong>entre</strong> seres “espirituais”,apapaatai, que guardam semelhança com seres presentes na vida cotidiana, geralmenteremeten<strong>do</strong> a animais; e por fim, pra qualificar tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> seres e coisas que estãopresentes n<strong>os</strong> mit<strong>os</strong>. Curi<strong>os</strong>o que, sen<strong>do</strong> kuma uma terminação masculina, e kumalufeminina, <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> se refiram somente a iamurikuma, e não a iamurikumalu, com<strong>os</strong>eria de se esperar. Isto se dá tanto no mito quanto nas canções rituais, apesar de emalguns pouc<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> aparecer a palavra iamurikumalu. Este fato pode ser significativoà luz <strong>do</strong> mito das mulheres que se tornaram iamurikuma, assumin<strong>do</strong> muit<strong>os</strong> atribut<strong>os</strong>masculin<strong>os</strong>, como se poderá ver mais adiante.55 Ver adiante o mito de iamurikuma e discussão mais detalhada.


43iamurikuma ao viajarem pel<strong>os</strong> subterrâne<strong>os</strong> antes de chegarem na aldeia d<strong>os</strong>mort<strong>os</strong> (ver adiante). Além desta constatação, a maior parte <strong>do</strong> repertóriocanta<strong>do</strong> pelas mulheres no ritual de iamurikuma recebe o título deMakaojonejuonaapa, “música das mulheres Bakairí”, e muitas vezes estemesmo repertório é chama<strong>do</strong> de kawokakuma, considera<strong>do</strong> “música de flauta”.Entretanto, estas aproximações devem ser cautel<strong>os</strong>as, pois o discurso <strong>Wauja</strong>não aponta para uma origem Bakairi deste ritual, e no caso da palavraiamurikuma, não parecem utilizar o sufixo superlativo kuma como modifica<strong>do</strong>rde um conceito (iamuri) -apesar de ter ouvi<strong>do</strong> de Tupanumaká que talvezamuri (palavra contida no canto I30 adiante na tese), seja uma derivação deamunau, que quer dizer chefe-, mas sim diretamente como um “híper-ser” que,tanto em sua forma kuma quanto kumalu, é, por excelência, híper-feminino.• Pesquisas sobre música no Alto <strong>Xingu</strong>.Conforme a descrição acima, o sistema sócio-cultural xinguano éhistoricamente estável, remeten<strong>do</strong> a um modelo prototípico aruak-karib, sen<strong>do</strong>que <strong>os</strong> grandes rituais intertribais constituem o espaço no qual as regras epadrões da socialidade e comunicabilidade pan-xinguana são colocadas emação, promoven<strong>do</strong> a constituição da diferença e <strong>do</strong> conflito no seio daconvivência e solidariedade. Como nota Basso (1985:244), o ritual xinguanotem um espaço pequeno para falas, há nele uma certa economia de objet<strong>os</strong>simbólic<strong>os</strong>, que, no entanto, são altamente elaborad<strong>os</strong>. Neste contexto, <strong>os</strong> at<strong>os</strong>de comp<strong>os</strong>ição e performance musical, comunican<strong>do</strong> e expressan<strong>do</strong> idéiasprofundamente sentidas, são cruciais no próprio estabelecimento <strong>do</strong> ritual. Daíque o estu<strong>do</strong> d<strong>os</strong> sistemas e rit<strong>os</strong> musicais da região constitui uma importantecolaboração no esforço para a compreensão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> xinguano e <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> devida destes pov<strong>os</strong> 56 .56 Nesta mesma direção, desde o final d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> setenta, as investigações sobre asmúsicas d<strong>os</strong> pov<strong>os</strong> indígenas das terras baixas da América <strong>do</strong> Sul têm revela<strong>do</strong>, sob aperspectiva <strong>do</strong> campo da etnologia, sistemas musicais e c<strong>os</strong>mologias densamenteelaboradas, com trabalh<strong>os</strong> como <strong>os</strong> de Aytai (1985), Menezes Bast<strong>os</strong> (1990,1999a),Beaudet (1983, 1997), Fucks (1989), Smith (1977), Travass<strong>os</strong> (1984), Seeger (1987) eHill (1992, 1993), Ermel (1988), Estival (1994), Olsen (1996), que abordaram,respectivamente, a música <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Xavante, Kamayurá, Waiãpi (Beaudet pesquisou no


44O estu<strong>do</strong> de Basso sobre <strong>os</strong> Kalapalo (1985), apesar de não se situar naárea específica da antropologia da música, ilumina de forma penetrante estecampo e apresenta uma interessante perspectiva para a compreensão <strong>do</strong> ritualxinguano. Trata-se de um estu<strong>do</strong> sobre as narrativas míticas deste povo,p<strong>os</strong>sui<strong>do</strong>r de uma arte verbal cuja compreensão, para a autora, só é p<strong>os</strong>sívelatravés da análise da performance, entendida aqui como formas elevadas deexpressão cultural onde a experimentação criativa é apropriada, e mesmoesperada. O performer tem responsabilidade frente a uma audiência crítica eprecisa ajustar sua ação para satisfazê-la. Nas performances de narrativasKalapalo (akiña), há <strong>do</strong>is element<strong>os</strong> crític<strong>os</strong> ao processo narrativo: a adesão <strong>do</strong>narra<strong>do</strong>r a um conjunto de element<strong>os</strong> estruturantes <strong>do</strong> discurso convencional ea participação <strong>do</strong> ouvinte-responde<strong>do</strong>r (what-sayer). Para a autora, acompreensão d<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> passa pela sua performance, entendida como um ritual.Como process<strong>os</strong> performátic<strong>os</strong>, <strong>os</strong> rituais Kalapalo envolvem a criação daexperiência musical, forman<strong>do</strong> sentid<strong>os</strong> essenciais através da significação dadaà execução musical. O som, no ritual Kalapalo, deve ser entendi<strong>do</strong> como umsistema modela<strong>do</strong>r primário, enraiza<strong>do</strong> na praxis social e no conhecimento <strong>do</strong>meio-ambiente. Estes rituais se direcionam à compreensão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e <strong>do</strong> selfatravés da experiência ativa e imaginativa, e o som é a forma simbólicaprimária unin<strong>do</strong> estes process<strong>os</strong>. A perspectiva mitológica Kalapalo é, portanto,próxima a uma “visão musical <strong>do</strong> universo”. 57Como exp<strong>os</strong>to anteriormente, o sistema xinguano tem como um de seuspilares o jogo <strong>entre</strong> semelhança e diferença. Para além de seu significa<strong>do</strong> nonível sócio-político, este jogo constitui um eixo fundamental nas c<strong>os</strong>mologias enas artes destes grup<strong>os</strong>: é, de fato, ali que a diferença é construída em umplano poético-musical. Nesta direção, Piedade, ao analisar o ritual das flautasla<strong>do</strong> da Guiana Francesa e Fucks no la<strong>do</strong> brasileiro), Amuesha, Kayabi, Suyá, Wakuénai,Cinta-Larga, Assuriní e Arara, e Warao. A partir <strong>do</strong> final d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> 90, ocorre umcrescimento nesta linha de pesquisa n<strong>os</strong> quadr<strong>os</strong> universitári<strong>os</strong> brasileir<strong>os</strong>, através detrabalh<strong>os</strong> como Bueno da Silva (1997), sobre a música Kulina (Alto Purús); Piedade(1997), Tukano; meu trabalho sobre a música <strong>Wauja</strong> (Mello, 1999); Cunha (1999),Pankararú; Montar<strong>do</strong> (2002), Guarani; Werlang (2001), Marubo e Piedade (2004) sobrea música das flautas kawoká <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>.57 Este estu<strong>do</strong> é de particular importância para esta tese por <strong>do</strong>is motiv<strong>os</strong>: por suateoria <strong>do</strong> ritual xinguano como ritual musical e, além disso, por sua abordagem <strong>do</strong>complexo iamurikuma-kawoká (em sua versão Kalapalo, yamurikumalu-kagutu). Ambasas argumentações desta autora terão maior rendimento no decorrer da tese.


45kawoká, conclui que “a poética musical <strong>Wauja</strong> trata da confecção da diferença,dada fundamentalmente no eixo <strong>do</strong> tempo e da existência, ou seja, natemporalidade (2004:230)”. Se no Alto <strong>Xingu</strong> se pode afirmar que a músicainstitui o ritual, este deven<strong>do</strong> ser considera<strong>do</strong> musical por excelência (cf. Basso,1985), isto é porque, ao lidar com proporções, repetições e variações, a músicainstaura o conflito ao mesmo tempo em que o mantém sob controle. De acor<strong>do</strong>com Franchetto,“no canto, pela música, formas de expressão que transcendem oprofano da linguagem cotidiana, se celebra a essência de serkuge [“nós-eu” em língua karib] e as línguas se misturam empalavras imobilizadas nas fórmulas <strong>do</strong> rito” (2001:149) 58 .É importante frisar que no cerimonial xinguano, ou seja, n<strong>os</strong> rituais eoutras práticas cerimoniais intertribais, há um discurso que se manifesta: acomunicação na sociedade xinguana passa necessariamente pelo rito, pelatransformação estética da vida cotidiana. Menezes Bast<strong>os</strong>, através de umtrabalho aprofunda<strong>do</strong> sobre <strong>os</strong> aspect<strong>os</strong> musicais <strong>do</strong> ritual, vê este discursocerimonial xinguano como estrutura<strong>do</strong> sobre três pont<strong>os</strong>: o mito, a música e adança, esta última em conjunção com a arte plumária e a pintura corporal. Amúsica, neste contexto, representa o pivot <strong>entre</strong> o mito e a dança: ela é aforma de se ir “da cognição à motricidade, passan<strong>do</strong> pelo sentimento”,(Menezes Bast<strong>os</strong>, 1999a). Esta idéia configura o que o autor chamou deestrutura mito-música-dança, uma das três grandes estruturas coreográficocomp<strong>os</strong>icionaisdetectadas por Menezes Bast<strong>os</strong>. Com esta estrutura mitomúsica-dança,entende-se que o mito narra, explana sobre as coisas e event<strong>os</strong><strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em apresentação, a dança revela <strong>os</strong> comportament<strong>os</strong> característic<strong>os</strong>,a música realizan<strong>do</strong> a transformação de uma coisa em outra pelas ambiênciasque produz (op.cit:53). Outra estrutura observada por Menezes Bast<strong>os</strong> échamada núcleo/periferia, inspirada na formação coreográfica de muit<strong>os</strong> d<strong>os</strong>rituais xinguan<strong>os</strong>, onde no centro está o “mestre de música” junto com seusajudantes, aprendizes e outr<strong>os</strong> adult<strong>os</strong> madur<strong>os</strong> de prestígio, tod<strong>os</strong> elesexecutan<strong>do</strong> a melodia principal, enquanto que na periferia deste núcleo ficam58 Acrescentaria também aqui a música instrumental, que, prescindin<strong>do</strong> da língua, é tãoprenhe de significa<strong>do</strong> quanto a música vocal.


46<strong>os</strong> adult<strong>os</strong> jovens, a<strong>do</strong>lescentes e crianças, tod<strong>os</strong> emitin<strong>do</strong> onomatopéiasmúsico-lingüisticas (imitações de vozes de animais) em pont<strong>os</strong> cruciais dascanções. Por fim, há a estrutura seqüencial (entendida pelo autor com<strong>os</strong>emelhante à forma musical “suíte”), onde as canções rituais são organizadasem bloc<strong>os</strong> intercambiáveis (cant<strong>os</strong>), haven<strong>do</strong> <strong>entre</strong> <strong>os</strong> cant<strong>os</strong>, vinhetas quefuncionam como marca<strong>do</strong>res de canções e bloc<strong>os</strong>. Se este modelo estruturaltripartite é certamente revela<strong>do</strong>r e instigante no caso xinguano, pode-sep<strong>os</strong>tular que p<strong>os</strong>sa ter ampla recorrência na música ameríndia das terrasbaixas: eis uma hipótese a se verificar.Minha perspectiva para o ritual e a música no Alto <strong>Xingu</strong> se apóiafortemente nas obras de Menezes Bast<strong>os</strong>, particularmente (1999a[1978];1990), que fornecem um modelo de etnografia da música e sustentaçãoteórico-meto<strong>do</strong>lógica, e também na tese de Piedade (2004), que apresentauma etnografia da música de flautas kawoká, bem como divers<strong>os</strong> insights sobre<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>. A seguir, comentarei brevemente estes autores.A música xinguana é objeto de estud<strong>os</strong> antropológic<strong>os</strong> pioneir<strong>os</strong> eprofícu<strong>os</strong> de Menezes Bast<strong>os</strong>, especialmente a música d<strong>os</strong> rituais Kamayurá.Após sua dissertação de mestra<strong>do</strong>, tratan<strong>do</strong> <strong>do</strong> universo sonoro deste grupocom enfoque no meta-sistema de cobertura verbal <strong>do</strong> sistema musical (1999a),Menezes Bast<strong>os</strong> mergulha fun<strong>do</strong> no ritual yawari em sua fértil tese de<strong>do</strong>utora<strong>do</strong> (1990). Descobrim<strong>os</strong> o yawari como uma máquina decompressão/expansão <strong>do</strong> tempo que, através das múltiplas operações querealiza dentro de seu universo classificatório-valorativo, expõe seu ideário sobresentiment<strong>os</strong> como "respeito", "ciúme", "vergonha", tratan<strong>do</strong> da ética daprodução e reprodução sociais (op.cit:221-222) 59 . O parentesco surge aquicomo resulta<strong>do</strong> de um quadro de pes<strong>os</strong> e medidas instituí<strong>do</strong> pelas canções.Este autor rebate suas análises das canções <strong>do</strong> ritual sobre as relações deparentesco, e demonstra que estas só têm existência na medida em que sãoconstruídas e constituídas por coisas como o yawari, rit<strong>os</strong>, dramas, tragédias,comédias (op.cit:464). Ao aprofundar suas análises, Menezes Bast<strong>os</strong> revela-n<strong>os</strong>o ritual <strong>do</strong> yawari como uma “festa que entroniza o combate e a polêmica, a59 Por apontar para esta importância das paixões Kamayurá no ritual yawari, estetrabalho de Menezes Bast<strong>os</strong> tem um papel crucial nesta tese.


47guerra e o dissídio, o dissenso e o desacor<strong>do</strong>” (op.cit:576). Isto tu<strong>do</strong>descortina<strong>do</strong> pela empreitada de analisar meticul<strong>os</strong>amente a música comoterritório da ética, anteven<strong>do</strong> no recorte da<strong>do</strong> a<strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> e escalas “as pistasaxionômicas <strong>do</strong> Yawari, suas chaves de entendimento no plano axiológico”(op.cit:584).Seguin<strong>do</strong> as pistas deixadas por Menezes Bast<strong>os</strong> e por meu estu<strong>do</strong> damúsica <strong>Wauja</strong> (Mello, 1999), Piedade (2004) investe em uma etnografia <strong>do</strong>ritual das flautas kawoká <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, analisan<strong>do</strong>, <strong>entre</strong> outras coisas, ochama<strong>do</strong> “complexo das flautas sagradas”, observa<strong>do</strong> em várias sociedadesamazônicas e em outras partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, indagan<strong>do</strong> sobre sua relação com associedades com “casa d<strong>os</strong> homens”. Esta investigação da música instrumentaldas flautas kawoká envolveu o estu<strong>do</strong> da c<strong>os</strong>mologia e <strong>do</strong> xamanismo, eigualmente questões da socialidade. O trabalho tem um enfoque musicológicoapoia<strong>do</strong> no discurso nativo, que aponta para a centralidade das melodiasexecutadas pelo flautista principal, o kawokatopá, que são entendidas como um“canto”, apai. Este canto, por sua vez, é percebi<strong>do</strong> como uma fala <strong>do</strong>apapaatai, expressão da kawokaogatakoja, “linguagem <strong>do</strong> kawoká”. O autorobservou que as indicações d<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> sobre esta música e a acuidade <strong>do</strong>ouvi<strong>do</strong> musical d<strong>os</strong> flautistas apontavam para operações sistemáticas derepetição e diferenciação no âmbito d<strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> e frases musicais, estan<strong>do</strong>ligadas a princípi<strong>os</strong> variacionais que constituem a base <strong>do</strong> pensamento musicalnativo. Desta forma, Piedade parte para a análise musicológica <strong>do</strong> canto <strong>do</strong>kawoká, cerne desta música, ali revelan<strong>do</strong> o jogo d<strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> musicais,compreendi<strong>do</strong> como o esforço da instauração da diferença a partir daigualdade, bem como detectan<strong>do</strong> no conjunto forma<strong>do</strong> por seqüências decanções, o que Menezes Bast<strong>os</strong> chamou de estrutura seqüencial. Na músicainstrumental das flautas kawoká, a criação da diferença é efetuada através deum recorte e manipulação das idéias musicais, operações compreendidasenquanto uma poética, um d<strong>os</strong> pilares da c<strong>os</strong>mologia e fil<strong>os</strong>ofia nativas. Asconclusões deste autor vão ao encontro de muito <strong>do</strong> que será elabora<strong>do</strong> nestatese, e seu trabalho no nível musical e fil<strong>os</strong>ófico serão retomad<strong>os</strong> aqui para oritual de iamurikuma, inclusive no senti<strong>do</strong> de comparar estes rituais ecompreender sua complementaridade. Contu<strong>do</strong>, preten<strong>do</strong> adensar estes


48aspect<strong>os</strong> e desenvolver discussões acerca de relações de gênero, da ética e daspaixões nativas. Isto porque estou pensan<strong>do</strong> <strong>os</strong> páthoi como disp<strong>os</strong>ições que seencontram no cerne da própria racionalidade que se apresenta no discursomusical e na socialidade, instituin<strong>do</strong> a diferença. Estes pont<strong>os</strong> serão elaborad<strong>os</strong>ao longo <strong>do</strong> trabalho, e principalmente no final da tese.Desta forma, apresenta<strong>do</strong> o sistema sócio-cultural xinguano e aspect<strong>os</strong>d<strong>os</strong> estud<strong>os</strong> sobre ritual e música xinguana, destacan<strong>do</strong> algumas referênciascapitais para a presente tese, pode-se resumir as discussões anteriores naafirmação de que a abordagem <strong>do</strong> sistema xinguano -a partir de um grupolocaliza<strong>do</strong>, sem perder de vista o sistema como um to<strong>do</strong>, inclusive em suarelação com o mun<strong>do</strong> exterior ao universo local (indígena e não)- encontra noritual sua mais completa e complexa expressão, e a música, dentro destesistema, desempenha um papel central. No senti<strong>do</strong> de me aproximar <strong>do</strong>universo que preten<strong>do</strong> analisar, o de iamurikuma <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, sigo agorapara uma apresentação <strong>do</strong> povo <strong>Wauja</strong>.> |


49Os <strong>Wauja</strong>Os primeir<strong>os</strong> contat<strong>os</strong> da sociedade envolvente com <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> se derampela primeira vez em 1947, com a expedição comandada por Eduar<strong>do</strong> Galvão.As expedições de von den Steinen, no final <strong>do</strong> séc. XIX, já davam conta daexistência deste grupo, porém sem estabelecer um contato direto com ele.Segun<strong>do</strong> Ireland (2001), adveio da passagem desta expedição pelo <strong>Xingu</strong>,ainda no séc. XIX, o primeiro surto de gripe <strong>entre</strong> <strong>os</strong> nativ<strong>os</strong>. No rastro da ERXe da expedição de 1947 veio, então, uma epidemia de sarampo em 1954 quefoi devasta<strong>do</strong>ra em term<strong>os</strong> populacionais para <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>: houve uma reduçãoem torno de 50% 60 . Além destas passagens, é muito provável que tenhamocorri<strong>do</strong> confront<strong>os</strong> <strong>entre</strong> “branc<strong>os</strong>” e índi<strong>os</strong> antes mesmo d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> 40,conforme Basso (1993,1995), Menezes Bast<strong>os</strong> (1995) e Franchetto(1992,1993).Os primeiro artig<strong>os</strong> tratan<strong>do</strong> especificamente d<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> datam d<strong>os</strong> an<strong>os</strong>50, e enfocam, de mo<strong>do</strong> geral, aspect<strong>os</strong> da cultura material, mitologia, ritual,trazen<strong>do</strong> também algumas informações sobre a política local (Lima, 1950;Schultz, 1965; Schultz & Chiara, 1976). Pesquisas mais sistemáticas seiniciaram n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> 60, através da arqueóloga <strong>do</strong> Museu Paulista Nobue Myazaki(1965, 1981; Myazaki, Barracco e Sant<strong>os</strong>, 1978), cuja tese (Myazaki, 1965) foidefendida em Tóquio, tratan<strong>do</strong> também d<strong>os</strong> índi<strong>os</strong> Mehinaku, porém não ten<strong>do</strong>grande repercussão n<strong>os</strong> escrit<strong>os</strong> futur<strong>os</strong> sobre a região. A pesquisa<strong>do</strong>ra VeraPentea<strong>do</strong> Coelho, também ligada ao Museu Paulista, permaneceu <strong>entre</strong> <strong>os</strong><strong>Wauja</strong> por períod<strong>os</strong> curt<strong>os</strong>, porém freqüentes, produzin<strong>do</strong> <strong>os</strong> primeiro escrit<strong>os</strong>de maior impacto, principalmente no que se refere ao grafismo e à culturamaterial (Coelho, 1981, 1983, 1986, 1988, 1991/92a, 1991/92b). Durante <strong>os</strong>an<strong>os</strong> 80, a então antropóloga norte-americana Emilienne Ireland viveu <strong>entre</strong> <strong>os</strong><strong>Wauja</strong> por <strong>do</strong>is an<strong>os</strong>, mas infelizmente não concluiu sua tese, fican<strong>do</strong> seutrabalho registra<strong>do</strong> em vári<strong>os</strong> artig<strong>os</strong> interessantes, principalmente no queconcerne à política e ao faccionalismo local (Ireland, 1986, 1988a, 1991, 1993,2001). Os estud<strong>os</strong> mais recentes sobre <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> são as dissertações demestra<strong>do</strong> de Aristóteles Barcel<strong>os</strong> Neto (Barcel<strong>os</strong> Neto, 1999), que enfoca ac<strong>os</strong>mologia e as artes visuais, a minha própria, (Mello, 1999), sobre60 Segun<strong>do</strong> dad<strong>os</strong> estatístic<strong>os</strong> de Ireland (2001: 269) e relat<strong>os</strong> de informantes <strong>Wauja</strong>.


50c<strong>os</strong>mologia, mitologia e música, e as teses de <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> de Acácio Piedade(2004) enfocan<strong>do</strong> o ritual das flautas kawoká e a de Barcel<strong>os</strong> Neto (2004)sobre <strong>os</strong> rituais de máscara 61 .> |


51conseguirem reanexar, através de um exaustivo processo, uma faixa de suasterras que havia fica<strong>do</strong> de fora <strong>do</strong> traça<strong>do</strong> <strong>do</strong> PIX 63 .A aldeia principal, Piulaga, sempre esteve na mesma região mas não nomesmo local. Como é c<strong>os</strong>tumeiro no Alto <strong>Xingu</strong>, <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> não mantêm umaaldeia situada no mesmo local por mais de 10 an<strong>os</strong>, afirman<strong>do</strong> que as casasficam infestadas de inset<strong>os</strong>, a palha envelhece e a madeira apodrece, fican<strong>do</strong>em condições de difícil reparo, sen<strong>do</strong>, portanto, mais fácil derrubar e queimar aaldeia velha e construir outra nova. No entanto, há uma outra interpretação aser considerada: o fato d<strong>os</strong> enterrament<strong>os</strong> serem feit<strong>os</strong> no centro da aldeiageraria um adensamento especialmente crítico após alguns an<strong>os</strong>, isto devi<strong>do</strong> àconcentração de corp<strong>os</strong> mort<strong>os</strong> enterrad<strong>os</strong> no lugar, tal excesso apresentan<strong>do</strong>perigo devi<strong>do</strong> à atração que tal sítio poderia exercer para <strong>os</strong> apapaatai,“espírit<strong>os</strong> perig<strong>os</strong><strong>os</strong>”, causan<strong>do</strong> inúmer<strong>os</strong> problemas a<strong>os</strong> habitantes da aldeia 64 .A atual aldeia foi erguida em 1998, durante o perío<strong>do</strong> de meu primeirotrabalho de campo <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>. Os <strong>Wauja</strong> p<strong>os</strong>suem um vasto pequizalplanta<strong>do</strong> em seu entorno, e suas roças ficam a uma distância deaproximadamente 2 km de Piulaga. As roças são sempre familiares, ou seja,pertencem a uma família nuclear, mas podem ser exploradas por vári<strong>os</strong> coresidentes.Planta-se basicamente mandioca brava e ocasionalmente, mandioca<strong>do</strong>ce, abóbora, banana, feijão e milho. Há ainda um cultivo <strong>do</strong> tabaco, que éconsumi<strong>do</strong> basicamente pel<strong>os</strong> pajés. Algumas famílias p<strong>os</strong>suem fazendasdistantes, chamadas (assim como as roças) de potojonukala (roça+ lugar da),sen<strong>do</strong> que muitas vezes há a necessidade de um deslocamento por rio e algunsdias de viagem para se chegar a elas.63Este processo foi encabeça<strong>do</strong> por Atamai e contou com a intervenção dasantropólogas Emilienne Ireland e Bruna Franchetto.64 A mudança de localização das aldeias também foi observada <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Kamayurá porGalvão (1953:19), que, no entanto, deu uma explicação de ordem ecológica: seriadevi<strong>do</strong> ao esgotamento <strong>do</strong> solo. Menezes Bast<strong>os</strong> (1999a: 77 nota 14), por outro la<strong>do</strong>,chama a atenção para o fato d<strong>os</strong> enterrament<strong>os</strong> serem feit<strong>os</strong> no perímetro da aldeia,sen<strong>do</strong> esta a justificativa mais plausível para as mudanças.


52[croquis da aldeia Piulaga]Como <strong>os</strong> demais pov<strong>os</strong> xinguan<strong>os</strong>, <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> vivem da pesca e damandioca, cuj<strong>os</strong> produt<strong>os</strong> são <strong>os</strong> principais componentes de sua dietaalimentar. Assim como <strong>os</strong> Kalapalo (Basso, 1977: 98-105), <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> sãobastante seletiv<strong>os</strong> em relação a<strong>os</strong> tip<strong>os</strong> de peixe que consomem, e têmespeciais ressalvas em relação a<strong>os</strong> peixes de couro, em op<strong>os</strong>ição a<strong>os</strong> deescama, estes últim<strong>os</strong> consumid<strong>os</strong> mais livremente. Têm grande ojeriza porpeixes que p<strong>os</strong>sam ter se alimenta<strong>do</strong> de minhocas, animal considera<strong>do</strong> comoextremamente repulsivo 65 . Os tabus alimentares são muit<strong>os</strong>, e dependem de65 Para <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, <strong>os</strong> peixes comestíveis são aqueles que se alimentam somente deoutr<strong>os</strong> peixes e de plantas. Este tipo de repulsa, que tem sempre um fator c<strong>os</strong>mológicoem jogo, parece ser pan-xinguano, a julgar pelo relato de Basso de que <strong>os</strong> Kalapalo, emuma época de escassez de proteínas, jogaram fora um grande peixe que haviam


53moment<strong>os</strong> específic<strong>os</strong> da vida de uma pessoa, como a reclusão pubertária, acouvade, <strong>os</strong> cicl<strong>os</strong> menstruais, etc.Uma coisa que provoca muita curi<strong>os</strong>idade nas pessoas de fora, no Alto<strong>Xingu</strong>, é o fato de que, haven<strong>do</strong> caça abundante na região, <strong>os</strong> xinguan<strong>os</strong> nã<strong>os</strong>e alimentam de carne vermelha 66 . Com exceção <strong>do</strong> peixe, suas fontes deproteínas vêm de algumas poucas aves e, muito raramente, de macac<strong>os</strong> prego,único animal de pelo a compor a dieta xinguana. Há um certo consenso de quecomer carne vermelha <strong>os</strong> torna mais violent<strong>os</strong> e agressiv<strong>os</strong>, o que iria deencontro à ética pacifista apregoada na região, que procura se afastar de tu<strong>do</strong>que p<strong>os</strong>sa lembrar um passa<strong>do</strong> antropofágico, como aquele a que associam <strong>os</strong>Kamayurá 67 . O tabu alimentar da carne de caça está profundamenterelaciona<strong>do</strong> com a c<strong>os</strong>mologia, com <strong>os</strong> limites <strong>entre</strong> <strong>os</strong> apapaatai (literalmente“bich<strong>os</strong>”, mas emprega<strong>do</strong> para designar <strong>os</strong> perig<strong>os</strong><strong>os</strong> seres sobrenaturaisinvisíveis, causa<strong>do</strong>res de <strong>do</strong>ença) e <strong>os</strong> apapaataimona (“bicho” + “corpo”,termo que se refere a<strong>os</strong> animais da floresta em sua realidade biológica, talcomo <strong>os</strong> conhecem<strong>os</strong>).Soube, recentemente, que <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> pretendem criar ga<strong>do</strong> no local desua antiga aldeia. Aritana, chefe Yawalapití, assim teria sugeri<strong>do</strong>, oferecen<strong>do</strong>algumas cabeças de ga<strong>do</strong> que estão aban<strong>do</strong>nadas no P<strong>os</strong>to Jacaré. Aoquestionar meu informante sobre por que comer ga<strong>do</strong> e não comer vea<strong>do</strong> ouanta, que existem na região e não requerem maiores cuidad<strong>os</strong>, ele merespondeu que o ga<strong>do</strong> não é originário dali e que, portanto, é “igual” às “coisas<strong>do</strong> branco”, não recain<strong>do</strong> nenhuma proibição sobre o consumo de sua carne.Pareceu-me uma boa resp<strong>os</strong>ta, em vista da ignorância que demonstrei frente àcultura nativa.A atividade <strong>do</strong> processamento da mandioca e da pesca também marcamas especialidades de cada gênero: as mulheres lidam com a mandioca e <strong>os</strong>pesca<strong>do</strong> porque dentro dele havia um rato <strong>do</strong> mato, afirman<strong>do</strong> que aquilo não erapeixe, mas “bicho”. Ou seja, em <strong>Wauja</strong>, era apapaatai (Basso, 1977).66 Para uma explicação ecológica sobre a ausência de carne na dieta xinguana ver Zarur(1975).67 Kamaiula é um etnônimo da<strong>do</strong> pel<strong>os</strong> antig<strong>os</strong> pov<strong>os</strong> aruak a<strong>os</strong> diferentes grup<strong>os</strong> tupique adentraram a região em mead<strong>os</strong> <strong>do</strong> séc. XVIII, sen<strong>do</strong> incorporad<strong>os</strong> ao sistemaxinguano. Literalmente, quer dizer “morto no jirau”, ou seja, remete a come<strong>do</strong>res decadáveres grelhad<strong>os</strong>. Para uma discussão mais aprofundada, ver Menezes Bast<strong>os</strong>(1995).


54homens com <strong>os</strong> peixes. Como m<strong>os</strong>trarei adiante, esta distinção faz parte de umesforço de delimitação, de criação da diferença e da complementaridade, vistoque, <strong>do</strong> ponto de vista da razão prática, tal divisão seria injustificável.As duas estações <strong>do</strong> ano marcam períod<strong>os</strong> de fartura e escassez dealimento. No perío<strong>do</strong> da seca (abril a setembro), se colhe e se processa amandioca, fican<strong>do</strong> um silo de polvilho armazena<strong>do</strong> em cada casa para alimentál<strong>os</strong>durante as chuvas. Também é durante a seca que se tem fartura de peixe,<strong>os</strong> ri<strong>os</strong> ficam men<strong>os</strong> turv<strong>os</strong> e diminui o volume de água, facilitan<strong>do</strong> a pesca. Avida ritual na região é muito intensa na seca, perío<strong>do</strong> em que a comunicação<strong>entre</strong> <strong>os</strong> diferentes grup<strong>os</strong> se dá mais intensamente pois, como já foi dito, ainteração <strong>entre</strong> eles se dá quase que exclusivamente através d<strong>os</strong> grandesrituais intertribais. É, portanto, neste perío<strong>do</strong> que a comensalidade exigida eesperada <strong>entre</strong> anfitriões (fornece<strong>do</strong>res <strong>do</strong> alimento) e hóspedes(consumi<strong>do</strong>res), segun<strong>do</strong> uma ética xinguana, tem excelentes condições de seefetivar.No início das chuvas (setembro a março), se dá a colheita de pequi, quealém de ser consumi<strong>do</strong> neste perío<strong>do</strong> também é processa<strong>do</strong> de forma a viraruma pasta, embalada em cest<strong>os</strong> bem vedad<strong>os</strong> que são armazenad<strong>os</strong> no fun<strong>do</strong>de um igarapé, como forma de conservação para o consumo ao longo <strong>do</strong> ano.Além desta pasta, o pequi gera muit<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> sub-produt<strong>os</strong>: akãiya, “mingau”,tukumaga, “<strong>do</strong>ce”, uaũ, “chocalho de sementes”. Também extraem um óleo,imi, que é amplamente utiliza<strong>do</strong> de forma associada ao urucum nas pinturascorporais e como protetor-hidratante da pele. E, com finalidade ritual,procedem a <strong>entre</strong>ga de suas castanhas torradas, yuwejoto, ao final <strong>do</strong> kaumai.A colheita e processamento <strong>do</strong> pequi são feit<strong>os</strong> por homens, mulheres ecrianças indistintamente 68 .68Em 2001 e 2002 presenciei em Piulaga alguns encontr<strong>os</strong> <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> erepresentantes da O.N.G. ISA (Instituto Sócio-ambiental). Neles, foi apresentada umaprop<strong>os</strong>ta conjunta <strong>do</strong> ISA e da Natura (empresa de c<strong>os</strong>métic<strong>os</strong>) para a comercialização<strong>do</strong> óleo de pequi. Foram muitas as conversas, e <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> chegaram mesmo a enviarum lote deste óleo para a Natura proceder às primeiras análises de viabilidade. Estaprop<strong>os</strong>ta foi feita para vári<strong>os</strong> grup<strong>os</strong> da região, incluin<strong>do</strong> <strong>os</strong> Suyá, que extraem o óleode forma diversa d<strong>os</strong> xinguan<strong>os</strong>. A empresa financiou uma viagem de líderes locais atésua fábrica em São Paulo. Contu<strong>do</strong> houve um problema: <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> p<strong>os</strong>suem o maiorpequizal, enquanto outr<strong>os</strong> grup<strong>os</strong> envolvid<strong>os</strong>, como <strong>os</strong> Yawalapiti, não têm umaplantação tão expressiva. Tal fato gerou controvérsias no âmbito regional quanto àdistribuição d<strong>os</strong> recurs<strong>os</strong> captad<strong>os</strong>, entran<strong>do</strong> em cena as disputas por poder e prestígio.


55Antes mesmo de surgir a p<strong>os</strong>sibilidade de vender o óleo de pequi parauma empresa de c<strong>os</strong>métic<strong>os</strong>, <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> já vinham comercializan<strong>do</strong> este óleo naregião, fato inclusive registra<strong>do</strong> em uma narrativa que trata <strong>do</strong> assassinato deantig<strong>os</strong> chefes <strong>Wauja</strong>, efetua<strong>do</strong> pel<strong>os</strong> índi<strong>os</strong> Suyá em um passa<strong>do</strong> não muitoremoto (ver Ireland, 2001). Esta narrativa conta que <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> aguardavam emsua aldeia <strong>os</strong> Suyá para um encontro de troca, onde o óleo de pequi seria oprincipal produto ofereci<strong>do</strong> pel<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>. O que ocorreu, no entanto, foi ummassacre feito pel<strong>os</strong> visitantes, envolven<strong>do</strong> uma rede de reciprocidade antiga(ver op.cit.).Para <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, o pequi parece ser bom para comer, para produzir óleo,para fazer instrument<strong>os</strong> musicais, para comercializar e, acima de tu<strong>do</strong>,parafrasean<strong>do</strong> Lévi-Strauss, bom para pensar. Sim, porque há <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> eoutr<strong>os</strong> grup<strong>os</strong> xinguan<strong>os</strong> uma poder<strong>os</strong>a elaboração mítica e ritual em torno <strong>do</strong>pequi, movimentan<strong>do</strong> toda a aldeia no início das chuvas, através de disputas eprovocações <strong>entre</strong> homens e mulheres. O ritual <strong>do</strong> pequi, akãinaakai, seconstitui em torno da questão da diferença <strong>entre</strong> <strong>os</strong> gêner<strong>os</strong> masculino efeminino, sen<strong>do</strong> uma janela privilegiada para a observação da socialidade.Voltarei a ele no final desta tese.Os últim<strong>os</strong> meses de chuva são crític<strong>os</strong>: a carência alimentar aumenta,quase não haven<strong>do</strong> peixe. Chegam mesmo a passar fome, principalmente nascasas em que não foi armazena<strong>do</strong> polvilho suficiente. O contato com outrasaldeias ou com o P<strong>os</strong>to Leonar<strong>do</strong> se dá somente por barco, visto que parte datrilha está alagada. Nestes dias, passam a caçar aves em maior quantidade, epodem eventualmente também vir a consumir pequen<strong>os</strong> animais, como pacas ecutias.A única fonte de recurs<strong>os</strong> extern<strong>os</strong> até agora tem si<strong>do</strong> o artesanato,principalmente a cerâmica <strong>Wauja</strong>, considerada pel<strong>os</strong> xinguan<strong>os</strong> umaespecialidade deste povo, muito apreciada e valorizada dentro e fora <strong>do</strong><strong>Xingu</strong> 69 . Normalmente, cada casa produz seu próprio artesanato, cujo dinheiroSoman<strong>do</strong>-se a isto a pouca aceitação <strong>do</strong> ISA pel<strong>os</strong> pov<strong>os</strong> <strong>do</strong> Alto <strong>Xingu</strong>, diferentemente<strong>do</strong> que ocorre na parte média e setentrional <strong>do</strong> PIX, sob influência <strong>do</strong> P<strong>os</strong>to Diauarum,to<strong>do</strong> o projeto foi por água abaixo.69 Como muitas etnografias apontam já há bastante tempo, com destaque para Oberg(1953), Murphy e Quain (1955), Ag<strong>os</strong>tinho (1974) e Dole (1993), cada grupo da regiãotem sua especialidade: além da cerâmica <strong>Wauja</strong>, <strong>os</strong> arc<strong>os</strong> pret<strong>os</strong> são Kamayurá, e <strong>os</strong>


56obti<strong>do</strong> com sua venda reverte exclusivamente em benefício d<strong>os</strong> co-residentes.Excetuan<strong>do</strong>-se o rádio ama<strong>do</strong>r, o trator e um carro, tu<strong>do</strong> na aldeia <strong>Wauja</strong> é depropriedade individual.Caberia aqui uma breve explicação <strong>do</strong> que vem a ser um trabalhocoletivo dentro <strong>do</strong> contexto da aldeia. Normalmente, o chefe convoca <strong>os</strong>membr<strong>os</strong> da aldeia para algum mutirão, wanaki, como abrir uma roça (que teráum <strong>do</strong>no individual), ou para uma pescaria coletiva ligada à realização dealgum ritual (que também p<strong>os</strong>sui um “<strong>do</strong>no”, que será o patrocina<strong>do</strong>r <strong>do</strong>ritual) 70 . Alguém que pretenda cobrir sua casa com sapé também podeconvocar <strong>os</strong> homens da aldeia para ajudá-lo, e em troca lhes forneceráalimento. Há outras modalidades de trabalho coletivo, as quais sempreguardam uma relação de reciprocidade <strong>entre</strong> aquele que convoca e <strong>os</strong> querealizam a empreitada. Já o produto <strong>do</strong> trabalho realiza<strong>do</strong> pel<strong>os</strong> membr<strong>os</strong> deuma casa (lembran<strong>do</strong> que <strong>os</strong> co-residentes são: o chefe da casa, sua esp<strong>os</strong>a,filh<strong>os</strong> solteir<strong>os</strong>, filhas casadas, genr<strong>os</strong> e net<strong>os</strong>) reverte exclusivamente paraseus membr<strong>os</strong>, ou ainda pode ficar restrito à família nuclear que realizou otrabalho, que poderá (preferencialmente) dividir com <strong>os</strong> demais ocupantes dacasa.> |


sabem fazer trocas e que, portanto, somente guerreiam 73 . Esta alcunha é maisutilizada ao se referirem àqueles pov<strong>os</strong> que habitam o norte da TIX, como <strong>os</strong>Suyá, Ikpeng ou Kayapó. As trocas e o cultivo da reciprocidade <strong>entre</strong> <strong>os</strong>putakanau são tomadas por eles como valores distintiv<strong>os</strong>, sinais de civilidadenão apenas nas relações interétnicas mas <strong>entre</strong> tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> membr<strong>os</strong> de ummesmo grupo 74 . Os huluki são organizad<strong>os</strong> por diferentes grup<strong>os</strong> de troca,operan<strong>do</strong> aí também a diferenciação <strong>do</strong> gênero e classes de idade. Há hulukiexclusiv<strong>os</strong> de grup<strong>os</strong> de homens e outr<strong>os</strong> de mulheres, estes event<strong>os</strong> nãocoincidin<strong>do</strong>. Em amb<strong>os</strong>, <strong>os</strong> grup<strong>os</strong> de troca são organizad<strong>os</strong> em torno de certaspessoas consideradas amunau ou amuluneju (“chefe-homem” ou “chefemulher”),respectivamente para huluki de homens e de mulheres. Os chefes dehuluki são pessoas que passaram por um processo de iniciação pubertária maiselabora<strong>do</strong>, deven<strong>do</strong> ter fica<strong>do</strong> no mínimo um ano reclusas. Durante <strong>os</strong> rituaisde iniciação, a masculina chamada de pohoka (furação de orelha), e a femininade kaojatapa (colocação de cordão perineal) 75 , estas pessoas assumem umpapel central, fican<strong>do</strong> para <strong>os</strong> demais participantes iniciantes o papel de seus“companheir<strong>os</strong>” no rito. Estes são iyataku (<strong>os</strong> “comuns”), em distinção a<strong>os</strong>“chefes”, papéis estes que, somad<strong>os</strong>, constituem um grupo forma<strong>do</strong> porintegrantes aproximadamente da mesma geração. Note-se daí que a questãoda troca é extremamente importante para <strong>os</strong> putakanau <strong>Wauja</strong>, cultivada já naconstrução da pessoa, ali mesmo estabelecen<strong>do</strong>-se uma hierarquia regula<strong>do</strong>rade chefia de sub-grup<strong>os</strong>.> |


58casa paterna, quebran<strong>do</strong> a regra da uxorilocalidade. Sain<strong>do</strong> d<strong>os</strong> limites daaldeia, <strong>os</strong> casament<strong>os</strong> mais comuns se dão com <strong>os</strong> Mehinaku e Yawalapití,seguin<strong>do</strong> a proximidade lingüística <strong>entre</strong> estes grup<strong>os</strong> (tod<strong>os</strong> aruak, sen<strong>do</strong> alíngua Yawalapití mais distante que as outras duas) 76 . Os casament<strong>os</strong> de filh<strong>os</strong>de chefes e pessoas proeminentes apontam para alianças com grup<strong>os</strong> maisdistantes, como o caso de uma das filhas de Atamai, casada com umimportante líder Kayapó 77 .> | |


59Piedade, 2004) 80 . Estas duas personagens são chamadas amunau. Na aldeia<strong>Wauja</strong> atual, o chefe é Iutá enquanto o “embaixa<strong>do</strong>r” é Atamai.A chefia é um cargo transmiti<strong>do</strong> hereditariamente, preferencialmente aofilho primogênito ou neto (pela linhagem paterna) de um chefe. No entanto,este cargo depende não apenas da hereditariedade, mas também dasqualificações pessoais <strong>do</strong> herdeiro, cuja personalidade deve ser adequada paraa chefia. O éth<strong>os</strong> <strong>do</strong> amunau ou <strong>do</strong> candidato a chefe deve ser o de uma pessoacordata, sensata, calma, de poucas mas boas palavras, hábil e gener<strong>os</strong>a nastrocas. Além disso, o amunau deve ser conhece<strong>do</strong>r de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> detalhes queconstituem <strong>os</strong> principais rituais, e também, preferencialmente, ser umespecialista na arte das flautas kawoká e, quan<strong>do</strong> jovem, ter si<strong>do</strong> campeão deluta corporal, kapi. Há a p<strong>os</strong>sibilidade legal de que este cargo p<strong>os</strong>sa sertransmiti<strong>do</strong> a um não-descendentede um chefe, caso este seja inepto, mas taldesvio pode gerar descontentamento e conflit<strong>os</strong> por muitas gerações 81 . Esta éprecisamente a situação atual da chefia <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>.Como demonstra<strong>do</strong> no gráfico da genealogia d<strong>os</strong> informantes principais(a seguir), o antigo chefe Topatari não teve sucessor direto, pois aquele que <strong>os</strong>ucedeu no cargo, Malakuiawá, não era seu descendente. O chefe Malakuiawá,por sua vez, preparou um rapaz chama<strong>do</strong> Iawalá, que era seu sobrinho, parasucedê-lo. Iawalá havia fica<strong>do</strong> órfão muito ce<strong>do</strong> e o chefe resolveu criá-lo.Como o rapaz demonstrou qualidades mais que suficientes para a chefia,superiores às de seu filho primogênito, Iawalá passou a assumirgradativamente as funções da chefia, isto com Malakuiawá ainda vivo. Contu<strong>do</strong>,o jovem chefe contraiu uma <strong>do</strong>ença repentina (alguns dizem que foi sarampo,enquanto que a maioria afirma que foi feitiçaria) e faleceu n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> 80. Desdeentão, Iutá, o segun<strong>do</strong> filho de Malakuiawá, assumiu a chefia, visto que oprimogênito vivia já há algum tempo <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Yawalapití, ten<strong>do</strong> saí<strong>do</strong> da aldeia80 Entre <strong>os</strong> Kamayurá a chefia é exercida por Takumã, enquanto seu filho Kotoki faz asvezes de “embaixa<strong>do</strong>r”. Já <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Yawalapití, isto se dá de forma diversa, pois Aritanaassumiu a dupla chefia: sabe lidar muito bem com questões relativas ao mun<strong>do</strong> d<strong>os</strong>“branc<strong>os</strong>” e foi cuidad<strong>os</strong>amente prepara<strong>do</strong> para ser um chefe ritual, além de ter si<strong>do</strong> umcampeão de lutas (Viveir<strong>os</strong> de Castro, 1977:69). No Alto <strong>Xingu</strong>, Aritana é a liderançamais respeitada atualmente, o que fica evidente em todas as reuniões em queparticipam chefes de diversas aldeias.81 No entanto, pelo fato da chefia xinguana ser tão povoada de questões ligadas aofaccionalismo e à feitiçaria, qualquer chefe sempre despertará o descontentamento dasfacções não-aliadas.


60<strong>Wauja</strong> devi<strong>do</strong> a acusações de feitiçaria. Iutá tem qualidades para ser chefe, éflautista, conhece<strong>do</strong>r da mitologia e d<strong>os</strong> rituais, mas não teve o carismasuficiente para ser o escolhi<strong>do</strong> por seu pai, e nem mesmo havia si<strong>do</strong> umcampeão de luta, como fora Iawalá. Desta forma, há um desconforto, tanto porparte d<strong>os</strong> descendentes de Topatari quanto d<strong>os</strong> de Iawalá em torno dalegitimidade de sua chefia. Como verem<strong>os</strong>, este conflito se expressa em umcanto de kapojai comenta<strong>do</strong> no capítulo V 82 . Além disso, ocorre que o“embaixa<strong>do</strong>r” Atamai tem, na prática, muito mais poder e perspicácia políticaque o amunau Iutá. De mo<strong>do</strong> geral, o que vem<strong>os</strong> é que o sistema deparentesco local permite um grande número de p<strong>os</strong>sibilidades de solução paraa questão sucessória, sempre alimentada pelas disputas faccionais. 83> |


61características musicológicas próprias. Quan<strong>do</strong> me falavam em português sobrealgum naakai que iria acontecer na aldeia ou no Alto <strong>Xingu</strong>, <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> usavam otermo “festa”. Usarei aqui, portanto, "festa" e "ritual" como sinônim<strong>os</strong>.Os <strong>Wauja</strong> tratam diferentes festas como pertencentes a um mesmo “tipode festa”, apontan<strong>do</strong> para uma classificação nativa d<strong>os</strong> rituais. Por exemplo,pohoká e kaojatapá são agrupad<strong>os</strong> no mesmo “tipo de festa”: as de iniciação dehomens e mulheres na vida adulta. Creio que podem<strong>os</strong> alargar esta categoria,nela incluin<strong>do</strong> o kaumai (kwaryp) e o yawari, amb<strong>os</strong> rituais de homenagem a<strong>os</strong>mort<strong>os</strong>. Tal inclusão se deve ao entendimento de que estes quatro rit<strong>os</strong> tratamde mudanças de uma fase a outra da existência. N<strong>os</strong> rituais de iniciação,aban<strong>do</strong>na-se a condição de iamukutaĩ, “criança”, para ingressar em um novomun<strong>do</strong> social: a vida adulta. Já n<strong>os</strong> rituais de homenagem a<strong>os</strong> mort<strong>os</strong>, oesquecimento <strong>do</strong> morto no mun<strong>do</strong> d<strong>os</strong> viv<strong>os</strong> é que opera a transformação,alteran<strong>do</strong> as condições não só da sociedade quanto da própria alma <strong>do</strong> mortoque, devidamente esquecida, pode ingressar em seu novo mun<strong>do</strong>: a aldeia dasalmas 86 . Rituais de iniciação e de homenagem a<strong>os</strong> mort<strong>os</strong>, portanto, tratam datransformação da pessoa e da sociedade.Esta aproximação <strong>entre</strong> festas pubertárias e rituais p<strong>os</strong>t-mortem baseiasetambém na observação de que somente no kaumai e na festa de pohoká sãotocadas as flautas watana 87 , momento em que as meninas a<strong>do</strong>lescentesreclusas podem sair da reclusão para dançar com <strong>os</strong> flautistas. Tal classificaçãoancora-se também no fato de que estas quatro festas são intertribais, reunin<strong>do</strong>em um só evento mais de um grupo <strong>do</strong> Alto <strong>Xingu</strong>. Estes grandes encontr<strong>os</strong>,que sempre se encerram com lutas corporais <strong>entre</strong> <strong>os</strong> grup<strong>os</strong> participantes,revelam ademais a permanência <strong>do</strong> éth<strong>os</strong> guerreiro neste cenário marca<strong>do</strong> poruma retórica pacifista que é o Alto <strong>Xingu</strong> 88Se seguirm<strong>os</strong> o critério de classificação pela abrangência d<strong>os</strong> grup<strong>os</strong> queparticipam das festas, chamadas aqui de rituais intertribais, deve-se86 Em <strong>Wauja</strong>, iwuejokupoho. Lembro as etnografias de Ag<strong>os</strong>tinho (1974) sobre o kwarype de Menezes Bast<strong>os</strong> (1990) sobre o yawari, ambas realizadas <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Kamayurá.87 As watana são mais conhecidas na literatura xinguana por uruá, em Kamayurá. Sobreestas flautas duplas não recai qualquer tipo de interdição para as mulheres, comoocorre com as flautas kawoká. Para uma descrição deste instrumento musical, suafabricação, materiais utilizad<strong>os</strong>, e simbologia <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, ver Mello (1999).88Sobre o éth<strong>os</strong> guerreiro e a retórica pacifista ver Menget (1977) e Menezes Bast<strong>os</strong>(1995).


62acrescentar <strong>os</strong> rituais de kawoká e iamurikuma, que apresentam uma relaçãoprofunda <strong>entre</strong> si e que, conforme será desenvolvi<strong>do</strong> adiante, constituem umcomplexo músico-mítico-ritual. Neste contexto intertribal, estes <strong>do</strong>is rituaispodem ser chamad<strong>os</strong> de “rituais de gênero”, entendid<strong>os</strong> como rituais n<strong>os</strong> quaisquestões relativas às relações de gênero são enfatizadas 89 . Estes <strong>do</strong>is rituaispodem acontecer também em versões intratribais, quan<strong>do</strong> participam apenas<strong>os</strong> membr<strong>os</strong> <strong>do</strong> próprio grupo. É importante destacar que <strong>os</strong> rituais de kawokáe iamurikuma, em suas versões intratribais, estão relacionad<strong>os</strong> ao xamanismo,e desta forma, à <strong>do</strong>enças cuja causa é a ação d<strong>os</strong> seres apapaatai, como ficaráclaro logo adiante.Note-se que são vári<strong>os</strong> <strong>os</strong> rituais promovid<strong>os</strong> para curar <strong>do</strong>ençasprovocadas pel<strong>os</strong> apapaatai, estes rituais sen<strong>do</strong> em sua maioria intratribais 90 eseu repertório musical poden<strong>do</strong> tanto ser masculino (vocal e/ou instrumental),feminino (sempre vocal), ou misto, quan<strong>do</strong> homens e mulheres cantam junt<strong>os</strong>.Conforme o discurso nativo, na verdade são incontáveis <strong>os</strong> rituais de cura, vistoque a <strong>do</strong>ença é percebida como resulta<strong>do</strong> da ação d<strong>os</strong> apapaatai e estes seresexistem em um número desconheci<strong>do</strong>. O pajé iakapá é o responsável pordescobrir qual apapaatai é o causa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mal que acomete o <strong>do</strong>ente e, a partirde seu diagnóstico, uma série de procediment<strong>os</strong> e comportament<strong>os</strong> rituaisdeverão ser a<strong>do</strong>tad<strong>os</strong> (veja adiante). Para <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, está sempre em aberto ocampo de p<strong>os</strong>sibilidades para o aparecimento de apapaatai até entãodesconhecid<strong>os</strong> e a subseqüente criação de nov<strong>os</strong> rit<strong>os</strong> de cura, apesar de seobservar a reincidência de um número limita<strong>do</strong> de festas.89 Fican<strong>do</strong> aqui com esta definição preliminar, discutirei mais adiante a idéia de rituaisde gênero. A questão de haver rituais especificamente dedicad<strong>os</strong> à op<strong>os</strong>ição oucomplementaridade d<strong>os</strong> sex<strong>os</strong> é muito trabalhada na literatura antropológica daAmazônica e da Melanésia (ver MCallum, 2001; Gregor & Tuzin, 2001; Herdt, 1982),sen<strong>do</strong> tomada ora como uma guerra d<strong>os</strong> sex<strong>os</strong> (Gregor, 1985), resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong>antagonismo sexual (S. Hugh-Jones, 1979), por cult<strong>os</strong> de fertilidade (Hill, 2001), oucomo derivação da questão mais funda da maternidade (Biersack, 2001) ou ainda comoexpressão de aspect<strong>os</strong> da consagüinidade e afinidade (Descola, 2001). Lembro tambémque a própria ênfase na questão de gênero pode ser vista como resultante <strong>do</strong> viésocidental (cf. Overing, 1986; Piedade, 2004, revela uma p<strong>os</strong>ição semelhante). Destacoainda que enten<strong>do</strong> o complexo iamurikuma-kawoká como simultaneamente rituais degênero e rituais musicais (cf. Basso, 1985).90 Com algumas exceções, como o ritual de payemeramaraka (música de comunidaded<strong>os</strong> pajés) descrito por Menezes Bast<strong>os</strong> (1984/5). Na ocasião observada por estepesquisa<strong>do</strong>r, pajés de várias etnias se reuniram na aldeia Yawalapití, no senti<strong>do</strong> depromover a cura de um pajé Kamayurá que ali residia e que estava muito <strong>do</strong>ente.


63Segun<strong>do</strong> o discurso <strong>Wauja</strong>, fazer festa é sinal de “alegria”, kotepemona(“alegre”+“corpo/peso”), este sentimento sen<strong>do</strong> ressalta<strong>do</strong> como p<strong>os</strong>itivo parao bem-estar <strong>do</strong> grupo. Contu<strong>do</strong>, há muitas vezes uma pesada necessidade <strong>do</strong>rito, uma premência em sua realização, pairan<strong>do</strong> em torno deste, perig<strong>os</strong>assusta<strong>do</strong>res, notadamente em seu nexo com o mun<strong>do</strong> sobrenatural d<strong>os</strong>apapaatai.Ress<strong>alto</strong> que o interesse pelo ritual está também na esfera das distinçõessociais, pois é sinal de prestígio pessoal poder bancar um ritual, patrocinan<strong>do</strong>alimento a tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> participantes, colocan<strong>do</strong> várias pessoas para trabalharemem torno desta construção e manutenção de distintividade. Assim, o ritual<strong>Wauja</strong> está funda<strong>do</strong> na esfera política, ten<strong>do</strong> um papel regula<strong>do</strong>r em term<strong>os</strong>c<strong>os</strong>mológic<strong>os</strong>, vigen<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong> da cura e da beleza, da ética e da estética,como explicitarei a seguir. Antes, porém, apresento um quadro sintético d<strong>os</strong>rituais aqui comentad<strong>os</strong>.


64C<strong>os</strong>mologia e xamanismo: da <strong>do</strong>ença à curaO processo de a<strong>do</strong>ecimento <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> é entendi<strong>do</strong> como a tentativade roubo da alma d<strong>os</strong> human<strong>os</strong>, paapitsi, pel<strong>os</strong> “espírit<strong>os</strong>” invisíveis chamad<strong>os</strong>apapaatai 91 . Esta categoria corresponde tanto a<strong>os</strong> seres invisíveis e temid<strong>os</strong>que povoam o c<strong>os</strong>m<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> como a<strong>os</strong> animais <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> físico observável.Quan<strong>do</strong> se referem a esta segunda p<strong>os</strong>sibilidade, utilizam a palavraapapaapaimona, o sufixo -mona (“corpo/peso”) conferin<strong>do</strong> corporalidade edensidade física.A <strong>do</strong>ença é sempre ligada a esta ação predatória d<strong>os</strong> apapaatai,interessad<strong>os</strong> na alma humana 92 . Desta forma, a morte, resultante da ineficácia<strong>do</strong> processo de cura, é vista como a consumação definitiva deste roubo. N<strong>os</strong>enti<strong>do</strong> de esclarecer melhor a relação <strong>entre</strong> human<strong>os</strong> e apapaatai, retomareide foram sintética algumas idéias exp<strong>os</strong>tas em minha dissertação de mestrad<strong>os</strong>obre o surgimento d<strong>os</strong> apapaatai e de como eles interagem com <strong>os</strong> human<strong>os</strong>.Segun<strong>do</strong> o aunaki 93 <strong>do</strong> surgimento da luz 94 , <strong>os</strong> ancestrais d<strong>os</strong> homensviviam debaixo da terra, dentro de um cupinzeiro, e sofriam muito por nãohaver luz, fogo ou água. Enquanto isso, <strong>os</strong> ierupoho, ancestrais d<strong>os</strong> apapaatai,viviam na superfície e ali tinham de tu<strong>do</strong>: fogo, calor, água. Porém, <strong>os</strong> ierupohoviviam na escuridão, pois não havia luz nem na superfície, mas g<strong>os</strong>tavam deviver assim. O sofrimento d<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> despertou o interesse de kamo, “sol”, queresolveu ajudá-l<strong>os</strong>. Com a aparição <strong>do</strong> sol e sua luz, <strong>os</strong> ierupoho sentiram-seameaçad<strong>os</strong>, fizeram máscaras para se esconder <strong>do</strong> sol e fugiram, uns para afloresta, outr<strong>os</strong> para dentro <strong>do</strong> rio ou mesmo para o céu, transforman<strong>do</strong>-se n<strong>os</strong>diferentes tip<strong>os</strong> de apapaatai que hoje habitam o c<strong>os</strong>m<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>. Este mito91 Tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> grup<strong>os</strong> <strong>do</strong> Alto <strong>Xingu</strong> p<strong>os</strong>suem um termo corresponden<strong>do</strong> a esta categoria<strong>Wauja</strong>, como por exemplo mama’ẽ <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Kamayurá, e itséke <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Kuikuro.92 Os <strong>Wauja</strong> distinguem as <strong>do</strong>enças causadas por apapaatai daquelas outras quechamam, em português, de “<strong>do</strong>ença de branco”, estas sen<strong>do</strong> causadas por outr<strong>os</strong>process<strong>os</strong> e curáveis através de remédi<strong>os</strong> “de branco”: por exemplo, gripe, sarampo,leishmani<strong>os</strong>e, malária, etc (Piedade, 2004). Tal distinção é comum <strong>entre</strong> <strong>os</strong> xinguan<strong>os</strong>(ver Menezes Bast<strong>os</strong>, 1999a).93 Como já disse, aunaki significa “mito”, “história” d<strong>os</strong> temp<strong>os</strong> originári<strong>os</strong>.94 Ver a íntegra deste mito em Mello (1999).


65m<strong>os</strong>tra que a relação human<strong>os</strong>-apapaatai tem na lumin<strong>os</strong>idade um pontocrucial 95 .Se em outras sociedades ameríndias a luz aparece como opera<strong>do</strong>r dadisjunção das espécies animais e humanas, na c<strong>os</strong>mogonia <strong>Wauja</strong> ela opera natransformação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>Wauja</strong>, <strong>do</strong> cupinzeiro para a superfície, e também <strong>do</strong>mun<strong>do</strong> d<strong>os</strong> ierupoho, <strong>do</strong> “paraíso perdi<strong>do</strong>” ao esta<strong>do</strong> fragmenta<strong>do</strong> em seresmascarad<strong>os</strong> e refugiad<strong>os</strong>. Note-se que, segun<strong>do</strong> o mito, a luz é ela mesma umamáscara: a máscara de kamo.Conta o aunaki que devi<strong>do</strong> ao surgimento da luz, as máscaras d<strong>os</strong>ierupoho foram fabricadas às pressas e, por isso, alguns destes seres nãotiveram tempo suficiente para fabricá-las e acabaram fugin<strong>do</strong> para dentro daágua. Os que se refugiaram na água teriam uma forma semelhante à d<strong>os</strong> sereshuman<strong>os</strong>, sen<strong>do</strong>, no entanto, mais baix<strong>os</strong>, escur<strong>os</strong>, com long<strong>os</strong> braç<strong>os</strong> e olh<strong>os</strong>grandes, sen<strong>do</strong> chamad<strong>os</strong> pel<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> de ĩyão ou ĩyãokuma. Estes apapaataisão especialmente interessantes para o presente trabalho pois, segun<strong>do</strong> oaunaki, eles não fabricaram máscaras, mas sim as flautas kawoká. Segun<strong>do</strong> <strong>os</strong><strong>Wauja</strong>, estas flautas são as máscaras d<strong>os</strong> ĩyão e, portanto, <strong>os</strong> ĩyão sãoapapaatai que, no lugar de máscaras, p<strong>os</strong>suem o conjunto de flautas kawoká.Seguin<strong>do</strong> este raciocínio, a execução destes instrument<strong>os</strong> seria algo similar aouso das máscaras. Tal homologia não é nada estranha se lembrarm<strong>os</strong> <strong>do</strong> quediz Lévi-Strauss sobre o fato de cant<strong>os</strong> e instrument<strong>os</strong> musicais seremfreqüentemente comparad<strong>os</strong> a máscaras. Para este autor, <strong>os</strong> cant<strong>os</strong> são“equivalentes no plano acústico, <strong>do</strong> que as máscaras são no plano plástico”, oque explicaria a associação moral e física <strong>entre</strong> eles, especialmente <strong>entre</strong> <strong>os</strong>pov<strong>os</strong> indígenas na América <strong>do</strong> Sul (1991[1971]:36).95 C<strong>os</strong>mogonias como esta, que têm o surgimento da luz como termo fundamental, nã<strong>os</strong>ão incomuns. Os term<strong>os</strong> binári<strong>os</strong> “trevas/sol” e “fuga/transformação” aparecem emdiversas narrativas de outr<strong>os</strong> pov<strong>os</strong> ameríndi<strong>os</strong>, como é o caso d<strong>os</strong> Tlingit, habitantes<strong>do</strong> noroeste da América <strong>do</strong> Norte: “quan<strong>do</strong> ainda reinava a treva no mun<strong>do</strong>, todas asespécies animais se confundiam. Um mito diz que o demiurgo roubou e abriu oreceptáculo que encerrava o sol e logo este brilhou com to<strong>do</strong> seu esplen<strong>do</strong>r no céu. Aovê-lo, as gentes (entendem<strong>os</strong>: <strong>os</strong> seres viv<strong>os</strong> primitiv<strong>os</strong>, ainda indiferenciad<strong>os</strong>)dispersaram-se em todas as direções; alguns foram para as florestas, onde setransformaram em quadrúpedes, outr<strong>os</strong> para as árvores, onde se transformaram empássar<strong>os</strong>, outr<strong>os</strong>, finalmente, para a água, onde se tornaram peixes” (Lévi-Strauss,1979:114).


66As máscaras e as flautas guardam, portanto, uma origem comum, umasemelhança de p<strong>os</strong>ição estrutural, ambas sen<strong>do</strong>, no contexto ritual,instrument<strong>os</strong> de ativação d<strong>os</strong> poderes d<strong>os</strong> apapaatai. Como se pode apreenderde outras narrativas <strong>Wauja</strong>, as máscaras não são consideradas a<strong>do</strong>rn<strong>os</strong> ourepresentações de seres espirituais. Na verdade, são “roupas” (Viveir<strong>os</strong> deCastro, 1996a) que guardam características de seus “<strong>do</strong>n<strong>os</strong>”. A utilização demáscaras dentro <strong>do</strong> contexto ritual se dá no senti<strong>do</strong> de transformarmetafisicamente a identidade de seus porta<strong>do</strong>res. Como m<strong>os</strong>tra Viveir<strong>os</strong> deCastro,“vestir uma roupa-máscara é men<strong>os</strong> ocultar uma essência humanasob uma aparência animal que ativar <strong>os</strong> poderes de um corpo outro.As roupas animais que <strong>os</strong> xamãs utilizam para se deslocar peloc<strong>os</strong>m<strong>os</strong> não são fantasias, mas instrument<strong>os</strong>: elas se aparentam a<strong>os</strong>equipament<strong>os</strong> de mergulho ou a<strong>os</strong> trajes espaciais, não às máscarasde carnaval” (op.cit: 133).Lévi-Strauss lembra bem este caráter muito mais transformacional querepresentacional das máscaras, ao afirmar que“uma máscara não é, principalmente, aquilo que representa mas aquiloque transforma, isto é: que escolhe não representar. Como um mito,uma máscara nega tanto quanto afirma; não é feita somente daquiloque diz ou julga dizer, mas daquilo que exclui” (1991:124).> |


67human<strong>os</strong> 96 . No entanto, há uma forma de se evitar que a alma seja consumidapor estes seres ferozes: é o ritual. Ao realizarem corretamente o ritual, comseus cant<strong>os</strong> e danças, máscaras e pinturas corporais, além da oferta dealiment<strong>os</strong> (pirão de peixe, pimenta, mingau e beijú), <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> estão ao mesmotempo “agradan<strong>do</strong>” o apapaatai causa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mal e transforman<strong>do</strong>-o em seualia<strong>do</strong> frente a outr<strong>os</strong> apapaatai que p<strong>os</strong>sam vir roubar suas almas. Estam<strong>os</strong>aqui diante de uma relação de comensalidade muito freqüente <strong>entre</strong> <strong>os</strong> pov<strong>os</strong>ameríndi<strong>os</strong>, relação que envolve trocas alimentares e favores, cujo objetivoúltimo é a <strong>do</strong>mesticação <strong>do</strong> inimigo, no senti<strong>do</strong> de torná-lo familiar,subverten<strong>do</strong> seu impulso inicial de predação 97 .> |


68A pessoa <strong>Wauja</strong> é constituída, pois, por mona-pitsi + paa-pitsi, nãohaven<strong>do</strong> p<strong>os</strong>sibilidade de divisão <strong>entre</strong> estas duas categorias 99 . Quan<strong>do</strong> umapessoa morre, sua alma, paapitsi, transforma-se em yuwejoku, “alma demorto”, e encaminha-se para a yuwejokupoho, “aldeia d<strong>os</strong> mort<strong>os</strong>”. Osapapaatai não se interessam por yuwejoku, mas sim por paapitsi. Mesmoassim, o caminho a ser percorri<strong>do</strong> por yuwejoku em sua travessia até a aldeiad<strong>os</strong> mort<strong>os</strong> é repleto de perig<strong>os</strong><strong>os</strong> apapaatai, sen<strong>do</strong> necessária a proteção d<strong>os</strong>apapaatai aliad<strong>os</strong> <strong>do</strong> morto, que um dia foram <strong>do</strong>mesticad<strong>os</strong> pela pessoaquan<strong>do</strong> ainda vivia. Quan<strong>do</strong> afirmo que não há p<strong>os</strong>sibilidade de divisão <strong>entre</strong>mona-pitsi e paa-pitsi na c<strong>os</strong>mologia <strong>Wauja</strong>, quero chamar a atenção para ofato de que a distinção corpo/alma não é substancial para eles. Esta parece seruma visão compartilhada por muit<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> pov<strong>os</strong> ameríndi<strong>os</strong>, para <strong>os</strong> quais,segun<strong>do</strong> Viveir<strong>os</strong> de Castro, “corpo e alma, assim como natureza e cultura, nãocorrespondem a substantiv<strong>os</strong>, entidades auto-subsistentes ou provínciasontológicas, mas a pronomes ou perspectivas fenomenológicas”(1996a:132) 100 .Se é a paapitsi d<strong>os</strong> human<strong>os</strong> que interessa a<strong>os</strong> apapaatai, e não seumonapitsi, qual a estratégia destes seres para se apoderarem dela? O quelevaria um apapaatai a escolher a alma de uma pessoa em especial? O quetornaria alguém particularmente mais vulnerável à ação destes devora<strong>do</strong>res dealmas?> |


69Assim, em nome de sua saúde, as pessoas devem se preocupar em estar“inteiras” naquilo que fazem. Mais uma vez, distinções como corpo/alma ouação (exterior)/desejo(interior) não têm rendimento no pensamento <strong>Wauja</strong>. Odesejo é também uma ação no senti<strong>do</strong> de que tem uma realidade não somenteinterna, mas igualmente externa ao sujeito, pertencen<strong>do</strong>, portanto, ao mund<strong>os</strong>ensível, ao men<strong>os</strong> para a sensibilidade d<strong>os</strong> apapaatai.É o descompasso <strong>entre</strong> “querer” e “fazer” que torna uma pessoavulnerável à predação cósmica d<strong>os</strong> apapaatai 101 . O imperativo “agir conforme odesejo” não significa que tod<strong>os</strong> p<strong>os</strong>sam ou devam fazer aquilo que bem lhesder na cabeça: requer, isto sim, um extremo autocontrole d<strong>os</strong> desej<strong>os</strong>. Pois,segun<strong>do</strong> esta ética <strong>Wauja</strong>, não se deve desejar aquilo que não está ao alcanceimediato daquele que deseja, ou seja, to<strong>do</strong> desejo saudável deve ser passívelde ser satisfeito. Caso contrário, não deve existir, pois <strong>os</strong> apapaatai estãoatent<strong>os</strong> ao menor deslize, ao menor vacilo. São inúmeras as situaçõesexemplificadas pel<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> de quan<strong>do</strong> ocorre o princípio ético da <strong>do</strong>ença, estassituações de abertura à <strong>do</strong>ença estan<strong>do</strong> ligadas a desej<strong>os</strong> alimentares ousexuais insatisfeit<strong>os</strong>. Não é que <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> achem que devam realizar tod<strong>os</strong> <strong>os</strong>seus desej<strong>os</strong>, mas sim que devem desejar somente aquilo que p<strong>os</strong>sam obter ourealizar. Ou seja, trata-se de “desejar conforme a ação (p<strong>os</strong>sível)”. Os desej<strong>os</strong>devem estar de acor<strong>do</strong> com as p<strong>os</strong>sibilidades imp<strong>os</strong>tas pela situação e pelasnormas de convivência. Isto é assim não somente porque é uma garantia deque <strong>os</strong> desej<strong>os</strong> sempre podem ser satisfeit<strong>os</strong>, o que seria uma solução simplista<strong>do</strong> sujeito se conformar com <strong>os</strong> limites de seu mun<strong>do</strong>: principalmente, é destemo<strong>do</strong> que a pessoa permanece saudável em sua integridade cósmica. Aomanter preservada a unidade ação/pensamento, <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> ganham umaproteção da alma, uma imunidade frente às <strong>do</strong>enças de apapaatai. Assim,segun<strong>do</strong> a ética <strong>Wauja</strong>, não se deve fazer coisas contrariadamente, pois a açãoe o desejo de um indivíduo devem apontar para a mesma direção 102 .101Segun<strong>do</strong> Montar<strong>do</strong>, <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> Guarani mantêm-se extremamente atent<strong>os</strong> n<strong>os</strong>moment<strong>os</strong> em que dançam o jeroky, e desta atenção depende sua integridade. Devemestar atent<strong>os</strong> e respeit<strong>os</strong><strong>os</strong>, pois, <strong>do</strong> contrário, correm o risco de se perderem n<strong>os</strong>caminh<strong>os</strong> da dança, fican<strong>do</strong> assim, susceptíveis à <strong>do</strong>ença (2002:235).102 Sentiment<strong>os</strong> como ciúme e saudade, que se relacionam a um desejo de algo que nãoestá imediatamente presente, seja porque pertence a outro, seja porque se foi, são porisso mesmo perig<strong>os</strong><strong>os</strong> à saúde humana. No entanto, p<strong>os</strong>suem uma força p<strong>os</strong>itiva e


70De acor<strong>do</strong> com o imperativo ético <strong>Wauja</strong>, ninguém deve se sentir nodireito de impor sua vontade sobre outra pessoa, e nem mesmo o chefe tem talprerrogativa, pois isto poderia levar o outro a agir de forma contrária a seusdesej<strong>os</strong>, deixan<strong>do</strong>-o exp<strong>os</strong>to à cobiça d<strong>os</strong> apapaatai 103 . O chefe, ou qualqueroutro indivíduo que queira fazer valer sua vontade terá que convencerverdadeiramente as outras pessoas para conseguir adesões à sua causa 104 . Obem-estar coletivo depende, portanto, <strong>do</strong> bem-estar individual, e vice-versa:um indivíduo des-integra<strong>do</strong> está potencialmente sujeito a <strong>do</strong>enças; se seudescontentamento for percebi<strong>do</strong> por um apapaatai, ele ficará <strong>do</strong>ente; para queele se cure, serão empreendid<strong>os</strong> esforç<strong>os</strong> coletiv<strong>os</strong> na forma de rituais. Enfim,tornar-se presa fácil para <strong>os</strong> apapaatai supõe que uma pessoa seja descuidadacom seus desej<strong>os</strong>, o que aponta muitas vezes para um descontrole emocional,para um tipo de destemperança. As pessoas destemperadas, aquelas que falamdemais, gritam, se comportam de forma agressiva, estas não são apenaspessoas desagradáveis: são, acima de tu<strong>do</strong>, presas potenciais d<strong>os</strong> apapaatai 105 .Para se evitar o ataque d<strong>os</strong> apapaatai deve-se ainda observar todas asprescrições alimentares, sexuais e comportamentais, regras previstas no códigode ética local. Ou seja, cumprir as etiquetas e andar conforme as normas sãogarantias para a manutenção da saúde. E, em se tratan<strong>do</strong> de pessoas quetenham filh<strong>os</strong> pequen<strong>os</strong>, suas atitudes refletirão na saúde de seus filh<strong>os</strong>. Ouseja, o desvio ético da mãe ou <strong>do</strong> pai causará a <strong>do</strong>ença <strong>do</strong> filho.Lembro que toda essa ética tem uma forte articulação com a estética.Recordan<strong>do</strong> a afirmação de Leach de que “se quiserm<strong>os</strong> entender as normasfundamental para a socialidade, precisan<strong>do</strong> ser controlad<strong>os</strong>, conforme verem<strong>os</strong> maisadiante.103 Para Overing, as fil<strong>os</strong>ofias ameríndias p<strong>os</strong>suem um “senso de comunidade” que rezaque o trabalho deve atender a<strong>os</strong> desej<strong>os</strong>, talent<strong>os</strong> e inclinações pessoais (Overing,1991a:4). No caso d<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> acho que isto está valen<strong>do</strong>, mas se o trabalho (suaobrigação) não deve gerar descontentamento, isto não significa que necessariamentedeva gerar prazer.104 Ou seja, o chefe <strong>Wauja</strong> deve impor-se pela qualidade de seu discurso (Ireland,1993). Isto lembra as considerações sobre o caráter não-imp<strong>os</strong>itivo da chefia ameríndia(cf. Clastres, 1978).105É importante notar que estes mesm<strong>os</strong> atribut<strong>os</strong> <strong>do</strong> destempera<strong>do</strong> tambémidentificam um p<strong>os</strong>sível feiticeiro. Desta forma, se poderia dizer que um feiticeiro éaquela pessoa que tem condições de se manter à parte <strong>do</strong> sistema, sempre insatisfeito,desej<strong>os</strong>o de coisas alheias, de certa forma sempre descontente e, no entanto, apesardisso, que não se dispõe como presa para <strong>os</strong> apapaatai graças às suas misteri<strong>os</strong>ashabilidades.


71éticas de uma sociedade, é a estética que devem<strong>os</strong> estudar” (1995[1977]:75),é necessário que entendam<strong>os</strong> as implicações éticas que levam a aproximar asaúde da beleza e a <strong>do</strong>ença da fealdade. Estar íntegro é estar saudável, que,por sua vez, é também estar belo. Desta forma, o mun<strong>do</strong> da <strong>do</strong>ença érelevante para a compreensão da c<strong>os</strong>mologia enquanto “c<strong>os</strong>mo-pathia” (Lagroue Menezes Bast<strong>os</strong>, Ms.) 106 , um campo onde a sensibilidade estética tem umpapel destaca<strong>do</strong>. O pensamento estético está imbrica<strong>do</strong> na ação na medida emque constitui um “conhecimento produtivo” (Overing, 1991a), ou seja, trata dascapacidades que produzem a saúde e a beleza individual e coletiva. Comoverem<strong>os</strong> a seguir, o agente da cura, o pajé iakapá, vive em um mun<strong>do</strong>especialmente rico <strong>do</strong> ponto de vista da imaginação estética, um mun<strong>do</strong> ondepõe em ação sua capacidade cria<strong>do</strong>ra (ver Overing, 1991b).> |


72poderá desvendar se o mal foi causa<strong>do</strong> por um ixanawekeho, “feiticeiro”humano, ou por um apapaatai. No segun<strong>do</strong> caso, o iakapá terá que identificarqual ou quais <strong>os</strong> apapaatai que estão agin<strong>do</strong>, pois pode haver vári<strong>os</strong> apapaataiagin<strong>do</strong> simultaneamente.Assim que é feita a identificação <strong>do</strong> agente causa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mal, e em casode serem apapaatai <strong>os</strong> agentes (que é o caso mais freqüente), <strong>os</strong>akatũpaitsapai convidam uma determinada pessoa da aldeia, geralmentepertencente à geração imediatamente superior à <strong>do</strong> <strong>do</strong>ente e que não seja coresidentedeste, para “representar o papel” <strong>do</strong> apapaatai frente ao <strong>do</strong>ente emuma cerimônia, ali tornan<strong>do</strong> presente o apapaatai através de recurs<strong>os</strong> cênic<strong>os</strong>:esta espécie de ator é chama<strong>do</strong> kawokalamona 109 . Esta pessoa será convocadaao centro da aldeia por um akatũpaitsapai que, por sua vez, aguarda suachegada com um caldeirão cheio de mingau de mandioca que lhe será<strong>entre</strong>gue. O kawokalamona, ao se aproximar <strong>do</strong> parente <strong>do</strong> <strong>do</strong>ente, perguntaqual apapaatai ele “representará”. O convite é sempre aceito e, no momentoem que este kawokalamona recebe o mingau, é como se o apapaatai estivessesen<strong>do</strong> alimenta<strong>do</strong>, agrada<strong>do</strong>, familiariza<strong>do</strong> com a dieta humana 110 . Okawokalamona se dirige, então, juntamente com o akatũpaitsapai, até a redeonde o <strong>do</strong>ente está deita<strong>do</strong>. Recebe ali um cigarro das mã<strong>os</strong> <strong>do</strong> parente coresidente<strong>do</strong> <strong>do</strong>ente e o fuma, despejan<strong>do</strong> a fumaça sobre o corpo <strong>do</strong> <strong>do</strong>ente,enquanto se identifica para ele dizen<strong>do</strong> seu nome (o nome <strong>do</strong> apapaatai),prometen<strong>do</strong> não mais incomodar. Neste momento, pelo artifício estético dadramaturgia, estão p<strong>os</strong>t<strong>os</strong> frente a frente o apapaatai, o <strong>do</strong>ente e o“representante” <strong>do</strong> apapaatai, e esta relação pode se eternizar. O apapaatai, ao109 De acor<strong>do</strong> com o que já foi dito sobre o sufixo modifica<strong>do</strong>r mona, que pode indicar“no lugar de” ou “representante <strong>do</strong>”, valeria a pena investigar o que significa a palavrakawokala. Diferentemente <strong>do</strong> que está grafa<strong>do</strong> em Barcel<strong>os</strong> Neto (2004:138), ou seja,como kawoká-mona, o termo que me foi dito por diferentes informantes ékawokalamona. Creio que esta distinção é muito importante, na medida em que kawokáé o nome de um apapaatai específico, aquele que está relaciona<strong>do</strong> às flautashomônimas e que é o apapaatai mais temi<strong>do</strong> pel<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>. Esta incorreção na grafiapode levar a falsas interpretações e mesmo a confusões que levem a crer que tod<strong>os</strong> <strong>os</strong>apapaatai podem ser kawoká, o que se afasta <strong>do</strong> discurso nativo.110 Esta dieta engendra a cultura em to<strong>do</strong> seu processo, passan<strong>do</strong> pelo cultivo eprocessamento da mandioca, pela pesca (que geralmente é uma atividade coletiva), efinalmente chegan<strong>do</strong> à elaboração <strong>do</strong> cozimento. Desta forma, busca-se “culturalizar” <strong>os</strong>er preda<strong>do</strong>r, tornan<strong>do</strong>-o também cativo d<strong>os</strong> bens human<strong>os</strong>. Sobre esta relação deaproximação e familiarização pelo alimento há uma ampla literatura no campo daetnologia Amazônica, como Gow, 2003; Fausto 2002, Lagrou, 1998 e Vilaça, 2002.


73receber o alimento e o tabaco, pode aceitar deixar a paapitsi <strong>do</strong> <strong>do</strong>ente em paz,restabelecen<strong>do</strong> a saúde e a beleza. Caso isto não ocorra, o pajé procede a umaterapia envolven<strong>do</strong> tabaco, chocalho, cant<strong>os</strong>, rezas, e a retirada <strong>do</strong> feitiço <strong>do</strong>apapaatai de dentro <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong> paciente 111 . Se o paciente sobrevive, é porqueesta retirada foi bem sucedida e sua alma foi libertada <strong>do</strong> apapaatai. A idéia deque a prática xamânica envolve uma terapia estética foi anteriormenteelaborada por Gebhardt-Sayer (1986) ao analisar a terapêutica <strong>do</strong> xamãShipibo-Conibo, que, sob influência da ayuasca, opera uma mediação <strong>entre</strong> omun<strong>do</strong> social da aldeia e o mun<strong>do</strong> d<strong>os</strong> espírit<strong>os</strong>.Mas o processo está apenas começan<strong>do</strong>: a partir deste momento, aqueleapapaatai ex-preda<strong>do</strong>r se torna alia<strong>do</strong> <strong>do</strong> ex-<strong>do</strong>ente frente a outr<strong>os</strong> apapaatai.E para que esta relação de reciprocidade p<strong>os</strong>itiva se mantenha, é necessárioque o <strong>do</strong>ente, após cura<strong>do</strong>, procure sempre agradar ao apapaatai, tantoatravés da oferta de alimento por intermédio de seu kawokalamona, dan<strong>do</strong>-lheregularmente peixes, macaco, beiju, quanto realizan<strong>do</strong> rituais envolven<strong>do</strong>também a oferta da beleza d<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> e das danças, além da produção demáscaras e/ou instrument<strong>os</strong> musicais, conforme o caso. Tod<strong>os</strong> estes esforç<strong>os</strong>são empreendid<strong>os</strong> no senti<strong>do</strong> de manter a transformação <strong>do</strong> inimigo, o espíritodevora<strong>do</strong>r de almas, em alia<strong>do</strong>. To<strong>do</strong> o processo pode envolver várias pessoas,visto que <strong>os</strong> apapaatai causa<strong>do</strong>res <strong>do</strong> mal podem ser vári<strong>os</strong>, necessitan<strong>do</strong>-se,então, de diferentes kawokalamona. Estas pessoas passam a compor umquadro relacional em que são colocadas “no lugar de” um apapaatai, passan<strong>do</strong>a ser o elo <strong>entre</strong> este e o ex-<strong>do</strong>ente. O kawokalamona será, para o <strong>do</strong>ente,como que uma “extensão existencial” <strong>do</strong> apapaatai. A idéia de que <strong>os</strong> apapaataiexistem em si mesm<strong>os</strong> e em formas estendidas, como máscaras, pinturas,objet<strong>os</strong> divers<strong>os</strong> como flautas, pás de beiju, cest<strong>os</strong>, panelas ornamentadas, éapresentada por Piedade (2004:52). Eu acrescentaria aqui a figura <strong>do</strong>kawokalamona a esta lista, visto que, em situação ritual, ele é o apapaatai,111 Para detalhes sobre o processo xamânico, ver Barcel<strong>os</strong> Neto (2004) e Piedade(2004). Os traç<strong>os</strong> essenciais <strong>do</strong> xamanismo <strong>Wauja</strong> são similares a<strong>os</strong> d<strong>os</strong> outr<strong>os</strong>xinguan<strong>os</strong> (Dole, 1973; Münzel, 1971; Travass<strong>os</strong>, 1984; Villas Boas, 2000), poden<strong>do</strong>-sedizer que o xamanismo xinguano é parte <strong>do</strong> cerimonial intertribal e ponto fundamental<strong>do</strong> sistema xinguano (Menezes Bast<strong>os</strong>, 1984/5, 2001). Para além de seu nexo local, elese articula com outr<strong>os</strong> sistemas xamânic<strong>os</strong> ameríndi<strong>os</strong> (Lang<strong>do</strong>n, 1996; Lang<strong>do</strong>n &Baer, 1992).


74uma sua extensão ontológica, e não sua mera representação, muito men<strong>os</strong> umveículo de incorporação (p<strong>os</strong>sessão).Caso o <strong>do</strong>ente não melhore, não é levantada uma suspeita de falha <strong>do</strong>pajé na identificação <strong>do</strong> apapaatai. Raramente coloca-se em dúvida acompetência de um iakapá, principalmente <strong>os</strong> mais prestigiad<strong>os</strong>, sen<strong>do</strong> p<strong>os</strong>sívelacontecer que este não tenha podi<strong>do</strong> identificar tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> apapaatai em jogo,não tenha consegui<strong>do</strong> ter uma visão completa da situação em seu transe. Nestecaso, são convocad<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> iakapá para completarem o serviço, funcionan<strong>do</strong>como uma espécie de junta médica que entra em ação (ver abaixo o pukai).To<strong>do</strong> o processo de cura xamânica envolve pagament<strong>os</strong> substanciais porparte da família <strong>do</strong> <strong>do</strong>ente a<strong>os</strong> pajés. Um iakapá receberá como pagamento porseu serviço colares, panelas, a<strong>do</strong>rn<strong>os</strong> variad<strong>os</strong> e, mais raramente, objet<strong>os</strong>bastante valorizad<strong>os</strong> procedentes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> d<strong>os</strong> kajaopa. Por exemplo, houveum caso no qual uma mulher ceramista, cujo trabalho é muito aprecia<strong>do</strong> portod<strong>os</strong>, teve que dar como pagamento pelo seu processo de cura sua máquinade c<strong>os</strong>tura, que havia recebi<strong>do</strong> temp<strong>os</strong> antes de uma antropóloga que alipesquisou. Apesar desta mulher p<strong>os</strong>suir excelentes panelas de cerâmica, quesão altamente valorizadas não só em sua aldeia como em to<strong>do</strong> o Alto <strong>Xingu</strong> emesmo <strong>entre</strong> outr<strong>os</strong> grup<strong>os</strong> da região como <strong>os</strong> Suyá e Kayabi, lhe foi pedi<strong>do</strong> amáquina como pagamento, o que muito a consternou.Este fato ilustra como é importante a circulação de bens e, igualmente, aevitação <strong>do</strong> acúmulo destes por uma só pessoa. Também se observa quesomente pessoas que p<strong>os</strong>suam objet<strong>os</strong> valorizad<strong>os</strong> pelo grupo e que sedisponham a colocá-l<strong>os</strong> em circulação poderão fazer uso de tal terapia, pois otratamento xamânico assim o exige. Caso contrário, <strong>os</strong> <strong>do</strong>entes serão tratad<strong>os</strong>gratuitamente, no p<strong>os</strong>to de saúde, com remédi<strong>os</strong> kajaopa, o que, <strong>entre</strong>tanto,não lhes garante sucesso na cura, visto que estes remédi<strong>os</strong> devem seradministrad<strong>os</strong> apenas para tratar as “<strong>do</strong>enças de branco”, sen<strong>do</strong> ineficazespara lidar com coisas de apapaatai ou de feiticeir<strong>os</strong>.Além <strong>do</strong> iakapá, o pajé que fuma e tem visões e audições <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> d<strong>os</strong>apapaatai, há também uma outra classe de pajés, <strong>os</strong> iatamá, que podem serchamad<strong>os</strong> de “pajés fuma<strong>do</strong>res”. Estes, apesar de fumarem tabaco n<strong>os</strong> rituaisde cura, não têm <strong>os</strong> poderes <strong>do</strong> iakapá de trafegar nestas diferentes


75dimensões, permanecen<strong>do</strong> apenas <strong>entre</strong> <strong>os</strong> human<strong>os</strong> e dan<strong>do</strong> assistência aoiakapá e a<strong>os</strong> <strong>do</strong>n<strong>os</strong> de pukai durante as sessões de cura (sobre pukai, ver logoabaixo). Estes pajés reforçam a idéia da necessidade <strong>do</strong> esforço coletivo e aimportância <strong>do</strong> tabaco na cura. Ao participarem das cerimônias de cura,inclusive dirigin<strong>do</strong>-se diretamente ao apapaatai, isto através de uma brevet<strong>os</strong>se ritualizada que significa um cumprimento respeit<strong>os</strong>o, estes homensformam um só corpo que dá mais peso para o la<strong>do</strong> <strong>do</strong> iakapá na sua lutadiscursiva em favor da cura. O canto <strong>do</strong> pajé é um sopro, e este se torna visívelatravés <strong>do</strong> tabaco, opera<strong>do</strong>r importante no eixo das categorias devisibilidade/audibilidade no mun<strong>do</strong> ameríndio (ver Beaudet, 1997; MenezesBast<strong>os</strong> & Piedade, 1999).> |


76eles fazem, como <strong>os</strong> pukai fazem, com uaũ 113 , o canto. Você vaiobservan<strong>do</strong>, aí você já sabe. Ninguém vai falar pra você: “vocêtem que fazer isso e aquilo”. Daí pra frente você vai ficar pronto,já vai saber como é que faz. Então, quan<strong>do</strong> alguém ficar <strong>do</strong>ente,a mãe, o pai, irmão, mari<strong>do</strong>, filho, tanto faz, quan<strong>do</strong> o apapaataipegou o <strong>do</strong>ente, ele tá muito mal, alguém da família vai lá falarcom você. Senta com você, te dá hoká 114 , daí você fuma e entãoele fala pra você: “você podia fazer pukai pra minha mãe?”. Daívocê pergunta: “o que é que ela tem? O que é que ela tásentin<strong>do</strong>?”. “Ah, ela tá sentin<strong>do</strong> <strong>do</strong>r no peito dela, <strong>do</strong>r nacabeça”. Você nunca pode dizer: “ah, eu não p<strong>os</strong>so ir porque eunão sei direito”. Você não vai falar isso, mesmo que você nã<strong>os</strong>abe muito bem você não pode negar, senão ela não melhora.Você vai ter que aceitar, como se você f<strong>os</strong>se um profissional, evai dizer: “ah, tu<strong>do</strong> bem, eu vou lá, eu vou rezar a sua mãe”. Émuito kawokapaapai 115 . Na verdade você já tá com me<strong>do</strong>, tátremen<strong>do</strong> de me<strong>do</strong> de começar, de estrear naquele momento.Você já tá com me<strong>do</strong>, mas ninguém vai te ensinar o que fazer.Você vai ter que ter coragem, muita coragem pra fazer isso.Então, depois que você aceita, você vai lá no mato, pega aquelafolha cheir<strong>os</strong>a, que chamam<strong>os</strong> de xepenẽ, pega o uaũ, tambémaquela semente que pajé usa no colar, akukuto, você coloca,passa tu<strong>do</strong> e vai lá no enekutaku 116 , falar pr<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> iatamá:“iatamanaũ, ianumana itsu kaukitsemukutaĩ tsapai aitsu!”. Issoquer dizer: “meus amig<strong>os</strong> pajés, venham aqui pra gente ir lá no113 Uaũ é um idiofone tipo chocalho globular, feito de maoma, “cabaça”, com sementesdiversas em seu interior, cabo de madeira e cera de abelha para a fixação das partes.Há um outro tipo de uaũ, em fieira, feito de yuejotari, “sementes de pequi”, amarradaspor fi<strong>os</strong> de algodão, que, no entanto não é utiliza<strong>do</strong> neste contexto.114 Palavra para “tabaco” ou “cigarro”.115 A palavra quer dizer “perig<strong>os</strong>o”. Note-se que <strong>os</strong> significad<strong>os</strong> em torno de palavrascomo kawokapaapai ou kawokalamona, que aparentemente têm kawoká em sua raiz,não são de fácil ou simples aproximação com este radical. Não há consenso <strong>entre</strong> <strong>os</strong>própri<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> que trabalham na padronização da escrita desta língua se devemescrever kawokapaapai, manten<strong>do</strong> assim uma proximidade com kawoká, oukaukapaapai, que não teria nenhuma ligação com o apapaatai em questão.116 Área central da aldeia. Os <strong>Wauja</strong> que falam português traduzem enekutaku por “láno meio”.


77<strong>do</strong>ente, que a <strong>do</strong>r não deixa ele s<strong>os</strong>sega<strong>do</strong>!”. Daí a pouco <strong>os</strong>iatamá chegam, ficam lá conversan<strong>do</strong> e daí a pouco vocêpergunta, gritan<strong>do</strong>: “você tá pronto?”. Então o filho, o parente <strong>do</strong><strong>do</strong>ente diz: “tá pronto”. Então você diz pr<strong>os</strong> seus colegas:“vam<strong>os</strong> lá iatamá, vam<strong>os</strong> lá iatamá”. Um por um, você vaichaman<strong>do</strong>. Aí vocês vão em fila, um atrás <strong>do</strong> outro, até a casa <strong>do</strong><strong>do</strong>ente. Você senta e começa a fazer a pajelança com uaũ. Masmeu pai te respondeu, quan<strong>do</strong> você quis saber por que ele nãoensinava alguém para ser pukai, que mais tarde ele vai falar proUlepe 117 . Já tem<strong>os</strong> Kaomo, daqui a pouco Ulepe vai observan<strong>do</strong>,outr<strong>os</strong> também vão observan<strong>do</strong>, Kamo, Atanaku também, <strong>os</strong>ajudantes, e aprendem. Nós som<strong>os</strong> três: eu [Aruta], Kaomo eItsautaku, mais tarde <strong>os</strong> outr<strong>os</strong> também vão. Se tiver eclipse dalua, kejoyumekẽtõpo 118 , ou <strong>do</strong> sol, nós podíam<strong>os</strong> dartreinamento para esses que estão aprenden<strong>do</strong>. Somente comeclipse nós podem<strong>os</strong> chamar eles para aprender. Mas direto nokamaĩ não, direto no <strong>do</strong>ente não pode. Só no eclipse tá permiti<strong>do</strong>para agente chamar eles para aprender, para eles pegaremexperiência. Eles vão dizer: “poxa, eu não tenho coragem”. Masentão vão pegar experiência”.Nesta narrativa, pode-se ver como o conhecimento <strong>do</strong> pukai é trata<strong>do</strong>com muita restrição. Lembran<strong>do</strong>-se que <strong>do</strong> pukai somente participam <strong>os</strong>pukaiwekeho e <strong>os</strong> iatamá, tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> outr<strong>os</strong> indivídu<strong>os</strong> da aldeia, exceto o<strong>do</strong>ente, fican<strong>do</strong> trancad<strong>os</strong> em suas casa com as portas fechadas, fica claro quetal conhecimento e sua aprendizagem são exclusividades d<strong>os</strong> iatamá. Outro117 Filho de Aruta que também é iakapá.118 A palavra kejo – yumekẽtõpo quer dizer literalmente “lua – menstruação”, ou seja, oeclipse é a menstruação da lua. Sen<strong>do</strong> um eclipse solar, Kamoyumekẽtõpo. Eclipseslunares são event<strong>os</strong> muito especiais para <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>. Na noite em que ocorrem, sãorealizad<strong>os</strong> um conjunto de rituais com máscaras, flautas e principalmente a lapatauana(ver Mello, 1999:106), aerofone tipo trompete que está liga<strong>do</strong> ao mito de Laptauna, queconta como começou o eclipse. Segun<strong>do</strong> descrição de meus informantes, trata-se deum momento bastante tenso e requer a participação generalizada de tod<strong>os</strong> da aldeia.Há muitas referências a este fenômeno na literatura xinguana, como em Viveir<strong>os</strong> deCastro (1977:109-110), Menezes Bast<strong>os</strong> (1999a:234 Nota 9), Coelho (1983) Franchetto(1986:244), para citar apenas algumas.


78ponto que chama a atenção é o papel <strong>do</strong> eclipse, fenômeno cuja importância<strong>entre</strong> <strong>os</strong> pov<strong>os</strong> ameríndi<strong>os</strong> já tem si<strong>do</strong> tratada há muito tempo (ver Lévi-Strauss, 1991:312). Neste caso, o curi<strong>os</strong>o é que a escuridão <strong>do</strong> eclipse lunar éo momento certo (e sério) para a trabalh<strong>os</strong>a realização de um conjunto derituais, e isto justamente na escuridão, que é uma condição c<strong>os</strong>mogônica queagrada a<strong>os</strong> apapaatai. Há, assim, um nexo <strong>entre</strong> eclipse e surgimento <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>: no eclipse parece haver uma espécie de perigo <strong>do</strong> retorno dascondições primevas, quan<strong>do</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> viviam entocad<strong>os</strong> debaixo da terra e <strong>os</strong>apapaatai, que não haviam se escondi<strong>do</strong> da luz solar atrás de suas máscaras,viviam livremente na terra. E justamente nesta situação perig<strong>os</strong>a que <strong>os</strong>cant<strong>os</strong> <strong>do</strong> pukai perdem seu perigo, e podem ser ensinad<strong>os</strong>. Lembro ainda que,segun<strong>do</strong> a c<strong>os</strong>mologia <strong>Wauja</strong> (neste aspecto, até onde sei, xinguana), duranteo eclipse as almas d<strong>os</strong> mort<strong>os</strong> podem vir a ser devoradas pelas “aves” celestes,ocasião na qual elas se extinguem.Após suas explicações, perguntei a Aruta se as mulheres tambémpoderiam ser <strong>do</strong>nas de pukai. Ele respondeu (também com tradução deTupanumaká):“Meu pai falou que teve uma mulher <strong>Wauja</strong> que chamavaItseixumalu que tinha fica<strong>do</strong> <strong>do</strong>ente de itsei 119 , e por isso ela sechamou Itseixumalu. Então ela fumou, conseguiu ter visão, elaaju<strong>do</strong>u muito, ela virou iatamalu 120 , ela teve coragem de fumar, decorrer, de fazer aquele corre-corre. Então ela fez pukai também. Elaouviu música <strong>do</strong> apapaatai <strong>do</strong> fogo e ela fez pukai pra <strong>do</strong>ente. Issofaz muito tempo, antes de eu nascer. Antigamente, teve mulher119 A palavra itsei quer dizer “fogo” em geral, sen<strong>do</strong> também o nome de um apapaatai.Neste ponto da narrativa, Tupanumaká fez o seguinte comentário: “aquele apapaataique eu te falei no rio Culuene que parece fogo, que apareceu pra muita gente ali pertode onde aquela mulher Yakui tá enterrada”. Durante n<strong>os</strong>sa viagem de barco, Tupa n<strong>os</strong>m<strong>os</strong>trou um sítio na beira <strong>do</strong> rio Culuene onde a índia Yakui foi enterrada, juntamentecom seu mari<strong>do</strong> “branco”, Ayres Câmara Cunha. Neste trecho <strong>do</strong> Culuene, muit<strong>os</strong>fenômen<strong>os</strong> envolven<strong>do</strong> bolas de fogo que saem da terra em direção ao céu foramrelatad<strong>os</strong> por pessoas de diferentes grup<strong>os</strong> da região. Cunha publicou em 1960 um livroem que trata de seu affair com Yakui. Este romance provocou celeuma nacional n<strong>os</strong>an<strong>os</strong> 50 sobre o casamento de "índias" com "branco", envolven<strong>do</strong> Assis Chateaubriand,que era a favor da união, e <strong>os</strong> irmã<strong>os</strong> Villas Boas, contra.120 Iatamalu é o feminino de iatamá, “pajé auxiliar”.


79também, só que agora as mulheres não têm coragem de fumarcigarro, elas têm me<strong>do</strong> <strong>do</strong> cigarro”.Interessante notar que há alguns relat<strong>os</strong> como este, de que algumasmulheres tentaram “fumar” e se tornar iatamá, sen<strong>do</strong> tod<strong>os</strong> produzid<strong>os</strong> porhomens, provavelmente manten<strong>do</strong> este discurso da coragem, de que elas sãomedr<strong>os</strong>as e por isso desistiram (ver Piedade, 2004). Uma de minhasinformantes contou-me que suas duas irmãs estavam começan<strong>do</strong> a fumar, eque parece, “estão pra virar iatamálu”, e, no entanto, esta mesma informanteadmitiu que todas as mulheres têm mesmo me<strong>do</strong>, mas é o me<strong>do</strong> da mistura dafumaça com o sangue menstrual, um encontro perig<strong>os</strong>o de substâncias que nãopodem se aproximar 121 . Haveria, assim, uma incompatibilidade <strong>entre</strong> ser pajé eser mulher? O fato é que a questão de gênero no xamanismo local se mantémproblemática no mínimo por <strong>do</strong>is motiv<strong>os</strong>: a regra de que mulheres não podemver as flautas kawoká impede que elas trafeguem neste universo fundamentalpara o xamanismo, e as implicações da menstruação feminina, que coloca asmulheres em uma condição especial e <strong>os</strong> homens em uma disp<strong>os</strong>ição complexa.Procurarei desenvolver estas questões em outr<strong>os</strong> moment<strong>os</strong> desta tese.Retoman<strong>do</strong> <strong>os</strong> conceit<strong>os</strong> e personagens envolvid<strong>os</strong> no processo de <strong>do</strong>ençae cura <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, tem<strong>os</strong>:1. kamaĩ, o <strong>do</strong>ente2. akatũpaitsapai, parente <strong>do</strong> <strong>do</strong>ente3. iakapá, o pajé clarividente e clariaudiente4. iatamá, pajé auxiliar, “fuma<strong>do</strong>r”5. pukai, ritual de pajelança coletiva6. pukaiwekeho, especialista cantor “<strong>do</strong>no de pukai”121 Em minha dissertação, relato uma passagem de meu trabalho de campo em queAtamai, estan<strong>do</strong> <strong>do</strong>ente, foi residir em outra casa depois que suas filhas souberam queeu estava menstruada. O simbolismo da menstruação tem si<strong>do</strong> estuda<strong>do</strong> em váriasculturas onde o sangue menstrual é um fundamental elemento de diferenciação <strong>entre</strong>homens e mulheres (Buckley & Gottlieb, 1988), inclusive sua contrapartida, amenstruação simbólica masculina (Hogbin, 1996 [1970]; Herdt, 1982), relacionada àquestão da fertilidade e ao complexo das flautas sagradas (Piedade, 2004), presenteinclusive no <strong>Xingu</strong> (cf. Menezes Bast<strong>os</strong>, 1999a). Entre <strong>os</strong> Ikpeng, Rodgers afirma que asmulheres são xamanizadas pel<strong>os</strong> process<strong>os</strong> envolvid<strong>os</strong> na menstruação e no parto,quan<strong>do</strong> são exp<strong>os</strong>tas a perig<strong>os</strong>, desmai<strong>os</strong> e visões causadas pela perda de sangue e porum esvaziamento <strong>do</strong> seu interior (2002:108).


807. kawokalamona, “representante” <strong>do</strong> apapaatai8. apapaatai, espírito causa<strong>do</strong>r da <strong>do</strong>ença9. ixana-wekeho, feiticeiro que também pode ser o causa<strong>do</strong>r da<strong>do</strong>ença.To<strong>do</strong> o processo de cura se inicia com o uso de:1. hoká, cigarro de tabaco2. nukaga, mingau de mandiocaPoden<strong>do</strong>, em cas<strong>os</strong> extrem<strong>os</strong>, necessitar <strong>do</strong> auxílio <strong>do</strong> pukaiwekeho,quan<strong>do</strong> então farão uso de:1. pukaionaapá, canto <strong>do</strong> pukai2. uaũ, chocalho3. xepenẽ, (folhas não identificadas, de cheiro forte)4. akukuto, colar de sementes> |


81controle e a vigilância da sociedade 122 . E <strong>entre</strong>tanto, o que o etnógrafo constatana aldeia <strong>Wauja</strong> é que se trata de um povo sorridente, alegre, afeito às práticasamor<strong>os</strong>as e sexuais, goza<strong>do</strong>r, sempre bem disp<strong>os</strong>to. Um conflito claro que sepode facilmente reparar ali, está relaciona<strong>do</strong> ao mun<strong>do</strong> e às coisas <strong>do</strong> kajaopa,visto como um pólo causa<strong>do</strong>r de ansiedade e, conseqüentemente, de <strong>do</strong>ença.Os mais velh<strong>os</strong> são <strong>os</strong> que se m<strong>os</strong>tram mais preocupad<strong>os</strong> com o assédio debens d<strong>os</strong> “branc<strong>os</strong>” nas mentes de seus jovens. A preocupação reside no fatode que é muito difícil manter o desejo sobre tais “coisas” sob controle e a<strong>do</strong>ença passa a ser quase inevitável 123 . Desta forma, resta saber comocompreender esta polaridade: de um la<strong>do</strong>, o controle e a vigilância social ecósmica, de outro, a convivialidade e o prazer. Creio que as consideraçõesfinais desta tese trarão algumas pistas: o controle (prazer<strong>os</strong>o) d<strong>os</strong> perig<strong>os</strong> epaixões não significa sua eliminação, mas sua boa d<strong>os</strong>agem.Procurei até aqui m<strong>os</strong>trar de que forma as práticas rituais <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>têm lastr<strong>os</strong> profund<strong>os</strong> com o xamanismo, entenden<strong>do</strong>-se este universo em suaamplitude, aquele de uma ética-estética nativa, sua patologia e música. Nopróximo capítulo, preten<strong>do</strong> aprofundar estes pont<strong>os</strong> no âmbito <strong>do</strong> complexoiamurikuma/kawoká. No senti<strong>do</strong> de adensar as informações sobre <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, esituar melhor <strong>os</strong> informantes que colaboraram neste trabalho, apresento aseguir um quadro das relações de parentesco <strong>entre</strong> estes principais informantese uma breve biografia de cada um.122 A vigilância e a disciplina na socialidade <strong>Wauja</strong> serão trabalhad<strong>os</strong> mais adiante.Trata-se de um traço <strong>do</strong> eth<strong>os</strong> xinguano (ver Gregor, 1982; Menezes Bast<strong>os</strong>, 1990, esteúltimo autor dan<strong>do</strong> grande importância à capilaridade da vigilância xinguana, referind<strong>os</strong>ea ela como “a gn<strong>os</strong>iologia da Fresta no Sapé”).123 Observei que sempre que um grupo de pessoas vai para a cidade, alguns voltam<strong>do</strong>entes. A explicação que me deram é a de que eles devem ter comi<strong>do</strong> algocontamina<strong>do</strong>, não por germes ou bactérias, mas sim pela manipulação destes aliment<strong>os</strong>feita por mulheres menstruadas: nunca se sabe se a cozinheira está ou não nesteesta<strong>do</strong>. O outro motivo, não men<strong>os</strong> importante, é o de que <strong>os</strong> viajantes passam muitasnecessidades na cidade e sofrem por desej<strong>os</strong> irrealizad<strong>os</strong>.


83Breve biografia d<strong>os</strong> principais informantes (em ordem alfabética):Aianuke – A mais extrovertida das filhas de Atamai, hoje com 30 an<strong>os</strong>. Écasada com Iamalui, 31 an<strong>os</strong>, com quem teve 4 filh<strong>os</strong> homens. Fala muito bemportuguês, g<strong>os</strong>ta de conversar e de contar detalhes picantes sobre a vida d<strong>os</strong>outr<strong>os</strong>. Até onde sei, é a única mulher na aldeia a usar um implantecontraceptivo, pois não quer mais ter filh<strong>os</strong>, pelo men<strong>os</strong> por enquanto. É beminformada sobre vári<strong>os</strong> assunt<strong>os</strong> relativ<strong>os</strong> ao mun<strong>do</strong> d<strong>os</strong> branc<strong>os</strong>, mas nãog<strong>os</strong>ta de participar d<strong>os</strong> rituais e diz não conhecer muito da tradição local. Moroudurante <strong>do</strong>is an<strong>os</strong> em Colider (cidade ao norte da TIX) com sua irmã que eracasada com Megaron Mekragnoti, primeiro índio a administrar o PIX. Aianukeafirma que prefere viver na aldeia <strong>do</strong> que na cidade, e diz que pretende ficarsempre ao la<strong>do</strong> de sua mãe. Durante a curta separação de seus pais, tomou oparti<strong>do</strong> de sua mãe e, juntamente com seu mari<strong>do</strong> e filh<strong>os</strong>, acompanhou-a emCanarana. Atualmente está viven<strong>do</strong> com Iamalui e <strong>os</strong> filh<strong>os</strong> no P<strong>os</strong>to deVigilância <strong>do</strong> Batovi.> |


84"Para mim não foi bom. Não foi por vontade minha, eu não queriaser pajé. Eu fiquei <strong>do</strong>ente, onça pegou, porque eu queria comeralguma coisa, não me lembro, peixe ou beiju, não tinha, fiqueiqueren<strong>do</strong>, não tinha comida, o apapaatai ianumaka me pegou,entrou no meu corpo. Fiquei <strong>do</strong>ente, <strong>do</strong>ente. Apapaatai chegoupara mim e chamou "vam<strong>os</strong> andar", aí eu corri, voltei para casa,saí de novo corren<strong>do</strong>, corren<strong>do</strong> com apapaatai, o tempo passava.Meu tio, Itsautaku, veio falar comigo "que está acontecen<strong>do</strong>?", aíexpliquei para ele "não, o apapaatai está me pedin<strong>do</strong> para correr",e o tio falou "então eu não vou te curar, não vou fazer pajelança,nada, o apapaatai que está pedin<strong>do</strong> para você correr, eu só vou tedar fumo", e me deu charuto. Me deu hoka, então eu sabia fumarcigarro de pajé, corria, então virei pajé. Meu tio me deu remédiopara dar para apapaatai adaptar, então apapaatai ficou meuamigo, por isso até hoje estou com o apapaatai que adaptou emmim, ac<strong>os</strong>tumou, ficou amigo. Por isso, sou pajé, não foi minhavontade, o apapaatai que me procurou. Ninguém mais arrumouremédio para mim, ficou assim."> | |


85com Iulamalu (com cerca de 65 an<strong>os</strong>), uma das principais chefes de huluki,“grup<strong>os</strong> rituais de trocas”, na aldeia, bem como uma ótima ceramista, assimcomo Aruta. Tiveram 5 filh<strong>os</strong>, tod<strong>os</strong> homens, fato que poderia ser umadesvantagem, visto que a regra de residência prevê que <strong>os</strong> genr<strong>os</strong> devammorar com o sogro durante <strong>os</strong> primeir<strong>os</strong> temp<strong>os</strong> de casa<strong>do</strong>. Porém, devi<strong>do</strong> ap<strong>os</strong>ição de Aruta no grupo, suas noras é que vieram morar em sua casa, àexceção de Iakupe, mulher de Tupanumaka, que não se adaptou <strong>entre</strong> asmulheres da casa, e voltou a viver com sua mãe. Hoje, por causa da idade, ochefe da casa não é mais Aruta e sim seu filho Ulepe que temaproximadamente 45 an<strong>os</strong>, e é um d<strong>os</strong> cinco pajés da aldeia. Em minhaprimeira estadia na aldeia, <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> estavam de mudança de uma aldeia velhapara a atual, e a casa de Aruta foi a primeira a ficar pronta, o que no mínim<strong>os</strong>ignifica que há uma boa organização <strong>do</strong> trabalho <strong>entre</strong> <strong>os</strong> mora<strong>do</strong>res, talvezpelo fato de serem tod<strong>os</strong> filh<strong>os</strong> e net<strong>os</strong> e não genr<strong>os</strong>. Sua casa ocupa umap<strong>os</strong>ição intermediária no traça<strong>do</strong> da aldeia, isto é, fica <strong>entre</strong> as duas facçõespolíticas mais evidentes. Aruta é um homem muito ativo, passa horas <strong>do</strong> dia nomato, na roça ou pescan<strong>do</strong>, está sempre in<strong>do</strong> ou vin<strong>do</strong>, raramente está semfazer nada. Quan<strong>do</strong> em casa, conserta o telha<strong>do</strong>, produz cest<strong>os</strong>, máscaras oupanelas de barro. Várias pessoas se referem à ele de forma carinh<strong>os</strong>a, semprelembran<strong>do</strong> algo engraça<strong>do</strong> que ele tenha feito ou dito. Em 1998, foi meuprincipal informante.> | |


86exteriores”, sempre me h<strong>os</strong>pedei em sua casa. Atamai tem hoje cerca de 60an<strong>os</strong>, é casa<strong>do</strong> com Pakairú, mulher Trumai de aproximadamente 58 an<strong>os</strong>.P<strong>os</strong>suem oito filh<strong>os</strong>, d<strong>os</strong> quais 6 são mulheres e 2 homens. Apesar de não seconsiderar mais o chefe da casa, pelo fato de, após ter contraí<strong>do</strong> catarata eglaucoma, não poder mais contribuir para o sustento da casa pescan<strong>do</strong> ecaçan<strong>do</strong>, mantém-se efetivamente como o sênior de sua casa. A visãodeficiente o deprime muito e é a causa de muitas alterações em seu humor.Esta <strong>os</strong>cilação de humor é mal vista na aldeia, pois, de mo<strong>do</strong> geral, nãoapreciam instabilidades emocionais nas pessoas. Quan<strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente, Atamaiteve problemas reumátic<strong>os</strong> e foi viver no P<strong>os</strong>to Leonar<strong>do</strong> para receberassistência, ten<strong>do</strong> então si<strong>do</strong> “a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>” por Orlan<strong>do</strong> Villas Boas durante algunsan<strong>os</strong>, ocasião em que aprendeu português e conheceu sua atual esp<strong>os</strong>a. Alémde sua <strong>do</strong>ença, Atamai estaria seguin<strong>do</strong> as orientações de seu pai, pois, comoAtamai não era o filho primogênito, e nem filho da principal esp<strong>os</strong>a deMalakuiawá, seu destino já indicava que não poderia assumir uma chefia comoa que seu irmão mais velho acabou por assumir. Este tipo de estratégia, demandar algum d<strong>os</strong> filh<strong>os</strong> viver na cidade ou, naquela época, no final d<strong>os</strong> an<strong>os</strong>cinqüenta e início d<strong>os</strong> sessenta, viver no p<strong>os</strong>to de vigilância, representa ap<strong>os</strong>sibilidade d<strong>os</strong> xinguan<strong>os</strong> se instrumentalizarem para uma convivênciamen<strong>os</strong> desfavorável frente à sociedade envolvente. Sua chefia ainda hoje écontestada por muit<strong>os</strong>, mas ninguém parece habilita<strong>do</strong> a assumi-la.Recentemente soube que ele e sua esp<strong>os</strong>a haviam se muda<strong>do</strong> para Canaranapara que o filho mais novo, hoje com 13 an<strong>os</strong>, f<strong>os</strong>se estudar (há uma segundaversão desta viagem relatada na biografia de Pakairú). No entanto, já meinformaram que, a pedid<strong>os</strong> da comunidade e também <strong>do</strong> presidente da FUNAI,ele retornou à aldeia e reassumiu seu cargo de chefia.> |


87tarefas <strong>do</strong>mésticas que elas. De mo<strong>do</strong> geral, à exceção de Pakairú, as mulheresdesta casa não c<strong>os</strong>tumam participar d<strong>os</strong> rituais, e algumas poucas vezes viAtsule cantan<strong>do</strong> no centro da aldeia. Ela também foi uma de minhasinformantes para “assunt<strong>os</strong> <strong>do</strong>méstic<strong>os</strong>”, aqueles mais voltad<strong>os</strong> para aalimentação e o cuida<strong>do</strong> com as crianças.> | |


88homem e 3 mulheres. Sua segunda esp<strong>os</strong>a, Matawitsa (21 an<strong>os</strong>), é neta deAtamai, e eles tiveram um filho que nasceu com problemas de saúde, viven<strong>do</strong>desde que nasceu, em 1999, no Rio de Janeiro, onde foi a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> por umafamília. Em 2002, sua segunda esp<strong>os</strong>a estava grávida. Durante alguns an<strong>os</strong>Ianahim, esp<strong>os</strong>as e filh<strong>os</strong> viveram no P<strong>os</strong>to Leonar<strong>do</strong> e depois na cidade deCanarana, perío<strong>do</strong> em que trabalhou como agente de saúde liga<strong>do</strong> à FUNASA.Atualmente voltou a viver na aldeia, moran<strong>do</strong> com seu pai.> | |


89da chefia atual e, apesar de seus constantes esforç<strong>os</strong> em patrocinar <strong>os</strong> rituaisde que é “<strong>do</strong>no”, tem certa dificuldade em se impor frente à comunidade,pairan<strong>do</strong> sempre a p<strong>os</strong>sibilidade de ser acusa<strong>do</strong> de feitiçaria.> |


90saben<strong>do</strong> (através de um telefonema) que ele e sua família haviam se muda<strong>do</strong>para a aldeia Mehinaku, pois um de seus filh<strong>os</strong> estava sen<strong>do</strong> acusa<strong>do</strong> de serfeiticeiro, principalmente pelas famílias da facção contrária à sua. Estasacusações já duram alguns an<strong>os</strong>, mas creio que, neste perío<strong>do</strong> elas devem terse torna<strong>do</strong> mais freqüentes e graves. Neste perío<strong>do</strong>, seu irmão Iatuná assumiua chefia. Contu<strong>do</strong>, creio que <strong>os</strong> ânim<strong>os</strong> esfriaram, pois ele e sua família estãonovamente na aldeia Piulaga e, até onde sei, Iutá já reassumiu seu p<strong>os</strong>to.> | |


91Kaomo – Um d<strong>os</strong> homens mais velh<strong>os</strong> da aldeia, hoje com cerca de 78 an<strong>os</strong>.Irmão por parte de mãe <strong>do</strong> faleci<strong>do</strong> chefe Malakuiawa, de quem aprendeu asartes da flauta kawoká. É um exímio conhece<strong>do</strong>r <strong>do</strong> repertório das flautas,exercen<strong>do</strong> sempre a função de flautista mestre, kawokatupa. Único especialistana construção deste instrumento na aldeia, cuj<strong>os</strong> conheciment<strong>os</strong> tem passa<strong>do</strong>para seu filho Talakuwai n<strong>os</strong> últim<strong>os</strong> an<strong>os</strong>. À revelia de outr<strong>os</strong> sêniores daaldeia, tem ensina<strong>do</strong> uma parte <strong>do</strong> repertório das flautas kawoká para suasobrinha Kalupuku, cantan<strong>do</strong> peças musicais de forma solfejada. Kalupuku, porsua vez, transforma as peças aprendidas em cant<strong>os</strong> de kawokakuma. Segun<strong>do</strong>Kaomo, pelo fato da maioria d<strong>os</strong> jovens demonstrar desinteresse em aprendero repertório das flautas, to<strong>do</strong> aquele ou aquela que estiver interessa<strong>do</strong> poderáaprender, desde que seja capaz de memorizar e reproduzir <strong>os</strong> cant<strong>os</strong> e, alémdisso, de pagar pelo aprendiza<strong>do</strong>. Haven<strong>do</strong> estes interessad<strong>os</strong>, ele se senteobriga<strong>do</strong> a ensinar. Além de flautista, acumula também a função depukaiwekeho, “<strong>do</strong>no de pukai”, conhece<strong>do</strong>r d<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> de cura, atividadeexercida apenas por ele e mais <strong>do</strong>is homen s em toda a aldeia (ver relatoanterior sobre as dificuldades e <strong>os</strong> perig<strong>os</strong> que envolvem a função depukaiwekeho). É um ótimo ceramista e mantém uma oficina sempre produtivan<strong>os</strong> fund<strong>os</strong> de sua casa (casa 10 <strong>do</strong> croqui da aldeia). Demonstrou grandedesenvoltura ao elaborar desenh<strong>os</strong>, feit<strong>os</strong> a meu pedi<strong>do</strong> (com canetas coloridase papel), sobre a temática d<strong>os</strong> rituais <strong>Wauja</strong>. De seu primeiro casamento comKaiana, filha <strong>do</strong> chefe Topatari e cantora de iamurikuma, teve 3 filh<strong>os</strong> homens.Após ficar viúvo, passou a viver com outra viúva de nome Autu. Kaomo é umhomem muito calmo, de poucas palavras, sempre pronunciadas baixinho, suafala é quase um murmúrio. Sempre se m<strong>os</strong>trou muito solícito em me passarseus conheciment<strong>os</strong> bem como para meu companheiro, que acabou ten<strong>do</strong> aulasparticulares de flauta. Creio que Kaomo é um professor nato, pois pareceextrair grande prazer em transmitir o que sabe. A importância deste homem naaldeia é inestimável, visto que é o único de sua geração a acumular tant<strong>os</strong>conheciment<strong>os</strong> imprescindíveis para a manutenção da cultura <strong>Wauja</strong>.> |


92Karito – Filho mais velho de Kaomo. Tem hoje cerca de 46 an<strong>os</strong>. Casa<strong>do</strong> comAtsule, filha de Atamai com Pakairu, de cujo casamento nasceram sete filh<strong>os</strong>, omais velho com cerca de 24 an<strong>os</strong> e a mais nova com 4. Her<strong>do</strong>u a simpatia egentileza de seu pai, e parece aceitar bem o papel de segun<strong>do</strong> homem da casa,abaixo de seu sogro Atamai.> | |


93Atamai. Após se separar <strong>do</strong> chefe, foi viver com o pai de Aruta, Awaturi, quehavia fica<strong>do</strong> viúvo. Deste casamento nasceram outr<strong>os</strong> <strong>do</strong>is filh<strong>os</strong>, Tapaié (comcerca de 38 an<strong>os</strong>) que vive no P<strong>os</strong>to Leonar<strong>do</strong>, e Piauaũ (com cerca de 40an<strong>os</strong>) casa<strong>do</strong> com uma mulher Mehinaku, amb<strong>os</strong> viven<strong>do</strong> na aldeia Piulaga. Porcausa da co-residência durante a infância <strong>entre</strong> Aruta e Atamai, e <strong>do</strong> fato deterem irmã<strong>os</strong> em comum, eles se tratam por irmã<strong>os</strong> e Aruta trata Kauné pormãe. Ela vive na casa de Atamai, e só é bem tratada por sua nora, Parkairú, epor Atamai. Suas netas estão sempre a ridicularizan<strong>do</strong> e desejan<strong>do</strong>, em vozalta, a sua morte. Todas parecem incomodadas com seus escarr<strong>os</strong> e t<strong>os</strong>se, ecrêem que ela poderá contaminá-l<strong>os</strong> com tubercul<strong>os</strong>e ou coisa parecida. Parajustificar tais atitudes, suas netas me falavam que ela não era uma mulher“séria”, que, quan<strong>do</strong> jovem, ela “dava pra to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>”, e que portanto, nãomerecia o respeito delas. Por outro la<strong>do</strong>, Pakairú demonstrava totalconstrangimento com a atitude de suas filhas, e me contou que temia sertratada da mesma forma quan<strong>do</strong> ficar velha. Na época de minha primeiraestadia na aldeia, Kauné estava bem ativa, sempre trabalhan<strong>do</strong>, carregan<strong>do</strong>um pequeno far<strong>do</strong> de mandioca, ou um pequeno caldeirão com água, e todatarde ia catar lenha para se aquecer à noite. Já em 2001, encontrei-a maisdebilitada e men<strong>os</strong> ativa. Assim mesmo, seguia fazen<strong>do</strong> pequenas tarefas eainda se dispôs a cantar para que eu gravasse algumas músicas deiamurikuma.> | |


94Pakairú – Esp<strong>os</strong>a de Atamai e filha de um importante chefe Trumai. É amulher que melhor fala português na aldeia, além de falar Trumai, <strong>Wauja</strong> eKamayurá. Ao la<strong>do</strong> de seu excepcional poliglotismo, chama a atenção suasimpatia e habilidade em lidar com <strong>os</strong> que vêm de fora, talvez por ela própriaser uma estrangeira <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>. Obtive de Pakairú muit<strong>os</strong> d<strong>os</strong>esclareciment<strong>os</strong> a respeito da vida e <strong>do</strong> cotidiano das mulheres na aldeia. Elasempre se m<strong>os</strong>trou muito independente e, por várias vezes durante o ritual <strong>do</strong>pequi e <strong>do</strong> kukuho, enfrentou as provocações d<strong>os</strong> homens dan<strong>do</strong>-lhes resp<strong>os</strong>tasà altura. No ano passa<strong>do</strong>, recebi um telefonema seu, quan<strong>do</strong> me contou quehavia se separa<strong>do</strong> de Atamai, que ele a havia traí<strong>do</strong> com outra mulher e quenão g<strong>os</strong>tava mais dela. Ela ficaria moran<strong>do</strong> em Canarana com seu filho caçula,sua outra filha Aianuke e família, tod<strong>os</strong> na casa de seu filho mais velho, Kanaiu,que é funcionário da FUNAI. No entanto, após Atamai ir também para a cidade,parece que reataram e voltaram a viver na aldeia.> | |


95pai, mas não lida com qualquer questão relativa à saúde: tais tarefas ficam acargo de Ianhim e <strong>do</strong> sobrinho deste, Apaiupi. Desde que Tupa voltou ao <strong>Xingu</strong>vem enfrentan<strong>do</strong> alguns problemas para se adaptar à vida na aldeia. Aprincípio, Atamai convi<strong>do</strong>u-o para trabalharem junt<strong>os</strong>, no entanto, suaspersonalidades não combinam, e só tiveram atrit<strong>os</strong>. Tupa reclama que opessoal da aldeia desconfia dele e que fazem muita op<strong>os</strong>ição às suas prop<strong>os</strong>tas.Contu<strong>do</strong>, desde que fun<strong>do</strong>u a associação Tulukai em 1999, Tupanumaka temconsegui<strong>do</strong> implementar alguns projet<strong>os</strong>, como viagens para apresentações degrup<strong>os</strong> de dança, e venda de artesanato ou ainda a viagem que fizem<strong>os</strong> para aaldeia Bakairí em 2002. Atualmente ele parece mais preocupa<strong>do</strong> em concorrerpara verea<strong>do</strong>r, e em assegurar alguma ocupação da região extrema oeste daTIX, de mo<strong>do</strong> que a Prefeitura de S<strong>alto</strong> da Alegria reconheça que há ocupaçãoindígena ali, o que favoreceria uma candidatura sua futura. Tupanumaká secasou em 1999 com Iakupe, hoje com 21 an<strong>os</strong>. Eles têm 3 filh<strong>os</strong>, 1 menino eduas meninas. Durante toda minha pesquisa Tupa demonstrou simpatia,disp<strong>os</strong>ição de trabalho e também muita malícia e traquejo no trato com o“mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> branco”, o que se pode apreender de suas traduções eintervenções. H<strong>os</strong>pe<strong>do</strong>u-se em 2000 com sua família em minha casa, etambém por duas vezes na casa de minha mãe, em São Paulo. Mantem<strong>os</strong>freqüentes conversas telefônicas, ocasiões em que p<strong>os</strong>so ter notícias de tod<strong>os</strong>da aldeia, além de ser uma boa forma de sanar dúvidas de tradução, fat<strong>os</strong> enomes. Tupa é sem dúvida uma pessoa chave nesta pesquisa, pois, sen<strong>do</strong> otradutor de maior parte <strong>do</strong> material aqui apresenta<strong>do</strong>, e também um de meusprincipais interlocutores, sua visão e compreensão <strong>do</strong> “n<strong>os</strong>so” mun<strong>do</strong> acaba porperpassar toda esta tese.> |


96CAPITULO IIIO complexo iamurikuma-kawokáComo afirmei anteriormente, enten<strong>do</strong> que <strong>os</strong> rituais de flautas kawoká ede iamurikuma são rituais musicais e de gênero, e constituem um complex<strong>os</strong>imbólico envolven<strong>do</strong> um conjunto particular e inter-relacionan<strong>do</strong> de rit<strong>os</strong>,mit<strong>os</strong>, músicas, questões de gênero e patologias. Retomarei agora uma dasconclusões a que cheguei no mestra<strong>do</strong>, aquela de que iamurikuma e kawokáconstituem gêner<strong>os</strong> musicais que se fundem em um único super-gênero (Mello,1999), pois as análises que se seguirão n<strong>os</strong> próxim<strong>os</strong> capítul<strong>os</strong> trarão umamaior compreensão da relação de complementaridade que se dá no cerne destecomplexo. Para iniciar este caminho, farei agora uma incursão à problemáticadas "flautas sagradas" e da "casa d<strong>os</strong> homens" no Alto <strong>Xingu</strong>. Centran<strong>do</strong> o focon<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, apresentarei <strong>os</strong> mit<strong>os</strong> relacionad<strong>os</strong> às flautas kawoká e aoiamurikuma.O discurso nativo indica que as mulheres praticam o ritual deiamurikuma como uma contrapartida ao das flautas. Ou seja, o ritual deiamurikuma ocorre como uma espécie de revide à performance das kawoká,que exclui as mulheres e, como elas mesmas dizem, com o iamurikumaestariam puta o-pete, “dan<strong>do</strong> o troco”, a<strong>os</strong> homens, realizan<strong>do</strong> um ritoexclusivamente feminino. Com esta expressão, enfatizam a relaçãocomplementar <strong>entre</strong> estes <strong>do</strong>is rituais.No ritual feminino há uma série de cant<strong>os</strong>, chamad<strong>os</strong> kawokakuma, queapresentam fortes semelhanças musicológicas com as peças das flautas.Apresentarei e analisarei este repertório mais detidamente n<strong>os</strong> capítul<strong>os</strong>seguintes, quan<strong>do</strong> m<strong>os</strong>trarei que kawokakuma e kawoká formam um únicogênero musical em duas faces, e que amb<strong>os</strong> se distinguem de um outrorepertório de iamurikuma, muito mais centra<strong>do</strong> no mito e que apresenta umnúmero fixo de cant<strong>os</strong>.


97Complexo das “flautas sagradas”As flautas kawoká configuram um caso <strong>do</strong> “complexo das flautassagradas”, presente na Amazônia e Melanésia, além de outras partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>(Piedade, 2004). Nessas regiões, há instrument<strong>os</strong> de sopro que não podem servist<strong>os</strong> pelas mulheres, ligad<strong>os</strong> a sistemas rituais e mitológic<strong>os</strong>. São muitocomuns aqui relat<strong>os</strong> sobre a p<strong>os</strong>se original destes instrument<strong>os</strong> pelas mulheres.Na etnografia da Melanésia, o “culto das flautas”, ou “culto d<strong>os</strong> homens”, égeralmente associa<strong>do</strong> à simbologia sexual presente n<strong>os</strong> rituais de iniciação,envolven<strong>do</strong> a “menstruação masculina” como índice da capacidade reprodutivad<strong>os</strong> homens. Estes “cult<strong>os</strong>” também se relacionam ao mito <strong>do</strong> matriarca<strong>do</strong>,sen<strong>do</strong> interpretad<strong>os</strong> n<strong>os</strong> term<strong>os</strong> gerais da <strong>do</strong>minação masculina (ver Godelier,1986; Herdt, 1982; Hogbin, 1996). Na Amazônia, o cenário é similar,conforme, as investigações a respeito <strong>do</strong> “culto <strong>do</strong> Jurupari” na região <strong>do</strong> Altorio Negro (Hill, 1992; S. Hugh-Jones, 1979; Piedade, 1997, 1999) 125 .O tema tem mereci<strong>do</strong> muit<strong>os</strong> comentári<strong>os</strong> na literatura xinguana desdeVon den Steinen 126 . De fato, nas várias designações que recebem em cadagrupo xinguano, as flautas sagradas são absolutamente centrais na c<strong>os</strong>mologiae na vida ritual no Alto <strong>Xingu</strong> 127 . Em todas as aldeias xinguanas, as mulheressão proibidas de ver estes instrument<strong>os</strong>, tanto durante sua execução quanton<strong>os</strong> moment<strong>os</strong> em que as flautas estão em repouso. Durante to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> daexecução das flautas, as mulheres devem manter-se dentro de suas casas, aportas fechadas, e somente quan<strong>do</strong> as flautas estiverem guardadas no interiorda casa das flautas, chamada kuwakuho, elas poderão sair para o pátio da125Para uma visão geral <strong>do</strong> complexo das flautas sagradas na Amazônia, ver Piedade(2004). Este autor relaciona o complexo a<strong>os</strong> pov<strong>os</strong> de língua aruak. Para um estu<strong>do</strong>comparativo <strong>entre</strong> Melanésia e Amazônia que toca diversas vezes na questão, ver acoletânea organizada por Gregor & Tuzin (2001).126 Há divers<strong>os</strong> relat<strong>os</strong> sobre flautas e casa d<strong>os</strong> homens em Steinen (1940,1942).Piedade comenta-<strong>os</strong>, e destaca a problemática d<strong>os</strong> term<strong>os</strong> “casa d<strong>os</strong> homens” e “casadas flautas”, tratad<strong>os</strong> somo sinônim<strong>os</strong> na literatura (Piedade, 2004). Ver também asvárias passagens de Gregor sobre o tema <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Mehináku (1982,1985). MenezesBast<strong>os</strong>, em uma nota sobre o complexo <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Kamayurá, aponta para a menstruaçãomasculina como expressão de uma inveja da capacidade reprodutora das mulheres, epor isso o ritual de flautas expressa, mais <strong>do</strong> que uma <strong>do</strong>minação masculina, um“desejo de união” (1999a:223-240).127 As designações: para <strong>os</strong> aruak, Mehináku kawoká, Yawalapití, apapalu; para <strong>os</strong> tupi,Kamayurá e Aweti, yaku’i; e para <strong>os</strong> karib, de mo<strong>do</strong> geral, kagutu.


98aldeia. A penalidade para a infração à regra da proibição visual é o estuproritual coletivo, chama<strong>do</strong> de aĩxawakakinapai 128 . Estas flautas são executadasgeralmente em conjunto de três módul<strong>os</strong> 129 , e este conjunto de três é guarda<strong>do</strong>na kuwakuho, ou ainda escondi<strong>do</strong> no mato próximo à casa de seu “<strong>do</strong>no”. Ostrês módul<strong>os</strong> sempre p<strong>os</strong>suem um “<strong>do</strong>no”, kawokawekeho, que é uma pessoaque, em algum momento de sua vida, ficou <strong>do</strong>ente, ten<strong>do</strong> recebi<strong>do</strong> odiagnóstico de que sua alma, paapitsi, estaria sen<strong>do</strong> roubada pelo apapaataikawoká. Após o diagnóstico, esta pessoa -que tanto pode ser homem quantomulher- encomenda a quem saiba construir tal instrumento que faça umconjunto para ela, e então procede de forma típica ao que foi relata<strong>do</strong> acima:prepara uma festa musical para que este apapaatai fique satisfeito e a deixeem paz, ou melhor, que se torne um alia<strong>do</strong> seu frente a outr<strong>os</strong> apapaatai, quevenha a impedir que outr<strong>os</strong> apapaatai penetrem em seu corpo e roubem suaalma. D<strong>entre</strong> tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> apapaatai, kawoka é considera<strong>do</strong> o mais temi<strong>do</strong>, mas,também por ser o mais poder<strong>os</strong>o, é o maior alia<strong>do</strong> que alguém pode ter.Diferentemente de outr<strong>os</strong> apapaatai, este se expressa através das flautas: édito que a música destas flautas é “a fala <strong>do</strong> kawoká”, isto é, akawokagatakoja 130 .> |


99paredes abertas e, desta forma, totalmente exp<strong>os</strong>tas à visão de quem passassepor perto. Os cinco conjunt<strong>os</strong> de kawoká existentes em Piulaga durante operío<strong>do</strong> em que lá estive eram guardad<strong>os</strong> em diferentes locais, sempre bemembalad<strong>os</strong> e escondid<strong>os</strong> tanto em suas mehehe, “casa d<strong>os</strong> fund<strong>os</strong>” ou “casa detrabalho”, quanto em locais dentro da mata que circunda a aldeia.A kuwakuho é o ponto de encontro d<strong>os</strong> homens, é neste local que eles sereúnem para conversar durante o dia e fazer trabalh<strong>os</strong> manuais tais comocest<strong>os</strong>, flechas e arc<strong>os</strong>, extração de óleo de pequi, além da fabricação de vári<strong>os</strong>objet<strong>os</strong> rituais tais como máscaras, “pás de virar beijú” e “desenterra<strong>do</strong>res demandioca”, estes <strong>do</strong>is últim<strong>os</strong> sen<strong>do</strong> <strong>entre</strong>gues às mulheres durante o ritual dekukuho. É na kuwakuho que <strong>os</strong> homens se prepararam para <strong>os</strong> rituais, quand<strong>os</strong>e pintam uns a<strong>os</strong> outr<strong>os</strong>, se a<strong>do</strong>rnam, vestem suas máscaras e roupas, todaesta fase de preparativ<strong>os</strong> poden<strong>do</strong> durar várias horas. É também na kuwakuhoque <strong>os</strong> mais jovens desocupad<strong>os</strong> jogam <strong>do</strong>minó, olham fot<strong>os</strong>, revistas e,principalmente, fazem fofoca e falam sobre sexo.Quanto ao mau esta<strong>do</strong> de conservação das casas das flautas xinguanas,acima referi<strong>do</strong>, creio que este aparente descui<strong>do</strong> com as kuwakuho nã<strong>os</strong>ignifica que haja um aban<strong>do</strong>no das "tradições" ou um enfraquecimento dainstituição, pois desde as descrições de von den Steinen observa-se em váriaspassagens a precariedade material destas casas (1940: 84, 118, 123, 381) ouem (1942: 206-7, 245). Duas interpretações podem sair deste fato: a primeiraapóia-se na justificativa interessante dada pel<strong>os</strong> homens <strong>Wauja</strong>, quemanifestaram preferência por mantê-la aberta pois assim, explicaram, podemver a aldeia mais facilmente, sem precisar espreitar pelo sapé. Entenda-se estaafirmação no contexto <strong>do</strong> já referi<strong>do</strong> eth<strong>os</strong> de vigilância n<strong>os</strong> pov<strong>os</strong> xinguan<strong>os</strong>.Ou seja, tratan<strong>do</strong>-se de uma casa onde <strong>os</strong> homens g<strong>os</strong>tam de ficar reunid<strong>os</strong>durante o dia, o fato de estar aberta à visão facilita que, a partir dali, a aldeiase torne aberta à visão, lhes permitin<strong>do</strong> um melhor controle <strong>do</strong> movimento detod<strong>os</strong>. A “casa d<strong>os</strong> homens”, coração da aldeia, funciona, portanto, como umaespécie de panóptico, lugar de onde tu<strong>do</strong> se vê, destina<strong>do</strong> ao controle e àvigilância 132 . Esta vigilância concerne a<strong>os</strong> aspect<strong>os</strong> ligad<strong>os</strong> à visão, audição, e132 Penso, de forma exploratória, este espaço nevrálgico que é a kuwakuho no senti<strong>do</strong>foucaultiano de vigilância (Foucault, 1975). Esta vigilância estaria inserida em umsistema de controle social que se ramificaria pela sociedade, se multiplican<strong>do</strong> numa


100olfato, in<strong>do</strong> muito além, porém, destes sentid<strong>os</strong>, fazen<strong>do</strong> parte <strong>do</strong> cotidiano daaldeia, <strong>do</strong> controle que tod<strong>os</strong> têm uns sobre <strong>os</strong> outr<strong>os</strong> 133 . Este é um nexofundamental para a compreensão da socialidade <strong>Wauja</strong>, envolven<strong>do</strong> suac<strong>os</strong>mologia e ética, e sen<strong>do</strong> uma faceta crucial para a interpretação <strong>do</strong>iamurikuma, que apresentarei no próximo capítulo.Uma segunda interpretação p<strong>os</strong>sível para a precariedade da kuwakuho<strong>Wauja</strong> apóia-se nas idéias de Gregor (1985). A casa das flautas é uma áreaconsolidada da masculinidade e proibida às mulheres, fortaleza d<strong>os</strong> segred<strong>os</strong>masculin<strong>os</strong>, fulcro da “máquina de guerra” 134 d<strong>os</strong> xinguan<strong>os</strong>. Entretanto, apesar<strong>do</strong> vigor de instituição deste “clube” masculino, a precariedade material destaedificação pode estar apontan<strong>do</strong> para um aspecto simbólico importante.Gregor, ao analisar a instituição da “casa d<strong>os</strong> homens” no Alto <strong>Xingu</strong>, afirmaque:“the men’s house as a symbol of male identity is a citadel ofpapier-mâché. The secrecy, the intimidation, and the use of forceare the shims and gimcracks that shore it up. Even though maleidentity and men’s house culture are not immediately in danger ofcollapse, the c<strong>os</strong>t of maintaining the façade runs high. The pricethe men pay is in anxiety: fear of their own sexual impulses andfear of women.” (op.cit:115)Uma cidadela de papel machê é uma imagem muito sugestiva paraapontar a fragilidade que esta instituição pode esconder. Em meu trabalhoanterior sobre <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> (Mello, 1999), a<strong>do</strong>tei um ponto de vista próximo ao deGregor ao equacionar o me<strong>do</strong> manifesto que as mulheres têm <strong>do</strong> “estuprocoletivo” que a visão das flautas pode provocar, com o me<strong>do</strong> que <strong>os</strong> homensefetivamente demonstram ter em relação ao sangue menstrual. Estarede de poderes interligad<strong>os</strong> e capilares. Um elemento essencial <strong>do</strong> panópticofoucaultiano (na verdade, um modelo de presídio cria<strong>do</strong> por Bentham) é o nexo <strong>entre</strong> oexercício <strong>do</strong> poder e a visibilidade, certamente presente no caso da kuwakuho, tanto nocaso de sua centralidade para a observação da aldeia quanto nas regras de proibiçãovisual <strong>do</strong> complexo das flautas sagradas. Estes paralel<strong>os</strong> e aproximações, no entanto,merecem maior aprofundamento, objetivo de futur<strong>os</strong> estud<strong>os</strong>.133 Menezes Bast<strong>os</strong>, que já se referiu à problemática da “gn<strong>os</strong>iologia da fresta <strong>do</strong> sapé”,interpreta a etimologia da palavra tapuwy (casa d<strong>os</strong> homens para <strong>os</strong> Kamayurá) comouma grande narina que tu<strong>do</strong> cheira, sobretu<strong>do</strong> o cheiro <strong>do</strong> sexo (1990:94).134 Expressão cunhada por Menezes Bast<strong>os</strong> (1990) para o contexto xinguano.


101aproximação é interessante, mas pode soar uma interpretação um tanto“psicologizante”. Ao conviver mais de perto com homens e mulheres na aldeiadurante a pesquisa de <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>, devo admitir que a instituição da “casa d<strong>os</strong>homens” não me pareceu em momento algum estar ameaçada de ruir, aocontrário, é sólida o bastante para se perpetuar em situações as mais adversas,como pude presenciar <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Bakairí. Estes índi<strong>os</strong>, mesmo ten<strong>do</strong> saí<strong>do</strong> <strong>do</strong><strong>Xingu</strong> há quase cem an<strong>os</strong>, viven<strong>do</strong> em uma aldeia (Pakuera) que comportauma igreja católica e outra evangélica, além de uma escola, mantêm a “casad<strong>os</strong> homens” em seu centro. A casa das flautas, assim como as demais casasxinguanas, envelhecem, pois literalmente são consumidas. Para reconstruí-la,no entanto, é preciso que seu “<strong>do</strong>no” (pois ela o tem) produza um rito paraisto.O me<strong>do</strong> generaliza<strong>do</strong> a que Gregor se refere, se assim existir, nãoparece causar grande desconforto. Creio que não se trata de um me<strong>do</strong> <strong>do</strong>desconheci<strong>do</strong>, <strong>do</strong> incontrolável <strong>do</strong> imponderável, mas sim de um me<strong>do</strong> quesomente pode se originar d<strong>os</strong> pensament<strong>os</strong> e ações de cada um, de seusprópri<strong>os</strong> desej<strong>os</strong>, de acor<strong>do</strong> com o que já foi dito sobre a ética <strong>Wauja</strong>. Ospensament<strong>os</strong> e ações individuais agem diretamente no plano da coletividade e,por isto, estão no centro das atenções de tod<strong>os</strong>. É dada grande importância a<strong>os</strong>desej<strong>os</strong> e à realização destes por cada pessoa como forma de manutenção <strong>do</strong>equilíbrio social.As mulheres não têm um espaço especial para reuniões, como akuwakuho. Elas passam a maior parte <strong>do</strong> tempo em suas casas, <strong>entre</strong> seus coresidentes,sogra ou mãe, irmãs e crianças, mas isto não impede que saibamde tu<strong>do</strong> que se passa na aldeia. Ao contrário, estão sempre bem informadaspelas crianças, que circulam livremente pelas casas, e tecem, assim como <strong>os</strong>homens, suas tramas de insinuações e fofocas. Como verem<strong>os</strong> n<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> deiamurikuma e <strong>do</strong> kukuho, <strong>os</strong> homens acusam as mulheres de serem as “<strong>do</strong>nasda fofoca”, kuhukiwekeho, e as mulheres revidam dizen<strong>do</strong> o mesmo a respeitodeles. Está claro que a fofoca é instituída, temida e negada como prática poramb<strong>os</strong> <strong>os</strong> sex<strong>os</strong> 135 . Kuhuki, a fofoca mald<strong>os</strong>a, entristece, causa <strong>do</strong>r, e na135 A fofoca é uma prática disseminada em toda a região (Gregor, 1982; Frachetto,1986:257) e a ligação <strong>entre</strong> esta prática e as disputas faccionais fazem eco às idéias deGluckman, em seu artigo sobre a fofoca (1963).


102maioria das vezes, como já disse, está ligada a disputas faccionais, poden<strong>do</strong>mesmo ser equacionada com a prática da feitiçaria. No entanto, o limite <strong>entre</strong>kuhuki e manapitsitsaka, “brincadeira”, não é muito claro, ele depende da“d<strong>os</strong>e de veneno” empregada na fofoca. Ao final desta tese, relaciono a fofoca aoutr<strong>os</strong> element<strong>os</strong> ligad<strong>os</strong> às construções em torno das relações de troca. Afofoca é vista aqui como um d<strong>os</strong> ingredientes que atua sobre o ciúme e ainveja, motor que impulsiona o curso das trocas afetivas e materiais.Assim colocadas as questões relativas à casa d<strong>os</strong> homens e ao complexoiamurikuma-kawoká, passo para <strong>os</strong> mit<strong>os</strong> em torno das flautas e <strong>do</strong>iamurikuma.Aunaki, “mito”.O estu<strong>do</strong> d<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> ameríndi<strong>os</strong> é uma peça fundamental da etnologia dasterras baixas da América <strong>do</strong> Sul, especialmente a partir de Lévi-Strauss(1989c[1958], 1991[1971]). Várias etnografias m<strong>os</strong>tram como, para estespov<strong>os</strong>, a mitologia é como um pensamento vivo que trata das origens <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>, fundamenta vári<strong>os</strong> rit<strong>os</strong> e oferece model<strong>os</strong> para a compreensão <strong>do</strong>mun<strong>do</strong> no passa<strong>do</strong>, orientan<strong>do</strong> o futuro. No entanto, na medida em que sebusca interpretar estas narrativas míticas, várias questões teóricas surgem:qual é a concepção de mito que entra em jogo? Qual a teoria nativa <strong>do</strong> mito equal (ou quais) teoria(s) antropológica(s) o etnólogo está empregan<strong>do</strong> em suaanálise? Antes de tratar de aspect<strong>os</strong> da mitologia <strong>Wauja</strong>, g<strong>os</strong>taria de esclareceralguns pont<strong>os</strong> a este respeito e tentar explicitar como estou pensan<strong>do</strong> <strong>os</strong> mit<strong>os</strong>.Uma certa abordagem vê o mito como a narrativa de um acontecimentoreal “deturpa<strong>do</strong>” ao longo da história. Nesta ótica, a contínua relembrança deum fato aconteci<strong>do</strong> pode ir inserin<strong>do</strong> detalhes fantástic<strong>os</strong> ao longo da narração,notadamente através de distorções lingüísticas. Esta interpretação remonta a<strong>os</strong>sofistas greg<strong>os</strong>, passan<strong>do</strong> por toda a Antiguidade e Idade Média, alcançan<strong>do</strong>vigor na Filologia Clássica e n<strong>os</strong> Estud<strong>os</strong> de Religiões Comparadas <strong>do</strong> séculoXIX (ver Cassirer, 1972:15-31). As leituras cristãs d<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> indígenas, por


103exemplo, vão nesta direção, sempre procuran<strong>do</strong> confirmar a verdade cristã queali apareceria “oculta” 136 .Sob uma outra abordagem, o mito não necessariamente reporta a umfato ocorri<strong>do</strong>, mas constitui uma narrativa que é compartilhada por umasociedade e que porta um significa<strong>do</strong>, transmite uma mensagem culturalmentecodificada. Tributária <strong>do</strong> pensamento de Malinowski (1988[1954]), estaperspectiva toma o mito sempre em relação a uma forma de linguagem. Estetipo de análise caminha no senti<strong>do</strong> de estudar esta linguagem cifrada e buscaras chaves para sua leitura, pois o mito aparece aqui como uma alegoria, umconjunto de símbol<strong>os</strong>. O trabalho é, pois, diretamente sobre o mito emcontexto, imerso no sistema simbólico da cultura em questão. Neste senti<strong>do</strong>,apontam <strong>os</strong> estud<strong>os</strong> d<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> sob a perspectiva da antropologia simbólica. Poresta via, o significa<strong>do</strong> das narrativas é ativa<strong>do</strong> através da performance,constituin<strong>do</strong>-se em uma arte verbal que é explorada pela etnografia da fala(Bauman & Scherzer, 1989; Basso, 1985; Lang<strong>do</strong>n, 1999). Esta abordagem émuito profícua e levanta questões teóricas importantes na etnologia d<strong>os</strong> pov<strong>os</strong>indígenas sul-american<strong>os</strong> (ver Sherzer & Urban, 1986). Para Urban (1991), acultura está localizada n<strong>os</strong> sign<strong>os</strong> concret<strong>os</strong>, publicamente acessíveis quesurgem através <strong>do</strong> discurso nativo. Segun<strong>do</strong> esta abordagem, o senti<strong>do</strong> d<strong>os</strong>mit<strong>os</strong> reside na palavra falada, não poden<strong>do</strong> ele ser compreendi<strong>do</strong> sem levarem conta o discurso, pois em sua aparição como fala alguns element<strong>os</strong>cria<strong>do</strong>res de significad<strong>os</strong> não são segmentáveis no senti<strong>do</strong> saussuriano, comoentonação, acentuação, métrica e ritmo. Para este autor, uma abordagem dacultura centrada no discurso não subverte o estruturalismo, masrecontextualiza seus objetiv<strong>os</strong>, abrin<strong>do</strong> para investigação a multiplicidade desentid<strong>os</strong> que <strong>os</strong> mit<strong>os</strong> como verbalizações codificam.Uma terceira visão que apresento aqui, sem querer esgotar as muitasoutras p<strong>os</strong>sibilidades de se lidar com <strong>os</strong> mit<strong>os</strong>, entende que este não reportafat<strong>os</strong> nem porta significa<strong>do</strong> algum, ele nada mais sen<strong>do</strong> <strong>do</strong> que umamanifestação de um mo<strong>do</strong> de se pensar, um processo mental para dar conta darealidade. O mito expressa a natureza inconsciente d<strong>os</strong> fenômen<strong>os</strong> coletiv<strong>os</strong>,136 Tal esforço catequético muitas vezes gerou um complexo processo de traduçõesmútuas <strong>entre</strong> missionári<strong>os</strong> e índi<strong>os</strong>, geran<strong>do</strong> como que uma “religião indígena” (verPompa, 2003).


104sua função sen<strong>do</strong> de expor publicamente para<strong>do</strong>x<strong>os</strong> destes fenômen<strong>os</strong>, mas deforma “disfarçada” (Leach, 1977:68-9). A análise estrutural d<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> segueesta concepção, a partir <strong>do</strong> momento que toma como seu verdadeiro objeto <strong>os</strong>mod<strong>os</strong> de pensar da mente humana e não o mito em si. O que há diretamenten<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> não é a questão central, mas sim as suas propriedades ocultas, <strong>os</strong>istema de axiomas e p<strong>os</strong>tulad<strong>os</strong> que nele aparecem: como diz Lévi-Strauss,não se trata de m<strong>os</strong>trar “como <strong>os</strong> homens pensam n<strong>os</strong> mit<strong>os</strong>, mas como <strong>os</strong>mit<strong>os</strong> pensam n<strong>os</strong> homens, e à sua revelia” (1991:21). Aqui, um conjunto demit<strong>os</strong> tem seus term<strong>os</strong> e mitemas pinçad<strong>os</strong> e estudad<strong>os</strong> de forma relacional,através de procediment<strong>os</strong> formais que foram profundamente influenciad<strong>os</strong> pelalingüística saussureana e jackobsoniana, especialmente na abordagemsincrônica e na construção d<strong>os</strong> eix<strong>os</strong> de paradigmas e sintagmas (Lévi-Strauss,1974[1955], 1978). Segun<strong>do</strong> esta abordagem, um mito não existe por si só,pois to<strong>do</strong> mito é uma versão de algum outro, e a análise de uma família demit<strong>os</strong> leva a seqüências ou quadr<strong>os</strong> contrastiv<strong>os</strong>, onde as variações p<strong>os</strong>icionaisd<strong>os</strong> element<strong>os</strong> são dad<strong>os</strong> analític<strong>os</strong> substanciais: é aí que reside a lógica <strong>do</strong>mito. É importante lembrar que a contextualização faz parte da análiseestrutural, <strong>entre</strong>tanto muito mais no senti<strong>do</strong> de montar um quebra-cabeça <strong>do</strong>que de trazer o discurso mítico para um realismo histórico (neste senti<strong>do</strong>, ver aanálise <strong>do</strong> Gênesis, de Leach, 1983). O mito pode ser entendi<strong>do</strong> comoexpressão <strong>do</strong> pensamento no seu desejo de atingir uma compreensão geral <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>, e isto através de mei<strong>os</strong> diminut<strong>os</strong> e econômic<strong>os</strong> que o consolidamcomo uma narrativa sintética. Nesta direção, <strong>os</strong> mit<strong>os</strong> dão a “ilusãoextremamente necessária” de que se entende o universo (Lévi-Strauss1978:32) e, além disso, contribuem para que o futuro permaneça fiel aopresente e ao passa<strong>do</strong>. O mito como mo<strong>do</strong> de conceitualizar o mun<strong>do</strong> écomparável, portanto, ao próprio pensamento científico (Lévi-Strauss, 1989b;Cassirer; 1972).O mito, assim como tant<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> <strong>do</strong>míni<strong>os</strong> da vida sócio-cultural, comoa arte ou o poder, pode ser aborda<strong>do</strong> de vári<strong>os</strong> mod<strong>os</strong>, concorren<strong>do</strong> diferentesteorias na tentativa de sua compreensão. Se não sabem<strong>os</strong> exatamente o que éum mito, podem<strong>os</strong> afirmar, ao men<strong>os</strong> em relação ao cenário ameríndio, que ele


105é uma narrativa que trata de um mun<strong>do</strong> antes da divisão <strong>entre</strong> palavra e coisa,existência lógica e realidade empírica, natureza e cultura (Lima, 1999:127).Para lidar com a mitologia <strong>Wauja</strong>, estou pensan<strong>do</strong> o aunaki, “história <strong>do</strong>passa<strong>do</strong>”, diante destas diferentes -mas não necessariamente excludentesperspectivaspara a análise <strong>do</strong> mito, ou ainda, da cultura através d<strong>os</strong> mit<strong>os</strong>.Para me apoiar a encontrar um caminho, cabe trazer a exegese <strong>Wauja</strong> sobre oque sejam estes relat<strong>os</strong> intitulad<strong>os</strong> aunaki.Os <strong>Wauja</strong> dizem que aunaki é algo que, por excelência, se refere aopassa<strong>do</strong> distante, sekũiya, “antigamente”. O passa<strong>do</strong> sekũiya nunca pode tersi<strong>do</strong> realmente experimenta<strong>do</strong> por um vivo e, portanto, é um tempo semtestemunhas 137 . A veracidade <strong>do</strong> aunaki, <strong>entre</strong>tanto, nunca é p<strong>os</strong>ta em dúvida.Para <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, <strong>os</strong> aunaki que tratam de fat<strong>os</strong> ocorrid<strong>os</strong> em um passa<strong>do</strong>cronológico (que poderíam<strong>os</strong> chamar de “tempo histórico”), seriam acrescid<strong>os</strong><strong>do</strong> lexema kamalajota (relativo a verídico) e as narrativas relativas ao tempodas origens, “o tempo fabul<strong>os</strong>o <strong>do</strong> princípio” (usan<strong>do</strong> as palavras de Eliade,1994[1963]:11), recebem o lexema iyajo (verdadeiro) (ver Ireland, 1988a). Asdiversas facetas das origens estão expressas n<strong>os</strong> aunaki, e como sociedade“fria” 138 , <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> entendem que não devem se afastar <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que <strong>os</strong>aunaki relembram sempre, pois ali há o nexo com as coisas “verdadeiramente<strong>Wauja</strong>": <strong>Wauja</strong>yajo. As performances públicas e privadas de aunaki seconfiguram como at<strong>os</strong> intencionais, com o propósito da manutenção da ordemprimeira, evitan<strong>do</strong> a dissolução <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.137 Valeria aqui um paralelo com a distinção que fazem <strong>os</strong> Kamayurá <strong>entre</strong> <strong>os</strong> lexemasãng e mawe, traduzid<strong>os</strong> por Menezes Bast<strong>os</strong> respectivamente por “tempo histórico” e“tempo mítico”, haven<strong>do</strong> ainda um terceiro termo, ĩma, “antigo” que remonta aopassa<strong>do</strong> de ãng (1999a:122). Segue-se que, para <strong>os</strong> Kamayurá, a “explanação”, e/ou“narração” d<strong>os</strong> event<strong>os</strong> ocorrid<strong>os</strong> tanto no “tempo mítico” quanto no “tempo histórico”,recebem a mesma gl<strong>os</strong>a, morõneta. Seguin<strong>do</strong> as narrativas <strong>Wauja</strong>, concluo que aolexema mawe Kamayurá, corresponderia o sekũiya <strong>Wauja</strong>, e morõneta poderiaaproximar-se de aunakitsa (cf. Richards, "contar história", Ms.).138 Conforme o conceito de Lévi-Strauss, originalmente expresso em 1960 em sua aulainaugural da cadeira de antropologia social no Collège de France (Lévi-Strauss, 1989b),sociedades “frias”, diferentemente das “quentes”, concebem a história de mo<strong>do</strong> apermanecer como imaginam ter si<strong>do</strong> criadas na origem d<strong>os</strong> temp<strong>os</strong>. Evidentemente, <strong>os</strong><strong>Wauja</strong> atravessem mudanças no processo histórico. Trata-se de uma noção teóricainteressante, mas foi criticada por Hill (1988). Ver a resp<strong>os</strong>ta a esta crítica na <strong>entre</strong>vistade Lévi-Strauss em Viveir<strong>os</strong> de Castro (1998). O tema foi retoma<strong>do</strong> recentemente porAlbert (2002).


106O conhecimento de uma narrativa aunaki é muito valoriza<strong>do</strong>, portanto, eisto também em term<strong>os</strong> econômic<strong>os</strong>: paga-se caro para aprender um destesrelat<strong>os</strong>, inclusive <strong>entre</strong> membr<strong>os</strong> de um mesmo grupo social (Ireland, 1991), enão é qualquer pessoa que tem o direito de narrar um mito. Mesmo que muitaspessoas conheçam bem suas personagens, tenham <strong>do</strong>mínio de toda a história,somente <strong>os</strong> especialistas estão autorizad<strong>os</strong> a contar <strong>os</strong> aunaki (ver Basso,1995, para o caso Kalapalo). Além disso, paralelamente à narrativa ela mesma,há uma performance que guia a significação <strong>do</strong> mito, deven<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> isto ser depleno <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> conta<strong>do</strong>r, já que tal habilidade e conhecimento não são de<strong>do</strong>mínio comum. Assim, a dimensão social e política destas narrativas nãopodem escapar à sua análise. De fato, mais <strong>do</strong> que uma política em torno <strong>do</strong>conta<strong>do</strong>r/p<strong>os</strong>sui<strong>do</strong>r <strong>do</strong> aunaki há aqui uma política no senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> controle <strong>do</strong>conhecimento e da construção da sociedade, pois estes mit<strong>os</strong> funcionam comomodel<strong>os</strong> de comportamento e informam o presente, reafirman<strong>do</strong> o princípio dascoisas e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.Ao mesmo tempo em que <strong>os</strong> aunaki são elaborações que envolvem adimensão histórica, epistemológica e c<strong>os</strong>mológica, são fontes para acompreensão das paixões humanas imbricadas em todas estas dimensões.Nestas narrativas, pode-se inferir a importância dada pelo pensamento nativo aemoções como ciúme, inveja, me<strong>do</strong>, amor, desejo, bem como a fat<strong>os</strong> e coisasque suscitam traição, vingança, morte, feitiço, veneno, <strong>do</strong>ença, cura, <strong>entre</strong>outras. A julgar pel<strong>os</strong> comentári<strong>os</strong> e pistas presentes nas exegeses nativas,enten<strong>do</strong> também que o aunaki pode ser visto como um texto onde seencontram cristalizadas relações <strong>entre</strong> tais paixões e formas expressivas d<strong>os</strong><strong>Wauja</strong>: o aunaki manifesta afet<strong>os</strong> centrais da cultura <strong>Wauja</strong>, element<strong>os</strong>fundamentais para a interpretação <strong>do</strong> ritual.No entanto, a busca destes afet<strong>os</strong> centrais, express<strong>os</strong> n<strong>os</strong> mit<strong>os</strong>, não éexclusiva à perspectiva acima mencionada <strong>do</strong> mito como mensagem codificadaonde se encontram presentes <strong>os</strong> símbol<strong>os</strong> centrais da cultura. Creio que aperspectiva estrutural ilumina a compreensão da patologia, e isto dissolven<strong>do</strong> aperformance da narrativa em busca d<strong>os</strong> mitemas e das relações estruturaisinternas <strong>do</strong> mito (talvez não exatamente no senti<strong>do</strong> das <strong>Mito</strong>lógicas de Lévi-Strauss, mas sim na estruturação de um único mito, cf. Lévi-Strauss, 1989c).


107Ou seja, este tipo de leitura pode apontar as p<strong>os</strong>ições estruturais das paixõesm<strong>os</strong>tran<strong>do</strong> codificações das paixões nativas tal como impressas em um mito.A análise que preten<strong>do</strong> empreender contará com dad<strong>os</strong> da ordem <strong>do</strong>contexto da narrativa e da língua <strong>Wauja</strong>. Este procedimento multi-teórico, quemistura um pouco de interpretação e estruturalismo, não é incomum naantropologia, como vem<strong>os</strong>, por exemplo, no trabalho de Feld (1982) <strong>entre</strong> <strong>os</strong>Kaluli 139 . Creio que tal procedimento revela de forma mais adequada como <strong>os</strong>aunaki que serão apresentad<strong>os</strong> apontam para um círculo simbólico que éconstitutivo no complexo mítico-ritual.Neste contexto, mito e ritual são esferas inseparáveis, pois o aunakiguarda uma relação profunda com o naakai, “ritual”, de tal mo<strong>do</strong> que acompreensão de um passa pela <strong>do</strong> outro, lembran<strong>do</strong> que nas várias sociedadesxinguanas o mito como explanação <strong>do</strong> rito parece constituir um princípio. Pelaperspectiva da performance, o ritual pode ser visto como uma encenação d<strong>os</strong>nativ<strong>os</strong> para si própri<strong>os</strong>: <strong>os</strong> atores ali podem reviver aconteciment<strong>os</strong> históricomític<strong>os</strong>140 , desta forma recuperan<strong>do</strong> sentiment<strong>os</strong> e ações passadas (cf. oconceito de restored behaviour, Schechner, 1985); podem também “brincarjogar”(to play, op.cit,) na intersecção d<strong>os</strong> sentid<strong>os</strong>, pois o ritual é sinestésico(Sullivan, 1986); ou ainda imaginar-se "como se..." (as if... Schechner, op.cit.).Nesta perspectiva, reviven<strong>do</strong> o passa<strong>do</strong>, jogan<strong>do</strong> com <strong>os</strong> sentid<strong>os</strong> e imaginan<strong>do</strong>o p<strong>os</strong>sível, <strong>os</strong> atores são seus própri<strong>os</strong> especta<strong>do</strong>res: o ritual é auto-encena<strong>do</strong>.Mas, além disso, o aunaki parece funcionar como uma espécie de“partitura” <strong>do</strong> ritual, ou script originário <strong>do</strong> naakai, um script que é139 O material analisa<strong>do</strong> por Feld compreende um conjunto de canções, uma taxonomiaornitológica, o choro ritual e as formas poéticas <strong>do</strong> povo Kaluli da Nova Guiné, tratad<strong>os</strong>estes pont<strong>os</strong> como modalidades expressivas que, relacionadas ao mito central,m<strong>os</strong>tram-se constituídas por códig<strong>os</strong> de performance que comunicam sentiment<strong>os</strong>profund<strong>os</strong> deste povo e recodificam seus princípi<strong>os</strong> mític<strong>os</strong>. No embasamento teórico desua pesquisa, o autor explica que cruza métod<strong>os</strong> analític<strong>os</strong> aparentementeinconciliáveis: o estruturalismo, onde o antropólogo é visto como um tradutor, umdecodifica<strong>do</strong>r; a hermenêutica, que enfatiza seu papel de intérprete e experimenta<strong>do</strong>r;e por último, a etnografia da comunicação, que serviria de elo <strong>entre</strong> estas abordagensconflitantes.140 “Histórico-mítico” se refere a uma compreensão <strong>Wauja</strong> para o passa<strong>do</strong> na qual mitoe história coincidem em sua verdade e veracidade (ver o conceito de aunaki acimaexp<strong>os</strong>to, e seus atribut<strong>os</strong> iajo e kamalajota). Para uma visão <strong>do</strong> mito e história comomod<strong>os</strong> de consciência social diferentes porém complementares, ver Hill (1988). Sobreesta temática, ver também Carneiro da Cunha (1992) e Carneiro da Cunha & Viveir<strong>os</strong>de Castro (1993).


108“acredita<strong>do</strong>” 141 . Se, na música, a partitura funciona como um script que é p<strong>os</strong>toem ação na performance musical (Cook, 2001), no teatro, onde a performanceé a inscrição temporal de um texto, o script é pensa<strong>do</strong> como um roteiro a serativa<strong>do</strong> temporalmente. O texto dramatúrgico e a partitura têm este ponto emcomum, de serem construíd<strong>os</strong> de tal forma que aguardam sua realizaçãotemporal. Portanto, mito serve de script para o ritual (cf. Müller, 2003). Oaunaki existe para ser narra<strong>do</strong> e o ritual existe porque há o aunaki que ofundamenta, sen<strong>do</strong> que ele aqui não é propriamente narra<strong>do</strong>, mas“performa<strong>do</strong>”. Ou seja, coloca<strong>do</strong> em forma de ação. Nesta colocação, a músicaxinguana serve de roteiro, pois neste contexto, o ritual é musical (Basso,1985) 142 .> |


109as letras N. T. (nota <strong>do</strong> tradutor). Procurei adensar a própria tradução atravésda escuta da narrativa original dan<strong>do</strong> atenção ao uso de cert<strong>os</strong> term<strong>os</strong> dalíngua vernácula. Ao mesmo tempo, comento em notas de rodapé algumasparticularidades destas versões em comparação com outras, indican<strong>do</strong> cas<strong>os</strong>ejam relativas a outr<strong>os</strong> grup<strong>os</strong> xinguan<strong>os</strong>.Uma abordagem da mitologia: flautas, transformações eperspectivismoA seguir, portanto, empreen<strong>do</strong> um breve exercício analítico ao relacionarquatro mit<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> aparentemente não conectad<strong>os</strong> <strong>entre</strong> si, a não ser pelo fatode terem si<strong>do</strong> contad<strong>os</strong> como resp<strong>os</strong>ta a uma mesma pergunta que fiz paradiferentes informantes, a saber: “como <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> aprenderam as músicas deflauta kawoká?”Além d<strong>os</strong> quatro relat<strong>os</strong> mític<strong>os</strong>, que chamarei de M1, M2, M3 e M4,remeterei a análise a outras versões destes mit<strong>os</strong>: uma, <strong>Wauja</strong>, <strong>do</strong> M2,conforme coletada por Schultz em 1964 (Schultz, 1965 :51), uma terceiraversão deste mito apresentada em Barcel<strong>os</strong> Neto (1999: 226), e um relatodeste mesmo mito feito por Sapaim (pajé Kamayurá, Yawalapití residente) quese encontra n<strong>os</strong> anex<strong>os</strong> como M10; o M3 também aparece na compilação deSchultz (op.cit.:121) e há uma versão Kamayurá recolhida pel<strong>os</strong> irmã<strong>os</strong> VillasBoas (1970:210). O primeiro mito foi narra<strong>do</strong> pelo chefe Iutá e traduzi<strong>do</strong> porTupanumaká, <strong>os</strong> M2 e M3 foram narrad<strong>os</strong> por Aruta e traduzid<strong>os</strong> também porTupanumaká, e o M4 foi narra<strong>do</strong> diretamente em português por Aulahu.Segui<strong>do</strong> deste último relato, consta uma breve <strong>entre</strong>vista com Aulahu comconsiderações a partir <strong>do</strong> mito. Para manter-me fiel a<strong>os</strong> pressup<strong>os</strong>t<strong>os</strong> desteexercício, primeiramente apresentarei <strong>os</strong> três primeir<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> em um formatoresumi<strong>do</strong>, para que o leitor p<strong>os</strong>sa acompanhar a discussão seguinte. Fica aquievidente que este tipo de procedimento só é p<strong>os</strong>sível dentro <strong>do</strong> quadroreferencial de uma análise <strong>do</strong> tipo estrutural, visto que element<strong>os</strong> performátic<strong>os</strong>(entonações, repetições, intervenções da audiência, etc.) são desprezad<strong>os</strong> emprol da descoberta das estruturas mais profundas <strong>do</strong> relato. A idéia, portanto, éde buscar <strong>os</strong> element<strong>os</strong> invariantes <strong>entre</strong> as aparentes diferenças.


110Quanto às outras versões, cito apenas as fontes para não me estenderdemasiadamente, ressaltan<strong>do</strong> pont<strong>os</strong> em que elas apresentam element<strong>os</strong>variantes ou divergentes, a fim de fornecer mais element<strong>os</strong> para a construção<strong>do</strong> que se poderia aqui chamar de eixo paradigmático da análise. Tais mit<strong>os</strong>estão circunscrit<strong>os</strong> à área <strong>do</strong> Alto <strong>Xingu</strong> e têm um elemento sonoro como moteinicial, ou seja, <strong>os</strong> mit<strong>os</strong> se iniciam já com um mitema <strong>do</strong> código acústico emconjunção com o código visual. A centralidade das flautas “sagradas” emmuitas sociedades amazônicas estimula este tipo de análise d<strong>os</strong> mit<strong>os</strong>relacionad<strong>os</strong> a este complexo 144 .A etapa seguinte à apresentação destes mit<strong>os</strong> é a formalização destematerial, quan<strong>do</strong> cert<strong>os</strong> element<strong>os</strong> serão destacad<strong>os</strong> de mo<strong>do</strong> a articular oconjunto. Sem pretender interpretar ou analisar exaustivamente <strong>os</strong> mit<strong>os</strong> emquestão, mas procuran<strong>do</strong> aproximar term<strong>os</strong> de cada mito a ponto de algunsdeles se tornarem significativ<strong>os</strong> na interpretação de outro mito, apresentop<strong>os</strong>síveis associações <strong>entre</strong> <strong>os</strong> element<strong>os</strong> destacad<strong>os</strong> a fim de reconstruir <strong>os</strong>enti<strong>do</strong> destes mit<strong>os</strong>, principalmente no plano de sua concretude e não apenascomo um exercício de racionalização. Para Lévi-Strauss (1978:24), bem comopara a lingüística estrutural, “significar” remete à p<strong>os</strong>sibilidade de qualquer tipode informação ser traduzida numa língua diferente, ou seja, por diferentespalavras num nível diferente. Nesta perspectiva, <strong>os</strong> mit<strong>os</strong> pensam as relações<strong>entre</strong> diferentes códig<strong>os</strong> (sexual, auditivo, visual, astrológico, culinário) eoperam como um disp<strong>os</strong>itivo de conversão destes diferentes códig<strong>os</strong>. Ao final,comento algumas idéias formuladas por Viveir<strong>os</strong> de Castro sobre o que passoua chamar de perspectivismo ameríndio, idéias que se m<strong>os</strong>tram instigantes aon<strong>os</strong> debruçarm<strong>os</strong> sobre este tipo de material mitológico.> |


111M1“Mulher que sabia música de flauta”Havia uma mulher que sabia tu<strong>do</strong> de música, ela conhecia muitomais <strong>do</strong> que <strong>os</strong> homens, tocava música de flauta kawoká e cantavamúsica de yakuí 145 . Quan<strong>do</strong> <strong>os</strong> homens faziam festas de máscarana aldeia, tocavam sempre no início da noite, mas a tal mulheraproveitava quan<strong>do</strong> tod<strong>os</strong> iam <strong>do</strong>rmir, se vestia de homem e ia atéo centro da aldeia tocar flauta e cantar durante toda a madrugada.Antes <strong>do</strong> amanhecer ela se banhava e voltava para casa. Certo diaela foi descoberta pel<strong>os</strong> homens e, como as mulheres são proibidasde tocar flauta, <strong>os</strong> homens resolveram que iriam matá-la. Fizeramum grande buraco na terra e ficaram de tocaia esperan<strong>do</strong> a horaque ela iria tocar. A mulher tinha um amante que resolveu ajudar,pois não queria que ela f<strong>os</strong>se morta. Ele armou o seguinte:ofereceu-se no grupo de homens para matar a moça jogan<strong>do</strong>-a noburaco, porém, para protegê-la, colocou uma grande panela debarro acima da mulher, de jeito que ela tivesse ar por alguns dias,e cobriu tu<strong>do</strong> com terra. Depois de alguns dias retirou a namorada<strong>do</strong> buraco e colocou a carcaça de um vea<strong>do</strong> dentro. A mulher sebanhou, encontrou com sua mãe e esta a levou para outra aldeiaonde pudesse viver sem ser descoberta. Depois de alguns an<strong>os</strong>,um rapaz que visitava a aldeia em que a moça se refugiarapercebeu a semelhança desta com a ‘falecida’ e, ao voltar para suaaldeia, contou para <strong>os</strong> homens o que viu. Resolveram mandaroutra pessoa para averiguar, e mais outra, mas não estavamsegur<strong>os</strong> de que se tratava da mesma pessoa. Decidiram então abriro buraco para ver se alguém tinha tira<strong>do</strong> a moça dali. Aoexaminarem <strong>os</strong> <strong>os</strong>s<strong>os</strong>, viram que se tratava de <strong>os</strong>so de vea<strong>do</strong> enão de gente. O pai da moça resolveu então chamá-la de voltapara a aldeia dizen<strong>do</strong> a ela que seu mari<strong>do</strong> estava esperan<strong>do</strong> naaldeia - mesmo saben<strong>do</strong> que seu povo iria se vingar dela. O antigonamora<strong>do</strong> marcou então um encontro com a moça às escondidas edisse-lhe que foi seu mari<strong>do</strong> quem a delatou a<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> homensquan<strong>do</strong> esta tocava vestida de homem na aldeia. O rapaz instruiu amoça a agir da seguinte forma: procurar uma árvore com mel,pedir para o mari<strong>do</strong> ir retirar o mel e então, num momento deesforço <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, empurrar seu r<strong>os</strong>to de encontro ao mel paraque ele se afogasse. Assim aconteceu e, ao se afogar, o mari<strong>do</strong>transformou-se em Tulukumalu, ‘sapo grande’. A mulher falou paraele não aparecer para as pessoas, pois iriam se assustar com ele, eque ele poderia cantar somente quan<strong>do</strong> chovesse. Ao voltar para a145Note-se que ela canta o repertório intitula<strong>do</strong> yakuí. Entre <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, este termocorresponde a um apapaatai e ao ritual homônimo de máscaras que tem um repertóriomusical de cant<strong>os</strong> masculin<strong>os</strong>. Durante a performance deste ritual as mulheres ecrianças devem permanecer dentro de casa, pois a visão das máscaras é interdita aelas. É interessante lembrar que yaku’i é o termo Kamayurá tanto para um conjunto demáscaras quanto para as flautas que correspondem às flautas kawoká <strong>Wauja</strong>.


112aldeia, disse que seu mari<strong>do</strong> havia morri<strong>do</strong> afoga<strong>do</strong> no mel. Casoucom seu namora<strong>do</strong> e nunca mais cantou. “Por isso <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> sabem<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> que aprenderam com essa mulher”.M2Mapapoho, “povo abelha”, <strong>do</strong>n<strong>os</strong> de kawokáO povo abelha era muito sábio e Kamo, o Sol, não g<strong>os</strong>tava deles.Kamo resolveu então acabar com <strong>os</strong> Mapapoho: convi<strong>do</strong>u-<strong>os</strong> parauma festa e ofereceu-lhes mingau envenena<strong>do</strong>. Tod<strong>os</strong> começarama passar mal, exceto Manãpojã, abelha muito pequenininha eesperta, que não comeu <strong>do</strong> mingau. Como ela p<strong>os</strong>suía muito mel,foi oferecen<strong>do</strong> mel para o povo abelha e este foi melhoran<strong>do</strong>, maspara cortar o efeito <strong>do</strong> envenenamento, Manãpojã pediu para outroapapaatai que mantivesse relações sexuais com a mulher de Kamo.Enquanto isto acontecia, Kamo encontrou com Tupatu, ‘peixe deboca torta’, tocan<strong>do</strong> flauta Kawoká e ofereceu-lhe <strong>do</strong> mingau, oque Tupatu sabiamente recusou. Desconfia<strong>do</strong> de algo, Kamo foi atésua casa e perguntou pra sua mulher se ela tinha ti<strong>do</strong> relaçõessexuais com Ajoiui, ela negou mas ele não acreditou e bateu nela.To<strong>do</strong> povo abelha vai embora, juntamente com Tupatu e tambémPisulu, ‘grilo’ e Makuyalu, ‘barata’, tod<strong>os</strong> tocan<strong>do</strong> kawoká. “Elesque criaram kawoká e por isso as pessoas sabem tocar kawoká.Kamo queria matar as abelhas e enquanto ele batia em suamulher, eles escaparam tocan<strong>do</strong> flauta”.M3Awaulu, o rap<strong>os</strong>oHavia uma menina que era muito chorona e seus pais sempreameaçavam que iriam <strong>entre</strong>gá-la para o Awaulu, o rap<strong>os</strong>o. Comoela não parava de chorar, o pai resolveu assustá-la deixan<strong>do</strong>-a nomato n<strong>os</strong> fund<strong>os</strong> da casa. De repente o choro parou: Awaulu ouviu<strong>os</strong> pais oferecen<strong>do</strong> a menina para ele, e foi buscá-la. A mãeprocurou-a por vári<strong>os</strong> dias em vão, pois Awaulu tinha leva<strong>do</strong> amenina para sua aldeia para criar. Ele tinha uma aldeia igual à d<strong>os</strong><strong>alto</strong>-xinguan<strong>os</strong>, com casa das flautas no centro, porém, viviasozinho nela. A menina cresceu e menstruou, fican<strong>do</strong> assim emreclusão por algum tempo. Awaulu decidiu que iria se casar comela, mas, enquanto ela estava presa ele seguia tocan<strong>do</strong> a flautakawoká na kuwakuho 146 sempre sozinho. Na pausa, ele buscavaem sua casa pirão de peixe, de pimenta e bebida de mandioca paraoferecer a kawoká e comia tu<strong>do</strong> sozinho. Na antiga aldeia dagarota, havia um rapaz também recluso. Certo dia, ele saiu paracaçar sakalu, um tipo de papagaio, e sua flecha voou muito longe,cain<strong>do</strong> atrás da casa <strong>do</strong> Awaulu. Conforme foi se aproximan<strong>do</strong>,146 Na mesma narrativa, Tupanumaka traduz kuwakuho por ‘casa d<strong>os</strong> homens’ e ‘casadas flautas’.


113procuran<strong>do</strong> sua flecha, o rapaz ouviu o som da kawoká e ficouespanta<strong>do</strong>, pois não conhecia nenhuma aldeia por aqueles lad<strong>os</strong>.Seguin<strong>do</strong> o som, chegou até <strong>os</strong> fund<strong>os</strong> da casa <strong>do</strong> Awaulu e ficouespian<strong>do</strong>. De repente a menina apareceu e ele a chamou. Mesmona dúvida, ela se aproximou <strong>do</strong> rapaz e explicou-lhe que ela era amenina que há muit<strong>os</strong> an<strong>os</strong> sumiu da aldeia. Contou que tinha si<strong>do</strong>criada pelo Awaulu e o convi<strong>do</strong>u a entrar na casa. Eles começarama namorar escondi<strong>do</strong> <strong>do</strong> Awaulu. A moça <strong>do</strong>rmia em seu espaço dereclusão, separada <strong>do</strong> Awaulu, e ele a tinha proibi<strong>do</strong> de passar porsob uma linha de cabaças cheias de óleo de pequi que ficavampenduradas no travessão central da casa. O rapaz ficava escondi<strong>do</strong>junto com a garota. Awaulu ia pescar e pegava apenas piranhapequena, estava sem sorte na pesca. Depois de alguns mesesnasceu uma criança que, ao chorar, chamou a atenção <strong>do</strong> Awauluenquanto este tocava kawoká. Ele foi ver o que era e disse para amenina “poxa, minha filha, eu falei pra você não passar em baixoda cabaça se não ficava grávida. Quero ver essa criança, quero verse parece comigo”. Ao constatar que não era seu filho, disse queiria matar a criança, mas o rapaz ouviu e o ameaçou com umaflecha e Awaulu fugiu. O casal voltou para a aldeia com a criança e,como o rapaz havia aprendi<strong>do</strong> de tanto ouvir as músicas <strong>do</strong>Awaulu, resolveu fazer a kawoká e tocar. “Por isso pessoal sabetocar kawoká, ouviram música <strong>do</strong> Awaulu”.M4O roubo da Kawoká“Kawoká era de Iapojoneju, uma mulher que sempre tocavakawoká. Kamo g<strong>os</strong>tou de kawoká pra gente tocar, então pensou“como é que eu vou pegar esse kawoká, como é que eu vou fazer?”Kejo falou para o seu irmão “a gente tem que ir casar comIapojoneju, aí ela arruma kawoká pra gente”. Kamo aceitou e foicasar com Iapojeneju e falou pra ela “eu g<strong>os</strong>to de você, eu voucasar com você” e ela disse “então tá bom”. Era só pra ele pegarkawoká dela. Depois Kamo pensou “eu vou separar dela” e separoudela levan<strong>do</strong> kawoká, levou, roubou né, foi embora. EntãoIapojoneju falou para irmã “como é que nós vam<strong>os</strong> fazer com n<strong>os</strong>sokawoká? A gente tem que pegar ele e matar Kamo” e a irmãrespondeu “não pode matar não, se não a gente morre também”.Elas têm me<strong>do</strong> de Kamo também. Então Iapojoneju foi pegarkawoká mas antes de ir ela rezou “ah, eu não tenho me<strong>do</strong> desserapaz, eu não tenho me<strong>do</strong> de Kamo porque ele não tem mãe etambém não tem pai” 147 , falou rezan<strong>do</strong>. Kamo estava escutan<strong>do</strong> de147 Ver <strong>os</strong> seguintes aunaki em Mello (1999): “as filhas de Kuwamuta” onde Iapojonejuaparece como sen<strong>do</strong> uma das filhas de pau que Kuwamuta fez para casar com


114longe e falou “é verdade o que você tá falan<strong>do</strong> pra mim. Eu nãotenho mãe, só que pai eu tenho”. Iapojoneju foi in<strong>do</strong>, até quechegou e falou para Kamo “ô senhor, a gente veio pegar n<strong>os</strong>sokawoká. Tem que devolver pra gente”, e ele disse: “claro que euvou devolver pra vocês, kawoká não é minha, tenho que devolverpra vocês”. Aí devolveu para Iapojeneju e ela foi embora. EntãoKamo pensou “como é que eu vou fazer kawoká? Pegaram kawoká,como é que eu vou fazer? Vou desenhar, rezar e virou kawoká”. AíKamo pensou, desenhou kawoká bem igualzinho, depois rezou,fumou em cima e virou kawoká. É por isso que a gente até agoraestá com kawoká ainda. É por isso que as mulheres não podem veresse kawoká. Se acontecer de kawoká mexer com mulher, aí ela vaimorrer e <strong>do</strong>no de kawoká também”.Pergunta: e a mulher que levou kawoká de volta não tocou mais?Aulahu: Não. Ela não foi autorizada por Kamo pra tocar, só <strong>os</strong>homens. Meu tio [se referin<strong>do</strong> a seu sogro, Iatuná] disse que Kamofez só duas músicas de kawoká. Como <strong>os</strong> pajés escutam <strong>os</strong> “bich<strong>os</strong>”que tavam tocan<strong>do</strong> flauta no sonho deles, escutou kulatojo [umpássaro] tocan<strong>do</strong> flauta, tava escutan<strong>do</strong> e quan<strong>do</strong> acor<strong>do</strong>u cantou atéconseguir tocar na flauta. Aí ele pegou essa música de kulatojo.Depois <strong>os</strong> pajés escutam também a música de krakatua [outropássaro] escutou e pegou também até ir juntan<strong>do</strong> música de kawoká.Depois pegou música de malaho [também um pássaro] para irjuntan<strong>do</strong>. Assim, antigamente, meu tio inventou música dele também,quan<strong>do</strong> ele tava com ciúme <strong>do</strong> outro, aí ele cantou. Assim vaijuntan<strong>do</strong>, até escutaram música de makaijoneju também e juntaram.Por isso tem muita música de kawoká.Pergunta: E hoje, o pessoal faz mais música nova?Aulahu: Sim, meu tio fez. Não sonhou não, inventou [o tio chamavaKaluené]. Talakuway [filho de Kaomo] também faz [não foiconfirma<strong>do</strong> pelo próprio], inventa. Aí ensinam para <strong>os</strong> outr<strong>os</strong>.Antigamente um homem ficou <strong>do</strong>ente e morreu. Suas irmãs estavamchoran<strong>do</strong>, ele tinha um inimigo que ficou contente com sua morte.Yanumaka; e “o nascimento de Kamo e Kejo” que relata o assassinato da mãe d<strong>os</strong>gême<strong>os</strong>, origem <strong>do</strong> primeiro kaumai.


115Depois ele cantou, fez música porque o outro morreu. Por isso vaicrescen<strong>do</strong> música de kawoká.Pergunta: e você sabe dizer qual música esta falan<strong>do</strong> de ciúme, depássaro ou de outra coisa?Aulahu: sim eu sei porque meu tio [Iatuná] me conta, ele sabe tu<strong>do</strong>.> |


116seu povo tem deste repertório. Esta é uma característica de muit<strong>os</strong> mit<strong>os</strong>, deser uma narrativa <strong>do</strong> tipo “é por isso que hoje...”. M1, M3 e M4 p<strong>os</strong>suem estemote finaliza<strong>do</strong>r, mas que é mais <strong>do</strong> que uma figura de retórica: desta forma, avalidade d<strong>os</strong> aconteciment<strong>os</strong> narrad<strong>os</strong> n<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> é realçada com uma práticapresente. Este tratamento de alguns mit<strong>os</strong> ou mitemas, como que em discursoparalelo ou em off, que aponta para a origem de um fato verificável nopresente (p. ex., o momento e a razão que fizeram com que o peixe tupatoficasse com a cara “virada”) acaba servin<strong>do</strong>, por indução, para atestar o caráteriajo (verdadeiro) <strong>do</strong> próprio mito 148 .Em M2, a flauta kawoká é tocada no mesmo momento em que ocorre arelação sexual de Ajoiui com a mulher de Kamo. Ao final, tod<strong>os</strong> vão emboratocan<strong>do</strong> flauta. Na versão de Barcel<strong>os</strong> Neto, o povo abelha é que começou comkawoká, e, enquanto Kamo preparava o veneno, o povo abelha estava tocan<strong>do</strong>a flauta a convite de Kamo.Já no M3, o choro da criança incomoda <strong>os</strong> pais. É, portanto, um event<strong>os</strong>onoro que gera a ação <strong>do</strong> mito. Da mesma forma, o fato <strong>do</strong> Awaulu ouvir oque <strong>os</strong> pais da criança dizem, suas ameaças de aban<strong>do</strong>no, inclui-se no códig<strong>os</strong>onoro. Mais adiante, Awaulu toca kawoká na casa das flautas e o rapaz a ouvee segue seu som (na versão Kamayurá, ele ouve o som <strong>do</strong> pilão que a meninausa para socar polvilho) 149 . Quan<strong>do</strong> Awaulu ouve o choro <strong>do</strong> bebê, para detocar flauta (na versão Kamayurá, é o rapaz que toca a flauta de Awaulu e estepara de pescar para ver quem está tocan<strong>do</strong>). Ao final, o rapaz faz sua kawoká etoca as músicas de Awaulu que memorizou. Daí que, desde então, tod<strong>os</strong>passaram a conhecer este repertório.148 Sobre o uso <strong>do</strong> discurso indireto como afirma<strong>do</strong>r da autoridade <strong>do</strong> fato narra<strong>do</strong>, vejao caso das narrativas míticas Kalapalo, onde este mo<strong>do</strong> <strong>do</strong> discurso serve para umadescrição mais aceita das emoções d<strong>os</strong> personagens <strong>do</strong> mito <strong>do</strong> que uma sua descriçãodireta (Basso, 1995:295). Sobre esta e outras formas de discurso nas terras baixas, verBeier, Michael & Scherzer (2002).149 É importante notar que a mão de pilão é um objeto ritual feminino, inclusive quefazia parte, até há pouco tempo, <strong>do</strong> rol de objet<strong>os</strong> que uma mulher deveria ter quand<strong>os</strong>e casasse com um homem, assim como parte de seus pertences funerári<strong>os</strong>,juntamente com o fuso de fiar algodão que serviriam de armas no trajeto até a aldeiadas almas, o ywuejokupoho. Tanto o pilão quanto a flauta, associad<strong>os</strong> à sexualidadefeminina, são produtores de som, um som capaz de atrair <strong>os</strong> homens. Tem-se aqui oque Lévi-Strauss entende como a transformação de um aspecto homólogo de um mitoem outro (1991:22).


117No M4 ocorre algo diferente que n<strong>os</strong> anteriores: após ser roubada eenganada por Kamo, Iapojoneju “reza” para perder o me<strong>do</strong> que sente de Kamo,e este “escuta” sua reza, mesmo à distância, capacidade que somente <strong>os</strong>apapaatai p<strong>os</strong>suem.Disto tu<strong>do</strong> podem<strong>os</strong> extrair, no mínimo, três evidências: a primeira é ade que o som -como ruí<strong>do</strong> ou como música- opera como elementodesencadea<strong>do</strong>r de mudanças de esta<strong>do</strong>, é ele que separa ou une pessoas emtodas estas narrativas. Neste ponto, ressalta-se a questão da espacialidade d<strong>os</strong>om, na medida em que o código sonoro funciona aqui no senti<strong>do</strong> de denunciara localização de alguém 150 . A segunda evidência é a utilização da música dasflautas em conjunção com o ato sexual de Ajoiui com a mulher de Kamo,funcionan<strong>do</strong> como antí<strong>do</strong>to para o veneno forneci<strong>do</strong> pelo anfitrião. Aqui estápresente a relação <strong>entre</strong> música de kawoká e relações sexuais, bem como opapel de amb<strong>os</strong> na cura, notadamente como contra-feitiço. E a terceira é aassociação que <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> fazem <strong>entre</strong> música, sabe<strong>do</strong>ria e memória. Sobre esteponto, obtive vári<strong>os</strong> relat<strong>os</strong> onde atribuíam especial prestígio a<strong>os</strong> músic<strong>os</strong> pelofato destes p<strong>os</strong>suírem boa memória, quesito fundamental também para umchefe. Sob este aspecto, a mulher no M1, o “povo abelha” no M2, e o rapaz noM3 podem ser p<strong>os</strong>t<strong>os</strong> em p<strong>os</strong>ições homólogas, visto que têm ou obtêm umconhecimento musical que depois será assimila<strong>do</strong> por outr<strong>os</strong> homens quetenham memória para tal. No relato de Aulahu, fica evidente a forma deaquisição e incorporação <strong>do</strong> repertório das flautas: através d<strong>os</strong> sonh<strong>os</strong>,comp<strong>os</strong>ições e transferência <strong>do</strong> repertório feminino de makaijoneju(literalmenete “mulheres Bakairí”) também conheci<strong>do</strong> por kawokakuma, para orepertório de kawoká.aunaki Código sonoro/visualM1M2-mulher toca flauta à noite para não ser vista.- homem transforma<strong>do</strong> em sapo só pode cantar na chuva para nã<strong>os</strong>er visto.-homens memorizaram as músicas que ouviram da mulher.- kawoká soa durante a relação sexual de Ajoiui com a mulher de150 Piedade desenvolve este aspecto <strong>do</strong> som em sua tese, partin<strong>do</strong> <strong>do</strong> fato de que “ouviré um fenômeno que se dá na espacialidade”, conclui que “há um vínculo ontológico<strong>entre</strong> o som e o espaço que lhe é originário” (2004:80).


118M3M4Kamo.- enquanto Kamo prepara o veneno, o povo abelha toca kawoká.- o choro da criança incomoda seus pais.- Awaulu ouve as ameaças d<strong>os</strong> pais da criança.- o rapaz segue o som da flauta de Awaulu (ou <strong>do</strong> pilão da garota)- Awaulu ouve o choro <strong>do</strong> bebê e para de tocar flauta (ou ouve orapaz tocar flauta e para de pescar).- o rapaz toca as músicas que memorizou de Awaulu.- Kamo ouve a reza de Iapojoneju à distância.Uma outra constatação é a presença nestes mit<strong>os</strong> de substânciastransforma<strong>do</strong>ras, a segunda categoria a ser destacada. No M1, é o mel queafoga o mari<strong>do</strong>, transforman<strong>do</strong> o trai<strong>do</strong>r em morto, p<strong>os</strong>sibilitan<strong>do</strong> aconsumação da vingança e a união com o amante. No M2, é o mingauenvenena<strong>do</strong> prepara<strong>do</strong> por Kamo, aqui se fazen<strong>do</strong> também presente o logro.Neste mesmo mito, o mel, uni<strong>do</strong> às relações sexuais (por contigüidade: aoesperma), tem a função de cortar o efeito <strong>do</strong> veneno. Na versão de Schultz éenfatizada a saída <strong>do</strong> “leite” <strong>do</strong> homem como antí<strong>do</strong>to <strong>do</strong> veneno de Kamo e,na de Barcel<strong>os</strong> Neto, é dito que foi a mulher de Kamo quem ensinou o remédiopara curar o povo abelha. No M3, o óleo de pequi aparece como sen<strong>do</strong> capaz deengravidar a moça, isto pela mera aproximação física. A homologia <strong>entre</strong> óleode pequi e esperma é aqui evidente. Todas estas substâncias transforma<strong>do</strong>rasparecem voltar-se contra as três personagens masculin<strong>os</strong> que se dão mal n<strong>os</strong>três mit<strong>os</strong> e que, neste senti<strong>do</strong>, guardam uma p<strong>os</strong>ição simétrica <strong>entre</strong> si: noM1- o mari<strong>do</strong> morto pelo mel; no M2 - Kamo, que tem o efeito de seu venenocorta<strong>do</strong> pela ação <strong>do</strong> mel e <strong>do</strong> esperma; no M3 – Awaulu, cujo óleo de pequinão foi eficaz para engravidar a moça. No M4, é a fumaça que transforma odesenho em objeto real, a “cópia” da flauta. N<strong>os</strong> três primeir<strong>os</strong> mit<strong>os</strong>, as trêspersonagens masculinas (mari<strong>do</strong> em M1, Kamo em M2 e Awaulu em M3) sãoenganadas pela esp<strong>os</strong>a, reforçan<strong>do</strong>-se a idéia de uma simetria <strong>entre</strong> asp<strong>os</strong>ições que estes três “homens” ocupam. Se, por outro la<strong>do</strong>, olharm<strong>os</strong> para ap<strong>os</strong>ição que a mulher ocupa em relação à música de flauta no M1, vem<strong>os</strong> queela poderia ser aproximada daquela de Awaulu em M3, na medida em queamb<strong>os</strong> ensinam a<strong>os</strong> homens o repertório musical, o que parece confundir umpouco o esquema apresenta<strong>do</strong> acima. Já no M4, a mulher é que é enganada porKamo. No entanto, é clara a p<strong>os</strong>ição de media<strong>do</strong>ra que a mulher assume n<strong>os</strong>


119quatro mit<strong>os</strong>: no M1, é ela quem ensina a música a<strong>os</strong> homens; no M2, é amulher quem “ensina” o antí<strong>do</strong>to para o veneno; no M3, é através da mulherque o rapaz chega até a música de kawoká; e no M4 é Iapojoneju quem toca esabe efetivamente o repertório das flautas.Da junção destas substâncias com o som da flauta no M2, emerge umasituação altamente poder<strong>os</strong>a: o esperma, simultaneamente uni<strong>do</strong> ao mel e a<strong>os</strong>om da kawoká, resulta no antí<strong>do</strong>to capaz de cortar o efeito <strong>do</strong> venenoproduzi<strong>do</strong> pelo invej<strong>os</strong>o e ciumento Kamo. O paralelo <strong>entre</strong> a flauta kawoká eas relações sexuais é reforça<strong>do</strong> não só nesta passagem <strong>do</strong> M2, como tambémno M3, no qual <strong>os</strong> jovens mantêm relações sexuais enquanto Awaulu toca flautana casa d<strong>os</strong> homens, acaban<strong>do</strong> por gerar um bebê 151 .aunakiM1M2M3M4Substâncias transforma<strong>do</strong>ras- o mari<strong>do</strong> é afoga<strong>do</strong> no mel.- Kamo prepara um mingau envenena<strong>do</strong>.- o mel e o esperma cortam o efeito <strong>do</strong> veneno.- a saliva falante- óleo de pequi pode engravidar a moça- a fumaça transforma o desenho em flautaComo última dimensão de análise, levanto as farsas, mentiras eengod<strong>os</strong>, enfim: o logro. No M1, há a mulher que se passa por homem, etambém o enterro de uma carcaça de vea<strong>do</strong> no lugar da mulher. Tal fatodesencadeia um procedimento de exumação, próximo ao que poderíam<strong>os</strong>chamar de procedimento policial, ou peritagem. Há logro quan<strong>do</strong> o mito narraque a mulher estava viven<strong>do</strong> em outra aldeia, enquanto na sua aldeia ajulgavam morta, novamente levan<strong>do</strong> ao processo de investigação d<strong>os</strong> fat<strong>os</strong> porparte d<strong>os</strong> homens. No final deste mito, a mulher homicida mente sobre a morte151 A associação <strong>entre</strong> mel, veneno e esperma parece ter pertinência no mun<strong>do</strong>ameríndio, se lembrarm<strong>os</strong> das mitológicas de Lévi-Strauss, que trabalha suashomologias em vári<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> american<strong>os</strong>. Por exemplo, na “Peça Cromática” <strong>do</strong> Cru e oCozi<strong>do</strong>, há um estu<strong>do</strong> d<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> de origem <strong>do</strong> veneno de pesca (timbó), Lévi-Strauss aliatravessan<strong>do</strong> um conjunto de temáticas relacionadas ao código sexual, como a idéia da“sujeira feminina” como “veneno supremo”, o pênis <strong>do</strong> tapir como objeto de desejo dasmulheres e instrumento de punição pel<strong>os</strong> homens enciumad<strong>os</strong>, o o<strong>do</strong>r vaginal comocontrapartida da função nutriz (1991[1971]:245-668). A origem <strong>do</strong> veneno, “ponto deisomorfismo <strong>entre</strong> natureza e cultura”, aparece enquadrada em uma dialética d<strong>os</strong>pequen<strong>os</strong> e grandes interval<strong>os</strong> que rege o cromatismo das cores e da música(op.cit:267-8).


120de seu mari<strong>do</strong>. No M2, Kamo convida o povo abelha para festa com a intençãode matá-l<strong>os</strong>, logran<strong>do</strong>-<strong>os</strong> com o mingau. Ajoiui faz sexo com a esp<strong>os</strong>a de Kamopara salvar seu povo <strong>do</strong> veneno, isto sem que Kamo perceba (na versão deSapaim, o povo abelha engana Kamo através da saliva falante 152 ). Ainda noM2, a mulher mente para Kamo dizen<strong>do</strong> não ter ti<strong>do</strong> relações sexuais comAjoiui. No M3, a moça esconde o rapaz de Awaulu, enganan<strong>do</strong>-o por vári<strong>os</strong>meses (na versão Kamayurá, a moça mente várias vezes para Awaulu sobrequem havia suja<strong>do</strong> seu corpo de urucum). Esta moça afirma ainda que Awaulué o pai da criança que ela está esperan<strong>do</strong>, e que foi ele mesmo, Awaulu, quemtocou a flauta e não outra pessoa (nesta versão o rapaz pega a kawoká e toca,apesar da moça alertá-lo para não fazer isso). Já o M4 é por inteiro umanarrativa sobre o logro. Kamo inicia propon<strong>do</strong> um casamento por interesse, e,após conseguir o que queria rouban<strong>do</strong> a flauta, se separa da mulher. Quan<strong>do</strong>esta retorna reivindican<strong>do</strong> a p<strong>os</strong>se da kawoká, ele admite que as flautas nãolhe pertencem, no entanto, proíbe as mulheres de tocar <strong>os</strong> instrument<strong>os</strong>. Aflauta de Kamo passa a ser um simulacro daquelas que as mulheres p<strong>os</strong>suíam.Este aspecto, recorrente em grande parte da mitologia ameríndia, como nafigura <strong>do</strong> trickster, é profundamente observa<strong>do</strong> por Ellen Basso nas narrativasKalapalo: a ética e a estética da decepção (1987a) 153 .De fato, o papel que as ilusões, trapaças e ardis desempenham nasnarrativas xinguanas parece ressaltar a to<strong>do</strong> tempo uma especial qualidadehumana, que vem a ser a habilidade de criar ilusão por meio de fabricaçõesverbais e visuais, em geral através das artes e artisticidade. Muit<strong>os</strong> estud<strong>os</strong>sobre as c<strong>os</strong>mologias ameríndias enfatizam ainda que estes pov<strong>os</strong> nãopercebem esta habilidade como sen<strong>do</strong> exclusivamente humana. A próprianoção de ser humano pode ser bastante ampliada neste contexto etnográfico.152 Este subterfúgio da saliva falante aparece em vári<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> (ver n<strong>os</strong> anex<strong>os</strong> o M9,mito de kamukuwaká), o que ressalta a capacidade que as extensões materiais d<strong>os</strong>seres têm em perpetuar a ação e a intenção destes, mesmo quan<strong>do</strong> dissociadas de suaorigem. No caso da saliva, cria-se a ilusão de presença, reforçan<strong>do</strong> o jogo <strong>entre</strong> visão eaudição tão elabora<strong>do</strong> em muitas narrativas míticas. No caso <strong>do</strong> esperma, outraextensão <strong>do</strong> ser, a capacidade é a de um contra-feitiço, de antí<strong>do</strong>to. Lembro que asaliva, em alguns context<strong>os</strong> das Terras Baixas, é um quase "sinônimo" de esperma.Sobre a idéia das substâncias corpóreas como um “duplo”, ver Lagrou (1998).153 A outra face da moeda da ética e a estética deceptivas é a vigilância capilar, ligada àdisciplina. Os procediment<strong>os</strong> de investigação e perícia aparecem como o cimento <strong>entre</strong>as faces referidas.


121De acor<strong>do</strong> com esta perspectiva, em tais c<strong>os</strong>mologias, por trás da diversidadede corp<strong>os</strong> observada, há uma unidade essencial, uma só cultura, sen<strong>do</strong> que acondição original comum a human<strong>os</strong> e animais não seria a animalidade e sim ahumanidade (Viveir<strong>os</strong> de Castro, 1996a:119). A diferença d<strong>os</strong> corp<strong>os</strong> só éapreensível, assim, de um ponto de vista exterior, pois para si mesmo cada sertem a mesma forma –a forma genérica <strong>do</strong> humano -vista geralmente comouma <strong>entre</strong> as muitas “roupas” p<strong>os</strong>síveis existentes ou imaginadas. Não vem<strong>os</strong><strong>os</strong> animais como gente e reciprocamente eles também não n<strong>os</strong> vêem como talporque n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> corp<strong>os</strong> respectiv<strong>os</strong> e perspectiv<strong>os</strong> são diferentes. Assim, ésujeito quem tem alma e tem alma quem é capaz de um ponto de vista. Asp<strong>os</strong>sibilidades abertas por essa profusão de pont<strong>os</strong> de vista amplia, semdúvida, as chances <strong>do</strong> erro, da má avaliação de uma dada situação econseqüentemente p<strong>os</strong>sibilita muitas estratégias ardil<strong>os</strong>as, de engo<strong>do</strong> edissimulação a que <strong>os</strong> mit<strong>os</strong> se referem.aunaki O logroM1M2M3M4- mulher se passa por homem- enterro de uma carcaça de vea<strong>do</strong> em lugar da mulher.- mulher vive escondida em outra aldeia- mulher mente sobre a morte de seu mari<strong>do</strong>- Kamo convida mapapoho com a intenção de matá-l<strong>os</strong>.- sem que Kamo perceba, Ajoiui faz sexo com sua esp<strong>os</strong>a.- a saliva que fala em lugar <strong>do</strong> povo abelha- a moça engana Awaulu com o rapaz- a moça mente sobre a paternidade <strong>do</strong> filho que está esperan<strong>do</strong>- Kamo se casa por interesse nas flautas- ele rouba kawoká das mulheresAssim, n<strong>os</strong> quatro mit<strong>os</strong> que me foram contad<strong>os</strong> pel<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> paraexplicar como aprenderam a tocar kawoká, destaquei três aspect<strong>os</strong>: o códig<strong>os</strong>onoro, as substâncias transforma<strong>do</strong>ras e <strong>os</strong> logr<strong>os</strong>. Estes três element<strong>os</strong> seencontram profundamente imbricad<strong>os</strong> na c<strong>os</strong>mologia, na ética e na estética<strong>Wauja</strong>, sen<strong>do</strong> aí muito saliente a idéia de transformação. Além de muitas vezesencontrarm<strong>os</strong> n<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> passagens que contam como <strong>os</strong> animais ou apapaataiperderam <strong>os</strong> atribut<strong>os</strong> herdad<strong>os</strong> ou mantid<strong>os</strong> pel<strong>os</strong> human<strong>os</strong>, podem<strong>os</strong>encontrar também uma profusão de element<strong>os</strong> que procuram dar conta da


122capacidade transformacional d<strong>os</strong> seres: homens viran<strong>do</strong> sapo, rap<strong>os</strong>a casadacom mulher, substâncias que operam as transformações de gente em apapaataie vice-versa. No presente exercício, vem<strong>os</strong> que <strong>os</strong> term<strong>os</strong> de cada mito podemser aproximad<strong>os</strong> através das idéias de transformação, transformação que tantopode ser ativada pelo som, quanto por substâncias ou mesmo pelocomportamento a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>.> |


123forma de manter-me fiel à sua performance 154 . Minhas observações seguem<strong>entre</strong> colchetes [ ] ou nas notas, quan<strong>do</strong> mais extensas, enquanto que asobservações d<strong>os</strong> tradutores aparecem <strong>entre</strong> parênteses com a indicação NT1 ouNT2.M5 - Iamurikuma“Os marid<strong>os</strong> vão virar bicho [leia-se apapaatai, espírito]. Ocacique foi pro centro da aldeia e disse: ‘vam<strong>os</strong> pescar para asmulheres’. E <strong>os</strong> rapazes responderam: ‘está bem, deixe primeiro asmulheres pegar mandioca para levar beiju’. Aí ce<strong>do</strong>, elas ralarammandioca e <strong>os</strong> rapazes disseram: ‘amanhã a gente vai, tá bom?’ Asmulheres foram de manhã na roça, depois ralaram e terminaramao meio dia. Fizeram beiju à noite. De manhã <strong>os</strong> homens falaram:‘vam<strong>os</strong> embora pescar’. Eles contaram quant<strong>os</strong> dias vão ficarpescan<strong>do</strong>, cinco dias. De manhã ce<strong>do</strong> fizeram máscara de anta,capivara, porco e de walakau 155 . Demoraram fazen<strong>do</strong> as máscaras,demoraram muito e as mulheres esperan<strong>do</strong> com fome. Não tinhanenhum homem na aldeia, somente <strong>os</strong> atagiuwekeho e <strong>os</strong>haukenejo 156 . Um d<strong>os</strong> atagiuwekeho chamava Kamatapirá e ooutro Ulei. Kamatapirá, que era filho <strong>do</strong> chefe, falou à tarde queiria no rio ver o mari<strong>do</strong> delas. Meia noite ele foi para ver o que <strong>os</strong>homens estavam fazen<strong>do</strong>. Gritou ‘ieee, ieee...’ [maneira típica d<strong>os</strong>pesca<strong>do</strong>res se localizarem uns a<strong>os</strong> outr<strong>os</strong>]. Ele viu <strong>os</strong> homensfazen<strong>do</strong> as máscaras que eram pra ir na aldeia devorar as154 A classificação e numeração destes cant<strong>os</strong> correspondem à ordem em que elesaparecem nas gravações <strong>do</strong> ritual por mim etnografa<strong>do</strong> em 2001, in<strong>do</strong> de I1 a I40.Apesar de serem cantad<strong>os</strong> por Iutá na seqüência abaixo (I39, I40, I31, I12, O2, I30,I3), mantenho a numeração conforme a ordem das gravações para efeito deorganização <strong>do</strong> material. Sobre as transcrições musicais, veja o Capítulo IV.155 Segun<strong>do</strong> me informaram, walakau é um pássaro que ninguém nunca viu. Só se ouveseu canto quanto se está perto da morte. Dizem que a mulher de Malakuiawa (o antigochefe) o ouviu um pouco antes de seu mari<strong>do</strong> morrer.156 Atagiuwekeho são <strong>os</strong> rapazes em reclusão pubertária, literalmente “<strong>do</strong>no da atagia”,erva dada a eles, em forma de infusão, para vomitar. Já <strong>os</strong> haukenejo são homens emcouvade, que permanecem com suas mulheres após o parto durante <strong>os</strong> primeir<strong>os</strong>meses. O tempo de reclusão pós-parto varia conforme o número de filh<strong>os</strong>, isto é, após onascimento <strong>do</strong> primogênito o perío<strong>do</strong> é maior em relação a<strong>os</strong> nasciment<strong>os</strong> seguintes.


124mulheres, então disse: ‘é isso que vocês estão fazen<strong>do</strong>?’ E <strong>os</strong>homens responderam: ‘sim, é isso mesmo’. E Kamatapirácontinuou: ‘mas suas mulheres estão esperan<strong>do</strong> com fome. Atéseus filh<strong>os</strong> estão com fome’. E <strong>os</strong> homens disseram: ‘bom, depois agente vai procurar peixe’ (N.T1: eles estavam mentin<strong>do</strong>).Kamatapirá então falou: ‘eu vou avisar as mulheres’ e foi emborareman<strong>do</strong>, pu-pu-pu... [som da remada]. Ele chegou na aldeia egritou: ‘kaaa! Seus marid<strong>os</strong> estão viran<strong>do</strong> bicho fazen<strong>do</strong> máscara’.As mulheres se juntaram no centro da aldeia e Kamatapirá avisouas mulheres: ‘naalá, pessoal, seus marid<strong>os</strong> estão fazen<strong>do</strong> máscarapra vir matar e comer vocês’. E elas disseram: ‘nós também vam<strong>os</strong>virar bicho’. Foram pegar kuretsi, uma planta que tem lá n<strong>os</strong>Kalapalo (N.T2: perto de onde Yakui foi enterrada, na beira <strong>do</strong>Kuluene). Elas cantaram a noite inteira pra virar bicho. Ce<strong>do</strong>, àsseis horas, elas foram se banhar. Enquanto estavam in<strong>do</strong> para orio, cantaram:Foram se banhar, voltaram cantan<strong>do</strong> a mesma música e falaram‘vam<strong>os</strong> buscar Kamatapirá pra cavar buraco por onde vam<strong>os</strong> fugirde n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> marid<strong>os</strong>’.E seguiram cantan<strong>do</strong> outra música enquanto entravam nas casas.


125


126Elas se pintaram à noite e foram pra casa ao amanhecer cantan<strong>do</strong>‘e he, e há há..’ enquanto entravam em suas casas, elas diziamque estavam fican<strong>do</strong> loucas. [Esta loucura, que é a transformaçãoem apapaatai, é uma modificação <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> natural para umesta<strong>do</strong> de exceção e excesso, o que é sugeri<strong>do</strong> não apenas pelo jádiscuti<strong>do</strong> sufixo –kuma, mas também pela idéia detransbordamento, dada pela raiz <strong>do</strong> verbo apokapai, poka, quesignifica “derramar”].


127ikãniuwã [eu vou te buscar]pitsununupapai [eu estou ven<strong>do</strong> você (estou de olho em você)]makapatokapai [para fazer buraco para nós]As mulheres d<strong>os</strong> chefes decidiram cortar árvore grande pra fazeranaweke, pilão grande. Queimaram a madeira pra fazer o buraco<strong>do</strong> pilão e voltaram pro centro da aldeia. Lá, elas colocaram <strong>os</strong>filh<strong>os</strong> homens no pilão [N.T1: porque só queriam levar as filhas],depois foram buscar Kamatapirá e falaram ‘viem<strong>os</strong> te buscar’ e eledisse ‘tá bom’. Kamatapirá se enfeitou com braceletes, amarroulinha nas pernas e pôs brinco. Puxou banquinho e sentou. Em outracasa Ulei fez a mesma coisa. As mulheres não comiam e nembebiam mais, estavam fican<strong>do</strong> loucas e cantaram ‘ikãniwã, aha ihehe...’ e foram buscar Kamatapirá. Elas fizeram uma fila dentroda casa dele cantan<strong>do</strong> ‘ikãniwã, aha i hehe...’. Kamatapirábalançou e foi dançar também, as mulheres fizeram ele ficar loucotambém, ‘ikãniwã, aha i hehe...’. Kamatapirá dançou. Kamatapirálevantou e foi no centro da aldeia com as mulheres e sentou lá. Daíelas foram buscar Ulei, ‘ikãniwã, aha i hehe...’, Ulei tambémdançou na casa ‘ikãniwã, aha i hehe...’, se levantou e foi para ocentro da aldeia onde se sentou. Elas fizeram duas filas, uma deiamurikuma, outra de makaijenejo, [as mulheres Bakairí], ecantaram novamente:Napokapai e hei a Pitsuá punupa[eu estou louca] [pode vir ver ] = venha me verNapokapai e hei a Kamatapirare Apokata natu[nome de homem] [fazen<strong>do</strong> ficar louca eu]


128Esta música quer dizer “nós estam<strong>os</strong> fican<strong>do</strong> loucas porqueKamatapirá fez a gente ficar louca”. Kakatápiri quer dizer culpa<strong>do</strong>,eles eram <strong>os</strong> culpad<strong>os</strong>. Kamatapirá e Ulei batiam o pé, como seestivessem dançan<strong>do</strong>, sentad<strong>os</strong> no centro da aldeia.


129Elas foram buscar opukakala da casa de Kamatapirá:máscara de malula, “tatu canastra”, um mujupá, “cesto grande depalha”, pegaram <strong>os</strong> kutejo, “pás de beijú”, e <strong>os</strong> puseram nasc<strong>os</strong>tas de Kamatapirá cantan<strong>do</strong> “na pikapá ehera...”. Cantarampara <strong>os</strong> seus marid<strong>os</strong>:CD 1 faixa 6


Elas entraram cantan<strong>do</strong> no buraco na terra que Kamatapirá fez,enquanto <strong>os</strong> marid<strong>os</strong> estavam chegan<strong>do</strong> gritan<strong>do</strong>.130CD 1 faixa 7Elas seguiram cantan<strong>do</strong> “na pikapá ehera...” dizen<strong>do</strong> “vem verque não tem mais ninguém na aldeia, em cima de mim não temmais ninguém, está tu<strong>do</strong> limpo”. Elas dizem que não comiammais nada, que estavam loucas. As iamurikuma são ascantoras, as principais cantoras ficaram por último cantan<strong>do</strong> noburaco. Cantaram e foram embora. Colocaram na entrada <strong>do</strong>buraco marimbon<strong>do</strong>, formigão, cobra, aranha e plantaramabacaxi, tu<strong>do</strong> pra impedir a entrada d<strong>os</strong> marid<strong>os</strong>. Os marid<strong>os</strong>chegaram e disseram: “volte para mim” mas nada aconteceu,elas tinham i<strong>do</strong> mesmo embora.[Fim da tradução de T1 e início de T2]Seguin<strong>do</strong> no buraco, elas chegaram em outra aldeia, bem noenekutaku, “centro da aldeia”. Kamatapirá avisou para tod<strong>os</strong> queestavam ali para não olharem para as iamurikuma, senão teriamque ir junto embora. As iamurikuma foram cantan<strong>do</strong> e quem olhou,homem ou mulher, foi junto, foram dançan<strong>do</strong> junto com elas.


131Ficaram a noite toda cantan<strong>do</strong> e, de manhã, seguiram viagem.Kamatapirá saiu de novo em outra aldeia avisan<strong>do</strong>, foi tu<strong>do</strong> igual,quem olhou seguiu junto. Seguiram viagem até a cabeceira <strong>do</strong>riozinho que deságua na lagoa Piulaga, chama<strong>do</strong> ietowaká. Lá, temuma lagoa que ninguém vai. Lá, elas trocaram de sapalaku,[cordão perineal], deixaram <strong>os</strong> velh<strong>os</strong> e pegaram nov<strong>os</strong>. Nestelugar tem muito ieropaná, planta que serve pra fazer o fio d<strong>os</strong>apalaku [mais conheci<strong>do</strong> por uluri]. É lá que as mulheres <strong>Wauja</strong>pegam ieropaná.Kauné raspan<strong>do</strong> a casaca de ieropaná para fazer sapalaku.Seguiram mais adiante. Saíram em outro buraco, lá perto, e foramse lavar. Lavaram o urucum, tiraram toda pintura <strong>do</strong> corpo, e porisso, lá tem topépo, [barro vermelho utiliza<strong>do</strong> na pintura depanelas]. Tem que ir em silêncio lá pra pegar topépo. Ali,Kamatapirá falou para Ulei cavar um buraco para que seu grupo,aqueles que vieram de outras aldeias [homens e mulheres],pudessem voltar pra suas casas, enquanto ele, Kamatapirá, iriaseguir adiante com as mulheres de seu próprio grupo. Kamatapirásaiu com seu grupo em um lugar desconheci<strong>do</strong> e foramcaminhan<strong>do</strong>. Era o final <strong>do</strong> enutaku, “fim <strong>do</strong> céu”. Atravessaram océu e entraram no outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, ali começou a estrada, ocaminho, o iakunapu. Colocaram uma barragem na fronteira <strong>do</strong>enutaku, tinha uma estrada lá, era o unopitsakala (N.T2 talvez


132in<strong>do</strong> para o rio Amazonas). Fizeram duas aldeias em algum lugarna beira <strong>do</strong> mar e perto <strong>do</strong> lago. Kamatapirá fez uma e Ulei outra.Um rapaz sentiu saudade de sua namorada e queria encontrar comela. Ele foi rezan<strong>do</strong> pelo buraco pra chegar em sua aldeia, elecantava para não ser pica<strong>do</strong> por nenhuma cobra. Foi in<strong>do</strong> até quechegou naquela barragem, que era igual a um espelho, tentouabrir, pegou um pau e levantou a barragem, quan<strong>do</strong> então viu ocaminho, o iakunapu. Aí ele se escondeu, seguiu pelo mato paranão ser ataca<strong>do</strong> por ninguém. Chegan<strong>do</strong> na aldeia da namorada,ele se escondeu atrás de sua casa e ficou esperan<strong>do</strong>. Ele ouviu amúsica de iamurikuma que as mulheres estavam cantan<strong>do</strong> nestaaldeia a noite toda. Quan<strong>do</strong> amanheceu, uma mulher bem velha,que não podia cantar de tão velha, foi no banheiro. Quan<strong>do</strong> elavoltava de lá, ele a cercou e disse: “oi tia, vim atrás de sua filha” eela respondeu: “você não pode vir mais aqui. As mulheres estãomuito valentes, usan<strong>do</strong> flecha. Fica escondi<strong>do</strong> aí que depois eu te<strong>do</strong>u comida”. Mas o rapaz insistiu: “ô tia, fala pra sua filha vir falarcomigo” e ela respondeu: “ela tá cantan<strong>do</strong> lá no centro, mais tardeeu falo”. Ele continuou escondi<strong>do</strong> e ficou anima<strong>do</strong>. As mulherestinham corta<strong>do</strong> o peito direito para poderem usar o arco e flecha.Então a velha avisou a moça e ela deu uma desculpa pras outrascompanheiras, dizen<strong>do</strong> que estava com <strong>do</strong>r de barriga, que tinhaque sair um pouco. Quan<strong>do</strong> encontrou o rapaz, ela disse que nãopodia ir embora com ele. Então ele pediu um colar de lembrança eela disse que não podia dar, que era colar de iamurikuma, quesuas amigas iam procurar o colar depois. A moça falou pra eleesperar ali no mato, escondi<strong>do</strong>, que ela iria arrumar mais materialpara fazer colar, que lá no mar tinha muito e que na noite seguinteela voltaria pra eles irem junt<strong>os</strong> pegar o material. À noite a velhafoi chamar rapaz, lá pelas onze horas a moça deu uma desculpaque estava <strong>do</strong>ente e que ia <strong>do</strong>rmir. Lá pelas quatro horas damadrugada ela encontrou com as amigas que estavam in<strong>do</strong> tomarbanho para elas não irem procurar por ela. As mulheres estavam


133cantan<strong>do</strong> “teruia, teruia, niianaku”, “eu vou banhar na lagoagrande”. Ela avisou as amigas que ela ia caçar, que ela tinha fica<strong>do</strong>menstruada e não podia ficar com elas. Pegou a flecha e foi com onamora<strong>do</strong> até a lagoa onde ia fazer o colar. Pegaram pedrinha efizeram muito... Lá pelas onze horas da manhã, a moça falou parairem embora, senão as outras mulheres iriam atrás pra procurarpor ela. Assim que voltaram, ela foi cantar com as amigas e eleficou escondi<strong>do</strong>. Lá pelas sete horas ela deu desculpa que estavacansada e voltou pra ficar com o namora<strong>do</strong>. Ele ficou tentan<strong>do</strong>convencer a moça para ela ir embora com ele, mas ela recusou edisse que não podia ir. Ela avisou o rapaz que iria ter uma caçada eque era melhor ele ir embora. A moça deu flecha, cocar, pena degavião, muit<strong>os</strong> presentes para ele, fez também beiju e deu pra elelevar. Quan<strong>do</strong> era uma hora da madrugada, ele foi embora. Elaexplicou pra ele que ele deveria jogar grama em baixo dabarragem e voltar pelo buraco de onde tinha vin<strong>do</strong>. Ele fez o queela disse e saiu pelo buraco em uma aldeia, depois em outra, atéque chegou na sua aldeia. Ele encontrou <strong>os</strong> homens sozinh<strong>os</strong> eentão contou o que tinha aconteci<strong>do</strong> com as mulheres, que elasestavam muito bravas, muito valentes e que não dava pra ir atrásdelas mais. Os homens estavam preocupad<strong>os</strong> com <strong>os</strong> menin<strong>os</strong>passan<strong>do</strong> fome. Então resolveram ir em outras aldeias caçarmulheres para casar. Daí eles foram, casaram e trouxeram elaspara a aldeia pra criar <strong>os</strong> filh<strong>os</strong> deles.”> |


134estas versões, <strong>os</strong> homens saíram para pescar porque estava para aconteceruma festa de iniciação d<strong>os</strong> menin<strong>os</strong>, a “furação de orelha” (conhecida <strong>entre</strong> <strong>os</strong><strong>Wauja</strong> por pohoká). Como ocorre antes de grandes festas intertribais, umagrande pescaria é organizada para que se p<strong>os</strong>sa alimentar tod<strong>os</strong> <strong>os</strong>participantes, as pessoas da aldeia e <strong>os</strong> convidad<strong>os</strong>. Além disso, o fato dehaver uma festa de iniciação masculina leva a crer que havia menin<strong>os</strong>“reclus<strong>os</strong>” na aldeia (<strong>os</strong> atagiuwekeho), que portanto não foram à pescaria, oque explica porque Kamatapirá está junto às mulheres. Note-se que estesreclus<strong>os</strong> se encontram em uma fase de transição, assim como <strong>os</strong> haukenejo,que se pode chamar de liminar (cf. Turner, 1982): trata-se de um momentoperig<strong>os</strong>o e importante da vida que é a passagem da vida de menino (que vivepróximo à mãe e ao mun<strong>do</strong> das mulheres) para a de homem 158 .Através da narrativa de Iutá, tu<strong>do</strong> se inicia na mais perfeitanormalidade: o chefe, como de c<strong>os</strong>tume, convoca <strong>os</strong> homens para umapescaria coletiva, atividade que sempre antecede as festas. Antes da pescaria,as mulheres vão cuidar da mandioca, preparar o beijú que seus marid<strong>os</strong>levarão para o acampamento de pesca. Seguin<strong>do</strong> as normas, <strong>os</strong> reclus<strong>os</strong> nãoforam pescar, e ficam junto às suas esp<strong>os</strong>as ou mães. No entanto, após ademora excessiva d<strong>os</strong> homens e insatisfação geral de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> esfomead<strong>os</strong> queficaram na aldeia, um d<strong>os</strong> reclus<strong>os</strong>, a man<strong>do</strong> das mulheres, sai de seuresguar<strong>do</strong> para investigar o que estaria acontecen<strong>do</strong>. Da ruptura primeira, aquebra, por parte d<strong>os</strong> homens, <strong>do</strong> acor<strong>do</strong> de retornar para a aldeia com peixeapós cinco dias, advém todas as demais rupturas e transgressões expressas nomito. Na verdade, a quebra desta regra expressa uma dupla transgressão: <strong>os</strong>homens rompen<strong>do</strong> o acor<strong>do</strong> e o recluso sain<strong>do</strong> da reclusão. Aqui se encontra omotor inicial desta narrativa mítica, o fato gera<strong>do</strong>r de to<strong>do</strong> um conjunto deconseqüências, como o surgimento das iamurikuma: a quebra de reciprocidade,158 Para o mito <strong>Wauja</strong> que trata da gênese deste ritual de iniciação masculina, veja oM9, Kamukuwaka, n<strong>os</strong> anex<strong>os</strong>. Há interpretações diferentes para <strong>os</strong> significad<strong>os</strong> destetipo de rito de passagem. Se Gregor aproxima a furação de orelha Mehináku àmenstruação e a símbol<strong>os</strong> feminin<strong>os</strong> (1985), Barcel<strong>os</strong> Neto acredita que o pohoka<strong>Wauja</strong> é o ritual de confirmação da p<strong>os</strong>se de uma “substância” que diferenciaria <strong>os</strong>“nobres” das pessoas comuns (2004:241). Para o caso d<strong>os</strong> Matipú, ver Veras (2000).Segun<strong>do</strong> DaMatta, a liminaridade d<strong>os</strong> rit<strong>os</strong> de passagem está ligada à ambigüidadegerada pelo isolamento e pela individualização d<strong>os</strong> noviç<strong>os</strong>, é portanto “a experiência deestar fora-<strong>do</strong>-mun<strong>do</strong> que engendra e marca <strong>os</strong> estad<strong>os</strong> liminares, não o op<strong>os</strong>to”(DaMatta, 2000:23).


feita pel<strong>os</strong> homens, é o princípio de to<strong>do</strong> este universo mítico-ritual, está naorigem <strong>do</strong> complexo iamurikuma-kawoká.135Menezes Bast<strong>os</strong> identifica o tempo primordial <strong>do</strong> ritual xinguano em ummun<strong>do</strong> <strong>do</strong> “ócio amor<strong>os</strong>o”, cujo “efetivo princípio se dá com a separação (sexo)<strong>entre</strong> homens e mulheres, <strong>entre</strong> céu e terra, separação esta que instala amáquina primordial <strong>do</strong> engo<strong>do</strong> e <strong>do</strong> “cruzamento”, a máquina <strong>do</strong> neg-Ócio”. Oprincípio é, desta forma, instituí<strong>do</strong> e “defini<strong>do</strong> pela instalação da relaçãoCompra/Venda” (1990:573). O comércio, o desejo, o roubo, a inveja, o ciúme,enfim, tu<strong>do</strong> aquilo que movimenta a reciprocidade, instauran<strong>do</strong>-a ou negan<strong>do</strong>a,surge então 159 .Só mesmo um atagiuwekeho, em seu esta<strong>do</strong> de masculinidadesuspensa, poderia trafegar n<strong>os</strong> <strong>do</strong>is univers<strong>os</strong> de gênero: sair da companhiadas mulherespa ra ir ao acampamento de pesca d<strong>os</strong> homens. Kamatapirá, oatagiuwekeho filho <strong>do</strong> chefe, faz a mediação <strong>entre</strong> homens e mulheres. Vem<strong>os</strong>,em outras narrativas xinguanas que pessoas em esta<strong>do</strong> de suspensão de suascapacidades reprodutivas, jovens reclus<strong>os</strong> ou mulheres velhas que nãomenstruam mais, geralmente fazem este papel de intermediação. Lembro aindaque o pajé, aquele que transita <strong>entre</strong> human<strong>os</strong> e apapaatai, também sofre umasuspensão semelhante, na medida em que deve se abster de sexo durante operío<strong>do</strong> em que realiza pajelança para que sua atividade tenha sucesso, paraque ele não se exponha, através d<strong>os</strong> o<strong>do</strong>res que a atividade sexual fatalmentelhe trará, frente a<strong>os</strong> espírit<strong>os</strong> que visitará em sua jornada xamânica.Bem, mas o que teria aconteci<strong>do</strong> com <strong>os</strong> homens para ocorrer suatransformação em apapaatai, para que fizessem máscaras que <strong>os</strong>transformassem em monstr<strong>os</strong> devora<strong>do</strong>res? O único da<strong>do</strong> de que dispom<strong>os</strong> é otemporal, ou seja, <strong>os</strong> homens ficaram ausentes mais tempo <strong>do</strong> que deveriam.Se por um la<strong>do</strong> houve um distanciamento prolonga<strong>do</strong> <strong>entre</strong> homens emulheres, a permanência exclusiva d<strong>os</strong> homens <strong>entre</strong> si foi excessiva. De umla<strong>do</strong>, uma falta, de outro, um excesso. Há um tênue fio que une homens emulheres, teci<strong>do</strong> por regras e acord<strong>os</strong> que não prevêem transgressões ouquebras. A demora d<strong>os</strong> homens acarretou não somente a falta <strong>do</strong> alimento,159 Este ponto será melhor observa<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> discutirei as imbricações <strong>entre</strong> relações degênero e política no contexto ritual, nas considerações finais.


136mas igualmente a de sexo: ao ficarem muito tempo longe das mulheres,interrompe-se o fluxo normal das atividades sexuais e reprodutivas, geran<strong>do</strong> aomesmo tempo acúmulo e falta. A quebra <strong>do</strong> fluxo de circulação de sêmen e depeixe se m<strong>os</strong>tra nefasta sobre vári<strong>os</strong> aspect<strong>os</strong>: a acumulação (contrapartida daquebra <strong>do</strong> fluxo), um d<strong>os</strong> pont<strong>os</strong> nevrálgic<strong>os</strong> em uma sociedade que prevê aconstante circulação de bens e serviç<strong>os</strong>, é sempre vista como o excesso que secontrapõe à falta, como uma atitude des-humanizante que, portanto, é capazde transformar human<strong>os</strong> em “monstr<strong>os</strong>”. Lembro que na ética xinguana, aacumulação é motivo de acusação de feitiçaria. A quebra <strong>do</strong> fluxo se dátambém na incapacidade d<strong>os</strong> homens em contribuir para a iniciação d<strong>os</strong>menin<strong>os</strong> na vida adulta. Ao deixar de retornar para a aldeia com peixe, <strong>os</strong>homens não cooperaram de mo<strong>do</strong> algum para a reprodução social 160 .Já as mulheres, ao descobrirem através de Kamatapirá, o que estavaacontecen<strong>do</strong> com <strong>os</strong> homens, que eles estariam fazen<strong>do</strong> e usan<strong>do</strong> máscarasque <strong>os</strong> transformariam em monstr<strong>os</strong>, resolvem também empreender umamudança radical e, para tanto, ao invés de fazerem máscaras, como <strong>os</strong>homens, comem frut<strong>os</strong> transforma<strong>do</strong>res, e cantam noite e dia as músicas <strong>do</strong>apapaatai iamurikuma. Importante salientar que em to<strong>do</strong> o Alto <strong>Xingu</strong> não éobservada a ingestão de enteógen<strong>os</strong>, nem mesmo de bebidas fermentadas comalgum teor alcoólico, tal ingestão fican<strong>do</strong> circunscrita, portanto, no plano <strong>do</strong>aunaki. A conjunção <strong>entre</strong> plantas transforma<strong>do</strong>ras e música opera atransformação que dará início à viagem catabática 161 que as mulheres irãoempreender.Diferentemente d<strong>os</strong> homens, o papel transforma<strong>do</strong>r da máscara <strong>entre</strong> asmulheres é exerci<strong>do</strong> pela música e plantas. Os homens p<strong>os</strong>suem máscaras eflautas para a realização de rituais n<strong>os</strong> quais há uma aproximação perig<strong>os</strong>a etransforma<strong>do</strong>ra em relação a<strong>os</strong> apapaatai. As mulheres, sem flautas emáscaras, p<strong>os</strong>suem as canções iamurikuma. Lembro da já mencionadaequivalência <strong>entre</strong> música e máscaras (cf. Lévi-Strauss, 1991:36).160 No yawari, tu<strong>do</strong> isto aponta para a precariedade <strong>do</strong> contrato social e para umasaudade insuportável <strong>do</strong> “tempo” <strong>do</strong> ócio amor<strong>os</strong>o, onde a reprodução não é motor (cf.Menezes Bast<strong>os</strong>, 1990).161 Catábase no senti<strong>do</strong> de uma viagem ao subterrâneo, de exploração d<strong>os</strong> limites dasociedade (cf. Serra, 2004).


137Músicas e máscaras, no contexto ritual, são instrument<strong>os</strong> de ativaçãod<strong>os</strong> poderes d<strong>os</strong> apapaatai. Desta forma, as mulheres criam a música deiamurikuma enquanto desejam separar-se d<strong>os</strong> homens, decepcionadas com aquebra <strong>do</strong> acor<strong>do</strong> inicial 162 . Apesar de não usarem máscaras, seus a<strong>do</strong>rn<strong>os</strong>corporais são investid<strong>os</strong> de uma simbólica de vetor troca<strong>do</strong>: passam a sea<strong>do</strong>rnar como homens. Não creio que se trata meramente de assumir umaidentidade masculina, mas muito mais de realçar a extensão da mudança, oquão sensível era sua situação e irreparável sua nova condição. Ou seja, asmulheres iamurikuma, a<strong>do</strong>rnadas qual homens, como que transformadasatravés de máscaras, deixaram de ser mulheres e se transformaram emapapaatai. Com isto, no entanto, não se aproximam de um esta<strong>do</strong> demasculinidade, mas assumem uma p<strong>os</strong>ição simbolicamente perig<strong>os</strong>a: aquela deuma ambigüidade sexual (McCallum, 1994; Basso, 1987b) ou hipersexualidade(cf. Frachetto, 1986). O ambíguo de não ser mais mulher nem homem, oencontro <strong>do</strong> masculino e <strong>do</strong> feminino em um único ser: tal fato é, porexcelência, uma p<strong>os</strong>sibilidade exclusiva <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> d<strong>os</strong> apapaatai. 163Para seguirem em sua empreitada, primeiramente as mulheres cortamgrandes árvores com a finalidade de fazerem grandes pilões que servirão deprisão temporária para seus pequen<strong>os</strong> filh<strong>os</strong> homens. Este anaweke, “grandepilão”, objeto central <strong>do</strong> ritual de iamurikuma que acompanhei em 2001,carrega também a marca de uma transformação: nele faz-se o processamentoda farinha e há a mistura de substâncias cruas que, cozidas, servirão dealimento. De forma homóloga, <strong>os</strong> garot<strong>os</strong>, homens inconclus<strong>os</strong>, disp<strong>os</strong>t<strong>os</strong> nopilão qual alimento cru aguardan<strong>do</strong> sua transformação, acabam encruad<strong>os</strong> pelatraição de seus pais. As mulheres, desg<strong>os</strong>t<strong>os</strong>as, desapontadas, e acima de tu<strong>do</strong>esfomeadas (de sexo e de peixe), aban<strong>do</strong>nam seus filh<strong>os</strong> menin<strong>os</strong> dentro d<strong>os</strong>pilões, levan<strong>do</strong> consigo apenas as meninas e <strong>do</strong>is rapazes, Kamatapirá e Ulei,que abrirão o caminho da jornada, um caminho subterrâneo, infernal.162 Este tipo de reação musical das mulheres frente à quebra da reciprocidade por parted<strong>os</strong> homens é recorrente no mun<strong>do</strong> ameríndio. Por exemplo, as mulheres Kulina,através d<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> d<strong>os</strong>ehe, expressam seu descontentamento quan<strong>do</strong> <strong>os</strong> homens nãotrazem alimento (Bueno da Silva, 1998).163 De forma semelhante, um homem xinguano totalmente paramenta<strong>do</strong> pode serinterpreta<strong>do</strong> como um ícone <strong>do</strong> feminino (Gregor 1985:189). Unin<strong>do</strong> o feminino e omasculino, o homem integralmente paramenta<strong>do</strong> para rituais com kawoka estáassocia<strong>do</strong> ao perig<strong>os</strong>o mun<strong>do</strong> d<strong>os</strong> apapaatai.


138Depois que Kamatapirá e Ulei cantam e dançam, enlouquecid<strong>os</strong> pelamúsica e pelas ervas, as mulheres vão buscar opukakala da casa deKamatapirá, ou seja, uma série de objet<strong>os</strong>: a máscara de tatu canastra que eleviria a usar, as pás de beijú para cavar o caminho, e um cesto grande de palhaque foi coloca<strong>do</strong> nas c<strong>os</strong>tas <strong>do</strong> ex-recluso. Todas seguem sempre cantan<strong>do</strong>:napikapa eheia (“eu estou fican<strong>do</strong> louca”). Segun<strong>do</strong> Tupanumaká, asiamurikuma, na parte <strong>do</strong> rito em que cantam esta canção, diferentemente <strong>do</strong>que ocorre em outras, não estão tratan<strong>do</strong> d<strong>os</strong> homens, mas de si mesmas, desua transformação. São justamente as cantoras as responsáveis por cuidar daretaguarda da comitiva: ficam por último para reafirmar seu rechaço a<strong>os</strong>homens e para criar as barreiras que desencorajam a tentativa de perseguiçãopor parte destes. Tu<strong>do</strong> o que p<strong>os</strong>sa machucar e, principalmente, que p<strong>os</strong>suaveneno, é coloca<strong>do</strong> pelas mulheres na entrada <strong>do</strong> buraco para que a separaçã<strong>os</strong>eja definitiva.Desapontadas e raiv<strong>os</strong>as, elas vão embora cantan<strong>do</strong>, fican<strong>do</strong> para <strong>os</strong>homens a saudade das mulheres, e <strong>os</strong> menin<strong>os</strong> para criar.A partir de então, uma nova etapa se segue, a da viagem propriamente,das decidas às profundezas, das subidas a outras aldeias e alistament<strong>os</strong> dehomens e mulheres ao longo <strong>do</strong> caminho. Mais uma vez Kamatapirá assumeimportante papel, agora o de mensageiro, waká, aquele que vai à frente. Eletem a missão de avisar <strong>os</strong> habitantes das aldeias que as iamurikuma estãochegan<strong>do</strong> e que ninguém deve olhar para elas, sob pena de serem capturad<strong>os</strong>.Aqueles que se tornam cativ<strong>os</strong> delas, homens ou mulheres, passam a noitedançan<strong>do</strong> e cantan<strong>do</strong> com elas e, de dia, as acompanham em sua viagem pel<strong>os</strong>ubterrâneo.Nas narrativas míticas <strong>Wauja</strong> sempre há menção a lugares conhecid<strong>os</strong>,locais da re<strong>do</strong>ndeza, servin<strong>do</strong> como pont<strong>os</strong> marca<strong>do</strong>res espaciais 164 . Nestecaso, vem<strong>os</strong> o ietowaká, uma lagoa considerada enfeitiçada à qual ninguém searrisca a ir a não ser para coletar ieripaná, matéria prima para o sapalaku,“cordão perineal”. E também o lugar onde afirmam haver muito topépo, barrovermelho utiliza<strong>do</strong> na pintura de panelas, também visita<strong>do</strong> pelas iamurikuma.164 Trata-se de uma característica presente em muit<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> ameríndi<strong>os</strong>, como o dacobra-canoa (S. Hugh-Jones, 1979; Piedade, 1997). O caráter topográfico nestes mit<strong>os</strong>cria um vínculo geográfico que confere ver<strong>os</strong>similhança ao mito.


De mo<strong>do</strong> geral, as matérias-primas que <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> utilizam em seus objet<strong>os</strong>estão sempre enredadas com uma dimensão que envolve <strong>os</strong> apapaatai. Estessão vist<strong>os</strong> como “<strong>do</strong>n<strong>os</strong>” d<strong>os</strong> objet<strong>os</strong>, assim como podem ser <strong>os</strong> verdadeir<strong>os</strong>produtores d<strong>os</strong> materiais, como no caso deste barro que <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> usam parafazer cerâmica e que corresponde precisamente às fezes da cobra kamaluhay(ver Mello, 1999:210), dep<strong>os</strong>itadas no fun<strong>do</strong> de uma lagoa próxima à aldeiaPiulaga. As localidades referidas no mito guardam uma ligação especial com omun<strong>do</strong> feminino e igualmente com o d<strong>os</strong> apapaatai.139Kamatapirá, seguin<strong>do</strong> sua missão de líder, pede a Ulei que cave novoburaco no intuito de levar de volta as pessoas das outras aldeias, enquanto eleseguiria adiante com as mulheres de seu próprio grupo. Haviam chega<strong>do</strong> no fim<strong>do</strong> céu, enutaku, “local <strong>do</strong> céu”. Curi<strong>os</strong>o notar que uma incursão n<strong>os</strong>ubterrâneo pudesse chegar ao fim <strong>do</strong> céu 165 . Mas não apenas chegaram a esteponto como atravessaram o enutaku, chegan<strong>do</strong> ao iakunapu, o caminho d<strong>os</strong>mort<strong>os</strong> 166 . Há aqui um movimento para<strong>do</strong>xal de descida que leva às alturas.Vem<strong>os</strong>, portanto, esvaecida a idéia ocidental de localizar a aldeia d<strong>os</strong> mort<strong>os</strong>n<strong>os</strong> in-fernus, estan<strong>do</strong> assim alocadas <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, n<strong>os</strong> supernus 167 . Paramarcar a passagem de uma dimensão a outra, as iamurikuma colocaram umabarragem <strong>entre</strong> o fim <strong>do</strong> céu e o caminho d<strong>os</strong> mort<strong>os</strong>, barragem parecida comum espelho. Talvez o espelho aponte também para a inversão que a aldeia d<strong>os</strong>mort<strong>os</strong> representa em relação à aldeia d<strong>os</strong> viv<strong>os</strong>, como que espelhan<strong>do</strong> omun<strong>do</strong> conheci<strong>do</strong>, mas às avessas. Kamatapirá e Ulei estabelecem duasaldeias, a da lagoa e a <strong>do</strong> grande mar. É p<strong>os</strong>sível que estas duas aldeiasapareçam neste momento como “prova” de que <strong>do</strong>is grup<strong>os</strong> human<strong>os</strong>, ouquase human<strong>os</strong>, vêm a ser o número mínimo imagina<strong>do</strong> para qualquerexistência social, mesmo no além mun<strong>do</strong>.Novamente um personagem masculino surge: um rapaz com saudade desua namorada que partiu com as iamurikuma. Ele então empreende sua viagemdantesca à procura da amada. Vai a<strong>os</strong> infern<strong>os</strong>, segue no caminho d<strong>os</strong> mort<strong>os</strong> e165 Na representação <strong>do</strong> c<strong>os</strong>mo <strong>Wauja</strong> a aldeia d<strong>os</strong> mort<strong>os</strong> está no céu, é a yuejokupohocujo acesso é feito por uma escada, mapi’ya.166 Há uma descrição desta dimensão cósmica, acompanhada de desenho, feit<strong>os</strong> porItsautaku em Piedade (2004:60).167 A etimologia da palavra “subir”, em português, aponta para o latim sub-ire como “irde baixo para cima”. Curi<strong>os</strong>amente, na língua latina esta palavra quer dizer “ir parabaixo de algo”, sub-ire (ver Lewis, Short & Freund, 1979).


140acaba encontran<strong>do</strong> a aldeia das iamurikuma, provavelmente atraí<strong>do</strong> pelamúsica que elas cantam a noite inteira. Para se aproximar da moça, o rapaz seutiliza de uma velha, que de tão velha não canta mais. Assim, a mulher já nãorepresenta perigo, poden<strong>do</strong> fazer o elo <strong>entre</strong> o jovem humano e a mulhertransformada em apapaatai, median<strong>do</strong> <strong>entre</strong> human<strong>os</strong> e estes. Trata-se de umpapel semelhante ao <strong>do</strong> recluso <strong>do</strong> início da história, o de levar notícias d<strong>os</strong>homens transformad<strong>os</strong> em apapaatai para as mulheres da aldeia.Como a velha ress<strong>alto</strong>u, o rapaz deveria tomar cuida<strong>do</strong>, pois as mulheresestavam muito valentes, tinham se torna<strong>do</strong> guerreiras, haviam feito até umamastectomia <strong>do</strong> seio direito para poderem manipular melhor o arco e a flecha.Ele não pareceu se importar muito com as transformações por que passou suanamorada, queria mesmo é levá-la junto consigo para sua aldeia. Como esta senegou a acompanhá-lo, ele pediu um objeto que serviria de lembrança, o colar,para aplacar sua saudade ao ir embora. Como se tratava de um colar deiamurikuma, a mulher não poderia dá-lo e sugeriu que fizessem junt<strong>os</strong> umnovo colar, cópia <strong>do</strong> original. Para poder se encontrar seguidas vezes com orapaz e poderem junt<strong>os</strong> ir até a lagoa fabricar o relicário, a moça teria quedriblar a vigilância de seu grupo. Ela inventou então vári<strong>os</strong> subterfúgi<strong>os</strong>,aqueles mesm<strong>os</strong> que, no dia a dia da aldeia, são empregad<strong>os</strong> para escapar daexcessiva vigilância a que tod<strong>os</strong> estão constantemente submetid<strong>os</strong>: <strong>do</strong>r debarriga, <strong>do</strong>ença e, no caso das mulheres, a tão temida menstruação. Com estaúltima desculpa, ela se aparta de seu grupo e diz que vai caçar, visto que,quan<strong>do</strong> menstruadas as mulheres não se banham junto com o grupo e nemcomem peixe, somente carne de caça.O mito não conta se <strong>os</strong> namorad<strong>os</strong> mantiveram relações sexuais em seusencontr<strong>os</strong>. Isto seria ilógico, <strong>do</strong> ponto de vista <strong>Wauja</strong>, pois se o rapazconseguiu atravessar o iakunapu é porque não havia o<strong>do</strong>res de sexo, casocontrário teria se torna<strong>do</strong> mais vulnerável a<strong>os</strong> apapaatai. Inclusive, o fato d<strong>os</strong>homens da aldeia <strong>do</strong> rapaz não estarem fazen<strong>do</strong> sexo (suas mulheres haviami<strong>do</strong> embora) facilitou sua incursão na aldeia das iamurikuma. Desta forma, orapaz voltou para sua aldeia, apagou <strong>os</strong> rastr<strong>os</strong> jogan<strong>do</strong> grama na barragem, ereencontrou seus companheir<strong>os</strong>. Tristes e preocupad<strong>os</strong> com <strong>os</strong> filh<strong>os</strong> passan<strong>do</strong>fome, estes homens, ao saberem que as mulheres não voltariam mais,


141resolveram se unir a mulheres de outras aldeias, no intuito de assegurarem ofuturo de tod<strong>os</strong>.Após esta narrativa, podem<strong>os</strong> concluir que este rapaz que foi e voltou é,afinal, o conhece<strong>do</strong>r <strong>do</strong> repertório de iamurikuma, pois foi ele quemtestemunhou o ritual das mulheres. P<strong>os</strong>sui<strong>do</strong>r de uma cópia <strong>do</strong> colar deiamurikuma, este rapaz ensinou <strong>os</strong> human<strong>os</strong> como se faz o ritual deiamurikuma da forma correta 168 .Segue abaixo uma relação de pont<strong>os</strong> importantes que foram arrolad<strong>os</strong> <strong>do</strong> mitode iamurikuma, alguns d<strong>os</strong> quais serão desenvolvid<strong>os</strong> ao longo deste trabalho:• quebra da reciprocidade – excesso de masculinidade – transformaçãod<strong>os</strong> homens (máscaras, apapaatai homicidas).• violação da regra da reclusão – recluso media<strong>do</strong>r.• resp<strong>os</strong>ta das mulheres: ingestão de frutas (plantas) e canto,transformação em apapaatai.• menin<strong>os</strong> no pilão: processo interrompi<strong>do</strong>.• a música, as frutas, a loucura (-pokapai, transbordamento).• catábase.• passagem por outras aldeias: arregimentação, proibição da visão.• fim <strong>do</strong> céu/aldeia d<strong>os</strong> mort<strong>os</strong> : 2 aldeias iamurikuma.• saga <strong>do</strong> rapaz: ida e volta.> |


com atribut<strong>os</strong> particulares de musicalidade humana; como a solidariedade<strong>entre</strong> membr<strong>os</strong> de um mesmo gênero pode se tornar tão exclusiva que implicana rejeição d<strong>os</strong> papéis sociais normais (op.cit:166). Creio que este ritual deveser compreendi<strong>do</strong> no âmbito <strong>do</strong> complexo iamurikuma/kawoká.142A análise deste mito n<strong>os</strong> leva ao coração deste complexo, que estárelaciona<strong>do</strong> à dualidade diferencial originária masculino-feminino, ponto fulcral<strong>do</strong> pensamento <strong>Wauja</strong> (para Héritier, 1998, a própria fundação da diferença). Oque este complexo parece destacar, além da profundidade da diferença degênero, é o alcance da quebra da reciprocidade <strong>entre</strong> homens e mulheres,levan<strong>do</strong> a uma aproximação à condição excessiva d<strong>os</strong> apapaatai. As históriasda mulher que sabia tocar flauta, <strong>do</strong> povo-abelha e <strong>do</strong> rap<strong>os</strong>o estão repletas denex<strong>os</strong> <strong>entre</strong> musicalidade e visibilidade, outro ponto fundamental <strong>do</strong> referi<strong>do</strong>complexo, presente também no mito de iamurikuma, notadamente pelacatábase das mulheres “loucas” cantantes, aliás, toca<strong>do</strong>ras das flautas d<strong>os</strong>homens: quem as olhava, qual Orfeu esqueci<strong>do</strong>, era “puni<strong>do</strong>” com suaincorporação ao grupo em sua saga até além <strong>do</strong> horizonte, o fim <strong>do</strong> céu.Masculino/feminino, transformação em apapaatai, quebra da reciprocidade,musicalidade, formas de expressar <strong>os</strong> perig<strong>os</strong><strong>os</strong> e necessári<strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong> quedespertam a socialidade: estes são <strong>os</strong> element<strong>os</strong> que entram em cena no ritualde iamurikuma, cuja descrição e análise será o tema d<strong>os</strong> próxim<strong>os</strong> capítul<strong>os</strong>.> |


143CAPÍTULO IVO <strong>Ritual</strong> de Iamurikuma - 14 de ag<strong>os</strong>to a 1 de novembro de 2001.No final da tarde <strong>do</strong> dia 14 de ag<strong>os</strong>to, três dias após n<strong>os</strong>sa chegada àaldeia, e dia seguinte <strong>do</strong> término <strong>do</strong> ritual de kaumai, algumas mulheres sereuniram no centro da aldeia, cantan<strong>do</strong> e dançan<strong>do</strong> músicas de iamurikuma.Eram cerca de dez, todas aripi, “maduras” 169 . Fui convidada a cantar junto comelas, o que foi bastante emocionante, pois eram cant<strong>os</strong> que eu já conhecia deminha estadia anterior, poden<strong>do</strong> assim efetivamente cantar junto. Neste dianão gravei <strong>os</strong> cant<strong>os</strong>, apenas dancei e cantei. Algumas das mulheres sesurpreendiam ao me ver cantan<strong>do</strong> músicas de iamurikuma, pois eu nunca haviaparticipa<strong>do</strong> deste ritual, somente grava<strong>do</strong> alguns cant<strong>os</strong> que Iutá e Kalupukume apresentaram em 1998, como demonstração da festa. De qualquer forma,causou boa impressão <strong>entre</strong> as mulheres o fato de eu conhecer um pouco seuscant<strong>os</strong>, demonstran<strong>do</strong> que estava compreenden<strong>do</strong> sua musicalidade(desenvolven<strong>do</strong> uma bi-musicalidade). Afinal, falava mal a língua <strong>Wauja</strong>, massabia cantar, o que já era algum começo 170 .As mulheres voltaram a se reunir no final de tarde de 16 e 29 de ag<strong>os</strong>to,cantan<strong>do</strong> por meia hora em cada dia. Na maioria das vezes eu só descobria queelas iriam cantar quan<strong>do</strong> já estavam cantan<strong>do</strong>. Assim, passei a manter meuequipamento de gravação sempre pronto, bem guarda<strong>do</strong> mas facilmenteacessível. Nestes dias pude, então, gravar.Apresento a seguir um relato da seqüência das atividades e,principalmente, d<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> de iamurikuma que foram executad<strong>os</strong> durante <strong>os</strong>oitenta dias de ritual. Algumas poucas seções não foram gravadas, fican<strong>do</strong>apenas o registro de seu acontecimento.169 A classificação etária feminina nativa inclui: iamukutai ou tenejotaĩ = meninapequena; mãiumekẽte = pré-a<strong>do</strong>lescente; paĩakualutai = menina reclusa; iamukutopalu= quan<strong>do</strong> sai da reclusão; memejoiyalu = jovem que não é mais virgem; ianunumona= jovem casada; aripi = madura; aripixixelumona = velha.170 Os <strong>Wauja</strong> em geral apreciavam muito quan<strong>do</strong> eu cantava suas músicas. Isto apontaa dificuldade inerente <strong>do</strong> repertório nativo, por eles mesm<strong>os</strong> reconhecida, e para orespeito que é desperta<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> ele é executa<strong>do</strong> corretamente. Trata-se de umaestética e ética <strong>do</strong> respeito e <strong>do</strong> valor da música.


144Ao final de cada dia, apresento um quadro sintético das gravações,acresci<strong>do</strong> de algumas informações e, ao final <strong>do</strong> capítulo, um quadro sintéticod<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> registrad<strong>os</strong>. A coluna da esquerda destes resum<strong>os</strong> indica o dia emês em que ocorreu a seção apresentada, também contém informações arespeito da mídia em que está gravada (minidisc numerad<strong>os</strong> ou víde<strong>os</strong>numerad<strong>os</strong>), constan<strong>do</strong> o dia <strong>do</strong> ritual, de acor<strong>do</strong> com a seqüência de 1 a 80(número total d<strong>os</strong> dias registrad<strong>os</strong> <strong>do</strong> início ao fim); a coluna seguinte indica ahora (geralmente m<strong>os</strong>tran<strong>do</strong> o início e o fim de uma seção); a terceira colunaapresenta alguma referência quanto à formação coreográfica ou movimentaçãoe número de pessoas; e a da direita m<strong>os</strong>tra a ordem em que vão sen<strong>do</strong>apresentad<strong>os</strong> <strong>os</strong> cant<strong>os</strong>, bem como uma indicação <strong>entre</strong> colchetes, [ ], daspausas efetuadas <strong>entre</strong> <strong>os</strong> conjunto de cant<strong>os</strong>. Os cant<strong>os</strong> são nomead<strong>os</strong> por I(já transcrit<strong>os</strong> no capítulo anterior) e K (aqueles que recebem o nome genéricode kawokakuma). Alguns pouc<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> foram nomead<strong>os</strong> sob uma classificaçãodistinta: <strong>os</strong> cant<strong>os</strong> de opokakala (O), e <strong>os</strong> que chamei, na falta de um rótulonativo, de repente (R), amb<strong>os</strong> guardan<strong>do</strong> características distintas, <strong>do</strong> ponto devista musical e coreográfico, d<strong>os</strong> repertóri<strong>os</strong> I e K, como será comenta<strong>do</strong>adiante. A numeração que acompanha as letras corresponde à ordem como <strong>os</strong>cant<strong>os</strong> foram apresentad<strong>os</strong>. No entanto, como não gravei a totalidade destes, ép<strong>os</strong>sível que aquilo a que estou chaman<strong>do</strong>, por exemplo, de K25, p<strong>os</strong>sa ter si<strong>do</strong>canta<strong>do</strong> antes <strong>do</strong> K10, não ten<strong>do</strong> como sabê-lo, visto que não foi registra<strong>do</strong>.Alguns cant<strong>os</strong> não foram facilmente identificad<strong>os</strong>, de mo<strong>do</strong> que estãoassinalad<strong>os</strong> com uma interrogação (?) ao la<strong>do</strong> da letra. De qualquer mo<strong>do</strong>,estou certa de que a am<strong>os</strong>tragem que apresento é bastante significativa, poisrepresenta mais de 80% <strong>do</strong> que foi canta<strong>do</strong>.Os cant<strong>os</strong> serão apresentad<strong>os</strong> na ordem de sua execução. Lembro que<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> a que chamei de I, a<strong>os</strong> quais farei referência adiante, são aqueles 6transcrit<strong>os</strong> durante a narrativa <strong>do</strong> aunaki de iamurikuma. Assim, terem<strong>os</strong> umtotal de 67 cant<strong>os</strong> transcrit<strong>os</strong>, 57 com partituras, e 10 somente texto. Nocapítulo seguinte tratarei de analisar parte destes cant<strong>os</strong> mais detidamente.Retoman<strong>do</strong>, pois, <strong>os</strong> aconteciment<strong>os</strong> d<strong>os</strong> dias 16 e 29 de ag<strong>os</strong>to, segue oquadro sintético.


145Data horário Disp<strong>os</strong>ição coreográfica Repertório Musical16/8 19:00 Bloco (com cerca de 10 I1 I2 I3 I4 I5 I6 I7 I83 o . diamulheres) no enekutaku29/816 o . dia18:00 Bloco (com cerca de 10mulheres) no enekutakuK1 K2 K3> |


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147ce<strong>do</strong>. Na tarde <strong>do</strong> dia 1 de setembro, as mulheres se reuniram novamente paracantar músicas de iamurikuma no enekutaku. O esquema coreográfico era <strong>os</strong>eguinte: as cinco cantoras principais, mulheres na faixa d<strong>os</strong> quarenta an<strong>os</strong>,perfilavam na primeira linha, sen<strong>do</strong> seguidas de três jovens a<strong>do</strong>lescentesdisp<strong>os</strong>tas ao final da primeira linha. Estas jovens estavam cuidad<strong>os</strong>amenteornamentadas, com pinturas de jenipapo nas pernas e cordões colorid<strong>os</strong>amarrad<strong>os</strong> n<strong>os</strong> joelh<strong>os</strong>. Na segunda linha, situada logo atrás da primeira,estavam mais sete mulheres, duas carregan<strong>do</strong> bebês de colo, e mais algumasmeninas, de cerca de três an<strong>os</strong>, dan<strong>do</strong>-lhes as mã<strong>os</strong> e aprenden<strong>do</strong> a dançarjuntas.Enquanto meu companheiro filmava esta tarde de 1 o de setembro e eucuidava de gravar <strong>os</strong> cant<strong>os</strong>, Tuhú, um homem de cerca de trinta e cinco an<strong>os</strong>,muito brincalhão e sempre disp<strong>os</strong>to a provocar as mulheres, resolveu fazeruma intervenção performática: seguran<strong>do</strong> um tronco de madeira no ombro,fazen<strong>do</strong> p<strong>os</strong>e de cineasta, com <strong>os</strong> joelh<strong>os</strong> flexionad<strong>os</strong>, fingiu estar filman<strong>do</strong> asiamurikuma enquanto cantavam e dançavam. Uma das mulheres não g<strong>os</strong>toudesta impertinência e saiu corren<strong>do</strong> ao seu encalço. Ele largou o tronco e fugiu,dan<strong>do</strong> risada, enquanto ela atirava sobre ele sementes e toc<strong>os</strong> de madeira queencontrava no caminho. Assim que ele sumiu atrás de uma casa, ela retornoupara seu lugar no grupo das cantoras e todas acharam muita graça. Esta cenaficou registrada em vídeo e foi motivo de muito riso quan<strong>do</strong> exibim<strong>os</strong> a<strong>entre</strong> <strong>os</strong> Kamayurá isto se dá de outra forma: somente <strong>os</strong> menin<strong>os</strong> que ainda nãotiveram relações sexuais podem recolher <strong>os</strong> peixes. A pescaria leva de <strong>do</strong>is a quatrodias, e <strong>os</strong> peixes são moquead<strong>os</strong> já no acampamento. Contu<strong>do</strong>, esta modalidade depesca é evitada pel<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, pois eles dizem que ela acaba por matar peixes miúd<strong>os</strong>,diminuin<strong>do</strong> assim a fartura de futuras pescarias.


148gravação para o pessoal assistir: pediram para repetir várias vezes. Este tipode joc<strong>os</strong>idade, que não ocorre na vida cotidiana, permeou to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> <strong>do</strong>ritual, mesmo durante suas pausas.Data horário Disp<strong>os</strong>ição coreográfica Repertório Musical1/9 - 18:00 Mulheres em Bloco no K5 K6 K7 K8vídeo 319 o . diaenekutaku> |


149Mais tarde na madrugada, outras mulheres se juntaram ao grupo emantiveram a mesma divisão: da metade de Kalupuku para sua esquerda todasgiravam pelo la<strong>do</strong> direito, e da metade de Katsiparu para sua direita, todasgiravam pelo la<strong>do</strong> esquer<strong>do</strong>.Kaomo, principal flautista e incentiva<strong>do</strong>r das práticas musicais dasmulheres, estava presente, sentan<strong>do</strong> em frente ao pequeno fogo que fizerampara se aquecer. Por várias vezes, nas pausas das sessões de canto, estehomem passou instruções orais <strong>do</strong> repertório de kawoká para Kalupuku,cantan<strong>do</strong> muito baixinho temas de flauta que seriam convertid<strong>os</strong> para voz.Seus vocalizes, utilizan<strong>do</strong> as sílabas ne - ri - pe, eram memorizad<strong>os</strong> pelacantora e se transformavam no repertório que <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> chamam dekawokakuma, a música das flautas kawoká em sua versão vocal, que era orepertório daquela noite. Aqui são utilizadas extensivamente as palavras ehakuhaha, palavras sem nenhum significa<strong>do</strong> aparente, empregadas na“tradução” 172 da música das flautas para o repertório vocal da “híper–kawoka” 173 .172 Segun<strong>do</strong> Franchetto (comunicação pessoal), <strong>os</strong> Kuikuro têm uma palavra específicapara indicar a tradução da música instrumental em música vocal: angahokogotsie. Entre<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> a palavra utilizada parece ser asateheneĩ, que tanto pode significar “revelar”quanto “m<strong>os</strong>trar” e/ou “traduzir”.173 Seguin<strong>do</strong> as explicações <strong>do</strong> Capítulo II sobre o uso <strong>do</strong> sufixo modifica<strong>do</strong>r kuma,poderíam<strong>os</strong> pensar o repertório de kawokakuma como uma derivação daquele dasflautas kawoká de acor<strong>do</strong> com a segunda p<strong>os</strong>sibilidade de uso deste sufixo, um “outro”kawoká. Ou ainda, se pensarm<strong>os</strong> na mitologia que apresenta as mulheres comoprimeiras “<strong>do</strong>nas” das flautas (M4 <strong>do</strong> capítulo III), a primeira forma de uso poderiafazer mais senti<strong>do</strong>, visto que indica não propriamente uma exterioridade frente a umaessência kawoká, mas talvez um excesso em relação às flautas. O sufixo kuma, “parececondensar <strong>os</strong> <strong>do</strong>is significad<strong>os</strong> contraditóri<strong>os</strong> <strong>do</strong> modifica<strong>do</strong>r: ele indica diferente, mastambém arquetípico. O Outro é o Próprio, e vice-versa” (Viveir<strong>os</strong> de Castro 2002:31). Éinteressante notar que kawokakuma está em forma masculina, <strong>do</strong> contrário seria


150Perto das três horas da manhã Pakairu juntou-se ao grupo,p<strong>os</strong>icionan<strong>do</strong>-se ao la<strong>do</strong> de Iauru. Após algumas sessões de vinte minut<strong>os</strong>, emque cantaram quatro a cinco canções diferentes, as três cantoras tiraram seuscocares e continuaram a cantar, agora desenvolven<strong>do</strong> uma nova coreografia:deram <strong>os</strong> braç<strong>os</strong> umas às outras e, assim <strong>entre</strong>laçadas, se projetaram parafrente e para trás sem virar, dan<strong>do</strong> quatro pass<strong>os</strong> para frente e, de c<strong>os</strong>tas,quatro para trás. Quan<strong>do</strong> a manhã se aproximava, já haven<strong>do</strong> um pequenofluxo de pessoas in<strong>do</strong> se banhar no rio, a estas cantoras incorporaram-seoutras, forman<strong>do</strong> um grupo que encerrou a performance com um canto deiamurikuma, moment<strong>os</strong> antes <strong>do</strong> nascer <strong>do</strong> sol.Data horário Disp<strong>os</strong>ição coreográfica Repertório Musical2/9 1:30 até6:00víde<strong>os</strong>3,4,5, 620 o . diaBloco no centro da aldeia. K9 K10 K11 K12 [ ]K13 K14 K15 [ ] K16K17 [ ] K18 K19 [ ] K20K21 K22 K23 K24 K25K26 [ ] K27 K28 K29 [ ]K30 K31 K32 K33 K34[ ] K35 K36 K37 K38K39 K40> |


151então, recuava de marcha a ré [ver quadro <strong>do</strong> deslocamento das jovens,abaixo].Todas cantaram, sob um sol escaldante, à espera d<strong>os</strong> homens que deveriamestar chegan<strong>do</strong> da pescaria. Esta performance durou cerca de uma hora,durante a qual repetiram o mesmo canto.[P<strong>os</strong>ição inicial][Deslocamento das jovens]Data horário Disp<strong>os</strong>ição coreográfica Repertório Musical2/9vídeo 320 o . dia11:00 Bloco no centro da aldeia - K41Grande grupo


152Meninas a<strong>do</strong>lescentes paramentadas para o iamurikuma durante uma pausa.> |


153para “representarem” este apapaatai para <strong>os</strong> <strong>do</strong>entes 174 . Estes homens setornaram <strong>do</strong>n<strong>os</strong> d<strong>os</strong> anaweke, pilões de madeira que p<strong>os</strong>suíam tamanho bemmaior que <strong>os</strong> demais da aldeia. Estes anaweke foram feit<strong>os</strong> especialmente paraeles naquela época em um ritual de iamurikuma, e desta forma, <strong>os</strong> <strong>do</strong>n<strong>os</strong> d<strong>os</strong>pilões tornaram-se também “<strong>do</strong>n<strong>os</strong>-de-iamurikuma”, iamurikumawekeho. Estarelação <strong>entre</strong> a pessoa <strong>do</strong> kawokalamona, o ex-<strong>do</strong>ente iamurikumawekeho, e oapapaatai iamurikuma, obriga o segun<strong>do</strong> sempre a promover festas para oúltimo, além de alimentar periodicamente o primeiro, no senti<strong>do</strong> de, atravésdele, estar agradan<strong>do</strong> e alimentan<strong>do</strong> o apapaatai, seu exigente alia<strong>do</strong>. Ou seja,as mulheres kawokalamona receberam alimento (peixe) d<strong>os</strong> respectiv<strong>os</strong> <strong>do</strong>n<strong>os</strong>de-iamurikuma,que estavam promoven<strong>do</strong> uma festa de iamurikuma. Assim, asmulheres que tomaram a palavra no enekutaku, estavam lembran<strong>do</strong> <strong>os</strong> <strong>do</strong>n<strong>os</strong>de-iamurikumade suas obrigações rituais. Falan<strong>do</strong> de forma entoada, nomesmo estilo utiliza<strong>do</strong> por Ulusã quan<strong>do</strong> exortou <strong>os</strong> homens para a pescaria,elas foram, uma a uma, convocan<strong>do</strong> seus respectiv<strong>os</strong> iamurikumawekeho.Estes, por sua vez, foram responden<strong>do</strong>, cada qual de frente para a mulher queo chamou, no mesmo tom ritualístico da fala <strong>do</strong> dia anterior. A queima d<strong>os</strong>anaweke deveria acontecer dentro <strong>do</strong> ritual de iamurikuma e a fala dasmulheres novamente lembrava-lhes seu compromisso de fornecer comida, nocentro da aldeia, durante to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> da festa.O que estava ocorren<strong>do</strong> era, portanto, um iamurikuma intratribal,inseri<strong>do</strong> em um contexto ritual de longo prazo, visto que se relacionava àqueima d<strong>os</strong> pilões, anaweke, feit<strong>os</strong> há aproximadamente quinze an<strong>os</strong>. Estes,por sua vez, já eram parte de uma relação de reciprocidade <strong>entre</strong> <strong>os</strong> homens, opróprio apapaatai e as mulheres que, então, haviam feito <strong>os</strong> pilões e tambémuma festa. Desta forma, toda uma rede de prestações e pagament<strong>os</strong> estavaoperan<strong>do</strong> ali nesta versão intratribal <strong>do</strong> iamurikuma.Apesar de não haver visitantes de outras aldeias, pude notar um aspectointertribal <strong>do</strong> ritual que transpareceu em vári<strong>os</strong> moment<strong>os</strong>: a subdivisão <strong>do</strong>grupo das mulheres em <strong>do</strong>is, três, quatro ou mais sub-grup<strong>os</strong>, cantan<strong>do</strong> edançan<strong>do</strong> músicas totalmente distintas, ou ainda, a formação de <strong>do</strong>is grup<strong>os</strong>para o kapi, as “lutas corporais”. Parece-me que esta subdivisão é feita para174 Conforme o Capítulo II, para a relação <strong>entre</strong> o <strong>do</strong>ente e seu kawokalamona.


154constituir uma alegoria <strong>do</strong> grupo visitante, para desempenhar o papel,necessário, no ritual, <strong>do</strong> “outro”.O dia 4 de setembro foi uma destas ocasiões de subdivisão. Neste dia,por volta das 18 horas, as mulheres se reuniram no enekutaku para cantar edançar em três grup<strong>os</strong> distint<strong>os</strong>: umde jovens a<strong>do</strong>lescentes, outro com asprincipais cantoras e um terceiro,comp<strong>os</strong>to pelas mulheres d<strong>os</strong> chefes edescendentes. Apesar de caracterizarcada grupo desta forma, havia, noentanto, aquelas que não eramcantoras principais no segun<strong>do</strong> grupo,bem como pessoas não relacionadasdiretamente às mulheres mais velhas<strong>do</strong> terceiro grupo, sen<strong>do</strong> estasubdivisão algo provisória. Por razõesóbvias, não pude gravar tod<strong>os</strong> <strong>os</strong>grup<strong>os</strong> que se apresentaramsimultaneamente, fican<strong>do</strong> aqui bem evidentes as limitações <strong>do</strong> que podem<strong>os</strong>apreender em um evento de tais proporções.Depois d<strong>os</strong> três grup<strong>os</strong> cantarem e dançarem ao mesmo tempo, emdiferentes direções <strong>do</strong> pátio da aldeia, durante quarenta minut<strong>os</strong>, todas asmulheres se juntaram em uma nova coreografia com o canto de teme, “anta”.A coreografia consistiu de uma procissão, com as mulheres p<strong>os</strong>icionan<strong>do</strong> suamão esquerda sobre o ombro da companheira à frente e movimentan<strong>do</strong> o braçodireito em movimento pendular na altura da cintura. A primeira mulher <strong>do</strong>grupo se apoiava em um caja<strong>do</strong>, e mantinha suas c<strong>os</strong>tas curvadas para frente,fazen<strong>do</strong>-se de aripixelu (muito velha). Todas usavam um pedaço de palha, oufibra de alguma planta, como uma guirlanda sobre a testa, e entraram na casade cada um d<strong>os</strong> cinco “<strong>do</strong>n<strong>os</strong>” de pilão. A fila percorreu uma vez cada casafazen<strong>do</strong> um círculo em volta <strong>do</strong> esteio central no senti<strong>do</strong> anti-horário. Duranteto<strong>do</strong> o tempo da coreografia de teme, as mulheres cantaram a mesma música.


155Data horário Disp<strong>os</strong>ição coreográfica Repertório Musical4/9K39 K42 K43 I 9 I 10md 122 o .dia18:00 3 Bloc<strong>os</strong> no centro da aldeia,voltad<strong>os</strong> para direçõesdiferentes.- em fila indianaI 11 música de teme(anta)> | |


156Antes de apresentar estes cant<strong>os</strong>, contu<strong>do</strong>, devo esclarecer que por setratar de um ritual que contém um repertório musical muito extenso, comp<strong>os</strong>topor quase 200 cant<strong>os</strong> diferentes, a transcrição e análise de sua totalidade seriaum trabalho que iria além d<strong>os</strong> limites desta tese. Para a presente investigação,julguei adequa<strong>do</strong> selecionar uma parte significativa <strong>do</strong> repertório, no senti<strong>do</strong> deapontar para o sistema musical em funcionamento no ritual. Escolhi paratranscrever aqui o repertório canta<strong>do</strong> durante um final de tarde típico, conten<strong>do</strong>uma série de 23 canções de kawokakuma, das quais consegui traduções eexegeses. Outr<strong>os</strong> 10 cant<strong>os</strong> que obtive tradução também serão apresentad<strong>os</strong>,porém somente em sua forma textual, sem transcrição musical. Também seráapresentada a totalidade d<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> de uma das madrugadas, cujo repertório,comp<strong>os</strong>to de 23 cant<strong>os</strong>, é inteiramente vocaliza<strong>do</strong>, sem texto. Além destes, umd<strong>os</strong> 5 cant<strong>os</strong> de opukakala, um d<strong>os</strong> cinco repentes, e 3 cant<strong>os</strong> de iamurikumaque não fizeram parte da narrativa de Iutá, também serão transcrit<strong>os</strong> ao longodesta descrição. Creio que esta seleção satisfaz <strong>os</strong> objetiv<strong>os</strong> da tese, queconsiste na etnografia <strong>do</strong> ritual de iamurikuma com foco no sistema cancional,pois nesta am<strong>os</strong>tra desenvolve-se uma mesma musicalidade que é prolongadaao longo da completa extensão <strong>do</strong> rito.Abaixo <strong>do</strong> texto das canções e das traduções, apresento as exegeses deKalupuku, conforme traduzidas por Tupanumaká. As explicações <strong>do</strong> tradutorvêm <strong>entre</strong> colchetes, da seguinte forma: [NT.], e minhas observações apenas<strong>entre</strong> colchetes.Data Horário Disp<strong>os</strong>ição coreográfica Repertório Musical9/9md427 o .dia18:20término20:40Bloco no centro da aldeia(músicas de maiuatapi)K44 K20 K45 K20 K46K26 K16K47 K48 K25K21 K22 K49 K24 K50K51K23 K52 K53 K54K55 K56 K57


157Instruções para leitura das transcrições musicais:Nesta tese, estou utilizan<strong>do</strong> transcrições reduzidas seguin<strong>do</strong> o modelocria<strong>do</strong> por Piedade em sua análise da música das flautas kawoka (2004). Astranscrições, se apresentadas integralmente, facilitariam a leitura, masocupariam demasia<strong>do</strong> espaço sem proporcionar maior rendimento analítico. Atranscrição reduzida porta à informação essencial, encontrada através <strong>do</strong>discurso musical nativo.Cada peça é constituída por um conjunto de temas e motiv<strong>os</strong>.Dependen<strong>do</strong> da peça, um motivo pode ter poucas ou muitas notas, quan<strong>do</strong>pode ser entendi<strong>do</strong> como uma frase. Os motiv<strong>os</strong> aparecem escrit<strong>os</strong>integralmente somente uma vez na transcrição, nas demais repetições,aparecem apenas as letras correspondentes a eles (a), (b), (c), etc., grafadassobre uma linha, e não sobre o pentagrama. Estes motiv<strong>os</strong> podem sofreroperações de variação, passan<strong>do</strong> a ser designad<strong>os</strong> (a’), (a’’), (b’). São <strong>os</strong>motiv<strong>os</strong> que constituem <strong>os</strong> temas , e , o último sen<strong>do</strong> um temaacresci<strong>do</strong> de letra, de um poema. Há também a frase , que surge geralmenteno início das peças, também como separação d<strong>os</strong> temas e , e no final,corresponden<strong>do</strong> sempre ao centro tonal das canções. Muitas vezes esta fraseaparece duplicada, o que será indica<strong>do</strong> por .A fraseé a seguinte (sua altura pode variar de uma peça para outra, deacor<strong>do</strong> com o centro tonal em questão):


158Como esta frase é igual em to<strong>do</strong> o repertório, manten<strong>do</strong> sempre omesmo contorno rítmico-melódico, não será escrita novamente, o leitordeven<strong>do</strong> se reportar à transcrição acima se necessário. Tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> process<strong>os</strong>presentes nas transcrições, já analític<strong>os</strong> por princípio, serão explorad<strong>os</strong> nocapítulo V, quan<strong>do</strong> algumas destas peças abaixo transcritas serão analisadascom mais rigor. É importante notar que o canto das mulheres é entoa<strong>do</strong> emuma região grave, corresponden<strong>do</strong> ao que convencionam<strong>os</strong> chamar de tessiturade contr<strong>alto</strong>, e, desta forma, as canções soam uma oitava abaixo da região emque foram escritas.


159K44uialalakatapiAkukuneju* niyũpeiomapai Iyapanapayalanaku ikitsiyãku ipitsi patapomapai Iyapanapae ha ku ha haSou casa<strong>do</strong> com mulher Kalapálo,falou Iyapanapaburaco fun<strong>do</strong>, nariz para elavocê falou, Iyapanapae ha ku ha ha* akuku = índi<strong>os</strong> KalapáloExegese k44:“A música de Kawoká é dividida em música da manhã, música da tarde, damadrugada. Tem repertório chama<strong>do</strong> de mepiñawakapotowo [“<strong>do</strong>is ded<strong>os</strong>”] e oda tarde é uialalaka [também chama<strong>do</strong> de maiuwatapi]. Esta é música deuialalakatapi e a explicação é a seguinte: Tinha um índio Mehinaku, chama<strong>do</strong>Iyapanapa que casou com uma índia Trumai. Outra mulher, para sacanear coma Trumai, fez música [N.T. To<strong>do</strong> índio Kalapálo, Kuikuro, <strong>Wauja</strong>, to<strong>do</strong> xinguan<strong>os</strong>e considera o melhor, a tribo mais verdadeira 175 ]. Então a mulher fez músicafalan<strong>do</strong> que Iyapanapa diz que casou com índia Kalapalo, mas não é verdade,ele se casou com Trumai. Essa mulher tem o nariz cumpri<strong>do</strong> e largo, ele seenganou”.175 Segun<strong>do</strong> Tupanumaká, <strong>os</strong> verdadeir<strong>os</strong> xinguan<strong>os</strong> são <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, Kuikuro, Kalapálo eKamayurá, só que estes últim<strong>os</strong> “antigamente”, não eram considerad<strong>os</strong> xinguan<strong>os</strong>.Tupanumaká relembrou que kamayula quer dizer "come<strong>do</strong>r de gente". Confirma-se aquimais uma vez este caráter execrável de canibalismo (conforme a ética xinguana)atribuí<strong>do</strong> a<strong>os</strong> Kamayurá (ver Menezes Bast<strong>os</strong>, 1995).


160


161K20Watahonejunapo ekepeketeekepekete natu naatoja*Kuwaporonepei naatejaPunupapamai pitsumaitsapai pitsu SapukuyawáSapukuyawá naatoja* naatoja = "eles" em Mehinaku, mastabém pode ser +/- "ouviu pessoal?".Me comparou com mulher jararaca,me comparou, ouviu pessoal?Com Kuwaporonepei, ouviu pessoal?Você também parececom SapukuyawáSapukuyawá, ouviu pessoal?Exegese k20:“Esta é música de maiuatapi, dentro da qual a mulher fez sua música. Umamulher está falan<strong>do</strong> para outras mulheres: "olha, aquela mulher está mecomparan<strong>do</strong> com wataho [NT. tipo de cobra), com kuwaporoná [?]. Você é pior,seu andar parece com o de Sapukuyawá que fica pulan<strong>do</strong>. Você me chama dewataho, eu te chamo de Sapukuyawá ".


162K46Kanumana piyawiu Nataki, NatakiTurista hayá ehejeEheje natuwiu kataOmapai NatakiOnde você foi, Nataki?Turista escondeu você?Ele me escondeu,falou NatakiExegese K46:[NT. Kalupuku diz que fez esta música para Nataki, outro nome de Araku, filhode Kaomo quan<strong>do</strong> ele foi trabalhar para <strong>os</strong> turistas na fazenda <strong>do</strong> Estenio].“Sempre que as mulheres cantavam, Nataki emprestava colar, cocar, guiz<strong>os</strong>,tu<strong>do</strong> que a gente precisava. Ele g<strong>os</strong>tava muito das cantoras. Então, quan<strong>do</strong> elefoi para a fazenda, elas fizeram a música dizen<strong>do</strong> que o turista escondeuNataki”.


163K26Niyẽneje kumayánehejueneje piyutse-euhã katáomanupitsiomaha miyãkã Natakiponukahataku manatuomanupitsi Nataki, NatakiEntão eu voume esconder (sumir) de vocêfalou para mimdizem que Nataki falouvocê ficou brava comigofalou para mim Nataki, Nataki


164K48Pakãixe penekumaPakãixe nukupogaitsaNutukakakuHukanakulu* onukamiyã* natunutukakakuAtsuke atsukemiyã onukamiyã natunutukakaku, nutukakakuLevantelevante <strong>do</strong> meu colomeu irmãoSenão vagina molhada vai ficar bravacomigo, meu irmãoSenão friagem vai ficar brava comigomeu irmão, meu irmãoHukanakulu = líqui<strong>do</strong> da vagina,vagina molhada, que fica com líqui<strong>do</strong>escorren<strong>do</strong> pela pernaonukamiyã = bravoExegese K48:“Tinha mulher que vivia com a vagina molhada, escorren<strong>do</strong>. To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> via, echamavam ela de hukanakulu, “vagina molhada”, este ficou o apeli<strong>do</strong> dela. Umdia, seu mari<strong>do</strong> foi namorar com outra mulher que disse para ele: sai da minharede, senão Hukanakulu vai ficar brava. Outras mulheres ouviram e fizeram amúsica para cantar no enekutaku”.


165K25Pisejoya Amatoputáotukeneje poponakatonutukakakasukukatohayaya poponakatonutukakaSeu irmão Amataputávai cortar o esteio de sua casameu irmãoo esteio de sua casa é tortomeu irmão[peça não transcrita para partitura]K21Pekepeke yanunuhawáKuri yanunuhawánahateja(= teketeke?) já é velhaMaitaca já é velhaouviu pessoal?


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167K22Aunumana, aunumanaPatuwato UkaruwãAunumana, aunumanaPatuwato UkaruwãMaka aunupa okanatoItsapai Tupatu* okanatuUkaruwãVenha aqui, venha aquitraga (sua mulher) UkaruwãVenha aqui, venha aquitraga (sua mulher) UkaruwãPara nós verm<strong>os</strong> a boca delaParece com a boca de tupatu,Ukaruwã* Tupatu é um peixe que tem a bocade la<strong>do</strong>, torta.Exegese K22:“Tinha um Mehinaku chama<strong>do</strong> Ukaruwã que casou com Mukura, talvez ela f<strong>os</strong>seíndia Matipú. As mulheres Mehinaku fizeram esta música para a mulher, falan<strong>do</strong>da boca dela, pois quan<strong>do</strong> sorria ela ficava com a boca torta, igual ao tupatu. Amúsica diz: "Ukaruwã, traz sua mulher para cá, para a gente ver a boca tortadela".


168K49Aitsa tsama TalakuwayEhejua nutsaIapai kamo kanaOnaku natejanão parece Talakuwayfugir/esconder de mimin<strong>do</strong> para o buraco <strong>do</strong> soldentro delenateja = palavra Mehinaku que talvezqueira dizer “eles”Exegese K49:[NT. Kalupuku fez esta música falan<strong>do</strong> de seu primo Talakuway, filho deKaomo. Na música ela chama ele de irmão. Ela está contan<strong>do</strong> de uma épocaem que ela morava n<strong>os</strong> Kamayurá [ela era casada com um Kamayurá quemorreu] e viu Talakuway namoran<strong>do</strong> uma moça de lá. Ela diz na música quevai contar pr<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> o que ela viu].[peça não transcrita para partitura]K24Pukutipona tsapatama pitsumanahatojamanikipona tsapatama pitsumanahatojaOpenuma atsikĩ pumepenénipitsinahatojaEnfiaram a cabeça <strong>do</strong> pau em vocêouviram?To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> também enfiou em vocêouviram?depois disso é você que tem nojo demim?ouviram?Pukutipona = cabeça <strong>do</strong> pênis, emMehinakuatsikĩ = nojo, é muito feioExege K24:“A maior parte desta língua é Mehinaku. Tinha uma mulher <strong>Wauja</strong> que kawokátransou com ela, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> transou. Ela namorava um rapaz <strong>Wauja</strong> e eleentão resolveu ir para aldeia Mehinaku arrumar uma mulher para casar. Foi lá,casou e voltou para a aldeia <strong>Wauja</strong> com a mulher. À noite, a antiga namorada,aquela que kawoká transou, foi cantar sobre a índia Mehinaku. Esta percebeuque a música estava falan<strong>do</strong> dela e então ela reagiu e foi lá no centro cantar epagar a ofensa da outra dizen<strong>do</strong>: "você também não tem a vida normal.


169kawoká te pegou, você transou com to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, você tem filho, você tambémtem a vida péssima, como eu". A mulher <strong>Wauja</strong> ouviu e foi deitar, enquanto aoutra continuou cantan<strong>do</strong>. É história que aconteceu mesmo”.


170K50Piyakala mãuya Autsamiyãpãixa mãuya Nisu owakulá aruimmãuya AutsamiyãPiyakala mãuya AutsamiyãVá Autsamiyãcomer arroz que Nisu cozinhouNisu era um cozinheiro da FABExegese K50:“Tinha um rapaz que trabalhava para <strong>os</strong> branc<strong>os</strong> no p<strong>os</strong>to Jacaré que chamavaAutsamĩa. Quan<strong>do</strong> ele voltou para a aldeia as mulheres cantaram: " Autsamĩa,você pode voltar para o Jacaré para comer arroz, continuar a trabalhar para <strong>os</strong>branc<strong>os</strong>. Você pode voltar". As mulheres estavam com ciúme dele, porque asoutras índias chegavam lá no Jacaré e transavam com ele”.


171K51Aitsa tsama piyãkuwehenenuya MatsirapáAitsa tsama piyãkuwehenenuya Matsirapánelele neputahatayaiPiulaga waakunapuMatsirapáAitsa tsama piyãkuwehenenuya Matsirapánelele neputahatayaiPiulaga iyakunapuMatsirapáVocê não despediu de mimMatsirapáVocê não despediu de mimMatsirapáEstou choran<strong>do</strong> no caminhoNo caminho para o rioMatsirapáVocê não despediu de mimMatsirapáEstou choran<strong>do</strong> no caminhoNo caminho da estradaMatsirapáExegese K51:“Tinha um homem chama<strong>do</strong> Matsirapá. Ele foi embora e as mulheres que elenamorou ficaram com saudade e fizeram a música dizen<strong>do</strong>: "Matsirapá, por quevocê foi embora sem avisar, sem despedir da gente? Estou triste, choran<strong>do</strong>.Quan<strong>do</strong> vou pro rio eu choro, quan<strong>do</strong> vou pra roça eu choro, quan<strong>do</strong> vou para oIyakunapu [caminho para o p<strong>os</strong>to Leonar<strong>do</strong>] eu choro. Por que você nãoavisou?".


172K23Pisejoya ApaopuwaIxukanakuteneje pohonápulaKamatsiyaroÉ seu irmão Apaopuwa quem passacheiro de vagina no seu caminhoKamatsiaroExegese K23:“Tinha um homem, que sua mulher teve gême<strong>os</strong> [mepiyawataĩ] e enterraram<strong>os</strong> <strong>do</strong>is. O irmão dele também transava com a mulher. Ele transou com ela noperío<strong>do</strong> <strong>do</strong> resguar<strong>do</strong>, enquanto o mari<strong>do</strong> ainda não estava transan<strong>do</strong>. Asmulheres da aldeia fizeram música para o mari<strong>do</strong>: "você está aí sem transarcom sua mulher, enquanto isso seu irmão namorou ela. Pode ficar aí, você nemsabe disso"”.


173K53Mulumepe piyepeneomaha nupitsi KaomoAkakayata piyulaganahatejaVá emborafalou para mim KaomoNão deixe a Piyulaga (nome dalagoa)ouviram?


174K54Ká iyãupeí katanoakapitsahapai na nasejekẽjuto napo omejo katanoahãtaĩ opaka omejo katanonahatojaKá iyãupeí katanoQuem é esta pessoaque está lutan<strong>do</strong> pessoal?magra este mari<strong>do</strong>pequeno r<strong>os</strong>to mari<strong>do</strong>ouviram?Quem é esta pessoa?Exegese K54:“Tinha um rapaz que estava lutan<strong>do</strong> [“kapitsapai”] no centro da aldeia. Eletinha uma namorada. A mulher dele era feia, muito magra, de r<strong>os</strong>topequenininho. Então a namorada fez a música dizen<strong>do</strong>: "Quem está lutan<strong>do</strong>? Éo mari<strong>do</strong> da mulher de r<strong>os</strong>to pequenininho".


175K55Aitsa awojo AjuyápixuÃixa kisuwepé omala nũmana,AjuyápixuNão está bom AjuyápixuComeu branca no norte,Ajuyápixu


176K56Pawẽtsepete Yukirimaayawátuwa nupitsioputa nú unotaĩPor isso Yurikimaapaixonou por mimme deu espelhinho


177K57Kamano kala pelelepeiIyũlupenu pauteheno Alaweru okuwapitsaEwelupiPor que você está choran<strong>do</strong>?Procura dentro Alaweru<strong>do</strong> barbanteEwelupi [irmão de Kamo]Exegese K57:“Um dia, uma mulher de outra aldeia, de outro povo veio aqui na aldeia casarcom um rapaz daqui. Passou o tempo e ela foi embora pra aldeia dela e onamora<strong>do</strong> ficou choran<strong>do</strong>, com saudade. As outras moças da aldeia ficaramsaben<strong>do</strong> que ele estava choran<strong>do</strong>, então outra namorada dele fez canção quefala “você não precisa chorar, você pode procurar o enfeite daquela mulher[que chama Alaweru], ele está escondi<strong>do</strong> ali [apontan<strong>do</strong> para a palha da paredena altura <strong>do</strong> telha<strong>do</strong>]”.


178Dia 10, durante <strong>os</strong> cant<strong>os</strong> de iamurikuma de final de tarde, apóscantarem duas músicas disp<strong>os</strong>tas na formação coreográfica padrão, ou seja,duas linhas paralelas com as cantoras principais ao centro da primeira, comtodas no centro da aldeia voltadas para a mesma direção e avançan<strong>do</strong> juntas,as mulheres realizaram uma coreografia diferente. Desta vez, elas cantaramuma música de aluwa, “morcego”, dançada a<strong>os</strong> pares (vide foto e transcriçãoda letra <strong>do</strong> canto abaixo). Em cada par, as mulheres se deram as mã<strong>os</strong> eviraram o torso para frente, caminhan<strong>do</strong> para frente e para trás, as mã<strong>os</strong>dadas subin<strong>do</strong> e descen<strong>do</strong>. Os pares dançaram no pátio. A letra deste canto éuma provocação a<strong>os</strong> homens ciument<strong>os</strong>: segun<strong>do</strong> as cantoras, enejanauukitsapai kiãnkã, “<strong>os</strong> homens são muito ciument<strong>os</strong>” e precisam ouvir estamúsica.Dança de aluwa.Em primeiroplano, ascantoras e irmãsKatsiparu eKalupuku


179I 13 - aluwa, “morcego”Aluwa tselu tseluAluwa aluwaképeyuyaí aumatenejeyixuhũtapa enejanauAluwa tselu tseluAwa awahupixenejeyixuhũtapa okahitsa enejanauMorcego (língua, jeito de falar demorcego)O que nós vam<strong>os</strong> fazercom o saco de vocês, homens?MorcegoNós vam<strong>os</strong> n<strong>os</strong> pendurarno saco de vocês, homens?Exegese I 13 (segun<strong>do</strong> Pakairu e Aianuke):“Tinha um homem que era muito ciumento, não deixava a mulher dele ircantar junto com as outras mulheres. Sempre que ela ia, ele ficava bravo, batianela, era muito ciumento. Então as mulheres fizeram música dizen<strong>do</strong> 'como éque nós vam<strong>os</strong> fazer com vocês, homens? Vocês estão com ciúme de nós?Então o que é que vam<strong>os</strong> fazer, nós vam<strong>os</strong> pendurar no seu saco igual aluwa?”.Após a performance de aluwa, as mulheres mais jovens, algumasmemejoiyalu e outras ianunumona (ver nota 171 neste Capítulo), se juntaramem frente à casa de um d<strong>os</strong> <strong>do</strong>n<strong>os</strong> da festa e cantaram música de iusi,“perereca”, que tem conotação de convite sexual. O grupo, de mais ou men<strong>os</strong>dez moças, cantou em frente a certas casas, nelas entran<strong>do</strong>. Ao entrar,algumas meninas se dirigiam à rede de determinad<strong>os</strong> homens (algumaslevavam lanternas) para <strong>os</strong> quais g<strong>os</strong>tariam de fazer seus convites. Os homens,cientes <strong>do</strong> iusi, ficaram bem quiet<strong>os</strong>, como se já estivessem <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> e nãoquisessem ser molestad<strong>os</strong>. De nada adiantou: elas entraram e se deitaram poralguns segund<strong>os</strong> sobre <strong>os</strong> homens escolhid<strong>os</strong>, e tod<strong>os</strong> riram muito. Um d<strong>os</strong>rapazes escolhid<strong>os</strong> ficou muito bravo, parecia mesmo constrangi<strong>do</strong>, nãodeixan<strong>do</strong> de forma alguma que a mulher que o escolheu se deitasse em suarede. Disseram-me que ele agiu assim porque teve uma ereção, e não queriaque ninguém visse. Não sei avaliar até que ponto <strong>os</strong> convites eram debrincadeira ou se havia a p<strong>os</strong>sibilidade <strong>do</strong> convite ser toma<strong>do</strong> como verdadeiro.Em minha casa, uma das moças se deitou na rede de meu companheiro e asoutras mulheres da casa ficaram rin<strong>do</strong> e me provocan<strong>do</strong>, dizen<strong>do</strong> que ele haviag<strong>os</strong>ta<strong>do</strong>, o que é bem provável. Uma outra moça se deitou na rede de Atamai,mas sua esp<strong>os</strong>a, Pakairu, não pareceu se incomodar, apesar dela já ter me dito


que sentia ciúme de seu mari<strong>do</strong>. Após estes cant<strong>os</strong> e convites, as mulheresvoltaram a se reunir no centro e cantaram mais duas músicas de iamurikuma.180Data horário Disp<strong>os</strong>ição coreográfica Repertório Musical10/9 19:30 - Bloco no centro da aldeia I12 I 9md528 o .diatérmino20:15-pares de mulheres dançamde mã<strong>os</strong> dadas- mulheres em bloco, semdançar, batem palma ecantam.- bloco com dançaI13I14 I15I16 I17> |


181(outro bloco de meninas seguecantan<strong>do</strong> simultaneamentemúsicas diferentes)Dia 12 de setembro, as mulheres não cantaram, alegan<strong>do</strong> que estavamchateadas com as reclamações de alguns homens que as repreenderam porcantarem um excessivo número de músicas de kawokakuma. Segun<strong>do</strong> <strong>os</strong>homens, este repertório é muito kakaiapai, “caro”, e por se tratar de música deflauta, é masculino. Elas contaram que principalmente Iatuná, irmão de Iutá eAtamai, falou que as mulheres teriam que ter mais parcimônia para cantarestas músicas, executan<strong>do</strong> no máximo três ou quatro de cada vez, e não tantascomo estavam cantan<strong>do</strong>.Dia 13, à revelia d<strong>os</strong> homens descontentes, as mulheres cantaramapenas músicas de kawokakuma, K, por uma hora, no final da tarde.Transcrevo a seguir as letras desta seqüência de cant<strong>os</strong> que, segun<strong>do</strong>Kalupuku, faz parte <strong>do</strong> repertório intitula<strong>do</strong> mepiñawãkapotowo, “<strong>do</strong>is ded<strong>os</strong>”,conjunto de canções que também compõem parte <strong>do</strong> repertório das flautaskawoká sob o mesmo título. É dito que toda esta seqüência de cançõescorresponde a falas das mulheres dirigidas a<strong>os</strong> homens. [Estas canções nãoforam transcritas para partitura]Data Horário Disp<strong>os</strong>ição coreográfica Repertório Musical13/9md631 o .dia18:10até19:20Bloco no centro da aldeiacant<strong>os</strong> <strong>do</strong> repertório demepiñawãkapotowoK58 K59 K60 K61 K62[ ] K63 K64 K65 K66K67 K68K59Punupé peihãpótakutepenepiyuwawáAlamatowotaĩNutukakaVocê está ven<strong>do</strong>o que você achoupara você mesmoAlamatowotaĩ (nomepróprio+diminutivo)meu irmão


182K60Nihĩyaĩxa tenejeNuhũpoja mehenekeomaha miyãkãnutukaka kue ha ha ku ha háKetsululukakatonutukakak kue ha ha ku ha haEu vou torcer (= no jogo)(= nopoja?/ minha criação) depoisfaloumeu irmãoe ha ha ku ha hachocalho da pernameu irmãoe ha ha ku ha haK61Katsepeiomapai piyũKatsepeiomapai piyũPoparukaha ikitsitsaPoparukaha ikitsitsae ha ha ku ha haO que foi?falou sua mulherO que foi?falou sua mulherPega na cabeça <strong>do</strong> pinto delePega na cabeça <strong>do</strong> pinto delee ha ha ku ha haK62Punupaya noganala mehenekeNaanateya* nopojá onapota mehenekeOmaha miyãkãnutukaka kue ha ku ha haOlha a minha pintura (o meu sinal)depoisEu vou pintar para você depoisdizem que faloumeu irmãoe ha ku ha ha* naanateya = minha pintura, meudesenho, minha escritaExegese:“Um homem fez um desenho para deixar sinal para a namorada no caminho.Eles tinham combina<strong>do</strong>. As outras mulheres ouviram o combina<strong>do</strong> e falaram,cantaram: "olha o meu desenho, o jeito de combinar".K63Ptemekele, ptemekeleNuwãtanataĩ onakunukapotowohãomaha miyãkãnutukaka nutukakaOuça, ouçadentro da minha flautinhameus ded<strong>os</strong>dizem que faloumeu irmão


183Exegese:“É também sobre ciúme. Um homem era toca<strong>do</strong>r de kawoká. Ele falou para amulher: "presta atenção que eu vou tocar kawoká e vou fazer sinal com o meude<strong>do</strong> dentro da kawoká e depois que eu terminar você vai me esperar numlugar combina<strong>do</strong> para a gente se encontrar". Ele foi para a kuwakuhonaku[dentro da casa d<strong>os</strong> homens] e tocou kawoká, dançou e quan<strong>do</strong> acabou elesforam se encontrar. As ex-namoradas desse homem ficaram saben<strong>do</strong> dacombinação e fizeram a música para cantar no enekutaku. Elas disseram assim:"você presta atenção no meu de<strong>do</strong> no kawoká. Na hora que eu fizer sinaldentro <strong>do</strong> kawoká, você vai lá encontrar comigo. N<strong>os</strong>so irmão está falan<strong>do</strong> issopara aquela mulher".K64Pikisẽẽpũkala onapotáPararayupewenw onapotáWapitsatojojoká onapotáOmaha miyãkãnutukaka nutukakaVocê sonhou antes(Nome de um rio reto) antes(Nome de lugar no rio Kuluene) antesdizem que faloumeu irmãoExegese:“Namorada <strong>do</strong> chefe Topatari fez esta música para a mulher <strong>do</strong> chefe, que,diziam, tinha a vagina grande e reta igual a um trecho <strong>do</strong> rio Kuluene. Umhomem casou com uma mulher que tinha a vagina grande [autonapupai],comprida. As mulheres então cantaram: "você sonhou em casar com essamulher de vagina comprida?". Elas fizeram música para provocar a mulher, deciúme. Compararam a vagina dela com o trecho <strong>do</strong> rio Kuluene próximo àaldeia d<strong>os</strong> Ikpeng [Kalupuku chamou de Txicão], que não tem curva, é bemreto”.K65Pitsumiyãma aitsa paripipenéTutsitsapataĩ tutsitsapataĩNem você pode ficar velhaPinto mole de saquinho murcho


184Exegese:[NT. Kalupuku diz não saber se é mulher e homem brigan<strong>do</strong> ou se é mulhercom mulher que estão brigan<strong>do</strong>].“As mulheres cantam: " por que você está bravo (a) com a gente? Será que épor causa de pinto de homem? Ou será por causa de alguma coisa importante?Eu acho que é por causa de homem. Esta é música Mehinaku”.K66Amiyã maniyã punupa wakatanopona kanatogaAmiyã maniyã punupa wakatanopona kanatogaYamuluneju* wauka wakatánopona kanatogaNão vê você fazen<strong>do</strong> sinalna frente da minha casaNão vê você fazen<strong>do</strong> sinalna frente da minha casaMulher camaleão fazen<strong>do</strong> sinalna frente da minha casa* Yamuluneju foi traduzida por “mulhercamaleão”, mas normalmente quer dizer“mulher que é chefe”.K67Atokala openuwitsapujapujapai pujapujapaiYatai openuwitsapujapujapai pujapujapaiPukuwi openuwitsapujapujapai pujapujapaiPor causa de pinto durovocê está brava?Por causa de pinto durovocê está brava?Por causa da cabeça de pintovocê está brava?Há um jogo de palavras com a línguaMehinakuatokala = "Por que?" em Mehinaku, eatokala = "n<strong>os</strong>so pinto" em <strong>Wauja</strong>pujapujapai = "você bravo" emMehinaku, ePixeitepei = "você bravo" em <strong>Wauja</strong>


185K68 - Este canto é endereça<strong>do</strong> a outras mulheresKamiyã yumatanowotutaĩ ikiyana* naatojaejopakalunauhawakapalapaakalunãuhawaO que vocês podiam fazer?com a força (talento) de minhanetinhar<strong>os</strong>to pretor<strong>os</strong>to pinta<strong>do</strong> de bolinhas (com sinal)*ikiyana = polvilho, mas também serefere ao talento e à força que a mulhertem para extrair o polvilho.No final da tarde <strong>do</strong> dia 14, as mulheres iniciaram seus cant<strong>os</strong> enquanto<strong>os</strong> rapazes ainda jogavam futebol no centro, o que <strong>os</strong> incomo<strong>do</strong>u muito, pois asmulheres, ignoran<strong>do</strong> o jogo, por várias vezes atravessaram o campo <strong>do</strong> jogodançan<strong>do</strong>, fazen<strong>do</strong> com que eles tivessem de interromper seus arremess<strong>os</strong>.Elas também estavam incomodadas com o jogo, afinal, segun<strong>do</strong> elas, o pátioda aldeia é o lugar para a realização <strong>do</strong> ritual, e não deveria estar ocupa<strong>do</strong> porum jogo de futebol. Após algumas canções e muita tensão, as mulheresatacaram com arranhões e beliscões <strong>os</strong> homens que estavam sentad<strong>os</strong>conversan<strong>do</strong> em frente à “casa d<strong>os</strong> homens”. Eles riram muito, mas seesquivaram delas, pois seus arranhões eram para valer. Eles avisaram meucompanheiro, falan<strong>do</strong> para ele fugir, pois as iamurikuma apokapai, “estavamloucas”.> |


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187ao re<strong>do</strong>r, algumas sentadas no chão e outras em pé. Durante o canto, todasrespondiam em coro, em tom grave e pausa<strong>do</strong>, sempre a mesma frase:eiauahia, iamurikuma. Seguiu-se o mesmo com Kalupuku e, por último, comKatsiparu. Os cant<strong>os</strong> de opukakala fazem referência direta a partes <strong>do</strong> mito deiamurikuma, e têm um caráter circunspecto e sério 177 . Ao término das trêsapresentações, to<strong>do</strong> o grupo de mulheres se reuniu novamente em bloco eseguiram cantan<strong>do</strong> músicas de kawokakuma. Às 21 horas fom<strong>os</strong> tod<strong>os</strong>descansar.Data horário Disp<strong>os</strong>ição coreográfica Repertório Musical17/9md917:40 -Homens retornam de pescariae mulheres formam bloco noK81 K80 K81 K3 K1K82[ ] I12 I4 I2 I23 I24 [ ]centro da aldeia35 o .diaaté- Iutá paramenta cantoras deopukakala enquanto as outrasmulheres sentadas no chão ouem pé respondem em coro, emtom grave e pausa<strong>do</strong> sempre amesma frase: iauahiaiamurikuma.O 1 O 2 O 3 O 421:10- após opukakala meninasformam outro grupo e cantamK83 K20 K84 K85 K26K86 K87 K21> |


188paramentadas por Iutá, cada cantora saiu da casa e realizou seu canto <strong>do</strong> la<strong>do</strong>de fora, em frente à porta, enquanto as demais mulheres respondiam iauahia,iamurikuma <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de dentro. Após este canto, a cantora seguia até meiocaminho <strong>entre</strong> a casa e o enekutaku, onde executava mais uma vez o mesmocanto. Uma terceira execução se dava no próprio enekutaku.Cantoras de opukakala.Após as performances das três cantoras, todas as mulheres, com Iutáconduzin<strong>do</strong> o grupo, realizaram cant<strong>os</strong> de ipitseheneĩ 178 . Nesta fase <strong>do</strong> ritual,as mulheres desenvolveram a seguinte coreografia, dentro da casa deItsautaku: um grupo de mulheres ficou para<strong>do</strong> em linha, viradas de frente paraa porta de entrada da casa, e um outro grupo se p<strong>os</strong>icionou em procissão àfrente <strong>do</strong> primeiro grupo fazen<strong>do</strong> uma evolução coreográfica que consistia emdar pass<strong>os</strong> larg<strong>os</strong>, como se estivessem saltan<strong>do</strong> algum obstáculo, in<strong>do</strong> uma vez178 Segun<strong>do</strong> Tupanumaká, ipitseheneĩ corresponde ao movimento ondulante das cobrase minhocas; ipi quer dizer “curva”.


189e voltan<strong>do</strong> na mesma linha. Ao final, saíram todas da casa, em linha, fazen<strong>do</strong>esta mesma evolução, e terminaram com um canto de iamurikuma noenekutaku. Segun<strong>do</strong> meus informantes, estes larg<strong>os</strong> pass<strong>os</strong> representam umasubida na escada que as levaria até o céu, até a ywejokupoho, a “aldeia d<strong>os</strong>mort<strong>os</strong>”. No final da tarde deste mesmo dia, repetiram cant<strong>os</strong> de iamurikuma ekawokakuma primeiramente dentro da casa de Itsautaku, encerran<strong>do</strong> noenekutaku.


190Data horário Disp<strong>os</strong>ição coreográfica Repertório Musical18/9vídeo9/10emd108:00até9:30- Cant<strong>os</strong> de Opukakala nacasa de Itsautaku.- Cant<strong>os</strong> de ipitseheneØ não foi grava<strong>do</strong>vídeo 10md10, 1136 o . diareinício16:40até17:30- mulheres em bloco nacasa de Itsautaku- mulheres em bloco noenekutakuI30 I3 I12 I12’ I4 I2K88K89 I1 I31 I12K90 K91 K92> | |


191cunha<strong>do</strong> até o enekutaku e depois banhada por ele ali mesmo. P<strong>os</strong>teriormente,uma das cunhadas de Kulepeie a pintou e a conduziu até o grupo de cantoras,sinalizan<strong>do</strong> assim para o fim de sua condição de enlutada, poden<strong>do</strong> participarde festas. No final da tarde, as mulheres cantaram uma única música, comduração de meia hora, em frente à casa de Iutá e da de Iatuná.Data horário Disp<strong>os</strong>ição coreográfica Repertório Musical10/10 meio dia Mulheres paramentadas Ø não gravei58 o .diafim detardeMulheres em bloco nocentro da aldeia.Ø não gravei. Cantam emfrente à casa de Iutá e deIatuná.Houve uma pausa de dez dias n<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> das mulheres. Dia 20 deoutubro, ao meio dia, enquanto <strong>os</strong> homens jogavam futebol, as mulheres quese preparavam para cantar no enekutaku ficaram bravas novamente por veremmais uma vez o pátio ocupa<strong>do</strong> com o jogo e, de forma provocativa,atravessaram o campo várias vezes cantan<strong>do</strong> o repertório de iamurikuma. Umadas cantoras, Iejoku, que estava no centro <strong>do</strong> grupo, vestiu ao avesso a camisade um d<strong>os</strong> times que jogava. Elas cantaram por uma hora, tempo suficientepara atrapalhar o jogo. No final da tarde, elas voltaram ao centro para <strong>os</strong>cant<strong>os</strong> de iamurikuma. Enquanto cantavam, as mulheres se aproximaram d<strong>os</strong>homens que conversavam sentad<strong>os</strong> em frente à casa d<strong>os</strong> homens e <strong>os</strong>atacaram de surpresa com arranhões e beliscões. Ao final, cantaramnovamente a música de aluwa, “morcego”. Transcrevo abaixo a letra de <strong>do</strong>iscant<strong>os</strong> de iamurikuma então cantad<strong>os</strong>.Data horário Disp<strong>os</strong>ição coreográfica Repertório Musical20/10md1212:00 Bloco, 1 cantora vestidacom a camisa de time +futebol d<strong>os</strong> rapazesØ não gravei68 o . dia18:30até19:20-Bloco no centro da aldeia. I1[ ]-Mulheres atacam <strong>os</strong>homens-Voltam a formar umblocoI32 I33 I34 I35 I3 I37I13 I11


192I 34Tsiri tsiri NatuyuAjatapi> | |


193Data horário Disp<strong>os</strong>ição coreográfica Repertório Musical22/10 fim de -Mulheres em bloco no Ø não graveimd18 tarde enekutaku70 o .dia20:15até20:45- Mulheres sentam-se noenekutaku e dirigemprovocações a<strong>os</strong> homensR1 R2 R3 R4 R5> |


194R1 Música para WajaiManenekekuma ewenõjalepeiAritanaAitsa itsapai Wajai AritanaPupirita WajaiPunupa iyapé iexitsa aitsahumakawepene hotelnakuAtakanajutetai xata onaku humakapéiexitsa AritanaAitsa tamanapai anai tuamaluta auAritanaAitsa atuata au naiPupiritaPupirita Wajai AritanaAitsepei itsapai pitsuwiuRico pitsuwiuAitsepei itsapai pitsuwiu piapai aviãojato onakuwiuPiapai pufalu onakuwiuAitsa itsapai WajaiAitsa ieweto avião jato onakuPupirita tuamaluta auAitsa Wajai tamanawakata auKamanoia tuapai au katá pupirixeiVocê podia vir para ser n<strong>os</strong>so homem,AritanaNão igual ao Wajai, AritanaWajai é pobreVocê vai ver, quan<strong>do</strong> ele for embora,não vai <strong>do</strong>rmir em hotelNa casa de tábua (favela) ele vai<strong>do</strong>rmir, AritanaNão comprou vesti<strong>do</strong> para nós, eleveio sem nada, AritanaEle nunca traz vesti<strong>do</strong>Ele é pobreEle é pobre, AritanaVocê não é como eleVocê é ricoVocê não é como ele, você viaja deavião a jatoVocê viaja de búfalo (avião da FAB)Você não é como WajaiEle nunca viajou de avião a jatoEle é pobre, veio sem nadaWajai nunca comprou nada para nósNão sei porque ele veio aqui assimpobre.Acácio, que fora batiza<strong>do</strong> com o nome Wajai, é assim chama<strong>do</strong> porKalupuku durante sua canção. Curi<strong>os</strong>o que Kalupuku cantou o nome de Wajai,assim como o de outr<strong>os</strong> homens n<strong>os</strong> demais cant<strong>os</strong>, o que, em condições defala, seria impensável, pois eram nomes de afins seus. Isto m<strong>os</strong>tra quanto ocanto se distancia da fala cotidiana. A mesma estrutura rítmico-melódicatemáticase repetiu ao longo da noite, porém com a letra modificada de acor<strong>do</strong>com quem se pretendia xingar. Ressaltar as p<strong>os</strong>ses de homens “poder<strong>os</strong><strong>os</strong>” deoutras aldeias é recorrente, utilizan<strong>do</strong> para isso temas como o avião a jato, ohotel, a maior ou menor p<strong>os</strong>sibilidade de aquisição de bens provind<strong>os</strong> <strong>do</strong>mun<strong>do</strong> d<strong>os</strong> “branc<strong>os</strong>”, bem como <strong>os</strong> <strong>do</strong>tes físic<strong>os</strong> d<strong>os</strong> homens de fora emdetrimento daqueles da aldeia. Pode-se notar ainda que Wajai, mesmo sen<strong>do</strong>um kajaopa, portanto de fora e mais provi<strong>do</strong> de recurs<strong>os</strong> econômic<strong>os</strong> que


195qualquer um deles, ao estar ali moran<strong>do</strong> temporariamente, é inseri<strong>do</strong> nasbrincadeiras joc<strong>os</strong>as como sen<strong>do</strong> um deles, necessitan<strong>do</strong> que as mulheresrecorram a um grande chefe como Aritana (Yawalapití) para provocar-lhe <strong>os</strong>entimento de uki. Apesar d<strong>os</strong> homens não serem proibid<strong>os</strong> de freqüentar ocentro enquanto as mulheres cantam, não apareceu nenhum homem nestemomento, repetin<strong>do</strong> assim a mesma relação acusmática 179 observada n<strong>os</strong>outr<strong>os</strong> rituais, ou seja, provocações são feitas, mas nunca respondidasimediatamente, pois <strong>os</strong> interlocutores raramente se colocam frente a frente, àexceção da festa <strong>do</strong> pequi, quan<strong>do</strong> <strong>os</strong> confront<strong>os</strong> são a tônica.> |


196verdadeiramente, pois as agressões físicas eram dadas com vontade, para <strong>do</strong>ermesmo. Ao final, a brincadeira não acabou bem, pois as mulheres investiramcontra alguns homens mais velh<strong>os</strong> e Kaomo, sentin<strong>do</strong>-se ofendi<strong>do</strong>, repreendeuascom um pau na mão, em um aceno de ameaça. Apesar de ser muito cordatoe alia<strong>do</strong> das mulheres, ensinan<strong>do</strong>-lhes cant<strong>os</strong> de kawokakuma mesmo à reveliade outr<strong>os</strong> homens da aldeia, ele sentiu que elas haviam passa<strong>do</strong> <strong>do</strong> limitetolerável da etiqueta. Depois desta cena, as mulheres realizaram uns pouc<strong>os</strong>cant<strong>os</strong> de iamurikuma e foram para casa <strong>do</strong>rmir, chateadas.Data horário Disp<strong>os</strong>ição coreográfica Repertório Musical25/10md12emd1873 o .dia18:24até18:35Mulheres batem em alguns homense são agredidas por Kaomo comum pau.-Bloco de mulheres no enekutaku K5 K? K98 I36> |


197Dia seguinte, 26 de outubro, durante uma sessão de iapojatekana 181 queocorria dentro <strong>do</strong> ciclo <strong>do</strong> pequi, um vendaval derrubou uma das casas, ondemoravam mais de vinte pessoas. Por sorte, ninguém se machucou. Era final detarde e eu estava nesta casa conversan<strong>do</strong> com Iejoku e Iakupe quan<strong>do</strong>começou a ventar e resolvi ir até minha casa recolher a roupa que estavasecan<strong>do</strong>. Neste instante, ouvi um estron<strong>do</strong> e ao me virar para trás, a casa jáestava no chão.Passa<strong>do</strong> o susto, as mulheres se reuniram no enekutaku, ao entardecer,e convocaram <strong>os</strong> homens a fazerem flechas para o encerramento da festa.Estas fariam parte <strong>do</strong> pagamento que elas deveriam <strong>entre</strong>gar para <strong>os</strong> “<strong>do</strong>n<strong>os</strong>”d<strong>os</strong> pilões ao final <strong>do</strong> ritual, além das vali<strong>os</strong>as kamalupo, “grandes panelas debarro”. Algumas mulheres são exímias ceramistas, mas nenhuma <strong>do</strong>mina astécnicas de fabricação de flechas, esta é uma especialidade masculina. Então,repetin<strong>do</strong> a fórmula de convocação ritualizada que presenciei no início desetembro, as mulheres pediram a<strong>os</strong> homens que fizessem as flechas.Encerraram com cant<strong>os</strong> de iamurikuma no enekutaku. À noite, Ajoukuma, umd<strong>os</strong> pajés, entrou em transe em sonho, sem a ingestão de tabaco, e teve visõesde alguns apapaatai que estariam reclaman<strong>do</strong> <strong>do</strong> comportamento d<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>.Em sua descrição <strong>do</strong> transe, Ajoukuma afirmou ter visto <strong>os</strong> “<strong>do</strong>n<strong>os</strong> de pequi”muito tristes por causa da derrubada de pequizeir<strong>os</strong> para a construção da pistade pouso de avião. Também viu iamurikuma brava por causa das mulheresterem passa<strong>do</strong> ipitsitsi n<strong>os</strong> homens. Neste mesmo transe, disse ter vistotambém kawoká, que estaria bravo pelo fato das mulheres estarem entran<strong>do</strong>muito na kuwakuho, a casa d<strong>os</strong> homens 182 .Data horário Disp<strong>os</strong>ição coreográfica Repertório Musical26/10 fim deØ não graveitarde74 o .dia- Mulheres em bloco no centro daaldeia- Mulheres convocam <strong>os</strong> homens afazerem flechas> |


198Durante esta madrugada, Kalupuku e mais duas mulheres cantaram noenekutaku. Não pude gravar, pois estava cuidan<strong>do</strong> de minha filha que estavacom muita febre. Sei apenas que elas cantaram pouco, fican<strong>do</strong>, a maior parte<strong>do</strong> tempo, sentadas ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> fogo.Na manhã de 27, por volta das sete horas, assim que as mulherespararam de cantar, <strong>os</strong> rapazes e menin<strong>os</strong> entraram, em grupo, nas casas daaldeia, se penduran<strong>do</strong> como morceg<strong>os</strong> n<strong>os</strong> telhad<strong>os</strong> de palha. Era uma daspartes da akãinaakai, o “ritual <strong>do</strong> pequi”. Eles fizeram burac<strong>os</strong> n<strong>os</strong> telhad<strong>os</strong> exingaram as mulheres. Estas, para que eles saíssem logo, queimaram pimentadentro da casa, produzin<strong>do</strong> uma fumaça muito ardida. Simultaneamente, umgrupo de mulheres se formou no enekutaku e seguiram cantan<strong>do</strong> músicas deiamurikuma. Neste dia, Iauru, uma das cantoras, e que é kawokalamona deIutá, recebeu deste um macaco. Ela cantou no grupo de mulheres, nestamanhã, carregan<strong>do</strong> por to<strong>do</strong> o tempo o macaco que recebera. Os homens,vind<strong>os</strong> de suas performances da festa <strong>do</strong> pequi, passaram pelas cantoras e asprovocaram dizen<strong>do</strong> que “elas só queriam saber de usar vesti<strong>do</strong>” e que “elasestavam entran<strong>do</strong> muito na kuwakuho”. Elas ficaram bravas e retrucaramarrancan<strong>do</strong> <strong>os</strong> calções de alguns. Neste instante começou uma grandeconfusão, com corre-corre e pancadaria para to<strong>do</strong> la<strong>do</strong>. Os envolvid<strong>os</strong> tinham<strong>entre</strong> quinze e quarenta an<strong>os</strong>. Os mais jovens estavam pintad<strong>os</strong> com óleo ecarvão e passaram a sujar as mulheres. Ao final, após alguns arranhões ehematomas, estavam tod<strong>os</strong> suj<strong>os</strong> de carvão e terra, e exaust<strong>os</strong> com a“brincadeira”. Por volta das nove horas da manhã foram tod<strong>os</strong> para o banho. Aofinal da tarde, as mulheres cantaram novamente no enekutaku.Data horário Disp<strong>os</strong>ição coreográfica Repertório Musical27/10 madrugada trio de cantorasØ não graveiaté7:00Ø não gravei75 o .diaBloco com Iauru carregan<strong>do</strong>macaco18:00Bloco no centro da aldeiaØ não gravei> |


199A madrugada de 28 de outubro também foi de vigília das três cantoras,que contaram também com a participação de algumas mulheres que iamchegan<strong>do</strong> a<strong>os</strong> pouc<strong>os</strong>. Kaomo ficou to<strong>do</strong> o tempo junto das mulheres ensinan<strong>do</strong>à Kalupuku <strong>os</strong> cant<strong>os</strong> da kawoká que, a seguir, eram convertid<strong>os</strong> para voz,transformad<strong>os</strong> em kawokakuma. Quan<strong>do</strong> estava para amanhecer, mas aindaescuro, as mulheres encerraram <strong>os</strong> cant<strong>os</strong> de iamurikuma me avisan<strong>do</strong> quelogo teria uma outra “coisa” acontecen<strong>do</strong>, que eu deveria me esconder e ir parao mato com todas as mulheres.Eram seis da manhã, estava muito cansada e resolvi tirar um cochilo. Porvolta das sete e meia, fui acordada pelas mulheres de minha casa avisan<strong>do</strong> quejá estavam todas no mato, que eu deveria me apressar. Saí da rede, um tantoator<strong>do</strong>ada, e fui para o mato com meu equipamento de som e foto. Asmulheres haviam saí<strong>do</strong> de suas casas disfarçadas, vestidas com capas dechuva, calças compridas, cobrin<strong>do</strong> as cabeças, fazen<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o p<strong>os</strong>sível para nã<strong>os</strong>erem reconhecidas. Foram para o mato, próximo da aldeia, onde trocaramseus disfarces por uma capa de folhagem que as cobria por inteiro. Iutá era oúnico homem ali, na condição de chefe cerimonial e “<strong>do</strong>no” <strong>do</strong> evento. Seupapel era indicar às mulheres a forma correta de proceder, como deveriam searrumar, fazer o percurso, o que cantar, era o mestre de cerimônias. Quan<strong>do</strong>resolveram me cobrir também com as folhas, pedi a uma das meninaspequenas que estava n<strong>os</strong> assistin<strong>do</strong>, que levasse meu equipamento até meucompanheiro para que ele seguisse registran<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>.Assim que todas se cobriram de folhas, inclusive eu, passam<strong>os</strong> a seryuwejokui, “espírit<strong>os</strong> d<strong>os</strong> mort<strong>os</strong>”. Como fiquei saben<strong>do</strong> depois, esta sessãonão está relacionada diretamente ao iamurikuma, porém, como Iutá é “<strong>do</strong>no”de yuwejokui, ele pediu que as mulheres incluíssem esta performance no ritual.Saím<strong>os</strong> <strong>do</strong> mato cantan<strong>do</strong> e, em fila indiana, tomam<strong>os</strong> a estrada principal daaldeia que leva ao P<strong>os</strong>to Leonar<strong>do</strong>. Entram<strong>os</strong> na aldeia cantan<strong>do</strong> e fazen<strong>do</strong> umaevolução em círculo no enekutaku. Sempre conduzidas por Iutá, entram<strong>os</strong> emsua casa, fazen<strong>do</strong> um círculo em volta <strong>do</strong> esteio central e voltam<strong>os</strong> para ocentro. Durante n<strong>os</strong>sa coreografia no centro, alguns rapazes riam muito efizeram questão de me denunciar por sobre as folhas, pois sabiam facilmente


200que aqueles pés branc<strong>os</strong> eram <strong>os</strong> meus, além de reconhecerem minha cangaamarela e, provavelmente, meu jeito de andar. Outr<strong>os</strong> jovens haviam feito umestandarte com um vesti<strong>do</strong> para provocar as mulheres, mas por sobre afolhagem era quase imp<strong>os</strong>sível enxergar algo, só via um vulto passan<strong>do</strong>.Sempre cantan<strong>do</strong>, saím<strong>os</strong> em direção ao caminho <strong>do</strong> banho. Somente ali, cercade cem metr<strong>os</strong> da aldeia, retiram<strong>os</strong> n<strong>os</strong>sas máscaras de folhas e fom<strong>os</strong> todaspara o banho. Nenhum homem apareceu no lago.


201Preparação dasmulheres no matoMulherestransformadas emyuwejokui, dançam noenekutaku


202Durante to<strong>do</strong> o dia, <strong>os</strong> homens ficaram fazen<strong>do</strong> flechas na kuwakuho e,no final da tarde, as mulheres voltaram a cantar no enekutaku. Além d<strong>os</strong>cant<strong>os</strong> de iamurikuma e kawokakuma, realizaram cant<strong>os</strong> de otoju,“caranguejinho preto”, cuja coreografia consiste na entrada das mulheres nascasas d<strong>os</strong> “<strong>do</strong>n<strong>os</strong>” da festa, engatinhan<strong>do</strong>, e <strong>os</strong> homens, à revelia delas,esfregam mingau de pequi em suas c<strong>os</strong>tas e braç<strong>os</strong>. Por causa dasimultaneidade d<strong>os</strong> rituais, não p<strong>os</strong>so afirmar se esta performance fez parte dafesta <strong>do</strong> pequi ou <strong>do</strong> ritual de iamurikuma.Nesta mesma noite, as mulheres convocaram <strong>os</strong> homens para o fim dafesta, lembran<strong>do</strong>-lhes que deveriam organizar uma pescaria para o dia <strong>do</strong>encerramento. Elas formaram cinco grup<strong>os</strong> diferentes que seguiram cantand<strong>os</strong>imultaneamente músicas de iamurikuma e kawokakuma em frente às casasd<strong>os</strong> cinco naakaiwekeho, “<strong>do</strong>n<strong>os</strong> da festa”.Data horário Disp<strong>os</strong>ição coreográfica Repertório Musical28/10md19Início2:15até5:15poucas mulheresacompanhadas de Kaomo.K99 K100 K101 K102K103 K104K105 K106 K107 K108K109K110K111 K112 K113a K113bK114 K115K116 K117 K118 K119K120 (itsapu)md207:00 às8:00Mulheres, no mato, setransformam em ywuejokui.Y76 o .dia19:00Mulheres se arrastan<strong>do</strong>dentro das casas d<strong>os</strong> <strong>do</strong>n<strong>os</strong>da festaI39 oteju-Mulheres convocam ofim da festaFalas- 5 bloc<strong>os</strong> cantam em frenteàs casas d<strong>os</strong> <strong>do</strong>n<strong>os</strong> da festa.K121


203Apresento a seguir a transcrição das músicas da madrugada <strong>do</strong> dia 28 deoutubro, na seqüência de K99 a K120. To<strong>do</strong> este repertório é chama<strong>do</strong> dekisuwagakipitsana, “som da madrugada”, ou “timbre da madrugada” e, àexceção de K99, todas não p<strong>os</strong>suem letra, guardan<strong>do</strong> uma relação direta com orepertório de kisuwgakipitsana das kawoká.K99Onaka haia janoomamitsa tojanoomapai UixumãNão obtive tradução deste canto


204K100K101


205K102 “ Kanupá”K103


206K104K105


207K106K107


K108208


K109209


210K110K111


211K112K113a


K113b212


213K114K115


214K116K117


215K118K119


K120 a, K120 b216


217> | |


218cocares, braçadeiras, cint<strong>os</strong> e colares, vestiram calcinhas 183 e se p<strong>os</strong>icionarampara a luta, o kapi. Algumas ficaram sentadas na assistência e outras em pé,todas em torno de um círculo prepara<strong>do</strong> por Itsautaku. Este local havia si<strong>do</strong>previamente limpo de espinh<strong>os</strong> e toc<strong>os</strong> de madeira, no intuito de que asgarotas não se machucassem no transcorrer da luta. Esta segue as mesmasregras que a travada <strong>entre</strong> <strong>os</strong> homens, mais conhecida na literatura da regiãopor huka-huka. No início, uma das mulheres se coloca frente à outra, as duascom <strong>os</strong> joelh<strong>os</strong> flexionad<strong>os</strong>, olham-se fixamente como que queren<strong>do</strong> intimidar aoponente, estendem o braço esquer<strong>do</strong>, enquanto o direito fica recolhi<strong>do</strong> emp<strong>os</strong>ição horizontal e mantêm-se assim por alguns instantes, giran<strong>do</strong> de formasincronizada, até que se atracam e tentam atingir o objetivo que é agarrar aparte anterior da perna da oponente ou deitá-la de c<strong>os</strong>tas no chão, o quedefiniria a vitória. Para o início da luta, Iutá chamou ao centro as moças quedeveriam se colocar em p<strong>os</strong>ição. Ocorreram primeiro <strong>os</strong> embates <strong>entre</strong> cadadupla de campeãs, ao que se seguiram lutas com duas, três e finalmente, todasas duplas simultaneamente. O kapi durou cerca de meia hora e, conformedescobri p<strong>os</strong>teriormente, este havia si<strong>do</strong> apenas um treinamento para a lutaque viria a ocorrer no último dia <strong>do</strong> ritual.Terminadas as lutas, o grupo de mulheres se reuniu, ainda dividi<strong>do</strong> em<strong>do</strong>is, seguin<strong>do</strong> na direção <strong>do</strong> caminho da lagoa Piulaga, cantan<strong>do</strong> duas músicasdiferentes simultaneamente. No meio <strong>do</strong> caminho, <strong>os</strong> grup<strong>os</strong> se dispersaram eforam todas se banhar. Meio dia, <strong>os</strong> homens saíram para pescaria de timbó. Asmulheres, aguardan<strong>do</strong> o retorno destes, seguiram cantan<strong>do</strong> no final da tarde,como de c<strong>os</strong>tume. À noite, as garotas repetiram a performance de iusi,183As mulheres que estão hoje na faixa d<strong>os</strong> cinqüenta an<strong>os</strong> para cima, asaripixixelumona, me relataram que foi muito bom quan<strong>do</strong> apareceu nas aldeias <strong>do</strong> Alto<strong>Xingu</strong>, n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> sessenta, esta peça de vestuário feminino das kajaopaeneja, “mulher<strong>do</strong> branco”. Segun<strong>do</strong> elas, durante as lutas elas têm que ficar abaixadas, em umap<strong>os</strong>ição que, quan<strong>do</strong> desnudas, expõe demasiadamente a genitália. Assim, quan<strong>do</strong> <strong>os</strong>homens as observavam lutan<strong>do</strong>, faziam muitas piadas, não apenas durante as lutas,mas também depois. Até esta época, além de se preocupar com a luta propriamente,elas tinham também que procurar não se expor muito. O fato de usarem calcinhaatualmente durante as lutas é igualmente motivo de piadas por parte d<strong>os</strong> homens, maselas preferem que eles riam de suas calcinhas que de suas vaginas e ânus. No dia a dia,elas não usam calcinha, apenas eventualmente, quan<strong>do</strong> estão na cidade e ficammenstruadas, utilizan<strong>do</strong>-a como suporte para absorvente higiênico. Na aldeia, quan<strong>do</strong>menstruam, ficam mais tempo em repouso, não lidam com mandioca, nem manipulama água que serve a tod<strong>os</strong>. Lavam-se constantemente com a água armazenada em umvasilhame guarda<strong>do</strong> <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora da casa.


entran<strong>do</strong> nas casa e provocan<strong>do</strong> <strong>os</strong> homens ao se deitarem sobre eles em suasredes.219Data horário Disp<strong>os</strong>ição coreográfica Repertório Musical30/10 madrugada - Pequeno grupo no centro não gravei7:00- 2 grup<strong>os</strong> de kapiLuta78 o .dia12:00- Os 2 grup<strong>os</strong> se reúnem,cantan<strong>do</strong> no caminho dalagoa e vão se banhar.- Homens vão pescarnão gravei- Mulheres em bloco no centronão graveinoite- Garotas repetem aperformance de iusiI14> |


220Mulheres em “bloco” levan<strong>do</strong> o pilão para a queimaQueima d<strong>os</strong> pilões


221As mulheres dep<strong>os</strong>itaram, em frente às flechas, as kamalupo, “grandespanelas de barro”, que haviam feito especialmente para <strong>os</strong> anawekeho comopagamento da comida fornecida durante tod<strong>os</strong> estes dias. Elas formaramnovamente <strong>do</strong>is grup<strong>os</strong> e se p<strong>os</strong>icionaram em frente à armação de flechas,fican<strong>do</strong> um grupo volta<strong>do</strong> para leste, o outro para oeste. Seguiram cantan<strong>do</strong>repertóri<strong>os</strong> diferentes simultaneamente. Após algum tempo, Iutá se p<strong>os</strong>icionouto<strong>do</strong> paramenta<strong>do</strong> no centro daaldeia, repetin<strong>do</strong> suaperformance de 17 desetembro, e cantou músicaskanupá,“sagradas” 184 , primeir<strong>os</strong>enta<strong>do</strong>, depois em pé. Apósseu solo, Iutá paramentou umadas mulheres, sua filhaApuiupualu (kawokalamona deIatuná), e esta realizou o cantode opukakala com o corofazen<strong>do</strong> intervenções, damesma forma que fizeram nanoite de 17 de setembro, com adiferença de que naquele diaforam três as cantoras deopukakala e neste dia, apenasuma.Iauru sen<strong>do</strong> paramentada pelo chefeIutá para o canto de opukakala.184 O termo kanupá se refere ao repertório considera<strong>do</strong> pel<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> como kakaiapai,“caro, especial” e será objeto de comentári<strong>os</strong> no capítulo V.


222Data horário Disp<strong>os</strong>ição coreográfica Repertório Musical31/10md20Filma<strong>do</strong>meio dia - Diferentes grup<strong>os</strong> cantamsimultaneamenteØ não gravei17:00 - Formam 2 grup<strong>os</strong>, cantan<strong>do</strong> I12 + K?músicas diferentes, vão até acasa de Iutá e levam seu anaaté o centro da aldeia.md 20 e2179 o . dia19:20- Mulheres formam <strong>do</strong>is grup<strong>os</strong>e se p<strong>os</strong>icionam em frente àarmação de flechas, fican<strong>do</strong> umgrupo volta<strong>do</strong> para leste e ooutro para oeste. Seguemcantan<strong>do</strong> repertóri<strong>os</strong> diferentessimultaneamente.K126 K94K62 + K?K63+ K?K? + K? K6420:25- Iutá canta kanupaK 127 K128 K129K130 K13121:25até23:10- cant<strong>os</strong> de opukakala ten<strong>do</strong>um coro fazen<strong>do</strong> intervenções.- Mulheres em 2 bloco- só 1 bloco(meninas ao fun<strong>do</strong> em outrobloco)O4 O 5 O 3K132 + I9K133 + I9 K91K65 (=92) K66 K134K135K136 K67 K68> |


223cantora recebesse <strong>os</strong> a<strong>do</strong>rn<strong>os</strong>. Iutá conduziu tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> cant<strong>os</strong>, desde <strong>os</strong> deopukakala até <strong>os</strong> de ipitsehene, aquele em que as mulheres seguem em fila,em pass<strong>os</strong> larg<strong>os</strong>, como que subin<strong>do</strong> <strong>os</strong> degraus que as levaria até a aldeia d<strong>os</strong>mort<strong>os</strong>.Chegan<strong>do</strong> no enekutaku, cantaram música de iamurikuma e então sep<strong>os</strong>icionaram n<strong>os</strong> <strong>do</strong>is grup<strong>os</strong> para iniciarem a luta <strong>do</strong> kapi. Ao final, por volta<strong>do</strong> meio dia, com vence<strong>do</strong>ras e perde<strong>do</strong>ras suadas, cansadas e completamentesujas de terra, foram todas para o banho, aparentemente sem ressentiment<strong>os</strong>pel<strong>os</strong> golpes recebid<strong>os</strong>.> |


224KapiLutas corporais no final <strong>do</strong> ritual de iamurikumaMulheres aguardan<strong>do</strong> a convocaçãopara lutarLuta<strong>do</strong>ras convocadas em p<strong>os</strong>ição para oinício da lutaLutas com uma dupla decada vezVárias duplas lutan<strong>do</strong> simultaneamente


225No derradeiro final de tarde, um grupo de mulheres sentou-seem frente à kuwakuho enquanto outro se p<strong>os</strong>icionou dentro dacasa de Itsautaku. Os “<strong>do</strong>n<strong>os</strong>” de iamurikuma pintaram deurucum a testa das mulheres com o motivo chama<strong>do</strong> de siuteju,“ararinha”, que corresponde a uma faixa vermelha sobre a testae sobrancelhas.mandioca”, nas mulheres.Os homens trouxeram a comida parao centro da aldeia, e a distribuíram <strong>entre</strong>algumas mulheres. Depois de tod<strong>os</strong>comerem, as mulheres chamaram <strong>os</strong>anawekeho para receberem seuspagament<strong>os</strong>.Os <strong>do</strong>is grup<strong>os</strong> sejuntaram e cantaramsimultaneamente músicasdiferentes em companhiade Iutá. Ao passarem emfrente às casas d<strong>os</strong>“<strong>do</strong>n<strong>os</strong>” <strong>do</strong> ritual, <strong>os</strong>homens que ali estavam,jogaram ieju, “pasta de


226Cada homem convocou uma das mulheres de sua casa para levar askamalupo, “grandes panelas”, para casa, tarefa que não poderia ser realizadapor homens, que não carregam nada sobre a cabeça, sen<strong>do</strong> esta uma formafeminina de transportar coisas e não há outra forma de levar as grandespanelas de barro em segurança que não seja sobre a cabeça. Assim, às 17horas de 1 de novembro encerrou-se a festa de iamurikuma.Data horário Disp<strong>os</strong>ição coreográfica Repertório Musical1/11 madrugada- poucas mulheres no centro Ø não graveimd21da aldeiae 22K? + K?9:30- 2 bloc<strong>os</strong> na frente de cadacasaI31 I31- Em frente à casa de80 o . atéItsautakuopk 2 opk 5 opk 3 opkdiae dentro da casa também 5opukakala na casa deItsautakuI30 I3- Repetem coreografiaipitsehene e cantam músicade Iamurikuma.12:0012:2316:3017:00- Formam 2 grup<strong>os</strong> de kapi,‘luta’.- banho3 bloc<strong>os</strong> e cantam na frentena casa de cada <strong>do</strong>no deana.- 2 bloc<strong>os</strong> no centro daaldeia, homens jogam pastade mandioca nas mulheres- Mulheres chamam <strong>os</strong>“<strong>do</strong>n<strong>os</strong> de iamurikuma” parareceberem seus presentesFim da festaLutaK137 K138 c/ Iutá +K139I31 + K?Segue abaixo resumo <strong>do</strong> repertório grava<strong>do</strong>. Os númer<strong>os</strong> grafad<strong>os</strong> em vermelhocorrespondem às canções transcritas em partitura, e n<strong>os</strong> grafad<strong>os</strong> em verde há apenastranscrição <strong>do</strong> texto. O sinal Ø, indica <strong>os</strong> dias em que não houve atividade específica <strong>do</strong>ritual.


227Dias CANÇÕES1 14/8 não gravei2 15/8 Ø3 16/8 I1 I2 I3 I4 I5 I6 I7 I84- 15 Ø16 29/8 K1 K2 K317 30/8 K418 31/8 Ø pescaria19 1/9 K5 K6 K7 K820 2/9 K9 K10 K11 K12 [ ] K13 K14 K15 [ ] K16 K17 [ ] K18 K19 [ ] K20 K21 K22[ ]K23 K24 K25 K26 [ ] K27 K28 K29 [ ] K30 K31 K32 K33 K34 [ ] K35 K36 K37K38 K39 K40 K4121 3/9 Ø22 4/9 K39 K42 K43 I 9 I10 I1123 5/9 Ø24 6/9 não gravei25 -26 Ø27 9/9 K44 K20 K45 K20 K46 K26 K16 K47 K48 K25 K21 K22 K49 K24 K50 K51K23 K52 K53 K54 K55 K56 K5728 10/9 I12 I9 I13 I14 I15 I16 I1729 11/9 I18 I19 I11 I20 I21 I22 I23 I24 I25 I26 I27 I2830 12/9 Ø31 13/9 K58 K59 K60 K61 K62 K63 K64 K65 K66 K67 K6832 14/9 K69 K70 [ ] K71 K72 K43 K73 I4 I3 I11 I12 I2 I4 I24 I23 K74 K27 K28 K29 K3033 15/9 Ø34 16/9 K75 I29 K76 K77 K78 K79 K3135 17/9 K81 K80 K81? K3 K1 K82 [ ] I12 I4 I2 I23 I24 [ ]Opk1 Opk 2 Opk 3 Opk 4 K83K20 K84 K85 K26 K86 K87 K2136 18/9 I30 I3 I12 I12’ I4 I2 K88 [ ] K89 I31 I32 I12 K90 K91 K9237-43 Ø44 26/9 K93 K31 K79 K94 K95 K96 K97 K77 K7845-57 viagem 27/9 a 9/1058 10/10 não gravei59-67 Ø68 20/10 pela manhã não gravei; fim de tarde I 31 I33 I34 I35 I36 I37 I38 I13 I1169 21/10 Ø70 22/10 fim da tarde não gravei; noite R1 R2 R3 R4 R571-72 Ø73 25/10 K5 Krep? K98 I3774 26/10 não gravei - Mulheres convocam <strong>os</strong> homens para fazerem flechas75 27/10 madrugada não gravei; fim da tarde não gravei Ø76 28/10 K99 K100 K101 K102 K103 K104 K105 K106 K107 K108 K109 K110 K111K112 K113a K113b K114 K115 K116 K117 K118 K119 K120 (Y) I39 K 12177 29/10 K122 K123 K124 K125 noite não gravei I 1478 30/10 madrugada e manhã até meio dia, não gravei79 31/10 manhã até meio dia não gravei I12 + K? K126 K94 K62 + K? K63+ K? K? + K?K64 K 127 K128 K129 K130 K131 Opk 4 Opk 5 Opk 3 K132 + I9 K133 + I9 K91K65=92 K66 K134 K135 K136 K67 K6880 1/11 não gravei madrugada, K?+ K? I31 Opk 2 Opk 5 Opk 3 Opk 5 I30 I3 K137 K138I31 + K?


228CAPÍTULO V<strong>Ritual</strong>: coreografia, movimentação, adensamentoComo vim<strong>os</strong>, havia cinco homens iamurikumawekeho, “<strong>do</strong>n<strong>os</strong> deiamurikuma”, que ficaram <strong>do</strong>entes por causa deste apapaatai no passa<strong>do</strong> e,após curad<strong>os</strong>, ficaram obrigad<strong>os</strong> a realizar periodicamente rituais para ele. Háquinze an<strong>os</strong>, as mulheres, num iamurikuma, fizeram e <strong>entre</strong>garam para <strong>os</strong>cinco homens <strong>os</strong> anaweke, "grandes pilões". Passad<strong>os</strong> estes an<strong>os</strong>, <strong>os</strong> pilõesestavam em péssimo esta<strong>do</strong> de conservação e deveriam ser queimad<strong>os</strong>, o quetambém requereria um novo ritual. As mulheres que são consideradasespecialistas n<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> deste ritual são as que podem propor a realização dafesta, desde que <strong>os</strong> iamurikumawekeho se comprometam a fornecer o alimentodurante to<strong>do</strong> o ciclo ritual. Como vim<strong>os</strong> também, durante o decorrer da festafoi ofereci<strong>do</strong> alimento em várias ocasiões, principalmente n<strong>os</strong> finais de tardeapós pescarias coletivas. Também, foram <strong>entre</strong>gues pel<strong>os</strong> iamurikumawekehoaliment<strong>os</strong> especialmente para seus kawokalamona. Cada um d<strong>os</strong>iamurikumawekeho tem ao men<strong>os</strong> um kawokalamona de iamurikuma, e aspessoas envolvidas neste ritual são as seguintes: Iutá tem Iauru, Hapari eMana como kawokalamona de iamurikuma, já o próprio Iutá e também suaesp<strong>os</strong>a Ulusã são kawokalamona de Itsautaku. Iatuná tem a filha de seu irmãoIutá, Apayupualu, como sua kawokalamona. Peye tem também Iauru como suakawokalamona, e Aluakuma tem Waru e Iatamalu.


229No gráfico acima, estão disp<strong>os</strong>tas as casas da aldeia numeradas, edestacad<strong>os</strong> em amarelo <strong>os</strong> “<strong>do</strong>n<strong>os</strong> de iamurikuma” (iamurikumawekeho), emazul seus kawokalamona, e em verde, as cantoras (iamurikuma apaiwekeho). Amaior concentração envolven<strong>do</strong> esses papéis se dá <strong>entre</strong> as casa de Iutá e deItsautaku (casas 15 e 8 respectivamente): amb<strong>os</strong> têm mais de umkawokalamona (o primeiro três, o segun<strong>do</strong> <strong>do</strong>is), e ocupam p<strong>os</strong>içõesimportantes na aldeia. Enquanto Iutá é o amunau, “chefe”, Itsautaku é oiakapá, “pajé” mais importante, e também irmão mais velho das duas cantorasprincipais. O prestígio de alguns d<strong>os</strong> “<strong>do</strong>n<strong>os</strong>” de rituais fica aqui evidente pelaacumulação diferencial de papéis de ordem política e na rede de parentesco(ver abaixo a genealogia das pessoas envolvidas no ritual). O fato de Iutáorganizar duas vezes as sessões de opukakala e ipitsehene (em 18 de setembroe 1 o de novembro) na casa de Itsautaku demonstra seu reconhecimento <strong>do</strong>prestígio <strong>do</strong> pajé, e seu próprio prestígio como chefe capaz de arregimentar e“pagar” pelas performances, fornecen<strong>do</strong> alimento para tod<strong>os</strong> (lembro também a<strong>entre</strong>ga que Iutá fez de um macaco para sua kawokalamona Iauru). As famíliasde amb<strong>os</strong>, durante to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> ritual trabalharam intensamente paraproduzir a quantidade necessária de peixe e beijú, movimentan<strong>do</strong> o circuito deprestações e contraprestações rituais. Alguns membr<strong>os</strong> destas famíliasreclamam <strong>do</strong> trabalho que dá ser “<strong>do</strong>no” de apapaatai e tomam a tarefa comoum far<strong>do</strong> oner<strong>os</strong>o. Assim, para que o prestígio de alguns se mantenha, énecessário que seu grupo familiar o apóie. Soube de cas<strong>os</strong> de “<strong>do</strong>n<strong>os</strong>” deapapaatai que, sem conseguirem tal adesão, deixaram de promover <strong>os</strong> rituais aque são obrigad<strong>os</strong>, e vivem amedrontad<strong>os</strong>, não sei se com me<strong>do</strong> de a<strong>do</strong>eceremou <strong>do</strong> que p<strong>os</strong>sa lhes acontecer no caminho que terão de percorrer <strong>entre</strong> aaldeia d<strong>os</strong> viv<strong>os</strong> e a yuwejokupoho, “aldeia d<strong>os</strong> mort<strong>os</strong>”, quan<strong>do</strong> não terão seusapapaatai aliad<strong>os</strong> para <strong>os</strong> proteger.> |


230Genealogia das pessoas envolvidas no ritual de iamurikuma.Nesta rede de trocas e pagament<strong>os</strong> instituíd<strong>os</strong> pelo ritual ressalta acomplementaridade e colaboração <strong>entre</strong> homens e mulheres. Ocorre aqui alg<strong>os</strong>imilar ao que presenciei no ritual de kukuho, “<strong>do</strong>no da mandioca”. Neste,objet<strong>os</strong> relacionad<strong>os</strong> às mulheres são feit<strong>os</strong> pel<strong>os</strong> homens e <strong>entre</strong>gues a elas(as pás de beijú e o desenterra<strong>do</strong>r de mandioca). Já no iamurikuma, elasdevem presentear <strong>os</strong> “iamurikumawekeho” com nov<strong>os</strong> pilões de madeira e, aofinal, <strong>entre</strong>gar-lhes grandes panelas de cerâmica, minuci<strong>os</strong>amente decoradas,as kamalupo, além de muitas flechas. Porém, quem fabrica as flechas e o pilã<strong>os</strong>ão <strong>os</strong> homens, que <strong>os</strong> <strong>entre</strong>gam às mulheres para que elas <strong>entre</strong>guem a<strong>os</strong>“<strong>do</strong>n<strong>os</strong>” da festa. As panelas podem ser produzidas por homens ou mulheres,


231no entanto há mais mulheres ceramistas <strong>do</strong> que homens. A questão <strong>do</strong>prestígio também salta a<strong>os</strong> olh<strong>os</strong> no momento da <strong>entre</strong>ga d<strong>os</strong> presentes, pois,para aqueles mais considerad<strong>os</strong> – devi<strong>do</strong> à acumulação diferencial de papéistipicamente polític<strong>os</strong>, rituais e na rede de parentesco- são dadas as melhorespanelas e uma quantidade maior de flechas.Curi<strong>os</strong>o que atualmente haja cinco “<strong>do</strong>n<strong>os</strong> de iamurikuma” na aldeia,tod<strong>os</strong> homens, e também cinco “<strong>do</strong>n<strong>os</strong> de kawoká” (Piedade, 2004: 131), nestecaso três homens e duas mulheres. Não há, portanto, uma ligação explícita<strong>entre</strong> o gênero <strong>do</strong> “<strong>do</strong>no” e o <strong>do</strong> apapaatai envolvi<strong>do</strong>. Da comparação <strong>entre</strong> asduas listas, o que ressalta mais uma vez é o prestígio de Itsautaku, “<strong>do</strong>no” d<strong>os</strong><strong>do</strong>is rituais.O início e o fim <strong>do</strong> ritual são marcad<strong>os</strong> pelo discurso cerimonial, feito nocentro, reforçan<strong>do</strong> <strong>os</strong> compromiss<strong>os</strong> d<strong>os</strong> envolvid<strong>os</strong>. Esta fala, <strong>entre</strong>tanto,instaura o perío<strong>do</strong> mais denso <strong>do</strong> ritual, de maior atividade, não o ritualpropriamente, pois ele já estava ocorren<strong>do</strong> antes (como visto, <strong>entre</strong> 14 e 30 deag<strong>os</strong>to) e seguiu ainda após a convocação para o encerramento, em 28 deoutubro (o último dia <strong>do</strong> ritual foi 1 o de novembro). Este aparente“descompasso” <strong>entre</strong> a convocação e as atividades rituais, aponta para o ritualcomo um momento especial dentro de um tempo que não inicia nem terminano presente: ele é anterior e p<strong>os</strong>terior à festa, pois <strong>os</strong> compromiss<strong>os</strong> continuama existir.A música e a dança, através <strong>do</strong> canto das mulheres, são <strong>os</strong> marca<strong>do</strong>resd<strong>os</strong> moment<strong>os</strong> dens<strong>os</strong> <strong>do</strong> rito. A movimentação coreográfica varia de acor<strong>do</strong>com o número de participantes, com a disp<strong>os</strong>ição das dançarinas <strong>entre</strong> si, e odeslocamento destas pelo perímetro da aldeia. Tais variáveis estão relacionadasao repertório musical, pensa<strong>do</strong> aqui como um roteiro, que, por sua vez, deve seadequar a<strong>os</strong> períod<strong>os</strong> <strong>do</strong> dia (manhã, tarde, noite e madrugada) e a<strong>os</strong>moment<strong>os</strong> específic<strong>os</strong> <strong>do</strong> rito, tais como pescaria d<strong>os</strong> homens, abertura,encerramento. Parte deste repertório, aquele que aqui classifiquei como I, sãoo roteiro para o ritual, basea<strong>do</strong> no script <strong>do</strong> aunaki, o mito. Cada canto narraum momento <strong>do</strong> mito e pode se repetir em diferentes dias, o que evoca umanão linearidade <strong>do</strong> ritual. Há algo semelhante àquilo que Menezes Bast<strong>os</strong>(1990) detectou no yawari como uma compressão e distensão <strong>do</strong> tempo. Este


232autor usa a imagem <strong>do</strong> fole de uma sanfona para evocar a alternância <strong>entre</strong>moment<strong>os</strong> de total retraimento (pensad<strong>os</strong> como adensament<strong>os</strong>) e de completadistensão d<strong>os</strong> event<strong>os</strong> rituais. Se uma parte <strong>do</strong> repertório musical é ligada aomito, a outra, K, não se atém a este, mas às paixões, a<strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong> dehomens e mulheres, e fazem a ponte sonora <strong>entre</strong> o iamurikuma e o kawoká.São estes cant<strong>os</strong>, <strong>os</strong> kawokakuma, que merecerão maior aprofundamentoanalítico adiante.De toda a descrição <strong>do</strong> ritual, identifico onze disp<strong>os</strong>ições coreográficas,pensan<strong>do</strong> aqui não apenas na dança, mas n<strong>os</strong> comportament<strong>os</strong> corporais quese distinguem daqueles <strong>do</strong> cotidiano. Geralmente, quan<strong>do</strong> a formaçãocoreográfica é comp<strong>os</strong>ta de duas linhas paralelas 185 , as cantoras principais vãoao centro da primeira linha, caracterizan<strong>do</strong>, por outro la<strong>do</strong>, uma estruturanúcleo/periferia, em linha. Em cada linha, as mulheres andam de mã<strong>os</strong> dadas,com a batida d<strong>os</strong> pés sincronizadas, acentuan<strong>do</strong> o pé direito. Este peso no la<strong>do</strong>destro é constante em tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> rituais xinguan<strong>os</strong> e percebi o constrangimentoque passam as crianças que têm seu la<strong>do</strong> esquer<strong>do</strong> como preponderante,encontran<strong>do</strong> maior dificuldade em dançar de forma sincronizada com o restante<strong>do</strong> grupo 186 . No iamurikuma observa-se o que Veras chamou de carátercatabático da dança xinguana (Veras, 2000:73), ou seja, sua <strong>entre</strong>ga àgravidade, em op<strong>os</strong>ição ao acrobático <strong>do</strong> balé clássico. Na formação em bloco,comp<strong>os</strong>to por três ou quatro linhas men<strong>os</strong> extensas, configura-se uma espéciede retângulo. Ao observar um ritual de iamurikuma <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Kalapalo, Veras185 A nomenclatura aqui utilizada para as formações coreográficas baseia-se naquelautilizada por Menezes Bast<strong>os</strong> (1990) ao analisar o ritual de yawari <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Kamayurá:procissão, linha, bloco e cunha. No ritual de iamurikuma também foram observadasestas mesmas disp<strong>os</strong>ições, com ênfase nas linhas e bloc<strong>os</strong>. É importante ressaltar queestas coreografias remetem ao mun<strong>do</strong> da guerra, suas formações e disp<strong>os</strong>ições(Menezes Bast<strong>os</strong>, op. cit.). De fato, tal nexo pode ter pertinência em outr<strong>os</strong> cenári<strong>os</strong>etnográfic<strong>os</strong>, como se pode inferir no uso da metáfora militar no discurso Guarani sobresuas danças, povoadas de “soldad<strong>os</strong>” e “polícia” (Montar<strong>do</strong>, 2002:236). A dançaGuarani é uma espécie de treinamento militar para uma guerra iminente que, naverdade, não existe, ao men<strong>os</strong> atualmente (op.cit:240).186 Este caso faz lembrar o que n<strong>os</strong> m<strong>os</strong>tra Hertz, através <strong>do</strong> exemplo da proeminênciada mão direita, como a ambidestralidade simplesmente é algo indesejável, pois aapreensão que fazem<strong>os</strong> das assimetrias orgânicas mantém estreita correspondênciacom a apreensão que tem<strong>os</strong> da vida em op<strong>os</strong>ição à morte, daí derivan<strong>do</strong> todas aspolaridades que governam o universo em torno <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong> e <strong>do</strong> profano. O corpo dehomens e mulheres servem, pois, como suporte de uma cadeia de associaçõesmetafóricas e poder<strong>os</strong>as. (Hertz,1980[1910]).


233notou que a formação em bloco ocorre no início e no final <strong>do</strong> ritual, moment<strong>os</strong>em que o bloco circunda a aldeia pelo pátio central (op.cit:62). Conformedescrito neste ritual, vim<strong>os</strong> estes bloc<strong>os</strong> serem formad<strong>os</strong> em vári<strong>os</strong> moment<strong>os</strong>,porém, sempre pontuan<strong>do</strong> aqueles de maior densidade. Resumidamente, asonze disp<strong>os</strong>ições são as seguintes:1. Disp<strong>os</strong>ição Básica: 3 cantoras no centro. Observei, também, apenasduas mulheres iniciarem <strong>os</strong> cant<strong>os</strong>, mas logo apareciam outras para sejuntarem ao grupo. Este número mínimo de três faz lembrar <strong>os</strong> trêsflautistas de kawoká. O deslocamento das cantoras pode se dar semprecom o corpo direciona<strong>do</strong> para frente, quan<strong>do</strong> dão geralmente quatropass<strong>os</strong> para frente e <strong>do</strong>is para trás, em marcha a ré (figura a), ou entãoquatro pass<strong>os</strong> para frente, dan<strong>do</strong> meia volta e se deslocan<strong>do</strong> <strong>do</strong>is pass<strong>os</strong>(figura b).a)b)2. Disp<strong>os</strong>ição mais freqüente: duas linhas, com 3 cantoras no centro daprimeira linha, e todas de mã<strong>os</strong> dadas, algumas poden<strong>do</strong> estar de braç<strong>os</strong>dad<strong>os</strong>.3. Em dias especiais, dias em que se observa maior concentração de event<strong>os</strong>:


234• bloco: com a<strong>do</strong>lescentes paramentadas no centro da primeira linha 187 , eas cantoras no centro da segunda. Pode haver mais de um bloco cantand<strong>os</strong>imultaneamente, geralmente constituíd<strong>os</strong> por grup<strong>os</strong> de idade. Osmesm<strong>os</strong> <strong>do</strong>is tip<strong>os</strong> de deslocamento anteriormente mencionad<strong>os</strong> sãoobservad<strong>os</strong>, no entanto, quan<strong>do</strong> ocorre a opção (b), somente a linha dafrente dá meia volta, o restante <strong>do</strong> bloco permanecen<strong>do</strong> sempre de frente(vide figura c)• bloco com cantoras à frente: cantoras no centro da primeira linha, emeninas a<strong>do</strong>lescentes (sem cocar) nas pontas desta linha. Também podehaver mais de um grupo cantan<strong>do</strong> simultaneamente.c)4. Teme, “anta”: procissão de mulheres, com uma mulher velha lideran<strong>do</strong> ogrupo (da primeira vez, o bloco era forma<strong>do</strong> por jovens e mulheres maduras,da segunda, apenas pelas mais jovens).187 Essas a<strong>do</strong>lescentes parecem ocupar a mesma p<strong>os</strong>ição que <strong>os</strong> tenotat, “reclus<strong>os</strong>”, noyawari, de acor<strong>do</strong> com descrição de Menezes Bast<strong>os</strong> (1990:103). Segun<strong>do</strong> este autor,estes jovens encarnam um poder op<strong>os</strong>to àquele d<strong>os</strong> chefes e pajés, contaminad<strong>os</strong> porsuas realizações sociais.


2355. Iusi, “perereca”: bloco de mulheres, que atacam as casas e as redes d<strong>os</strong>homens, convidan<strong>do</strong> para fazer sexo (da primeira vez, o grupo era forma<strong>do</strong> porjovens e mulheres maduras, da segunda, apenas pelas mais jovens).6. Aluwa, “morcego”: pares de mulheres, dançan<strong>do</strong> uma de frente para a outra,de mã<strong>os</strong> dadas, giran<strong>do</strong> o corpo, com movimento de gangorra n<strong>os</strong> braç<strong>os</strong>.7. Opukakala: esta coreografia é radicalmente diferente de to<strong>do</strong> o resto. Alémde ser um solo, o movimento d<strong>os</strong> braç<strong>os</strong> levantad<strong>os</strong>, em forma de arco, sugereum desvio <strong>do</strong> padrão catabático, sen<strong>do</strong> que a cantora pode segurar uma flechaem cada mão. Enquanto a solista desenvolve sua coreografia andan<strong>do</strong> quatropass<strong>os</strong> para frente, dan<strong>do</strong> meia volta e retornan<strong>do</strong> ao ponto inicial, as demaismulheres permanecem sentadas à sua volta responden<strong>do</strong> em coro ao canto dasolista. As cantoras que assumem este solo foram todas paramentadas porIutá. Esta coreografia ocorreu em 3 situações: de noite, no centro; de manhã,na casa de Itsautaku; e também pela manhã à frente da casa <strong>do</strong> pajé, com umdeslocamento da solista até o centro dançan<strong>do</strong>, enquanto o coro permaneciadentro da casa.8. Iptsehene: dentro da casa <strong>do</strong> “<strong>do</strong>no”, duas linhas, uma em frente à outra.Enquanto uma, formada por cinco mulheres paramentadas, se movimenta emprocissão, a outra permanece parada, cantan<strong>do</strong>. Ao final, todas se juntam àprocissão, se deslocan<strong>do</strong> até o centro, quan<strong>do</strong> formam um bloco. Estacoreografia sempre se segue ao opukakala que ocorre de manhã.9. Repente: solista se mantém em pé, enquanto o coro fica senta<strong>do</strong> cantan<strong>do</strong>um refrão. A solista gesticula muito em direção à casa de quem ela pretendeofender.10. Oteju, “caranguejinho”, procissão de mulheres rastejantes, passam pordentro da casa d<strong>os</strong> <strong>do</strong>n<strong>os</strong>, e homens jogam pasta de pequi.11. Kapi, a luta corporal. No primeiro dia, as mulheres maduras, que já foramcampeãs no passa<strong>do</strong>, participaram. Este dia foi considera<strong>do</strong> um treino para odia seguinte, quan<strong>do</strong> apenas as mais jovens lutaram.Os dias de maior destaque, quan<strong>do</strong> as jovens paramentadas participam àfrente <strong>do</strong> grupo, parecem corresponder a uma retribuição à pescaria d<strong>os</strong>homens. Salienta-se a beleza das jovens, seus corp<strong>os</strong> recém saíd<strong>os</strong> da


236reclusão, sua pintura corporal elaborada. A minuci<strong>os</strong>a elaboração das pinturascorporais das jovens, repletas de padrões geométric<strong>os</strong> de <strong>alto</strong> poder simbólico,aderin<strong>do</strong> por muit<strong>os</strong> dias à pele, contrasta com aquela das mulheres maduras,feitas rapidamente, com rápidas pinceladas, nas quais se utilizam pigment<strong>os</strong>que aderem por pouco tempo no corpo 188 . Nestas ocasiões, as cantoras ficamliteralmente em segun<strong>do</strong> plano, atrás das jovens. No entanto, n<strong>os</strong> moment<strong>os</strong>mais dens<strong>os</strong>, nas frias madrugadas de vigília, quan<strong>do</strong> o objetivo principal não éimpressionar <strong>os</strong> homens e sim <strong>os</strong> apapaatai, é a performance competente dascantoras que prevalece. Isto confirma as observações de Franchetto, que vênestes moment<strong>os</strong> a densidade ritual recair sobre as construções melódicas d<strong>os</strong>cant<strong>os</strong> “sem palavras”, executad<strong>os</strong> sobre sílabas aparentemente sem senti<strong>do</strong>,ligad<strong>os</strong> a<strong>os</strong> “hiperseres” (2001:47).Todas estas disp<strong>os</strong>ições coreográficas apontam para moment<strong>os</strong> rituaiscom distintas motivações, “enquadran<strong>do</strong>” comportament<strong>os</strong> que podem ir dabrincadeira à agressão. As idéias que Bateson desenvolve em sua teoria sobre abrincadeira e enquadre (1998 [1972]) ajudam a pensar sobre <strong>os</strong> conjunt<strong>os</strong> demensagens que estão em jogo em cada um d<strong>os</strong> diferentes context<strong>os</strong> ao longo<strong>do</strong> ritual. Há um pano de fun<strong>do</strong> que é da<strong>do</strong> pela diferença <strong>entre</strong> homens emulheres, uma disputa por espaço, presente na maioria das falas d<strong>os</strong> rapazes eno comportamento das moças. Iamurikuma aitsa awojopai, “iamurikuma não élegal” (tradução livre), dizem <strong>os</strong> rapazes a to<strong>do</strong> o momento. Iamurikumaapokapai, peietepei, “iamurikuma está louca, brava”, afirmam <strong>os</strong> mais velh<strong>os</strong>.As mulheres parecem indiferentes às provocações, manten<strong>do</strong>-se sempre altivase distantes, exceto n<strong>os</strong> moment<strong>os</strong> em que resolvem, em grupo, atacar <strong>os</strong>homens. Elas tanto podem bater, arranhar, dar beliscões, quanto atacarsexualmente, in<strong>do</strong>, também em grupo, até suas redes. Bateson chama aatenção para o fato de que não há <strong>entre</strong> a brincadeira, o blefe, e a ameaça umadelimitação clara, na verdade “formam junt<strong>os</strong> um único e indivisível complexode fenômen<strong>os</strong>” (op.cit:61). Há que se a<strong>do</strong>tar o frame correto para nãoextrapolar <strong>os</strong> objetiv<strong>os</strong>. Em alguns moment<strong>os</strong> vim<strong>os</strong> o quanto é delica<strong>do</strong>188 Esta observação contrasta ainda com a de Lagrou, ao se referir a<strong>os</strong> rit<strong>os</strong> depassagem Kaxinawá. Neste contexto, reservam a elaboração mais fina e cuidad<strong>os</strong>a a<strong>os</strong>corp<strong>os</strong> adult<strong>os</strong>, enquanto <strong>os</strong> jovens são a<strong>do</strong>rnad<strong>os</strong> com pinturas mal feitas, por seremestes últim<strong>os</strong> men<strong>os</strong> susceptíveis a<strong>os</strong> process<strong>os</strong> de transformação (2003:103).


237manter-se dentro da conduta apropriada em cada situação. Quan<strong>do</strong> achou queas mulheres tinham passa<strong>do</strong> da medida em suas agressões, Kaomo, um d<strong>os</strong>homens mais tranqüil<strong>os</strong> e cordat<strong>os</strong> da aldeia, pegou um pau para bater nasmulheres. Apesar de não ter bati<strong>do</strong> em ninguém, sua atitude denotava agravidade da situação. Outro momento emblemático foi o <strong>do</strong> rapaz que ficoubravo com as mulheres que queriam deitar em sua rede. Elas não precisarambater nele para m<strong>os</strong>trar sua indignação, apenas o envergonharam afirman<strong>do</strong>que ele as refutava porque não sabia controlar sua ereção. As armas podem sermuitas: um pedaço de pau, uma palavra cortante, um canto bem feito.Com exceção de alguns pouc<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> voltad<strong>os</strong> à joc<strong>os</strong>idade, como o deiusi, teme, aluwa, e aquele que classifiquei como “repente” -em que Kalupukurevi<strong>do</strong>u as agressões feitas pel<strong>os</strong> homens dias antes-, tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> demais cant<strong>os</strong>de iamaurikuma são auster<strong>os</strong> (não me refiro aqui a<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> de kawokakuma).Um destaque para <strong>os</strong> cant<strong>os</strong> de opukakala, em que a solista canta suatransformação em iamurikuma, parecen<strong>do</strong> ser o mais austero destes cant<strong>os</strong>.Este tipo de formação vocal, com solista e coro, nunca foi descrito na etnologiaamazônica, e, caso não seja único, ao men<strong>os</strong> é muito raro 189 . Esta formaçãoantifonal ("call and response") difere daquela descrita como núcleo/periferia. Noprimeiro caso a relação <strong>entre</strong> as partes é replicativa, com centro no solista,enquanto que no segun<strong>do</strong>, a relação <strong>entre</strong> elas é de diferenciação, não haven<strong>do</strong>centro 190 .As performances de opukakala aconteceram no meio e no final <strong>do</strong> ritual,e, nestas duas ocasiões, foram realizad<strong>os</strong> tanto à noite, quant<strong>os</strong> na manhãseguintes. Talvez isto se relacione à compressão e distensão <strong>do</strong> tempoconforme referidas acima, quan<strong>do</strong> o mesmo fato pode ocorrer em moment<strong>os</strong> eespaç<strong>os</strong> diferentes. Há que ser nota<strong>do</strong> que esta repetição de event<strong>os</strong> ocorrecom uma certa freqüência, geralmente a primeira vez ten<strong>do</strong> um caráter deensaio ou ensinamento das mulheres mais velhas e experientes, e a segunda,demonstran<strong>do</strong> a competência das mais jovens em assumirem sozinhas a189 A título especulativo, lembro que Lomax (1968) relaciona este tipo de formaçãomúsico-coreográfica a configurações políticas centralizadas, o que, de certa forma, écompatível com as idéias de Ro<strong>os</strong>evelt (1992:82) sobre a similaridade d<strong>os</strong> estad<strong>os</strong>amazônic<strong>os</strong> (<strong>os</strong> cacicad<strong>os</strong>) com aqueles <strong>do</strong> vale <strong>do</strong> In<strong>do</strong> e <strong>do</strong> mar Egeu, e acentralização <strong>do</strong> poder em sociedades aruak.190 Esta distinção é observada por Menezes Bast<strong>os</strong> (1999b).


238performance. Isto ocorreu n<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> de teme, nas investidas de iusi e na lutacorporal.Antes <strong>do</strong> canto de opukakala da noite que antecedeu o final <strong>do</strong> ritual,ocorreu um momento de tensão <strong>entre</strong> as cantoras. Já era noite, e seria a horada execução de um canto kanupá, “sagra<strong>do</strong>”, que as mulheres se m<strong>os</strong>traraminseguras em realizar. Então, o chefe Iutá assumiu e cantou esta música. Asmúsicas que recebem esta classificação contêm uma estrutura rítmico-melódicaque não comporta err<strong>os</strong> durante sua execução, bem como seu texto não podeser canta<strong>do</strong> equivocadamente, sob pena de causar <strong>do</strong>ença e morte àquele queassim o executar. Em vista da gravidade que cerca estes cant<strong>os</strong>, e da relaçãoque parece haver <strong>entre</strong> estruturas musicais e questões c<strong>os</strong>mológicas, tragoalguns esclareciment<strong>os</strong> sobre a categoria kanupá para, a seguir, empreenderum mergulho – note-se que de profundidade exploratória devi<strong>do</strong> às dimensõesdeste trabalho - no código musical d<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> de kawokakuma no senti<strong>do</strong> decontribuir com mais dad<strong>os</strong> para a análise deste ritual por excelência musical.> |


239partes de repertóri<strong>os</strong> musicais cuja poética remete a tod<strong>os</strong> estes significad<strong>os</strong>.Na tese de Piedade, ao tratar <strong>do</strong> repertório kanupá das flautas kawoká, é ditoque, se durante a execução deste repertório o flautista cometer um erro “eledeve terminar a peça e pingar pimenta no olho, para não ficar <strong>do</strong>ente” (op.cit.:133). Menezes Bast<strong>os</strong>, ao comentar uma canção kanupá <strong>do</strong> ritual deyawari, diz que esta aponta para o envio <strong>do</strong> o<strong>do</strong>r das relações sexuais para oadversário ritual, poden<strong>do</strong> com isto enfeitiçá-lo e causar seu insucesso duranteas lutas corporais que se sucederão (1990:337; 2001:350). Franchetto (2004),ao tratar d<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> feminin<strong>os</strong> tolo, se refere ao mesmo significa<strong>do</strong> de kanupá<strong>entre</strong> <strong>os</strong> Kuikuro. Viveir<strong>os</strong> de Castro salienta o aspecto perig<strong>os</strong>o de kanupá<strong>entre</strong> <strong>os</strong> Yawalapití, e constata que a couvade <strong>entre</strong> eles gira em torno destacategoria, apontan<strong>do</strong> para a distância “que deve existir <strong>entre</strong> <strong>os</strong> seres liminarese o mun<strong>do</strong> natural e sobrenatural” (1977:178). Este autor também informa quedurante o eclipse <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Yawalapití são tocadas músicas kanupá nas flautasapapálu, visto que este é um momento crítico para o mun<strong>do</strong> social, momentode condensação <strong>do</strong> dia e da noite (op.cit.: 109-110) 192 .Para uma exegese pormenorizada deste conceito, apresento a seguir umtrecho de uma <strong>entre</strong>vista que fiz com Iutá, com tradução de Tupanumaká,onde, além de esclarecer o ponto de vista <strong>Wauja</strong> sobre kanupá, tambémapresenta o mito de origem <strong>do</strong> repertório kanupá das flautas kawoká.“Kanupa é música <strong>do</strong> passarinho, <strong>do</strong> kulatoju 193 , que é<strong>do</strong>no de kawoká. É a música dele que Iutá cantou, música queninguém canta. É música de kawoká. [N.T. É proibi<strong>do</strong> para asmulheres cantar isso. É proibi<strong>do</strong> m<strong>os</strong>trar para elas. É proibi<strong>do</strong>tocar dentro <strong>do</strong> kawoká, só lá para a meia-noite é que pode. Eulembro disso, eu estou acrescentan<strong>do</strong> o que eu sei. Meia-noite,depois que a criançada <strong>do</strong>rmiu, o pessoal <strong>do</strong> kawoká vai tocaressa música que Iutá cantou. Kanupá que chama. Se não quiserque criança escute, tem que tapar o ouvi<strong>do</strong> delas. Eles avisam:“tampem o ouvi<strong>do</strong> das crianças!” Eu lembro disso. Agora... ele192 Ainda sobre o conceito de kanupá no contexto xinguano, ver Monod-Bequelin (1975).193 Kulatoju, nome <strong>Wauja</strong> para tico-tico-<strong>do</strong>-mato-de-bico-preto, arremon t.taciturnus.


240cantou no meio de to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> [Tupanumaka disse isso com umar de decepção e reprovação]. É uma bobagem dele. Ele disseque se ele soubesse que você estava lá gravan<strong>do</strong> ele nãocantava, mas ele cantou porque ele quis cantar, né...] 194 .Kanupá vem da história <strong>do</strong> grupo que foi queima<strong>do</strong> dentro dakuwakuho, porque eles tinham comi<strong>do</strong> o filho <strong>do</strong> chefe que foivisitar a irmã... [N.T. depois eu te conto essa história bembonito, agora vou te contar só um pouco. Foi assim:]M6 - Aunaki de KanupáNarra<strong>do</strong> por Tupanumaká.O filho <strong>do</strong> chefe tinha i<strong>do</strong> visitar a irmã em outra aldeia,e quan<strong>do</strong> chegou lá tava to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tocan<strong>do</strong> kawoká.Então, o cacique autorizou seu pessoal:- Vam<strong>os</strong> comer meu cunha<strong>do</strong>.E aí comeram... “cruck”, jogaram ele na fogueira, assaram ecomeram a carne dele.Aí passou um tempo. Tinha um fei<strong>os</strong>o que foi atrás damulher <strong>do</strong> chefe e falou pra ela:- Ei você, vem cá.- Que é que foi? Eu não quero namorar com você – elarespondeu.Ela nem sabia que o irmão tinha i<strong>do</strong> visitar ela, e quetinham comi<strong>do</strong> ele. O fei<strong>os</strong>o falou:- Vam<strong>os</strong> namorar.194 Durante a seção <strong>do</strong> ritual em que o chefe cantou as músicas kanupá, eu estavasentada diretamente à sua frente, e já vinha gravan<strong>do</strong> tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> cant<strong>os</strong> das mulheres,de mo<strong>do</strong> que, não poderia imaginar que Iutá não estivesse me ven<strong>do</strong> com o microfonena mão. Creio que ele estava tão absorvi<strong>do</strong> por sua performance que me ignoroucompletamente. Ao m<strong>os</strong>trar-lhe as gravações, ele ficou surpreso, então perguntei se elepreferia que eu desgravasse as músicas, e ele disse que não, que já estava feito, masque eu não m<strong>os</strong>trasse para as mulheres e nem para outr<strong>os</strong> putakanau, índi<strong>os</strong> de outr<strong>os</strong>grup<strong>os</strong> <strong>do</strong> Alto <strong>Xingu</strong>.


241- Não, eu não quero namorar com você. Você é feiodemais – ela respondeu.- Não, eu tenho uma coisa pra contar pra você – falou ofei<strong>os</strong>o.- O que é?- Vam<strong>os</strong> transar primeiro, depois eu conto.- Então tu<strong>do</strong> bem.Eles transaram e então ela perguntou:- O que é que você vai contar?- Seu irmão veio ontem te visitar. Quan<strong>do</strong> elechegou aqui na aldeia, seu mari<strong>do</strong> autorizou o pessoal,dizen<strong>do</strong>: “vam<strong>os</strong> comer meu cunha<strong>do</strong>”. Aí mataram seuirmão, assaram ele e comeram. Ainda... seu filho foi lápedir pra você fazer beijú. Você fez o beijú e ele levoupro enekutaku pra to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> comer com seu irmão.Mataram a arara dele e comeram também. Daqui prafrente eu caso com você.Aí a mulher ficou triste. Voltou choran<strong>do</strong> para a aldeia,nem foi mais buscar a mandioca na roça. O homemcorreu rapidinho, “tsiiimmm”, e voltou pra junto <strong>do</strong>pessoal, ninguém viu que ele tinha saí<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> elechegou, o pessoal ouviu a mulher choran<strong>do</strong>. Tava to<strong>do</strong>mun<strong>do</strong> tocan<strong>do</strong> kawoká. Daí perguntaram:- Quem foi que avisou, quem foi que contou? Quemcontou?Ninguém sabia.Aí passou. A mulher foi embora pra aldeia dela e avisouo pai, mas ele disse assim:- Não, deixa aí. Você volta pra sua casa, pro seumari<strong>do</strong> e, daqui cinco an<strong>os</strong>, dez an<strong>os</strong>, nós vam<strong>os</strong>descontar.Então ela voltou e ficou lá. Passou dez an<strong>os</strong>, quinzean<strong>os</strong> por aí, <strong>os</strong> mora<strong>do</strong>res dali esqueceram. Então, o


242pessoal dela fez igual aqui, igual Kamayurá com <strong>Wauja</strong>.Fizeram kawoká, muito kawoká tocan<strong>do</strong> “tchu, tchu,tchu, tchu...”. Fizeram uma kuwakuho enorme, bemfechada e aí convidaram a outra aldeia. O waká, oconvida<strong>do</strong>r, foi lá e o pessoal falou:- Olha, nós vam<strong>os</strong> morrer.- Que nada, rapaz. Nós não vam<strong>os</strong> morrer não. Elesjá esqueceram – falou o fei<strong>os</strong>o.- Não, nós vam<strong>os</strong> morrer sim.- Não, vam<strong>os</strong> lá. Vamo lá, rapaz, larguem de serbob<strong>os</strong>. Vocês têm me<strong>do</strong> de lutar.Então to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> foi na festa <strong>do</strong> kawoká. Aí chegaramnaquela aldeia, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> comeu beijú, peixe... Opeixe tava to<strong>do</strong> reza<strong>do</strong>, o mingau, tu<strong>do</strong> enfeitiça<strong>do</strong>.Comeram tu<strong>do</strong>, dançaram até tarde, ficaram cansad<strong>os</strong> e<strong>do</strong>rmiram na kuwakuho. Muita gente <strong>do</strong>rmiu. Aí <strong>os</strong>outr<strong>os</strong> foram lá e fecharam as portas. Fecharam tu<strong>do</strong> etocaram fogo. Morreu to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. No outro dia foramlá olhar e viram perna de gente bem gran<strong>do</strong>na e aífizeram kawoká e começaram a tocar kulatoju. Deve serkulatoju que tocou.Isso chama kanupa, porque a música que foi feita, foidentro da flauta que era de onapi, “<strong>os</strong>so de gente”. Porisso ninguém ouve essa música.Mas isso é história pequena que eu sei mais ou men<strong>os</strong>...> |


243presente. Os mit<strong>os</strong> de iamurikuma e da música kanupá apontam para umapreocupação recorrente na mitologia e na vida xinguana que se refere a<strong>os</strong>perig<strong>os</strong> envolvid<strong>os</strong> na quebra da reciprocidade e alianças, na subversão dasrelações estabelecidas, além de apontar para conseqüências que podem seprojetar temporalmente, na forma de vinganças 195 . A reciprocidade tambémpode ter um vetor negativo.Tratarei primeiramente de analisar algumas estruturas comp<strong>os</strong>icionaiscontidas no repertório de kawokakuma, para depois buscar <strong>os</strong> nex<strong>os</strong> desterepertório com as várias questões levantadas anteriormente, principalmente asrelativas à quebra da reciprocidade e à centralidade de sentiment<strong>os</strong> como ociúme e a inveja que são evocad<strong>os</strong> tanto pel<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> quanto pelas músicas.Antes de analisar o material musical apresenta<strong>do</strong>, fazem-se necessári<strong>os</strong>alguns esclareciment<strong>os</strong> sobre a natureza deste material, sua amplitude ecomplexidade. Para chegar às transcrições musicais apresentadas aqui, foinecessária uma audição atenta de aproximadamente um total de setenta horasde gravação. Nestas audições, foram classificadas cerca de duzentas músicasdiferentes, pertencentes a gêner<strong>os</strong> musicais específic<strong>os</strong>. Para alcançar estassubdivisões, foi preciso realizar uma transcrição preliminar <strong>do</strong> conjunto total depeças, e efetuar uma análise prévia deste conjunto que pudesse ajudar nestaclassificação inicial. Diferentemente <strong>do</strong> repertório das flautas kawoká, sempreexecuta<strong>do</strong> em bloc<strong>os</strong> de suítes nomeadas, <strong>os</strong> cant<strong>os</strong> de kawokakuma sãocantad<strong>os</strong> alternan<strong>do</strong> cant<strong>os</strong> de diferentes estil<strong>os</strong>, além destes cant<strong>os</strong> seremintercalad<strong>os</strong> por cant<strong>os</strong> propriamente de iamurikuma. A conclusão de que estesrepertóri<strong>os</strong> constituem gêner<strong>os</strong> diferentes, iamurikuma e kawokakuma, só pôdeser alcançada mediante tais audições e transcrições. Assim, pude reconsideraras conclusões apresentadas em minha dissertação, que apontavam para orepertório de iamurikuma fazen<strong>do</strong> parte <strong>do</strong> complexo kawoká-iamurikumacomo um to<strong>do</strong>. Como não pude contar com uma classificação nativa paraempreender um ordenamento d<strong>os</strong> cant<strong>os</strong>, a atenção durante as audições teveque ser duplicada em vista da semelhança de algumas peças. Por vezes, a letra195 Carneiro da Cunha e Viveir<strong>os</strong> de Castro (1986), ao analisarem a vingança <strong>entre</strong> <strong>os</strong>Tupinambá , estabelecem uma relação <strong>entre</strong> esta e a memória, m<strong>os</strong>tran<strong>do</strong> que avingança funcionaria como uma espécie de memoran<strong>do</strong>, atravessan<strong>do</strong> o passa<strong>do</strong>,atingin<strong>do</strong> o presente, e se projetan<strong>do</strong> no futuro.


244d<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> auxiliou na identificação, outras, no entanto, em vista da ausênciade letra, dependeu única e exclusivamente de uma escuta acurada. Ascinqüenta e três peças transcritas representam, portanto, cerca de um quarto<strong>do</strong> repertório total, e uma porcentagem menor ainda em relação ao total demúsicas cantadas ao longo d<strong>os</strong> <strong>do</strong>is meses e meio de ritual, visto que muitasdelas foram repetidas mais de uma vez (ver o relatório condensa<strong>do</strong> das peçasclassificadas ao final da descrição <strong>do</strong> ritual).A análise das transcrições apresentadas ao longo da descrição <strong>do</strong> mito e<strong>do</strong> ritual de iamurikuma exigirá <strong>do</strong> leitor uma certa d<strong>os</strong>e de disp<strong>os</strong>ição emretomar as informações de cada peça, pois repeti-las aqui tomaria espaçodemasia<strong>do</strong>. Para um acompanhamento das informações presentes n<strong>os</strong> quadr<strong>os</strong>abaixo, será necessário que o leitor retorne às partituras apresentadas n<strong>os</strong>Capítul<strong>os</strong> III e IV. Comentarei cada uma das peças em <strong>do</strong>is plan<strong>os</strong>: noprimeiro, tratarei da elaboração formal das peças, o que corresponde àsestruturas rítmico-melódicas constituídas por frases ou motiv<strong>os</strong>, que por suavez, no caso <strong>do</strong> repertório de kawokakuma se conectam em unidades maiores,compon<strong>do</strong> o que chamei de temas e , sempre unid<strong>os</strong> pela frase , haven<strong>do</strong>ainda a transformação de em no processo, da<strong>do</strong> pela inserção da letra aotema196 . No segun<strong>do</strong>, comentarei aspect<strong>os</strong> da letra, vista como poesia cujaexegese da cantora é imprescindível para a recomp<strong>os</strong>ição <strong>do</strong> nexo. Serão feitastambém considerações a respeito <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> d<strong>os</strong> poemas na sessão final datese, quan<strong>do</strong> estabelecerei uma relação mais consistente <strong>entre</strong> eles e aquelesprojetad<strong>os</strong> pela mitologia.Contu<strong>do</strong>, não preten<strong>do</strong> incorrer naquilo que Menezes Bast<strong>os</strong> (1999a)agudamente detectou como sen<strong>do</strong> o dilema musicológico (e que em 1990 esteautor generalizou como sen<strong>do</strong> um para<strong>do</strong>xo), aquele que surge ao se abordar amúsica dividin<strong>do</strong>-a em <strong>do</strong>is plan<strong>os</strong> inconciliáveis: o d<strong>os</strong> sons (ou música) e od<strong>os</strong> comportament<strong>os</strong> (cultura) o primeiro analisa<strong>do</strong> por ferramentas damusicologia, o segun<strong>do</strong>, da antropologia. Na verdade, o intuito aqui é o detratar <strong>os</strong> repertóri<strong>os</strong> musicais em foco como sen<strong>do</strong> um sistema representacionalpleno, com níveis de expressão e de conteú<strong>do</strong>, que tanto são produt<strong>os</strong> quantoprodutores da sociedade <strong>Wauja</strong>. Para tanto, é necessário que as observações e196 Mais adiante explicitarei estas noções de motivo, tema, <strong>entre</strong> outras.


245análises em curso estejam ancoradas o máximo p<strong>os</strong>sível no discurso musicalnativo. Entretanto, este discurso não é facilmente acessível, corriqueiro, sen<strong>do</strong>pouc<strong>os</strong> <strong>os</strong> que estão habilitad<strong>os</strong> a falar a respeito da música, aliás, como o queocorre com muit<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> <strong>do</strong>míni<strong>os</strong> no Alto <strong>Xingu</strong>, tais como mito, rito, etc.Mesmo <strong>os</strong> que fazem, produzem, compõem, não parecem muito à vontade emtratar da música verbalmente. Desta forma, é preciso empreender um tipo dearqueologia que toque em camadas mais profundas <strong>do</strong> que aquelasdiretamente disponíveis no discurso verbal.O discurso sobre a música parece ser tema de especialistas em to<strong>do</strong> equalquer lugar, até mesmo <strong>entre</strong> músic<strong>os</strong>, sen<strong>do</strong> que em certas situações,principalmente quan<strong>do</strong> se está buscan<strong>do</strong> uma significação para determinadamúsica, este discurso aparece conjuga<strong>do</strong> a outr<strong>os</strong>, aproximan<strong>do</strong> questõesrelativas à c<strong>os</strong>mologia ou a relações de gênero, para dar apenas <strong>do</strong>is exempl<strong>os</strong>pertinentes ao presente contexto etnográfico. A necessidade de haver um lastroem aspect<strong>os</strong> da cultura para a construção de uma significação musical não querdizer que este significa<strong>do</strong> não tenha qualquer ligação com aspect<strong>os</strong>estritamente musicais, apenas evidencia que o “significa<strong>do</strong>” é pertinente aomun<strong>do</strong> <strong>do</strong> pensamento, e que o impacto da música é senti<strong>do</strong> em term<strong>os</strong>afetivo-psicomotores e não intelectiv<strong>os</strong> (Blacking, 1977; Menezes Bast<strong>os</strong> 1990),no entanto, é importante frisar que a música é tão "cognitiva" quanto a língua é"afetiva".Resvalo aqui em muitas questões que preten<strong>do</strong> aprofundar em trabalh<strong>os</strong>futur<strong>os</strong>, mas devo ao men<strong>os</strong> notar, que a construção de uma significação nestecaso, envolve a questão da tradução da música, ou sua conversão para umoutro sistema, no caso o verbal, lingüístico. Como bem assinala MenezesBast<strong>os</strong>,“falar sobre música e música (escutá-la) não constituemsemânticas exatamente congruentes. Os <strong>do</strong>is sistemas manteriamuma relação antes de indicação que de tradução (intersemiótica), o


246primeiro se instalan<strong>do</strong> numa esfera verbal-cognitiva, o segun<strong>do</strong>,afetivo-psicomotora 197 ” (1990:515).São muitas as conversões a serem feitas até poderm<strong>os</strong> atingir algumponto de significação referente ao material em análise: a conversão <strong>do</strong> que émusical em verbal-cognitivo, a conversão intercultural de um sistema nativopara um outro sistema nativo que é o “n<strong>os</strong>so”, o discurso antropológico.Feitas estas observações, a tarefa a que me proponho aqui é a de rearranjaras informações apresentadas n<strong>os</strong> capítul<strong>os</strong> anteriores, de mo<strong>do</strong> arecuperar narrativas, discurs<strong>os</strong>, cant<strong>os</strong>, exegeses, fot<strong>os</strong>, notas sobrecoreografia, no senti<strong>do</strong> de compreender – como tenho dito, de maneirainaugural, exploratória - como se dá, ou como opera o sistema musical <strong>Wauja</strong>,poden<strong>do</strong>, em alguns moment<strong>os</strong> estender tal pretensão ao sistema musicalxinguano como um to<strong>do</strong>.A transcrição musical, neste ponto, passa a ser uma ferramenta analíticaimportante, na medida em que, por meio de seu artifício descritivo (Seeger,1958), se pode acessar determinadas estruturas comp<strong>os</strong>icionais que apontampara a lógica <strong>do</strong> sistema, proven<strong>do</strong> assim ligações <strong>entre</strong> a atividade criativa e aexperiência estética. Sob este prisma, a atividade principal da análise ébaseada na comparação, desde o momento em que se constituem as unidadesmínimas de análise, até a construção de model<strong>os</strong> abstrat<strong>os</strong>, a comparação é oato central da análise (Bent, 1987). Através dela, chega-se ao grau desimilaridade ou diferença <strong>entre</strong> unidades discretas, tanto aquelas mínimas,como <strong>entre</strong> <strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> dentro de uma peça, quanto <strong>entre</strong> unidades maiores,como uma peça dentro de um conjunto maior de peças. Com este recurso sepoderia chegar a um conjunto virtual de todas as p<strong>os</strong>sibilidades <strong>do</strong> sistemamusical analisa<strong>do</strong>.O papel da transcrição musical neste trabalho é o de colocar em diálogoalgumas unidades mínimas das peças musicais 198 de mo<strong>do</strong> a compreender o197 Sua reflexão encontra respal<strong>do</strong> nas idéias de Imberty (1979), pois amb<strong>os</strong> acreditamque “o significa<strong>do</strong> de uma música não atinge necessariamente a consciência <strong>do</strong> sujeit<strong>os</strong>ob forma verbalizada, estabelecen<strong>do</strong>-se, tipicamente, sob a forma de impressões esensações vagas” (Menezes Bast<strong>os</strong> op.cit.:515).198 Neste caso, motiv<strong>os</strong> e frases musicais.


247que está envolvi<strong>do</strong> no processo da criação e reprodução musical. Como pudeobservar durante <strong>os</strong> ensinament<strong>os</strong> de Kaomo, tais unidades são detectadaspel<strong>os</strong> nativ<strong>os</strong> como fundamentais na constituição e elaboração <strong>do</strong> repertóriomusical. São estes motiv<strong>os</strong> que merecem atenção especial durante <strong>os</strong>ensinament<strong>os</strong> <strong>do</strong> mestre de música, tanto para <strong>os</strong> demais flautistas (Piedade,2004:149), quanto para as cantoras de kawokakuma. Assim, vê-se como éimportante o uso da transcrição musical para a análise deste material, sen<strong>do</strong> onível motívico bem observável através das ferramentas de análise. O mesmonão poderia ser dito sobre um repertório cuja característica <strong>do</strong>minante f<strong>os</strong>se,por exemplo, a timbrística 199 .Ao analisar <strong>os</strong> cant<strong>os</strong> de Kawokakuma, há que se ter atenção para o fatode que este repertório tem características que o ligam tanto à música vocalquanto à instrumental. Mesmo em se tratan<strong>do</strong> de uma música vocal porexcelência, e que portanto, opera no mesmo contexto que outr<strong>os</strong> gêner<strong>os</strong>vocais xinguan<strong>os</strong>, como o yawari ou o kaumai, estes cant<strong>os</strong> tambémcompartilham de um mesmo sistema que o das flautas kawoká, sen<strong>do</strong> assim,p<strong>os</strong>suem características não apenas vocais mas também instrumentais. Estaquestão vai ainda mais longe, na medida em que a música das flautas épercebida como sen<strong>do</strong> a “fala <strong>do</strong> kawoká”, kawokagatakoja (Piedade, op.cit.), eportanto não sen<strong>do</strong> puramente instrumental, mas também vocal. Note-se que adistinção aqui é <strong>entre</strong> vocal e instrumental e não <strong>entre</strong> musical e verbal, vistoque a fala comum não é a que <strong>os</strong> apapaatai se utilizam, sua fala é percebidaenquanto música.Repertóri<strong>os</strong> feminino e masculinoA imbricação d<strong>os</strong> repertóri<strong>os</strong> feminino e masculino é marcada eremarcada pelo discurso d<strong>os</strong> músic<strong>os</strong> em diferentes moment<strong>os</strong>, como m<strong>os</strong>tramvárias exegeses sobre <strong>os</strong> cant<strong>os</strong> apresentadas. Por exemplo, ao iniciar suaexplicação sobre o canto K44, Kalupuku chama a atenção para umaclassificação geral que é pertinente tanto para <strong>os</strong> cant<strong>os</strong> kawokakuma quantopara a música das kawoká. A esta classificação, correspondem grup<strong>os</strong> de199 Este é o caso da música das flautas Jurupari presente <strong>entre</strong> diferentes grup<strong>os</strong> <strong>do</strong> AltoRio Negro (Piedade, 1997).


248cant<strong>os</strong> que apresentam coerência temática e formam unidades nomeadas,como por exemplo, kisoagakipitsana, mepiyawakapotowo, sapalá, uialalaka,mututute, maiyuwatapi, <strong>entre</strong> outras, as quais Piedade identifica como suítes(cf. Menezes Bast<strong>os</strong>, 1990, 1999a). Muitas das peças que compõe estas suítesfazem parte também <strong>do</strong> repertório feminino de kawokakuma, manten<strong>do</strong>características similares em term<strong>os</strong> musicais <strong>entre</strong> aquelas executadas pelasflautas e as vocais, como neste caso de K44, que segun<strong>do</strong> Kalupuku, faz parte<strong>do</strong> repertório uialalaka. Portanto, quan<strong>do</strong> as mulheres dizem que seus cant<strong>os</strong>são “música de flauta”, elas não estão se referin<strong>do</strong> a algo genérico, como setu<strong>do</strong> que elas cantassem pudesse ser “música de flauta”. Há uma série decant<strong>os</strong>, mesmo no ritual de iamurikuma que não são considerad<strong>os</strong> “música deflauta”. Desta forma, as mulheres estão tratan<strong>do</strong> de conjunt<strong>os</strong> específic<strong>os</strong> decant<strong>os</strong>, tod<strong>os</strong> considerad<strong>os</strong> kawokakuma, mas subdividid<strong>os</strong> de acor<strong>do</strong> com umatipologia que mantém relação com aquela das flautas. Estes diferentes tip<strong>os</strong> decant<strong>os</strong> seguem prescrições em relação à topologia e cronologia, o que significaque determinad<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> só poderão ser executad<strong>os</strong> em determinad<strong>os</strong> espaç<strong>os</strong>(centro da aldeia, dentro das casas, etc.) e em partes específicas <strong>do</strong> dia, comopor exemplo, <strong>os</strong> cant<strong>os</strong> considerad<strong>os</strong> kisoagakipitsana, só serão cantad<strong>os</strong> demadrugada, ou <strong>os</strong> chamad<strong>os</strong> iapojenejunelele não podem ser cantad<strong>os</strong> depoisque o sol se põe 200 . Em conversa com Kalupuku, ela me contou como haviaaprendi<strong>do</strong> uma nova música através de um sonho, e que, ao relembrá-lo aoacordar, reconhecia esta nova música como estan<strong>do</strong> “dentro”, -naku, de sapalá,era portanto uma nova música a ser incluída na suíte sapalá. Ao expressar estaidéia de inclusão, de pertencimento e portanto, de identidade <strong>entre</strong> diferentescant<strong>os</strong>, Kalupuku deixa claro que está consciente das sutilezas que diferenciame aproximam uma suíte de outra, o que torna sapalá diferente de mututute, porexemplo. Tal relato é ainda mais significativo se observam<strong>os</strong> que nele estápresente um d<strong>os</strong> process<strong>os</strong> comp<strong>os</strong>icionais amplamente aceit<strong>os</strong>: as músicasvêm d<strong>os</strong> sonh<strong>os</strong>. Diz-se que qualquer um pode sonhar uma nova música, noentanto, somente <strong>os</strong> mestres de música, <strong>os</strong> apaiwekeho, têm capacidade de200 No caso de diferentes suítes que são executadas em um mesmo perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> dia(isotópicas, cf. Menezes Bast<strong>os</strong>, 1990), Piedade classificou-as como subgêner<strong>os</strong>:matutino, vespertino e noturno (op.cit.:135-137).


memorizá-las 201 . Esta informação de Kalupuku complexifica um pouco mais ociclo em que <strong>os</strong> process<strong>os</strong> de significação das peças de kawoká e dekawokakuma estão inserid<strong>os</strong>, conforme apresenta<strong>do</strong> por Piedade (2004:218).Segun<strong>do</strong> ele, estes cant<strong>os</strong> seriam tocad<strong>os</strong> pel<strong>os</strong> homens n<strong>os</strong> rituais de kawoká,memorizad<strong>os</strong> pelas mulheres cantoras que estariam prestan<strong>do</strong> atenção dedentro de suas casas, e então elas criariam poemas para as músicas. Aoexecutarem estes cant<strong>os</strong> no ritual de iamurikuma, elas estariam agregan<strong>do</strong>uma outra camada de significação a eles, que passaria a fazer parte destescant<strong>os</strong>, a ponto de emergir quan<strong>do</strong> <strong>os</strong> homens voltassem a tocá-l<strong>os</strong>. Noentanto, o fato delas também comporem, trazen<strong>do</strong> nov<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> para orepertório, faz com que este círculo se abra tanto para homens como paramulheres no que tange à produção musical.249Não a<strong>do</strong>tarei, contu<strong>do</strong>, a classificação de suítes para <strong>os</strong> cant<strong>os</strong> dekawokakuma, pois, diferentemente <strong>do</strong> que acontece com o repertório dekawoká, em uma só seqüência de cant<strong>os</strong> pode haver peças que estejam“dentro” de mawiyuatapi enquanto outras em uialalaka. Ou seja, as seqüênciasd<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> feminin<strong>os</strong> obedecem a uma ordenação, mas não iguais àquelas dasflautas, quan<strong>do</strong> todas as peças executadas em uma seqüência correspondem auma mesma suíte.Em uma das sessões de fim de tarde, aconteceu um fato que apontapara a importância de se observar o momento correto de cada canto. Por voltadas 19 horas, o sol já ten<strong>do</strong> se p<strong>os</strong>to há algum tempo, o grupo de cantorasresolveu fazer uma pausa em seus cant<strong>os</strong>. Nisto, uma das mulheres <strong>do</strong> grupoque havia se ausenta<strong>do</strong> para ir ao banheiro, voltou muito assustada, falan<strong>do</strong> egesticulan<strong>do</strong> muito. Todas as mulheres presentes pareceram se agitar,demonstran<strong>do</strong> preocupação. Fiquei então saben<strong>do</strong> que aquela mulher haviaacaba<strong>do</strong> de ver Iapojeneju no “banheiro”. Este é um apapaatai feminino,“<strong>do</strong>no” de kawoká 202 , e bastante temi<strong>do</strong>. Ela me disse então que iria ficar<strong>do</strong>ente em breve, e que Iapojeneju só havia apareci<strong>do</strong> naquela hora porque201 A bibliografia que relaciona <strong>os</strong> sonh<strong>os</strong> à aquisição de conhecimento nas terras baixasé vasta. Cito aqui apenas alguns trabalh<strong>os</strong> que tratam da aquisição d<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> duranteo sonho: Viveir<strong>os</strong> de Castro (1986:542), Montar<strong>do</strong> (2002:45), Piedade (2004:75).202 Ver mito “as filhas de Kuwamutan”, em que Iapojeneju aparece como uma das filhasde pau que Kuwamutan fez para se casar com Ianumaka, “onça” (Mello, 1999). Hátambém uma ilustração deste apapaatai feita pelo mestre de flauta em Piedade (op.cit.:138).


250elas cantaram músicas <strong>do</strong> repertório de iapojenejunelele depois <strong>do</strong> sol se por, oque estava muito erra<strong>do</strong>. Esta mulher ficou <strong>do</strong>ente por muit<strong>os</strong> meses seguid<strong>os</strong>.Em outra exegese, Kalupuku tratou novamente <strong>do</strong> conceito de “irdentro”, de mo<strong>do</strong> diverso: em K20 ela afirmou que “esta é música demaiuatapi, dentro da qual a mulher fez sua música”. Este “dentro”, -naku,sinaliza aqui para o fato de que uma mulher partiu de um canto já existente dasuíte maiuatapi e colocou uma poesia nesta música. A idéia de que a letra vai“dentro” <strong>do</strong> canto está de acor<strong>do</strong> também com o modelo nativo Kamayurá,conforme Menezes Bast<strong>os</strong> atesta e amplia, ao dizer que além da letra ir dentroda música, a canção vai “dentro” (-pỳpe, em Kamayurá) da dança (1990: 223),apontan<strong>do</strong> para uma idéia de tradução intersemiótica (2001:346).Tem-se aqui, portanto, no mínimo, <strong>do</strong>is repertóri<strong>os</strong> distint<strong>os</strong> (cada qualpoden<strong>do</strong> ser subdividi<strong>do</strong>, como verem<strong>os</strong> a seguir), tanto no que diz respeito àforma quanto ao conteú<strong>do</strong>. O que chamei de I são aqueles cant<strong>os</strong> que estãodiretamente ligad<strong>os</strong> ao mito de iamurikuma, que se estruturam de formatotalmente distinta <strong>do</strong> repertório K, as músicas de kawokakuma. As mitomúsicas203 I, são executadas em moment<strong>os</strong> solenes <strong>do</strong> ritual, rememorampassagens pontuais <strong>do</strong> mito e contam sempre com a participação <strong>do</strong> cheferitual para conduzir seu desenrolar, tanto musical quanto coreográfico. Orepertório de iamurikuma também comporta, em algumas poucas situações,brincadeiras e provocações, como I 13 e I 14, das músicas <strong>do</strong> “morcego” e da“perereca”.Term<strong>os</strong> de análiseO modelo de análise que a<strong>do</strong>to inspira-se em Menezes Bast<strong>os</strong> (1990) ePiedade (2004). Como para estes autores, tomo o motivo como unidademínima <strong>do</strong> estrato sintático (cf. Li<strong>do</strong>v, 1975). Como na análise de Piedade(2004), a idéia de motivo, na sua minimalidade, não pressupõe uma economiade movimentação melódica, como é o caso na teoria tradicional (Schoenberg,1993 [1967]), mas é dada pela sua colocação na estrutura da música e pelo203 Assim como as mito-músicas Marubo, cf. descritas por Werlang (2002), a relaçãoente o mito e a música no caso <strong>do</strong> repertório iamurikuma se dá em term<strong>os</strong> ontológic<strong>os</strong>,muitas vezes sen<strong>do</strong> difícil dividir o conceito.


251seu desenvolvimento no interior da peça e, em term<strong>os</strong> comparativ<strong>os</strong>, nasoutras peças congêneres. Dependen<strong>do</strong> da peça, cada motivo pode ser, assim,curto, com poucas notas, ou não tão curto, quase uma frase. Lembro que <strong>os</strong>motiv<strong>os</strong> de cada canto são designad<strong>os</strong> por letras (a), (b), (c), etc., poden<strong>do</strong> teruma ou mais variações cada um, designadas por (a’), (a’’), etc. As variaçõessão entendidas como aplicações de princípi<strong>os</strong> fundamentais de diferenciação nointerior d<strong>os</strong> motiv<strong>os</strong>, operações tais como transp<strong>os</strong>ição, pequena alteraçãointervalar ou rítmica no início ou no final <strong>do</strong> motivo, adição ou exclusão de umanota, <strong>entre</strong> outras. Variações em conjunt<strong>os</strong> de motiv<strong>os</strong>, entendid<strong>os</strong> como frasesque constituem <strong>os</strong> temas, são chamadas de transformações, ocorren<strong>do</strong> pormecanism<strong>os</strong> de inclusão e exclusão de motiv<strong>os</strong>, ou através de variações n<strong>os</strong>seus motiv<strong>os</strong> constituintes. É importante ressaltar que o que diferencia umavariação de um novo motivo é a resp<strong>os</strong>ta estrutural desta seqüência de notasno interior da peça. Os motiv<strong>os</strong>, portanto, são as partes constitutivas d<strong>os</strong>temas e , e neste aspecto, bem como no que diz respeito ao englobamentode por , o material das peças K é similar àquele da música de kawoka(Piedade, op.cit).Resumidamente, a relação <strong>entre</strong> <strong>os</strong> temas e é dialógica e dialética, oprimeiro tema constituin<strong>do</strong> o material básico da peça (para Piedade, aprop<strong>os</strong>ição ou idéia inicial), e o segun<strong>do</strong> configuran<strong>do</strong> uma elaboração destematerial em uma camada superior (em term<strong>os</strong> de alturas), geralmenteatingin<strong>do</strong> a nota mais aguda da escala. Nesta espécie de transp<strong>os</strong>ição, muitasvezes ocorre uma série de transformações que serão m<strong>os</strong>tradas nas análises.Um outro fato que se verá é o englobamento de por , ou seja: a antíteseelabora a tese de forma a incluí-la em sua terminação, às vezes integralmente.Nestas características, as músicas de kawokakuma e kawoka são notavelmentesimilares. Mas tem<strong>os</strong> aqui também outr<strong>os</strong> pont<strong>os</strong> importantes: o motivo , quefunciona como âncora, indica<strong>do</strong>r e reforço <strong>do</strong> centro tonal, vinheta deseparação <strong>entre</strong> temas e <strong>entre</strong> canções, poden<strong>do</strong> aparecer em geral uma ouduas vezes seguidas, sen<strong>do</strong> também recorrente em todas as canções <strong>do</strong>repertório kawokakuma. Outro motivo recorrente é designa<strong>do</strong> por (x),corresponden<strong>do</strong> à parte da letra das canções que diz nahateja, “ouviu,pessoal?”. Um outro ponto importante é o tema , que é o tema com letra


252adicionada. Para indicar uma exclusão motívica em determina<strong>do</strong> tema, uso <strong>os</strong>inal (Ø).São muit<strong>os</strong> <strong>os</strong> pont<strong>os</strong> a serem destacad<strong>os</strong>, e assim, passarei de imediatopara comentári<strong>os</strong> de várias peças, no senti<strong>do</strong> de m<strong>os</strong>trar como suaestruturação aponta para uma complexidade notável no nível da sutilelaboração rítmico-motívica e formal 204 . Destacarei detalhes importantes decada peça através de palavras sublinhadas. Seguem-se comentári<strong>os</strong> sobrepeças kawokakuma, especificamente aquelas que p<strong>os</strong>suem , ou seja, peçasque têm letra e não apenas <strong>os</strong> vocábul<strong>os</strong> kuhaha.Análise das peças> |


Segue um quadro indicativo da seqüência d<strong>os</strong> temas, e seus respectiv<strong>os</strong>motiv<strong>os</strong> em K46:253O início desta peça é uma afirmação <strong>do</strong> centro tonal com ,seguin<strong>do</strong>-se o tema , comp<strong>os</strong>to por 4 motiv<strong>os</strong>: a, b, c, d. O motivo (a)termina em um intervalo de 3 a m (terça menor) acima <strong>do</strong> centro tonal,enquanto <strong>os</strong> demais motiv<strong>os</strong> de reforçam este centro, terminan<strong>do</strong> sempreem sol. As terminações d<strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> são ponto fundamental neste repertório:muitas vezes é ali que a diferença se coloca de forma relacional ao motiv<strong>os</strong>antecedentes, ou seja, é onde se dá o jogo motívico (Piedade, 2004) 206 . Comoafirmei que <strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> constituem a unidade mínima <strong>do</strong> estrato sintático, estasua fração final deve ser entendida como uma <strong>os</strong>cilação de sua curva, umdiferencial em seu desenho como um to<strong>do</strong>, portanto sem pertinência fora <strong>do</strong>motivo 207 . Além disso, as terminações de motiv<strong>os</strong> são, na maioria das vezes,aquilo que antecede a respiração, portanto um ponto de articulação, e parecesempre girar em torno <strong>do</strong> centro tonal, como que se dirigin<strong>do</strong> a ele. N<strong>os</strong>motiv<strong>os</strong> (c) e (d) surge o fá, breve <strong>os</strong>cilação inferior <strong>do</strong> centro tonal,característica de muitas peças, ocorren<strong>do</strong> geralmente nas terminações de206 A importância das terminações de motiv<strong>os</strong> no kawokakuma é semelhante ao queMontar<strong>do</strong> comenta sobre as finalizações das canções Guarani (2002:139).207 Ou seja, não vale a pena destacar esta unidade <strong>do</strong> motivo e entendê-la como umacélula independente. Vale muito mais entendê-la como uma saliência <strong>do</strong> desenhomotívico.


254motiv<strong>os</strong>. Este tipo de motivo, que elabora uma <strong>os</strong>cilação <strong>entre</strong> centro tonal enota adjacente, geralmente inferior, pode ser chama<strong>do</strong> de bordadura 208 .Após , uma re-exp<strong>os</strong>ição de e um novo , inicia-se o tema ,onde ocorre uma elevação da 3 a m no motivo (e), alcançan<strong>do</strong> o si, nota maisaguda da escala. O motivo seguinte, (f), inicia na 3 a M (terça maior) e retorna à3 a m, repetin<strong>do</strong> o segmento final de (a), parte <strong>do</strong> jogo das terminações. Segueseuma repetição de (e, f) e então o motivo que em era (c), reaparece emcomo (c’), varia<strong>do</strong> em sua primeira nota: ao invés de ser a tônica (sol), é a 3 aM. Trata-se aqui de uma variação que se instaura na cabeça <strong>do</strong> motivo, umavariação tética. O (f) volta a insistir na 3 a m, articulan<strong>do</strong>-se com (c”), queinsiste no sol e que difere <strong>do</strong> original quanto à última nota: a 3 a m e não atônica, nota que corresponde ao centro tonal. Poderm<strong>os</strong> dizer que se trata deuma variação sufixal, atingin<strong>do</strong> a parcela final <strong>do</strong> motivo. Ocorre então umaespécie de flashback de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> (c): um retorno a (c’) e ao (c) original segui<strong>do</strong>de (d), assim como o final <strong>do</strong> tema . Voltam<strong>os</strong> ao começo da peça:novamente e e . Então, toda a seqüência de é repetida com letraem , e no entanto, após (c”), ao invés de haver a retroação a (c’), comoocorrera em , surge uma nova operação que funde a primeira metade de (c’)à segunda metade de (c”), geran<strong>do</strong> (a’), variação por fusão <strong>do</strong> motivoinaugural da peça. Este (a’) é segui<strong>do</strong> de (b’ c d), franca retomada de dentrode . A partir daí a peça repete duas vezes a estrutura ,finalizan<strong>do</strong> com .208 Este termo aqui não corresponde exatamente ao seu uso na música ocidental emgeral.


A seqüência d<strong>os</strong> temas e motiv<strong>os</strong> em K26 é a seguinte (lembran<strong>do</strong> que aescala corresponde à mesma da peça anterior):255A característica marcante neste K26 está na 4 a justa descendentelogo de começo, forma<strong>do</strong> <strong>entre</strong> o si b e o fá no motivo (a), segui<strong>do</strong> de um (b)que reforça a nota fá, abaixo, portanto <strong>do</strong> centro tonal sol. O tema écomp<strong>os</strong>to por (a b c d a b), haven<strong>do</strong> um jogo de terminações em fá (b), sol (a,d) e si b (c). O tema , por sua vez, traz a elevação tonal para o si natural,insistentemente marca<strong>do</strong> n<strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> (d, e) em um jogo de alternância <strong>entre</strong>esta nota e o si b logo abaixo, não aparecen<strong>do</strong> as outras duas notas da escalaem toda esta seqüência. Este jogo alternante <strong>entre</strong> 3ª m e M é umacaracterística importante d<strong>os</strong> temas . Note-se aqui também o englobamentode por . Após repetições de , , um novo e novamente vári<strong>os</strong> ,surge o , lembro: acresci<strong>do</strong> de letra. Este é similar ao , inclusive noenglobamento de , que ali aparece com letra. Contu<strong>do</strong>, o que chamo de (a’)difere de (a) apenas por uma nota, variação daquela que justamente forma ointervalo de 4 a característico de to<strong>do</strong> o tema .Em acontece também algo interessante: tanto em (b), quanto em(b’), o fá parece se destacar como uma frase em outro registro, quase comoum aden<strong>do</strong> à informação principal, um comentário em off. De fato, confirma-seeste aspecto <strong>do</strong> motivo pelo discurso indireto na letra: em (b) as cantoras


256dizem omanupitsi (“falou pra mim”), e em (b’) dizem Nataki, nome próprio quedesigna a pessoa que falou à comp<strong>os</strong>itora. Além disso, em term<strong>os</strong> de suap<strong>os</strong>ição estrutural como ponto de articulação, (b) e (b’) lembram o motivonahatejá (x). Estes motiv<strong>os</strong> revelam quem está falan<strong>do</strong>, que o que está sen<strong>do</strong>dito não é dito pelas cantoras diretamente, mas por um terceiro. Este paralelo,<strong>entre</strong> discurso indireto e nota grave sustentan<strong>do</strong> a melodia, revela uma classede motiv<strong>os</strong> que sugerem uma versão musical <strong>do</strong> discurso indireto no planomelódico, poden<strong>do</strong> ser chamad<strong>os</strong> de motiv<strong>os</strong> justap<strong>os</strong>t<strong>os</strong> de citação, pois sejustapõem ao discurso, ao mesmo tempo indican<strong>do</strong> quem está na p<strong>os</strong>ição desujeito da referida ação.As letras das canções K46 e K26, comp<strong>os</strong>tas por Kalupuku, tratam deNataki, filho <strong>do</strong> mestre Kaomo, que aprecia muito <strong>os</strong> cant<strong>os</strong> feminin<strong>os</strong>, fatoraro <strong>entre</strong> <strong>os</strong> homens. Nataki passou um tempo no Stênio, em uma fazendaonde <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> trabalham junto a turistas. Estas canções mantêm uma ligaçãointeressante: K46 se dirige a Nataki, perguntan<strong>do</strong>-lhe por que não voltava, seera porque <strong>os</strong> turistas o haviam escondi<strong>do</strong>. Nesta canção, Nataki respondeafirmativamente. Em K26, Kalupuku pr<strong>os</strong>segue esta resp<strong>os</strong>ta dan<strong>do</strong> a voz aNataki, este dizen<strong>do</strong> que iria se esconder porque ela estava “brava” com ele.Interessante que a saudade é aqui expressa através de uma pergunta acusativaem K46, “foram <strong>os</strong> turistas que te esconderam?”, confirmada em K46 e K26,esta última rebaten<strong>do</strong> a saudade com uma contra-acusação, a “braveza” damulher. Note-se que toda esta elaboração d<strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong> recíproc<strong>os</strong> <strong>entre</strong>homens e mulheres é feita por uma mulher, a comp<strong>os</strong>itora.


257Em K48 a seqüência de temas e motiv<strong>os</strong> é a seguinte:Nesta peça, o tema , comp<strong>os</strong>to pel<strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> (a b c c), estácentra<strong>do</strong> no jogo alternante <strong>entre</strong> 3ª m e M, dan<strong>do</strong> grande ênfase ao centrotonal sol, enquanto que no tema , a ênfase passa a estar na preponderânciada 3 a M.Aqui há também um englobamento de por . Após a frase , oé retoma<strong>do</strong>, agora com a adição de seus três motiv<strong>os</strong> iniciais, fican<strong>do</strong> entãouma seqüência comp<strong>os</strong>ta por (a b c a b c c), as inclusões em negrito. Entãoinicia o , que vai se comportar diferentemente <strong>do</strong> : a adição que ocorreu emé incorporada ao tema , e em seu final, será acresci<strong>do</strong> de <strong>do</strong>is pequen<strong>os</strong>motiv<strong>os</strong> (x). Estes motiv<strong>os</strong> (x), apesar de serem diferentes <strong>entre</strong> si, formamum conjunto que aparece em outras peças deste repertório, às vezes forman<strong>do</strong>um grupo de três e até mesmo de quatro repetições no final de um tema ,sempre reforçan<strong>do</strong> a nota abaixo <strong>do</strong> centro tonal, o fá. Estes motiv<strong>os</strong>geralmente são cantad<strong>os</strong> com a palavra, nahateja, “ouviram?”, sen<strong>do</strong> portantomotiv<strong>os</strong> justap<strong>os</strong>t<strong>os</strong> de citação, uma figura que se apresenta no discursomusical corresponden<strong>do</strong> a uma interrupção <strong>do</strong> tema e uma articulaçãomarca<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> sujeito. O tema será forma<strong>do</strong> então por (e e b c / e e b c / a bc a b c c x x), as adições em negrito.


258Na letra desta canção, as mulheres ouviram uma conversa <strong>entre</strong>amantes na qual a mulher pede ao amante para sair de sua rede, senão aesp<strong>os</strong>a traída ficará brava. Note-se o uso, em várias canções, da designaçãonutukaka, “meu irmão”, que serve como uma forma de despistar a referênciaao amante, uma artimanha que confunde prim<strong>os</strong> cruzad<strong>os</strong> (parceir<strong>os</strong>preferenciais) e paralel<strong>os</strong> (irmã<strong>os</strong>) 209 . A joc<strong>os</strong>idade desponta no detalhe da“vagina molhada” da esp<strong>os</strong>a traída, forma como a amante se referiu a esta.Em K21 a seqüência detemas e motiv<strong>os</strong> é aseguinte:Nesta peça ocorre uma alteração em relação às anteriores, quetambém será observada em algumas outras canções p<strong>os</strong>teriores: ao invés deiniciar com o tema , é o que surge no começo. Esta é uma curi<strong>os</strong>a distorçãoem relação ao repertório de kawoká, onde isto nunca acontece (cf. a tese dePiedade, 2004). Trata-se, por isto mesmo, de algo significativo, que apontapara a tradutibilidade <strong>entre</strong> kawokakuma e kawoka: além de p<strong>os</strong>suir letras, ascanções femininas podem inverter o rigor formal de kawoka. O tema pareceser a chave neste processo, pois é ele e somente ele que recebe letra. Se namúsica d<strong>os</strong> homens a ênfase cai no tema (cf. Piedade, op.cit.) 210 , nokawokakuma é o que parece ser o fundamental.Este tema é comp<strong>os</strong>to pel<strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> (d e d e f e g f a’ h x x), e emsua primeira metade há um padrão d<strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> que aponta para uma <strong>os</strong>cilaçãona terminação, de acor<strong>do</strong> com as notas finais de cada um: si - si b - si - si b – sol- si b . Após o tema vem o afirman<strong>do</strong> o centro tonal e então o temaaparece, comp<strong>os</strong>to pel<strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> (a b a c). Nova repetição e , e então209 No mito de iamurikuma se pode verificar esta forma de chamar o amante.210 Para este autor, o tema é a idéia musical inicial, a prop<strong>os</strong>ição de to<strong>do</strong> o enuncia<strong>do</strong>da peça.


259começa o . Este tema com letra vai apresentar duas alterações em relaçãoao : a substituição <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> (f) por (e), e a adição de um (x) ao (x x). Ocuri<strong>os</strong>o agora é que, ao contrário da maioria das canções, não surge aqui afrase para pontuar o retorno de : ele repete integralmente e voltadiretamente para o tema , que agora sofreu uma grande exclusão de seusmotiv<strong>os</strong> iniciais. Me parece que o triplo motivo nahateja (x x x) já aponta paraesta anomalia, pois não termina no centro tonal sol mas em fá.Em K22 a seqüência de temas e motiv<strong>os</strong> é a seguinte:A ênfase em é o que mais chama a atenção nesta canção, pois eleé repeti<strong>do</strong> várias vezes. Aqui ocorrem operações já observadas em K21,precisamente o fato de iniciar com o tema , que aparece por duas vezes antesde . Em , nota-se que o (f) está em diálogo estreito com (e), cujaalternância é <strong>do</strong> tipo pergunta e resp<strong>os</strong>ta. É provável que o intervalodescendente, que atinge o fá, carregue tal característica, assim como aalternância observada <strong>entre</strong> (d) e (e) logo no início de K21, onde tambémocorre um sutil intervalo descendente em (e) apontan<strong>do</strong> para o mesmo caráterdialógico <strong>entre</strong> <strong>os</strong> motiv<strong>os</strong>. O tema está engloba<strong>do</strong> em e, portanto, aaparição de não causa surpresa. Após cantarem , e novamente ,


260iniciam uma grande seção de , que será apresenta<strong>do</strong> quatro vezes, sen<strong>do</strong> que<strong>entre</strong> a segunda e a terceira vez, reaparecem, , , , . Nesta peça, ficaevidente uma preponderância de e , que pode ser considerada uma marcadesta face feminina <strong>do</strong> gênero musical kawokakuma-kawoka. Além disso, háum destaque para a letra, que trata da joc<strong>os</strong>idade: as mulheres Mehináku estãoaqui ridicularizan<strong>do</strong> uma mulher Matipú, que quan<strong>do</strong> sorri exibe uma “bocatorta”: trata-se <strong>do</strong> mote <strong>do</strong> defeito físico 211 . As cantoras se dirigem ao mari<strong>do</strong>desta mulher, um homem Mehináku que se casou com uma mulher de outrogrupo, fato que é sempre motivo de reações deste tipo, e que, no fun<strong>do</strong>,demonstra o ciúme coletivo provoca<strong>do</strong> por casament<strong>os</strong> interétnic<strong>os</strong>.Em K24 a seqüência de temas e motiv<strong>os</strong> é a seguinte:Nesta canção há uma ênfase no tema , que aqui se apresentaforma<strong>do</strong> por cinco frases: (d e), (d e), (a’ b’), (a’ b) e (a’ c). O que chama aatenção nestas frases é sua condução, dada pelas terminações. As três211 Tanto “boca torta” quanto “vagina molhada” da K48 são detalhes físic<strong>os</strong> que destoam<strong>do</strong> padrão estético aceito, prato cheio para a joc<strong>os</strong>idade.


261primeiras reforçam a 3ª M, a quarta reforça a 3ª m, e a última reforça a tônica.Tem-se aqui um movimento descendente típico, in<strong>do</strong> da região das terças emà região da tônica, típica de . Entretanto, ress<strong>alto</strong> aqui que o movimentodescendente de em direção a não se configura como um caminho datensão da expectativa ao relaxamento da satisfação, como na teoria musicalocidental (cf. Meyer, 1956), mas muito mais um caminho resultante dagravidade <strong>do</strong> sistema, levan<strong>do</strong> as tensões a confluírem em um ponto de“repouso” que é ele mesmo tenso, concentran<strong>do</strong> uma memória das tensõesparciais (Menezes Bast<strong>os</strong>, 1990:258, 497) 212 . O jogo motívico é próximo <strong>do</strong> queocorre na canção anterior, com ênfase em e início com o tema . Oenglobamento de por também está presente, e o motivo (x), que funcionacomo motivo justap<strong>os</strong>to de citação e ponte para o tema , aparece aqui quatrovezes seguidas em cada uma das quatro repetições de . Quan<strong>do</strong> isto ocorre,há uma inclusão de (f), e uma exclusão da seqüência (a b a c), correspondenteao tema engloba<strong>do</strong>. Importante relembrar que <strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> (x) não são iguais<strong>entre</strong> si, mas mantêm uma ligação muito forte, dada pelo texto repeti<strong>do</strong> (nestecaso, nahatoja, “ouviram?”) e pelo movimento insistente em direção à notamais grave da escala, o fá. Outra operação interessante de observar é ainversão <strong>do</strong> texto <strong>entre</strong> (d’ 1 ) e (d’ 2 ), indicada no quadro pelas flechas, que sedá sistematicamente na mesma p<strong>os</strong>ição na segunda e quarta repetição de .Esta canção foi feita por uma mulher Mehináku há muit<strong>os</strong> an<strong>os</strong> emresp<strong>os</strong>ta a uma canção ofensiva de uma mulher <strong>Wauja</strong> (que desconheço).Ocorre que esta mulher <strong>Wauja</strong> havia si<strong>do</strong> vítima <strong>do</strong> estupro coletivo por tervisto as flautas kawoka, e por isto seu namora<strong>do</strong> a aban<strong>do</strong>nara, casan<strong>do</strong>-secom a mulher Mehináku. Trata-se, portanto, de um “pagamento” de ofensa,igualmente causa<strong>do</strong> pelo ciúme/inveja <strong>do</strong> namora<strong>do</strong>. As várias repetições <strong>do</strong>motivo (x), nahatoja, “ouviram?”, indicam o caráter denunciatório da canção.Destaca-se a crueza de sua explicitação, “to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> enfiou o pau emvocê!”, bem como o nojo, atsikĩ, uma palavra bastante forte em <strong>Wauja</strong>.212 Ver uma crítica à teoria de Meyer em Keil (1994).


262Em K50 a seqüência de temas e motiv<strong>os</strong> é a seguinte:A surpresa nesta canção está no fato de otema somente aparecer em sua forma, com letra. Este não engloba , comona maioria d<strong>os</strong> cant<strong>os</strong>. Isto sugere quepode haver uma forma sintética d<strong>os</strong> cant<strong>os</strong>de kawokakuma na qual o tema canta<strong>do</strong>em kuhaha é elimina<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> substituí<strong>do</strong>por sua versão com letra, . Mais umavez, a importância <strong>do</strong> tema é destacada:o tema parece ser o pano de fun<strong>do</strong> <strong>do</strong>coração destas peças, que é o tema ,onde está seu “reca<strong>do</strong>”.Exceto pela exclusão de , esta peça se apresenta na forma “clássica”:.A exegese de K50 esclarece o que não está dito na poesia: que aquestão de fun<strong>do</strong> aqui é o ciúme. A letra fala sobre um rapaz que trabalhava no“p<strong>os</strong>to Jacaré”, um p<strong>os</strong>to das Forças Aéreas Brasileiras dentro da TIX. Quan<strong>do</strong>voltou para a aldeia, as mulheres cantaram esta canção, falan<strong>do</strong> para ele voltarpara o p<strong>os</strong>to, “comer arroz que Nisu cozinhou” (Nisu era o cozinheiro “branco”<strong>do</strong> p<strong>os</strong>to). Na verdade, elas não estavam incomodadas com sua proximidadecom o mun<strong>do</strong> kajaopa ou com sua dieta alimentar, mas com as mulheres deoutras aldeias que freqüentavam o p<strong>os</strong>to e com quem ele mantinha relaçõessexuais. Interessante o paralelo “comer” arroz e “comer” mulheres, da<strong>do</strong> peladupla significação da palavra ãixa, “comer, ter relações sexuais”.


263Em K51 a seqüência de temas e motiv<strong>os</strong> é a seguinte:Nesta peça ocorre umaoperação que surpreende por suaconsistência lógica. A primeira vezem que o tema aparece, ele écomp<strong>os</strong>to pel<strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> (a b a c d),e logo em sua primeira repetição omotivo inicial (a) é excluí<strong>do</strong>. O temaaparece então, e também nestapeça o tema não é canta<strong>do</strong> semletra. Neste ocorre oenglobamento de (a d a c d),haven<strong>do</strong> uma transformação de (d)em (x). Neste caso, o motivo (x) éuma flexibilização rítmica de (d). Este processo ocorre em muitas peças,especialmente na adaptação de em , ocorren<strong>do</strong> uma passagem de umarítmica de compasso simples para uma de compasso comp<strong>os</strong>to. Para a notaçãoda flexibilização rítmica, na transcrição foi necessário o uso de quiálteras.O tema é basea<strong>do</strong> n<strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> (e f e f) + b’ + engloba<strong>do</strong> (a’b’a’b’c xxx), no qual há a exclusão de (d) e inclusão de (xxx). Pelo equilíbrion<strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> (e f e f ), a tendência é entender (b’) como parte incluída em .O tema reaparece duas vezes, intercala<strong>do</strong> por , manten<strong>do</strong> uma exclusão <strong>do</strong>primeiro motivo (a). Seguem duas repetições de e um final. Ocorre que,na segunda apresentação de , há a exclusão de seu cerne (e f e f), restan<strong>do</strong>ali somente o tema engloba<strong>do</strong>, após o que o tema final é apresenta<strong>do</strong>, sóque com uma inclusão de (b): assim, percebe-se o tema aparecen<strong>do</strong> agoraem sua forma integral, (b a b a c d), pela primeira vez, ao final da peça.O motivo (x) é canta<strong>do</strong> com o nome de Matsirapá, objeto da canção.Seu nome é pronuncia<strong>do</strong> justamente no motivo que intercala as repetições <strong>do</strong>tema , e que reforça a 2 a maior abaixo <strong>do</strong> centro tonal, como o nahatoja deK24. Conforme a exegese, este homem deixou a aldeia, causan<strong>do</strong> saudade emsuas namoradas. O espírito da canção é, portanto, aquele de uma espécie de


264romantismo, uma saudade amor<strong>os</strong>a, uma tristeza apaixonada, bem diferenteda joc<strong>os</strong>idade explícita e uki (“ciúme-inveja”) que há em outras tantascanções 213 . Esta saudade que atormenta a comp<strong>os</strong>itora aparece aqui conformeseu significa<strong>do</strong> para a ética e a patologia <strong>Wauja</strong>: a saudade é perig<strong>os</strong>a, poisexpõe o saud<strong>os</strong>o a<strong>os</strong> apapaatai, da<strong>do</strong> que deseja o que não pode ter à mão.Subjacente ao romantismo <strong>do</strong> canto, percebe-se uma preocupação em levareste desejo não satisfeito para outro plano, o musical, no senti<strong>do</strong> de exorcizálo.Através da música, <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> podem exteriorizar e tornar públic<strong>os</strong>entiment<strong>os</strong> ao mesmo tempo conflitantes, quan<strong>do</strong> não express<strong>os</strong>, einadequad<strong>os</strong> para serem verbalizad<strong>os</strong> 214 .Em K54 a seqüência de temas e motiv<strong>os</strong> é a seguinte:Nesta peça, o temaé apresenta<strong>do</strong>duas vezes de forma típica, ou seja, rodea<strong>do</strong>de frases . Não há sem letra, emhaven<strong>do</strong> jogo alternante em torno da 3 adurante sua primeira metade, e em suasegunda parte caminhan<strong>do</strong> em direção ao fá <strong>do</strong>motivo (x). Na repetição deM, ocorre umacuri<strong>os</strong>a inversão <strong>do</strong> texto canta<strong>do</strong>anteriormente: o motivo (e) aparece com o texto de (g) e vice versa, excluin<strong>do</strong>ao final <strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> (x), substituíd<strong>os</strong> por . To<strong>do</strong> estes <strong>do</strong>is aparecem comoo recheio de um sanduíche cujas bordas são formadas pelas repetições de.A música trata da joc<strong>os</strong>idade através <strong>do</strong> uso <strong>do</strong> mote <strong>do</strong> defeito físico(“mulher magra de r<strong>os</strong>to pequeno”), motivada por uki (a amante enciumadacanta sobre sua rival). É interessante notar que o ataque à esp<strong>os</strong>a “feia” é feitoatravés de perguntas sobre quem é o homem que está lutan<strong>do</strong> kapi, portanto,de forma indireta.213 De fato, <strong>os</strong> jovens <strong>Wauja</strong> demonstram interesse pelo universo romântico, no que dizrespeito às músicas kajaopa que apreciam. Mas to<strong>do</strong> este interesse no amor românticokajaopa tem relação com uma espécie de perigo que ali existe, conforme explicareiimediatamente.214 Veja o que será dito adiante sobre <strong>os</strong> cant<strong>os</strong> kapojai.e


265Em K55 a seqüência de temas e motiv<strong>os</strong> é a seguinte:Desta vez, é o temaque encampa tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> demais,engloban<strong>do</strong> em seu final. O temaaparece discretamente apenasuma vez. O repete <strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> de, no entanto com uma grandeinclusão em seu interior: <strong>os</strong> motiv<strong>os</strong>(d’ a’ d’ a’) e um novo motivo (e)que, por sua vez, é uma fusão <strong>do</strong>início de (b) com o final de (a). Omotivo (a’’’) soa curi<strong>os</strong>o nesta peça, apresentan<strong>do</strong> pela primeira vez uma 3 a Monde vinha sempre ocorren<strong>do</strong> uma 3 a m.A temática aponta novamente para o ciúme, agora em relação àsmulheres kajaopa. É uma reprovação a um rapaz, Ajuyápixu, que, segun<strong>do</strong> ocanto, “comeu branca” no norte. Interessante que a inclusão (d’a’ d’a’)corresponde exatamente ao trecho em que a comp<strong>os</strong>itora cessa de dizer a frase“não está bem, Ajuyápixu”, repetida sob diferentes contorn<strong>os</strong> melódic<strong>os</strong>, paraentão explicitar o que ela pretendia denunciar. Isto ajuda a pensar as inclusõesque se dão em um campo de repetições como o destaque, o que ressalta, o quecarrega maior significação.


266Em K56 a seqüência de temas e motiv<strong>os</strong> é a seguinte:De início, note-se que a transcrição utiliza um pulso de ( ),diferentemente das demais peças, nas quais o pulso é (). Esta mudança temo intuito apenas de facilitar a leitura, sem maiores implicações. Revelam-senesta peça uma série de operações que merecem destaque. De início, o fatod<strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> (d e f) aparecerem <strong>entre</strong> <strong>do</strong>is grup<strong>os</strong> de <strong>os</strong> destaca de . Noentanto, apesar deste conjunto de motiv<strong>os</strong> não fazer parte de , ele tambémnão constitui um . Ou seja, o conjunto nem é uma aproximação <strong>do</strong> tema enem uma repetição de . Contu<strong>do</strong>, este grupo mantém-se na esfera de . Estaseria uma grande anomalia em relação a<strong>os</strong> demais cant<strong>os</strong> desta série: sempre,depois de um vem um tema ou . Após esta inclusão anômala de conjuntode motiv<strong>os</strong>, seguem duas repetições de , separadas por um . Na segundarepetição há uma inclusão <strong>do</strong> motivo (b) no início <strong>do</strong> tema . O tema semantém no jogo alternante de 3 a M e m, se dirigin<strong>do</strong> ao final para o centro tonalsol. Há então um retorno <strong>do</strong> tema , mantida a inclusão e as frases , aoque se segue uma pequena pausa, quan<strong>do</strong> algumas das cantoras principaisficaram em dúvida quanto à letra que iriam cantar, rin<strong>do</strong> disso. Após isto,cantam a frase , e entram em , suceden<strong>do</strong> aqui algo novo: se o havia


267engloba<strong>do</strong> , não o faz, mas no que o sucede é adiciona<strong>do</strong> um motivo (i)que destaca <strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> restantes levan<strong>do</strong>-<strong>os</strong> de volta ao tema . Este (i), temcaracterísticas comuns com o grupo (d e f), aqueles motiv<strong>os</strong> isolad<strong>os</strong> anômal<strong>os</strong><strong>do</strong> início. Como m<strong>os</strong>tra o destaque em cores no gráfico acima, toman<strong>do</strong>-se arelação inicial <strong>entre</strong> o motivo (d) e seu anterior, o (c), vê-se que estes diferem<strong>entre</strong> si apenas pela 1 a . nota, constituin<strong>do</strong> portanto variações téticas. A relação<strong>entre</strong> (e) e (d) é de total identidade até as duas últimas notas, quan<strong>do</strong> então(e) sai <strong>do</strong> centro tonal, insistin<strong>do</strong> na 3 a m, ou seja, variações sufixas. Mas (f)trata de voltar, se assemelhan<strong>do</strong> em tu<strong>do</strong> ao (c) original, exceto pelo carátermais conclusivo que a 3 a nota de (f) tem em relação à de (c). Quan<strong>do</strong> o motivo(i) surge, destacan<strong>do</strong> o tema <strong>do</strong> tema , ele traz grande semelhança com(e), pois amb<strong>os</strong> iniciam e terminam da mesma forma. Em resumo: há umaanomalia inicial, o grupo isola<strong>do</strong> de motiv<strong>os</strong> (d e f), e uma outra anomaliap<strong>os</strong>terior, que é o motivo (i) adiciona<strong>do</strong> ao tema , e estas duas anomaliassão, na verdade, variações de um único motivo, o (c), que é a terminação de. Isto m<strong>os</strong>tra o peso das terminações no jogo motívico deste repertório, etambém que aparentes anomalias, ou transgressões na forma “clássica”,acarretam elaborações que compensam e reorganizam a esfera formalmotívica.O texto desta peça contrasta por sua “simplicidade” em relação àelaboração motívica que a constitui. No entanto, apesar de não contar com umaexegese nativa para a canção, é p<strong>os</strong>sível pensar que talvez as coisas não sejamtão “simples”. Como diz a letra, Yurikima deu um espelhinho para uma mulher,por ter fica<strong>do</strong> apaixona<strong>do</strong> “por causa disso”, pawẽtsepete. E o que seria isso? Ébem provável que ela esteja se referin<strong>do</strong> à relações sexuais que manteve comYurikima, visto que esta é a forma mais comum das garotas ganharempresentes de seus namorad<strong>os</strong> 215 .> |


268A análise até aqui m<strong>os</strong>trou as várias operações no teci<strong>do</strong> melódico nokawokakuma, comentan<strong>do</strong> ainda alguns aspect<strong>os</strong> das letras das canções.Segue agora um conjunto de canções sem letra chama<strong>do</strong> de kisuagakipitsana,“canto da madrugada”. Como já foi dito, nomes de conjunt<strong>os</strong> de canções taiscomo kisuagakipitsana, maiuatapi, mututute, <strong>entre</strong> outr<strong>os</strong>, se relacionam àssuítes instrumentais de música kawoka homônimas, sen<strong>do</strong> elas cantadas emhorári<strong>os</strong> determinad<strong>os</strong>, neste caso, de madrugada, inician<strong>do</strong> por volta de 1hora da manhã, in<strong>do</strong> até o alvorecer.> |


269segun<strong>do</strong> fica maior. Ou seja, é quase que um duplica<strong>do</strong> e transforma<strong>do</strong>. Onúmero de operações, no entanto, é grande: no quadro acima, <strong>os</strong> motiv<strong>os</strong>marcad<strong>os</strong> em vermelho são aqueles que sofreram variações ou quecorrespondem a outras transformações no tema em relação à sua apresentaçãoanterior. Assim, no primeiro , (a’ b’ a’ b) é uma transformação de (a b a b);no segun<strong>do</strong> , (b) e (a’’) são variações de (b’) e (a), e o último (b’) é umaadição. Na segunda apresentação <strong>do</strong> tema , (b’) é uma adição e (c’) évariação tética dada pela antecipação rítmica da primeira nota de (c), operaçãotípica <strong>do</strong> sistema de síncopas largamente emprega<strong>do</strong> em to<strong>do</strong> este repertório.No tema seguinte, a adição é mantida e (c) retoma seu desenho original. Opróximo é exatamente igual ao anterior, a não ser pela exclusão <strong>do</strong> motivo(b’), o mesmo que foi incluí<strong>do</strong> em . A nova exp<strong>os</strong>ição de sofre uma grandetransformação a partir <strong>do</strong> traço pontilha<strong>do</strong>: (a’’) é variação de (a), no lugaronde havia ocorri<strong>do</strong> a exclusão, ocorre a adição de (a b) e se segue ainda umaadição de (a b b’c). Ainda no último , reaparece (c’). Apesar <strong>do</strong> grandenúmero de operações, o material motívico parece homogêneo: as diferenças<strong>entre</strong> <strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> são sutis, há variações mínimas <strong>entre</strong> um motivo e outro, taiscomo no caso de K56 ilustra<strong>do</strong> no quadro. G<strong>os</strong>taria de lembrar que todas estasoperações são forjadas a partir de um material extremamente restrito, quatronotas, arranjadas em três motiv<strong>os</strong>: trata-se mesmo de uma arte muit<strong>os</strong>ofisticada.Segue a escala e a seqüência de temas e motiv<strong>os</strong> em K101:Escala:A peça é bastante regular, ten<strong>do</strong> umaestrutura formal muito simétrica, tenden<strong>do</strong> a umequilíbrio na regularidade das reapresentaçõesd<strong>os</strong> temas. Além <strong>do</strong> englobamento parcial de


270por, a única operação evidente é a exclusão de (a) na última apresentação <strong>do</strong>tema . Há também uma regularidade rítmica, dada pela figuraque é repetida ao longo da canção. Mais uma vez, há uma sofisticação notável,dada desta vez pela minimalidade <strong>do</strong> material e pela economia de suaelaboração, bem como pela transparência da forma.Segue a escala e a seqüência de temas e motiv<strong>os</strong> em K102:Escala:Este é um canto atípico porvári<strong>os</strong> motiv<strong>os</strong>, e por isso merece umtratamento mais detalha<strong>do</strong>. De início,um fato único: não aparece a frase .Segunda característica notável é aquantidade de notas diferentesempregadas: se a maioria d<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> semantém no espectro de 4 notas, em umintervalo geralmente de 4 a justa, nestecanto ouvim<strong>os</strong> 8 notas diferentes,cromaticamente disp<strong>os</strong>tas em umatessitura de 5 a justa.Outro destaque vai para a lentidão <strong>do</strong> pulso e para o fato de que se tratabasicamente de um solo: apenas a cantora principal canta o tempo to<strong>do</strong>, asacompanhantes cantan<strong>do</strong> apenas em alguns motiv<strong>os</strong> de (a a 2 a a 2 ) 216 . Todasestas particularidades musicológicas têm um senti<strong>do</strong> explícito: esta canção,chamada makuku, é considerada kanupá, trazen<strong>do</strong> um significa<strong>do</strong> especial esen<strong>do</strong> tomada como kakaiapai, “caro”, daí que sua execução está carregada de216 Lembro que estes númer<strong>os</strong> sobrescrit<strong>os</strong> correspondem a uma repetição <strong>do</strong> motivo,porém cantad<strong>os</strong> com outra letra (outras sílabas).


271perig<strong>os</strong>. Lembro que kanupá aponta para <strong>os</strong> sentid<strong>os</strong> de secreto e sagra<strong>do</strong> (cf.apresenta<strong>do</strong> acima) 217 .A versão para flautas kawoká desta peça, que <strong>os</strong> flautistas tambémchamam de makuku, (“muriçoca”), foi analisada por Piedade (2004:192).Segue abaixo esta transcrição, para efeito comparativo. Note-se que o autorhavia alerta<strong>do</strong> que a nota dó era alta, quase corresponden<strong>do</strong> a um ré b ,tornan<strong>do</strong> este intervalo semelhante à 2 a M <strong>entre</strong> mi e fá # da cançãokawokakuma.Segun<strong>do</strong> Piedade, tu<strong>do</strong> nesta peça é diferente, pois <strong>os</strong> acompanhantes somentetocam em A, e ainda de forma simplificada, e no B o flautista mestre toca umsolo pela primeira vez em peças <strong>do</strong> ritual de flautas. O pulso é igualmentelento, e há espaç<strong>os</strong> sonor<strong>os</strong> onde se ouve sons da madrugada. Outraparticularidade é que nesta peça não há <strong>os</strong> chamad<strong>os</strong> “toque de iniciação” e“toque central”, comuns à grande maioria das peças de flautas (op.cit.:198).Como se pode constatar, muito <strong>do</strong> que Piedade fala desta peça converge para217 Segun<strong>do</strong> Menezes Bast<strong>os</strong> (comunicação pessoal), <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Kamayurá, somente <strong>os</strong>grandes mestres de música podem tocar ou cantar em solo, e somente eles podemexecutar as músicas kanupá.


aquilo que ocorre em K102. Sem dúvida, trata-se da mesma canção kanupá emsuas duas faces, kawokakuma e kawoka. 218272Segue a escala e a seqüência de temas e motiv<strong>os</strong> em K103:Escala:Este canto é chama<strong>do</strong> de ixu,“tartaruga”, e também é bastante diferente:trata-se praticamente de um solo executa<strong>do</strong>pela cantora principal, as demais cantorassomente cantan<strong>do</strong> a frase . Como emK102, há notas longas e pausas, a escalasen<strong>do</strong> igualmente cromáticaNesta peça, não se pode dizer quehaja temas e propriamente, mas umdesenvolvimento de frases, marcadas pelas barras, sobre um tema único, (a b)e (c d), que têm estrutura rítmica semelhante. O motivo (b) é uma variação porprolongamento rítmico da última nota de (a), o mesmo ocorren<strong>do</strong> com (d) emrelação a (c). Após , a ordem inicial se inverte: (a b a b c d c d) se torna (c dc d a b a b), manten<strong>do</strong> esta ordem nas duas repetições seguintes. Pontuan<strong>do</strong>estas frases entra o motivo (e), que tem duas variações (e’) e (e’’),francamente cromátic<strong>os</strong>. Estas variações são adições, sucessivas ao motivo, desua própria terminação. Assim, parece que o motivo (e) se expande a cadaexp<strong>os</strong>ição.218 Vale ouvir a gravação desta peça, inserida na última faixa <strong>do</strong> CD anexo a esta tese, ecompará-la à gravação de K102.


273Segue a escala e a seqüência de temas e motiv<strong>os</strong> em K105:Escala:Observa-se aqui um retorno ao esquemadas peças anteriores a K102 e K103: as cantorascantam a peça toda em uníssono. O motivo (a) é omotor de toda a peça, basea<strong>do</strong> no centro tonal,ten<strong>do</strong> (b), (b’), (c), (f) e (f ’) como resp<strong>os</strong>tas quese interpõem <strong>entre</strong> suas aparições, elevan<strong>do</strong>-se<strong>do</strong> centro tonal. Já o grupo de motiv<strong>os</strong> (d e) temo caráter de concluir sinteticamente to<strong>do</strong> o jogo<strong>entre</strong> (a) e suas resp<strong>os</strong>tas p<strong>os</strong>síveis: trata-se demotiv<strong>os</strong> que dissolvem definitivamente as tensõescromáticas sobre o centro tonal, antes de suareafirmação em , e por isso são motiv<strong>os</strong> dedissolução. Os motiv<strong>os</strong> marcad<strong>os</strong> em vermelhomarcam as transformações n<strong>os</strong> temas: n<strong>os</strong>egun<strong>do</strong> , (c) substitui (b), parecen<strong>do</strong> que houve uma exclusão de (a b), maso que houve foi sua substituição, pois aparece (a f) substituin<strong>do</strong> (a c). Note-seque <strong>os</strong> temas são absolutamente regulares, não sofren<strong>do</strong> nenhumatransformação. No terceiro tema há a exclusão de (a b) e a substituição de(c) por (b), voltan<strong>do</strong>-se ao (a b) original, e a substituição de (c) por (f). Notema seguinte há a adição de (a b), voltan<strong>do</strong> à dimensão original <strong>do</strong> tema ,seguida da substituição de (b) por (c) e de (c) por (f). No último , retoma-sea exclusão de (a b). O fato de haver nesta peça tantas substituições se deve aofato de que diferentes motiv<strong>os</strong> são como variações cromáticas de uma únicaresp<strong>os</strong>ta a (a b), que se comporta como sen<strong>do</strong> o motor desta peça.


274Segue a escala e a seqüência de temas e motiv<strong>os</strong> em K107:Escala:Há nesta peça, novamente, cromatismodescendente em direção ao centro tonal. Retoma-seaqui o procedimento de iniciar com o tema atravésde seus motiv<strong>os</strong> principais (d a). Surge então omotivo (e), como uma surpresa: é um motivo deretomada, que quebra a terminação da seqüência efaz retornar o movimento cromático, através de umpasso ascendente. Pode-se notar que (b) e (c) sãomotiv<strong>os</strong> de dissolução: fecham o movimentoascendente e pontuam a tônica, anteceden<strong>do</strong> . Omesmo caso é o de (f), que substitui (b) no segun<strong>do</strong>tema . Não há aqui tanta regularidade no temacomo houve em K105: o último tema sofre exclusões sistemáticas de (d a) ede (b). Na última exp<strong>os</strong>ição de , (b) substitui (f), voltan<strong>do</strong>-se assim àconfiguração temática original (a a b c).Um outro ponto interessante nesta peça é uma forma peculiar deenglobamento de por : como m<strong>os</strong>tram as linhas pontilhadas, o temaaparece em , porém de forma que há motiv<strong>os</strong> (d) anteceden<strong>do</strong> seus motiv<strong>os</strong>(a) e (b c). Portanto, promove não uma aparição integral de , comogeralmente ocorre, mas uma evocação <strong>entre</strong>cortada. Com estes procediment<strong>os</strong>dissolutiv<strong>os</strong>, parece que estas peças estão operan<strong>do</strong> uma grande distensão n<strong>os</strong>istema, talvez uma característica topológica desta alta madrugada, final deuma sessão bastante densa.


275Segue a escala e a seqüência de temas e motiv<strong>os</strong> em K115:Escala:Nesta canção, o que ocorre é um processotransformacional no tema . O motivo (b) é umaespécie de resp<strong>os</strong>ta afirmativa de (a) através deuma antecipação rítmica. Há em um jogocromático descendente <strong>entre</strong> (a) e (b) que acaba deforma sintética com o motivo de dissolução (c). Otema apresenta (d e) e engloba completamente, mas na sua repetição, adiciona na terminação <strong>do</strong>engloba<strong>do</strong> <strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> (f c 2 ). O tema assimtransforma<strong>do</strong> se mantém estável até o final da peça.O que é notável aqui é a seguinte transformação de: ele reaparece com uma substituição de (c) por(a), seguida d<strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> adicionad<strong>os</strong> (f c 2 ), e na suaúltima aparição também. Ou seja, <strong>os</strong> motiv<strong>os</strong>adicionad<strong>os</strong> no englobamento acabam por se anexardefinitivamente em , transforman<strong>do</strong>-o. O último tema apresenta ainda umaoutra transformação: a exclusão de (a b). Com isto, o tema inicial e o finalsão transformações resultantes da transformação de , que se torna uma novaidentidade de .> |


276Assim analisadas algumas das peças kawokakuma, passo para a análisedas canções iamurikuma. O repertório de iamurikuma não apenas é muitodistinto de kawokakuma, como também apresenta muita diversidade interna.Ou seja, as peças iamurikuma são muito distintas <strong>entre</strong> si, apresentan<strong>do</strong> umaestrutura men<strong>os</strong> estável <strong>do</strong> que aquela <strong>do</strong> kawokakuma. A estabilidade nogênero iamurikuma parece se dar no âmbito temático: seu nexo com o mito deiamurikuma.> |


presença masculina tem relação com o mito, se lembrarm<strong>os</strong> de Kamatapirá, orecluso que acompanha as iamurikuma em sua saga.277Em I 30, a escala e <strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> são <strong>os</strong> seguintes:Escala:O andamento é lento, as vozes graves, to<strong>do</strong> oclima é pesa<strong>do</strong> e sóbrio. É interessante lembrar oque foi dito sobre a performance desta canção deipitsehenẽ: ela foi cantada no interior da casa deItsautaku e a coreografia inclui um procissão decinco mulheres que avança e retorna, uma a uma,em pass<strong>os</strong> larg<strong>os</strong>. Estes pass<strong>os</strong> são a subida naescada que leva à aldeia d<strong>os</strong> mort<strong>os</strong>,yuwejokupoho. As cinco letras <strong>do</strong> motivo (B) sãocantadas à medida que as dançarinasparamentadas fazem sua evolução coreográfica.Em term<strong>os</strong> rítmic<strong>os</strong>, nota-se a ausência decontratemp<strong>os</strong> ou sincopas, um detalhe que ajudano peso geral.O motivo (d) aparece somente na segunda linha <strong>do</strong> gráfico, e após suarepetição nesta linha, ele é excluí<strong>do</strong> da linha seguinte e não reaparece mais.Este motivo exibe um cromatismo passo a passo que, como se viu, está liga<strong>do</strong>às músicas kanupá, canções kakaiapai, raras e perig<strong>os</strong>as. Aliás, toda a seção (de a), marcada com colchete, é excluída após a terceira linha. A frase (f) écomp<strong>os</strong>ta por três motiv<strong>os</strong>, o segun<strong>do</strong> ten<strong>do</strong> caráter de resp<strong>os</strong>ta ao primeiro, oterceiro sen<strong>do</strong> repetição <strong>do</strong> segun<strong>do</strong>. Assim pode-se considerar que a fraseexibe reiteração, já que sua seção final é repetida.


278Em I 12, a escala e <strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> são <strong>os</strong> seguintes:Escala:Esta canção é o hit <strong>do</strong>iamurikuma: ela foi cantada7 vezes ao longo <strong>do</strong> ritual! Aletra fala: “estou fican<strong>do</strong>louca! Pode vir ver!Kamatapirá me fez ficarlouca!”. A “culpa” <strong>do</strong> reclusofoi ter revela<strong>do</strong> às mulhereso que se passava com <strong>os</strong>homens no acampamento depesca.Nota-se que aqui se pode falar em temas e , e também em umavariação de que corresponde ao encaixe de uma segunda letra. Não háoperações outras senão esta própria variação de e seus motiv<strong>os</strong>. Entretanto,pode-se m<strong>os</strong>trar a familiaridade <strong>entre</strong> <strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> (a), (b), (c) e (g): comoexibe o quadro acima, as sete notas destes motiv<strong>os</strong> são interpolações <strong>entre</strong> ocentro tonal fá# e sol#, que variam de um para outro conforme as coresindicadas.Entretanto, o destaque nesta canção vai para seu caráter de agilidade eforça rítmica, marcada por uma subdivisão quinária d<strong>os</strong> motiv<strong>os</strong>. O padrãorítmico d<strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> (a), (b), (c) e (g) é o seguinte:Os colchetes m<strong>os</strong>tram <strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> rítmic<strong>os</strong> de 5 temp<strong>os</strong>, com <strong>os</strong> númer<strong>os</strong> depuls<strong>os</strong> acima de cada figura. No caso d<strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> (d), (e) e (f) têm o seguintepadrão:


279Para <strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> variad<strong>os</strong> (d´), (e´) e (f´), o padrão:O motivo (g´) tem o esquema:Vê-se, portanto, que to<strong>do</strong> o motor desta canção está na sutildiferenciação de seus motiv<strong>os</strong> e em seu pulso rítmico. As mulheres, indignadaspela notícia trazida por Kamatapirá, transformadas pela ingestão das “frutas <strong>do</strong>mato”, criam uma música forte, com o raro pulso quinário que, no entanto, éacompanha<strong>do</strong> pelo bater homogêneo de pés de Kamatapirá e Ulei.> |


280cantora principal, aquela que se p<strong>os</strong>iciona no meio. Este núcleo é o mesmo quecanta o repertório de iamurikuma. Este último funciona como roteiro <strong>do</strong> ritual,que tem como script o aunaki, o “mito”. Os cant<strong>os</strong> de iamurikuma são, em suamaioria, de caráter austero, com destaque especial para o opukakala, que temuma formação músico-coreográfica ao que parece rara no cenário amazônico,envolven<strong>do</strong> solista e coro. Partes <strong>do</strong> ritual são consideradas ainda mais graves,ligadas à idéia de kanupá, que aponta para o segre<strong>do</strong> e o perigo 219 . As peçaskanupá exibem características musicológicas particulares, como formação emsolo, pulso lento, maior gama de notas e espaç<strong>os</strong> de silêncio.Já o repertório de kawokakuma exibe estabilidade, de acor<strong>do</strong> com cadasub-repertório. Aqui o norte não é o mito, mas as paixões <strong>Wauja</strong>,especialmente o ciúme-inveja, uki. Da totalidade das peças de kawokakuma,cerca de 160, 41 foram transcritas e 18 analisadas. Esta parcela, no entanto, ébastante significativa, e o que se concluiu aqui enten<strong>do</strong> que pode com bastantesegurança ser estendi<strong>do</strong> para as demais peças. Pelo men<strong>os</strong> é isto o que aescuta sugere, sen<strong>do</strong> que somente uma análise mais abrangente poderácomprová-lo. Das cerca de 40 peças de iamurikuma, foram transcritas 6 eanalisadas 2, sen<strong>do</strong> que este recorte foi necessário devi<strong>do</strong> a<strong>os</strong> limites dedimensão desta tese.Das análises musicais, destacam-se várias operações fundamentais noâmbito motívico da música de kawokakuma: variação tética, variação sufixal,fusão, tipo bordadura, jogo alternante 3M/3m, motivo justap<strong>os</strong>to de citação,adição, exclusão, prolongamento rítmico, motivo de dissolução e motivo deretomada. Comentou-se a importância das terminações de motiv<strong>os</strong>, frases etemas, bem como o englobamento <strong>do</strong> tema pelo tema . No âmbito dasletras, encontrou-se nex<strong>os</strong> <strong>entre</strong> a canção, o mito as paixões, aparecen<strong>do</strong>algumas temáticas recorrentes, como o mote <strong>do</strong> defeito físico. Na relação letramúsica,notou-se fatores importantes como a inversão de texto e aflexibilização rítmica. Buscou-se aqui, um exercício comparativo inicial <strong>entre</strong> ocanto kanupá de kawokakuma, e aquele das flautas kawoká, surgin<strong>do</strong> destaanálise várias homologias <strong>entre</strong> eles. A distribuição de todas estas operações219 Será interessante, em trabalh<strong>os</strong> futur<strong>os</strong>, analisar <strong>os</strong> cant<strong>os</strong> kanupá cantad<strong>os</strong> peloamunau Iutá em comparação com o repertório homônimo de kawokakuma e das flautaskawoka.


281comp<strong>os</strong>icionais acentua a idéia de que a música <strong>do</strong> ritual de iamurikuma nãoconstitui um único gênero musical, mas sim <strong>do</strong>is: iamurikuma e kawokakuma,este último sen<strong>do</strong> a face feminina de um supergênero que tem na outra face amúsica <strong>do</strong> ritual de flautas kawoka. Estudar <strong>os</strong> process<strong>os</strong> comp<strong>os</strong>icionais d<strong>os</strong>repertóri<strong>os</strong> masculino e feminino, sob um prisma comparativo, se configuracomo um caminho estimulante para futur<strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong>.A seguir, preten<strong>do</strong> elaborar alguns comentári<strong>os</strong> na direção <strong>do</strong>fechamento desta tese. Tratarei da questão d<strong>os</strong> rituais de gênero e seus nex<strong>os</strong>com a ética e a política <strong>Wauja</strong>, destacan<strong>do</strong> a questão da reciprocidade e d<strong>os</strong>entimento de uki como motor da socialidade, e a música como a forma idealde expressão destes sentiment<strong>os</strong>.> |


282Considerações finaisNo capítulo V, <strong>os</strong> comentári<strong>os</strong> sobre o ritual evidenciaram que orepertório musical específico de iamurikuma funciona como roteiro <strong>do</strong> ritual,constituin<strong>do</strong> seus personagens e situações, presentes no aunaki, “mito”. Este,por sua vez, é o seu script. Já o repertório de kawokakuma focaliza muito maisas paixões <strong>Wauja</strong>, especialmente o sentimento de uki, ciúme-inveja. Através daanálise de uma parcela destes repertóri<strong>os</strong>, m<strong>os</strong>trei como eles estão ancorad<strong>os</strong>em operações musicais complexas, que exigem um <strong>alto</strong> grau de conhecimentopor parte das mulheres cantoras, principalmente da cantora-comp<strong>os</strong>itoracentral.No presente comentário final, preten<strong>do</strong> partir da questão de gênero, quese impôs ao longo de toda a tese, para chegar a uma discussão sobre <strong>os</strong>entimento de uki, que, segun<strong>do</strong> penso, está relaciona<strong>do</strong> diretamente àsconcepções éticas <strong>Wauja</strong>, ten<strong>do</strong> implicações estéticas no plano da socialidade.Por esta via, preten<strong>do</strong> m<strong>os</strong>trar que no ritual de iamurikuma, especificamentesua música, há uma expressão deste sentimento, da necessidade <strong>do</strong> controlede sua medida no senti<strong>do</strong> de manter viva a relação <strong>entre</strong> homens e mulheres,p<strong>os</strong>sibilitan<strong>do</strong> assim a continuidade da vida social.A preocupação com o controle deste páth<strong>os</strong> extravasa o âmbito da aldeiae dirige a cena local para o âmbito das relações intertribais, apontan<strong>do</strong> parauma diplomacia que se expressa através de uma etiqueta elaborada, presenteno cerimonial xinguano 220 . Esta diplomacia, inscrita também na c<strong>os</strong>mologiaxinguana, ao xamanismo e à feitiçaria, é a forma de lidar com <strong>os</strong> impasses daarticulação das diferenças, sen<strong>do</strong> que a música, ao trabalhar com proporções,repetições e variações, instaura o conflito ao mesmo tempo em que o mantémsob controle.> |


283divisão tem rendimento analítico no ritual em toque, notadamente na questão<strong>do</strong> poder. O princípio <strong>Wauja</strong> da adequação <strong>entre</strong> desejo e ação, ali presente, écompatível com o que foi fala<strong>do</strong> sobre a vigilância capilar das sociedadesxinguanas, estan<strong>do</strong> na base de uma etiqueta que é ao mesmo tempo umaestética e uma ética, uma disciplina ou legislação que atinge tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> <strong>do</strong>míni<strong>os</strong>da vida social (ver Menezes Bast<strong>os</strong>, 2001). Essa estética-ética fundamenta asocialidade xinguana em geral, inclusive nas relações de gênero, mas nã<strong>os</strong>omente aí: tod<strong>os</strong> vigiam a tod<strong>os</strong>. Como bem coloca Gonçalves, o gênero estáinseri<strong>do</strong> em uma c<strong>os</strong>mologia: o que importa destacar são as qualidades, nãoaquelas de homens e mulheres, mas qualidades capazes de articular umdiscurso sobre a diferença sexual, seu lugar de produtor e produzi<strong>do</strong> <strong>do</strong>/pel<strong>os</strong>istema sócio-c<strong>os</strong>mológico (Gonçalves, 2000).A observação atenta sobre o complexo iamurikuma-kawoká traz adiscussão das relações de gênero para o campo das relações de poder. Apesarde alguns autores já terem cita<strong>do</strong> o ritual de iamurikuma como evidência da<strong>do</strong>minação masculina 221 , creio ter apresenta<strong>do</strong> dad<strong>os</strong> suficientes para pensa-lonão em term<strong>os</strong> isolad<strong>os</strong> mas como parte <strong>do</strong> complexo iamurikuma-kawoka,como espaço ritual privilegia<strong>do</strong>, público e legítimo, para a expressão tantofeminina quanto masculina 222 .Em boa parte da literatura etnológica é empregada a dualidade homensesferapública / mulheres-esfera privada, como comentarei adiante. Entretanto,<strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, o espaço central da aldeia, enekutaku, caracteriza<strong>do</strong> comopalco da esfera política, não é inteiramente espaço masculino, e nem <strong>os</strong>espaç<strong>os</strong> <strong>do</strong>méstic<strong>os</strong> podem ser considerad<strong>os</strong> exclusiv<strong>os</strong> das mulheres. O221 Bamberger (1974), ao apresentar o mito das “amazonas” como a passagem de umesta<strong>do</strong> de ca<strong>os</strong> -promovi<strong>do</strong> pela revolta das mulheres- para um retorno à ordem -conquistada pel<strong>os</strong> homens-, centra sua interpretação na questão da “<strong>do</strong>minaçãomasculina”, dan<strong>do</strong> suporte a muito <strong>do</strong> que se produziu na época sobre este assunto nasTerras Baixas. Com visão semelhante, Zarur (1975), no cenário <strong>do</strong> Alto <strong>Xingu</strong>, fala em“guerra d<strong>os</strong> sex<strong>os</strong>”, expressão a<strong>do</strong>tada também por Gregor (1985), que vê a ansiedaded<strong>os</strong> homens frente ao sexo op<strong>os</strong>to como o fato que dá sustentação ao pilar fundamentalda <strong>do</strong>minação masculina: o “estupro ritual coletivo”. Mais recentemente, Junqueira,analisan<strong>do</strong> esta mitologia xinguana, detecta ali uma estratégia masculina para imporsua supremacia (1998: 110).222 Lembro que Basso, tratan<strong>do</strong> d<strong>os</strong> rituais de yamurikumalu e kagutu <strong>entre</strong> <strong>os</strong> índi<strong>os</strong>Kalapalo, já destacara a complementaridade <strong>entre</strong> estes “rituais musicais de gênero”,como <strong>os</strong> chama, embora enfatize sua prevalência no contexto <strong>do</strong> antagonismo sexual(1985:258).


284enekutaku é literalmente toma<strong>do</strong> pelas iamurikuma, que ali injetam, através deseus cant<strong>os</strong>, questões individuais na esfera coletiva 223 . Em outr<strong>os</strong> rituais, comoo de sapukuyawa, ou de kapulu, são <strong>os</strong> cant<strong>os</strong> masculin<strong>os</strong> que tratam d<strong>os</strong>afet<strong>os</strong> individuais, bem como durante a execução das flautas kawoká <strong>os</strong>homens parecem se ocupar das paixões 224 . Tais comentári<strong>os</strong> não subvertem aidéia corrente de que o centro da aldeia é o espaço da masculinidade, associa<strong>do</strong>ao coletivo, um coletivo que, na esfera intertribal, é entendi<strong>do</strong> como masculinopor excelência 225 . Entretanto, preten<strong>do</strong> chamar a atenção para este espaçocomo sen<strong>do</strong> o ponto convergente de preocupações individuais, tanto de homensquanto de mulheres, ali tornadas coletivas através da música.As mulheres <strong>Wauja</strong> têm importantes espaç<strong>os</strong> e moment<strong>os</strong> de expressão.No caso <strong>do</strong> ritual de iamurikuma, elas podem tomar o centro da aldeia aqualquer momento, não sen<strong>do</strong> necessário que esteja ocorren<strong>do</strong> o ritualconforme o aqui apresenta<strong>do</strong>: duas ou três mulheres podem decidir cantar, emum final de tarde qualquer, tornan<strong>do</strong> públicas suas inquietações, queixas oudenúncias. Em outr<strong>os</strong> moment<strong>os</strong>, por exemplo, quan<strong>do</strong> a aldeia se mobilizapara extrair o óleo de pequi, as mulheres também podem cantar músicas dekawokakuma na frente de cada casa da aldeia.Além <strong>do</strong> ritual de iamurikuma, há uma outra festa que vale a pena sermencionada no presente contexto, na qual as mulheres participam ativamente,dançan<strong>do</strong>, cantan<strong>do</strong> e expon<strong>do</strong> suas idéias e sentiment<strong>os</strong>: o ritual de kukuho,“<strong>do</strong>no da mandioca”. Oito meses após o ritual de iamurikuma, em julho de2002, participei deste ritual, na ocasião produzi<strong>do</strong> no intuito de curar umamulher (irmã <strong>do</strong> pajé e das cantoras de iamurikuma) que estava muito <strong>do</strong>entehavia quase <strong>do</strong>is meses. O apapaatai chama<strong>do</strong> kukuho p<strong>os</strong>sui muit<strong>os</strong> “<strong>do</strong>n<strong>os</strong>”<strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, justamente por se relacionar a um alimento básico como é amandioca, ao qual as pessoas se expõem demasiadamente, principalmente asmulheres. Kukuho é o nome de um inseto que tem a forma de uma lagarta e,223 Fausto argumenta que “o que é próprio <strong>do</strong> ‘político’ é apropriar-se da representaçãoda totalidade, relegan<strong>do</strong> ao ‘<strong>do</strong>méstico’ a particularidade” (1997:149). Desta forma,compreeen<strong>do</strong> o centro da aldeia como o plenário onde as questões coletivas maisimportantes são abordadas e as individuais são coletivizadas.224 Ou seja, <strong>os</strong> afet<strong>os</strong>, tornad<strong>os</strong> públic<strong>os</strong>, coletivizad<strong>os</strong>, são fat<strong>os</strong> da ordem <strong>do</strong> político,transcenden<strong>do</strong> a separação de gênero.225 Em muitas conversas com homens <strong>Wauja</strong>, notei que frases <strong>do</strong> tipo “to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> foi”ou “to<strong>do</strong> o pessoal falou” se referiam única e exclusivamente a<strong>os</strong> homens.


285como to<strong>do</strong> apapaatai, é perig<strong>os</strong>o, poden<strong>do</strong>, <strong>entre</strong>tanto ser amansa<strong>do</strong> atravésda oferta de músicas, alimento e tabaco. D<strong>entre</strong> as várias etapas deste ritual,destaco a fabricação <strong>do</strong> kutejo, “pás de beijú”, e <strong>do</strong> tunuaĩ, “desenterra<strong>do</strong>r demandioca”. Estes objet<strong>os</strong> pertencem ao universo feminino, porém são <strong>os</strong>homens que <strong>os</strong> fabricam, com muit<strong>os</strong> requintes, para serem <strong>entre</strong>gues àsmulheres ao final deste rito.Durante <strong>os</strong> cinco dias de festa, <strong>os</strong> homens se divertiram provocan<strong>do</strong> asmulheres com cant<strong>os</strong> que ridicularizavam o corpo feminino, falan<strong>do</strong> de sujeira,mau cheiro, secreções e coisas semelhantes. Elas, no entanto, pareciamindiferentes às ofensas ou cantavam algo semelhante em resp<strong>os</strong>ta. Assim foiaté que, em um final de tarde, Pakairu, a esp<strong>os</strong>a <strong>do</strong> chefe Atamai, seaproximou da roda d<strong>os</strong> homens sentad<strong>os</strong> no centro e, em atitude provocativa,colocan<strong>do</strong> a mão na frente de seu púbis, quase o esfregan<strong>do</strong> no r<strong>os</strong>to de Tuhu -um d<strong>os</strong> homens mais goza<strong>do</strong>res da aldeia-, disse:- 'Você está xingan<strong>do</strong> a buceta, mas é dela que você precisa, fazfalta para você, porque você não consegue ficar sem'.Enquanto tod<strong>os</strong> riam, inclusive o próprio Tuhu, apesar deaparentar surpresa, um outro homem retrucou:- 'É buceta muuuuuito funda'E então Pakairu revi<strong>do</strong>u:-'Xingan<strong>do</strong> vocês não vão conseguir aquilo que vocês precisam'.Ela então se virou de c<strong>os</strong>tas para o grupo e saiu em direção à sua casa,bem altiva, enquanto tod<strong>os</strong> riam muito. Esta cena é apenas um <strong>entre</strong> vári<strong>os</strong>exempl<strong>os</strong> de como as mulheres não se intimidam com as provocaçõesmasculinas. Há sempre a necessidade de dar o “troco”, puta o-pete, como elasmesmas dizem 226 , e assim o fazem, na maioria das vezes cantan<strong>do</strong>.Durante esta festa, homens e mulheres <strong>Wauja</strong> alternaram cant<strong>os</strong> de trêssub-repertóri<strong>os</strong>, jatakuagakalu, matowojo e kapojai, d<strong>entre</strong> <strong>os</strong> quais o últimofoi o que mais me chamou a atenção, tanto pela quantidade e diversidade de226 Esta categoria nativa será mais discutida logo adiante.


286pessoas que dele participaram, quanto pelas formas poéticas neleempregadas 227 .Kapojai é um gênero de cant<strong>os</strong> breves, em média de 25 segund<strong>os</strong> cadaum, que seguem estruturas rítmico-melódicas padrão, alguns com text<strong>os</strong>improvisad<strong>os</strong> pel<strong>os</strong> cantores, geralmente uma reclamação ou denúncia, outr<strong>os</strong>seguin<strong>do</strong> text<strong>os</strong> fix<strong>os</strong>, chamad<strong>os</strong> de kapojai antigo. Um canto kapojai éexecuta<strong>do</strong> individualmente ou em pequen<strong>os</strong> grup<strong>os</strong>, organizad<strong>os</strong> por sexo eclasse de idade, seguin<strong>do</strong> sempre uma coreografia que consiste em entrar decasa em uma casa, inician<strong>do</strong>-se pela casa de quem está patrocinan<strong>do</strong> a festa,e, em passo rápi<strong>do</strong> e ritma<strong>do</strong>, cantar sua canção em frente ao jirau central dareferida casa. Após isto, a pessoa ou o grupo se dirige para a casa seguinte,também em passo rápi<strong>do</strong> e ritma<strong>do</strong>, percorren<strong>do</strong> no mínimo duas vezes ocircuito da aldeia cantan<strong>do</strong> sua canção.É importante ressaltar que as mulheres participam cantan<strong>do</strong> kapojaiapenas na festa <strong>do</strong> kukuho pois, nas demais festas em que este gênero decanto acontece, ele é realiza<strong>do</strong> somente pel<strong>os</strong> homens. Apesar de ser o únicoritual no qual as mulheres cantam seus kapojai, a grande freqüência com queele é realiza<strong>do</strong> m<strong>os</strong>tra que há aqui também um espaço de expressãoamplamente ocupa<strong>do</strong> por elas. Registrei, na ocasião, 107 kapojai, d<strong>os</strong> quais 56foram cantad<strong>os</strong> por mulheres. 20 destes cant<strong>os</strong> tratavam de questões relativasao faccionalismo da aldeia, disputas de chefia, acusações de feitiçaria. Osdemais temas de interesse eram a joc<strong>os</strong>idade <strong>entre</strong> homens e mulheres, e o“ciúme-inveja” uki.Estes cant<strong>os</strong> fornecem vali<strong>os</strong>as pistas para a compreensão da socialidade<strong>Wauja</strong>, configuran<strong>do</strong>-se como uma forma permitida de expressão dasinquietações individuais 228 . Através d<strong>os</strong> kapojai, são exp<strong>os</strong>t<strong>os</strong> fat<strong>os</strong> relativ<strong>os</strong> àpolítica da aldeia, <strong>do</strong> <strong>Xingu</strong> como um to<strong>do</strong>, e atinentes ao mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> “branco”227 Espero desenvolver em trabalh<strong>os</strong> futur<strong>os</strong> uma análise mais aprofundada desterepertório.228 Franchetto (1996:40; 2001:47) identifica uma série de cant<strong>os</strong> das mulheres Kuikuroclassificad<strong>os</strong> por kwambü e tolo, que acredito terem relação com <strong>os</strong> repertóri<strong>os</strong> musicaisde kukuho e kawokakuma. Seria importante, contu<strong>do</strong>, a realização de um estu<strong>do</strong>comparativo d<strong>os</strong> cant<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> e Kuikuro, no senti<strong>do</strong> de apontar as similaridades eespecificidades de cada um.


287229 . Ao observar estes cant<strong>os</strong>, chama ainda a atenção o fato de terem si<strong>do</strong> asmulheres que trataram mais intensamente <strong>do</strong> faccionalismo na aldeia,enquanto <strong>os</strong> homens se dedicaram mais às questões de gênero e uki 230 .Esta ênfase neste tipo de discursividade política é única na vida socialfeminina <strong>Wauja</strong>, já que as questões de gênero têm outr<strong>os</strong> espaç<strong>os</strong> rituais,como a festa <strong>do</strong> pequi e o ritual de iamurikuma. Desta forma, o destaque daespecificidade <strong>do</strong> kapojai no ritual de kukuho está na abertura para o político,para a manifestação da p<strong>os</strong>ição individual das mulheres em relação ao queocorre no plano coletivo, ao faccionalismo e à chefia. Os cant<strong>os</strong> muitas vezesrespondem a questões que vêm se arrastan<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong> social: falam deinjustiças, trazem acusações e, na maioria das vezes, funcionam comoprovocações e repreensões.> |


288da América <strong>do</strong> Sul 231 . A idéia de que há uma universalidade da assimetriasexual, ou seja, de que há uma tendência universal de se estabelecer umaordenação hierárquica <strong>entre</strong> <strong>os</strong> gêner<strong>os</strong> sexuais 232 , foi uma tônica deste perío<strong>do</strong>e baseou-se na já comentada distinção analítica <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>do</strong>míni<strong>os</strong>público/priva<strong>do</strong> 233 . Ao mesmo tempo em que o “antagonismo sexual” 234 étematiza<strong>do</strong> pela antropologia feminista, muit<strong>os</strong> autores também reconhecemnocomo uma das características das sociedades amazônicas. Exempl<strong>os</strong> dissopodem ser encontrad<strong>os</strong> em trabalh<strong>os</strong> etnográfic<strong>os</strong> como <strong>os</strong> d<strong>os</strong> casais Robert eYolanda Murphy <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Mundurucú (1974) e <strong>os</strong> de Christine e Stephen Hugh-Jones (respectivamente 1979 e 1979) <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Tukano 235 . Em alguns trabalh<strong>os</strong>,a ênfase é dada a aspect<strong>os</strong> psicológic<strong>os</strong>, como a hipótese da inveja masculina,comentada por S. Hugh-Jones (op.cit.), <strong>os</strong> problemas edipian<strong>os</strong> enfrentad<strong>os</strong>pel<strong>os</strong> Mundurucú, tal como observa<strong>do</strong> pel<strong>os</strong> Murphy (op.cit.), e pel<strong>os</strong> Mehináku(cf. Gregor, 1985). Já em outr<strong>os</strong>, a teoria lévi-straussiana da “escassez demulheres” se faz presente (Chernela, 1984) e aponta para a manipulaçãofeminina <strong>do</strong> excedente de sua sexualidade (ver Siskind, 1973, para o caso d<strong>os</strong>231 D<strong>entre</strong> estes estud<strong>os</strong>, três coletâneas são marcantes: A Mulher, a Cultura e aSociedade (R<strong>os</strong>al<strong>do</strong> e Lamphere, 1979), Towards an Anthropology of Women (Reiter,1975) e Sexual Meanings (Ortner e Whitehead, 1981).232 Rubin (1975) desenvolve o conceito de “sistemas de sexo/gênero” com o qualprocura m<strong>os</strong>trar que o aspecto biológico/anatômico não se justifica como únicamotivação da hierarquia sexual. Afirman<strong>do</strong> que o gênero sexual é uma construçã<strong>os</strong>ocial, Rubin entende que a assimetria <strong>entre</strong> <strong>os</strong> sex<strong>os</strong> decorre das diferenças de status<strong>entre</strong> dádiva e <strong>do</strong>a<strong>do</strong>r, envolven<strong>do</strong> portanto <strong>os</strong> sistemas de parentesco.233 Outr<strong>os</strong> binômi<strong>os</strong> também foram incorporad<strong>os</strong> à discussão, como cultura/natureza,ação transforma<strong>do</strong>ra/objeto, estrutura/agência, tod<strong>os</strong> relacionan<strong>do</strong>-se respectivamentea gênero masculino/gênero feminino.234 Lasmar, em uma revisão bibliográfica a respeito d<strong>os</strong> estud<strong>os</strong> de gênero na Amazônia,sugere que “o antagonismo sexual amazônico pode ser defini<strong>do</strong> como um complexoideológico sustenta<strong>do</strong> por uma série de mit<strong>os</strong> e rituais correlat<strong>os</strong>, que tematizam asrelações <strong>entre</strong> homens e mulheres e enfatizam as diferenças em term<strong>os</strong> de poder estatus, definin<strong>do</strong> <strong>os</strong> sex<strong>os</strong> como grup<strong>os</strong> antagônic<strong>os</strong> dentro da mesma sociedade”(1996:57). Ver também Bellier (1993).235 Nestas duas sociedades, bem como na Nova Guiné, toda mitologia relacionada aotema apresenta como símbol<strong>os</strong> de poder <strong>os</strong> “instrument<strong>os</strong> musicais sagrad<strong>os</strong>”, ou“flautas sagradas”, no caso xinguano. Tanto na mitologia quanto no ritual, é a p<strong>os</strong>sedesses instrument<strong>os</strong> que confere controle e poder a<strong>os</strong> homens, de mo<strong>do</strong> que àsmulheres cabe uma p<strong>os</strong>ição de ouvintes (necessárias) neste complexo. D<strong>entre</strong> a vastaliteratura etnológica da Melanésia, ver Hogbin (1996 [1970]) e Herdt (1981). Strathern(1988) comenta a literatura <strong>do</strong> antagonismo sexual na Melanésia. Para a comparação<strong>entre</strong> esta região e a Amazônia com foco nas relações de gênero, ver Gregor & Tuzin(2001).


289Shanaranaua) 236 . Há ainda interpretações como as de Jackson (1990) sobre ocaráter disjuntivo da mulher <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Tukano, a mulher simbolizan<strong>do</strong> aalteridade social e a negação d<strong>os</strong> interesses coletiv<strong>os</strong>. Ainda no noroesteamazônico, Lang<strong>do</strong>n (1984) observa, <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Siona, de um la<strong>do</strong> uma subvalorizaçãoda criatividade feminina, e de outro uma supervalorização damasculina <strong>entre</strong> <strong>os</strong> homens.Soman<strong>do</strong>-se a estes, divers<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> estud<strong>os</strong> se afastam da idéia deantagonismo, centran<strong>do</strong>-se mais n<strong>os</strong> aspect<strong>os</strong> complementares <strong>entre</strong> <strong>os</strong> sex<strong>os</strong>(Overing, 1986, 1988, 1991a; Lagrou, 1998, <strong>entre</strong> outr<strong>os</strong>). Overing (1986), aoanalisar um mito Piaroa, identifica vári<strong>os</strong> princípi<strong>os</strong> de igualdade <strong>entre</strong> aspersonagens míticas, observan<strong>do</strong> que há um relativo equilíbrio <strong>entre</strong> homens emulheres no plano prático das relações sociais deste grupo 237 . Tratan<strong>do</strong> daquestão da música, Piedade (1997), em sua pesquisa <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Ye’pâ-Masa(grupo Tukano), analisa <strong>os</strong> cant<strong>os</strong> masculin<strong>os</strong> e feminin<strong>os</strong> no ritual Dabacuri 238 ,inferin<strong>do</strong> que “o equilíbrio d<strong>os</strong> gêner<strong>os</strong> e papéis sexuais no mun<strong>do</strong> ritualmusicalYe´pâ-Masa corresponde à dinâmica <strong>entre</strong> estrutura e agência” (:131),apontan<strong>do</strong> assim para uma situação de complementaridade <strong>entre</strong> eles. Deforma semelhante, Bueno da Silva, também através <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> da música,chegou à explicitação da atividade transforma<strong>do</strong>ra da mulher Kulina,equacionan<strong>do</strong> a mulher à cultura e o homem à natureza, inverten<strong>do</strong> atradicional equação (1997: 138) 239 .236 Como assinala McCallum (2001), visões como estas de Siskind, <strong>do</strong> casal Murphy e deGregor, levam a crer que <strong>os</strong> rituais de gênero destas sociedades serviriam paraexpressar a h<strong>os</strong>tilidade e o me<strong>do</strong> que uns sentem pel<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> (o “outro” sen<strong>do</strong> sempreaquele <strong>do</strong> sexo op<strong>os</strong>to).237 Ao analisar o mesmo mito, Segato (1998), no entanto, chega a conclusão op<strong>os</strong>ta,identifican<strong>do</strong> no mito um personagem que seria o porta<strong>do</strong>r da norma, o agenteregula<strong>do</strong>r encarna<strong>do</strong> pelo princípio masculino.238 <strong>Ritual</strong> de troca, comum em toda a região <strong>do</strong> noroeste amazônico. Importantelembrar que <strong>entre</strong> <strong>os</strong> grup<strong>os</strong> Tukano vigora a regra da exogamia lingüística, sen<strong>do</strong> asmulheres sempre provenientes de outr<strong>os</strong> grup<strong>os</strong> locais, falantes de uma outra língua.239 A equação homem:cultura::mulher:natureza é largamente debatida em MacCormack& Strathern (1980). Para uma revisão de estud<strong>os</strong> na área de gênero nas sociedadesindígenas, o "D<strong>os</strong>siê Mulheres Indígenas" (1999) traz quatro artig<strong>os</strong> importantes:Lasmar, McCallum, Lea, e Rodrigues, antecedid<strong>os</strong> de uma apresentação de Franchetto.Este d<strong>os</strong>siê tem como prop<strong>os</strong>ta reunir trabalh<strong>os</strong> que buscam lançar um olhar sobre asmulheres indígenas pela perspectiva feminina, centran<strong>do</strong> n<strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong> e emoçõesvivid<strong>os</strong> por elas. Ver ainda sobre questões de gênero <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, Mello (2004).


290Uma alternativa para a superação <strong>do</strong> impasse <strong>entre</strong> hierarquia<strong>do</strong>minaçãomasculina e simetria-igualdade sexual é apontada por Márcio Silva(1998) em um breve artigo no qual analisa <strong>os</strong> rituais de iniciação masculina efeminina <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Enawene-Nawe. Este autor equaciona as relações de gêneroàs relações de consangüinidade e afinidade -a que chamou de relações de“espécie”- e demonstra como estes <strong>do</strong>is níveis -gênero e espécie- estãoimbricad<strong>os</strong> um no outro. O “mun<strong>do</strong> humano” é, para <strong>os</strong> Enawene-Nawe, aarena onde se combinam estes <strong>do</strong>is princípi<strong>os</strong>. Segun<strong>do</strong> Silva, “<strong>os</strong> parâmetr<strong>os</strong><strong>do</strong> gênero e da espécie recortam não apenas a esfera <strong>do</strong>méstica <strong>do</strong> parentesco,mas correspondem propriamente a categorias, princípi<strong>os</strong> organiza<strong>do</strong>res <strong>do</strong>universo social e <strong>do</strong> c<strong>os</strong>m<strong>os</strong>” (op.cit.:171-172) 240 .Com o propósito de questionar a visão ocidental sobre a natureza dasconstruções de gênero que identificam a sexualidade masculina como locus depoder, visão que é transp<strong>os</strong>ta ao analisar outras culturas, McCallum, em umtexto sobre ritual e sexualidade no Alto <strong>Xingu</strong>, analisa o mito das flautassagradas e o <strong>do</strong> iamurikuma. Ela detecta nestes mit<strong>os</strong> o status de “sexualidadeambígua” instaura<strong>do</strong> nas performances d<strong>os</strong> rituais homônim<strong>os</strong>. McCallumafirma que a sexualidade d<strong>os</strong> performers é anormal durante a performance,sen<strong>do</strong> que esta sexualidade manifesta-se em um potencial para violênciaexcessiva (1994:100). Conclui que o “estupro coletivo ritual”, como idéia ouevento propriamente, pode ser muitas coisas, men<strong>os</strong> a manifestação de umsup<strong>os</strong>to desejo universal masculino de sobrepor-se e humilhar mulheres(op.cit.:110) 241 .Nesta discussão <strong>entre</strong> <strong>do</strong>minação masculina e complementaridade <strong>entre</strong><strong>os</strong> gêner<strong>os</strong>, ten<strong>do</strong> a assumir a argumentação de Franchetto, que concorda emparte com McCallum (1994), não ven<strong>do</strong> a <strong>do</strong>minação masculina como quepairan<strong>do</strong> sobre <strong>os</strong> xinguan<strong>os</strong>, mas que discorda desta mesma autora em outr<strong>os</strong>aspect<strong>os</strong>, pois sua argumentação acaba por diluir “a hierarquia <strong>entre</strong> homens emulheres em prol de uma ênfase na complementaridade” (Franchetto1996:53). No contexto xinguano, <strong>os</strong> pares nunca são tid<strong>os</strong> como simétric<strong>os</strong>,240 Para uma revisão histórica <strong>do</strong> debate sobre o cruzamento d<strong>os</strong> estud<strong>os</strong> de gênero ede parentesco, ver Fonseca (2003).241 Em outra obra, esta autora trata da socialidade Kaxinawá através de uma critica aoconceito de gênero enquanto “identidade sexual”, enfatizan<strong>do</strong> o conceito de agência eafirman<strong>do</strong> que a construção <strong>do</strong> gênero se constitui no discurso e na prática (2001).


291nem mesmo <strong>os</strong> demiurg<strong>os</strong> sol e lua, apesar -et pour cause- de seremgême<strong>os</strong> 242 .Esta criação de uma assimetria <strong>entre</strong> duas p<strong>os</strong>ições originariamenteforjadas no plano da igualdade se funda na não-equivalência destas p<strong>os</strong>ições,isto, no entanto, sem inferir uma tal desigualdade <strong>entre</strong> elas que justifiquefalar-se em coerção ou <strong>do</strong>minação. Tal argumentação ecoa de perto aquelaapresentada por Héritier (1998), para quem a diferença <strong>entre</strong> <strong>os</strong> sex<strong>os</strong> está naorigem das categorias cognitivas, na base das operações de classificação,op<strong>os</strong>ição, qualificação e hierarquização. Há em to<strong>do</strong> este processo uma relaçãoconceitual em term<strong>os</strong> de peso, temporalidade e valor, inscrita na estruturaprofunda <strong>do</strong> social (o parentesco), onde se observa um <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> princípiomasculino. Contu<strong>do</strong>, discor<strong>do</strong> desta autora, quanto à realidade e universalidadeda <strong>do</strong>minação masculina.> |


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293convocou <strong>os</strong> homens da aldeia para matarem o iakakuma. Feito isso,queimaram seu corpo, e de suas cinzas nasceu o primeiro pequizeiro, sen<strong>do</strong>que sua fruta corresponde a<strong>os</strong> órgã<strong>os</strong> sexuais <strong>do</strong> apapaatai assassina<strong>do</strong>. Asmulheres, então, atraídas pela fruta, foram viver junto ao pequizal, ondeinventaram a festa <strong>do</strong> pequi, convidan<strong>do</strong> <strong>os</strong> homens para participar. O mari<strong>do</strong>,<strong>entre</strong>tanto, ficou triste e se isolou no mato, tornan<strong>do</strong>-se o pássaro makaná 246 .Este mito ilumina o âmbito no qual o ritual se dá: o mun<strong>do</strong> d<strong>os</strong>apapaatai, <strong>os</strong> amantes, o ciúme, a fofoca. De fato, no perío<strong>do</strong> deste ritual háuma ênfase na joc<strong>os</strong>idade nas relações cotidianas <strong>entre</strong> afins que não éobservada em outras épocas <strong>do</strong> ano. Ao se dirigir para o banho, por exemplo,um cunha<strong>do</strong> pode fazer comentári<strong>os</strong> sobre as relações amor<strong>os</strong>as de suacunhada, ou uma mulher pode falar <strong>alto</strong> o nome de uma outra mulher a fim dedeixar algum rapaz intimida<strong>do</strong> por ver sua relação com alguém reveladapublicamente. Mas existe um limite para as verbalizações e brincadeiras:aqueles cas<strong>os</strong> extra-conjugais que são entendid<strong>os</strong> como mais séri<strong>os</strong>permanecem tabus mesmo neste perío<strong>do</strong>.Segun<strong>do</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, portanto, o mito <strong>do</strong> pequi é a história de como seinstaurou <strong>entre</strong> eles uki, o ciúme-inveja 247 . O ritual segue de perto estatemática, centran<strong>do</strong>-se na causação desta paixão tanto nas suas seções decant<strong>os</strong> quanto nas brincadeiras e jog<strong>os</strong>, inclusive n<strong>os</strong> seus interstíci<strong>os</strong>, que porvezes duram vári<strong>os</strong> dias. Este ritual de gênero expõe de forma clara aimportância d<strong>os</strong> afet<strong>os</strong> para <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>.Lembro que <strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> alcançam fortemente o âmbito dapatologia e da ética, pois há uma aproximação <strong>entre</strong> o esta<strong>do</strong> de saúde e o <strong>do</strong>bem pensar/agir. Alguns páthoi importantes são: uki, “ciúme-inveja”; aipitsi,“vergonha-respeito”; katũ, “tristeza”; kotepe, “alegria”; moja, “me<strong>do</strong>”;palawapaa, “saudade”. Creio que, d<strong>entre</strong> estes, é uki aquele que regula, deforma mais intensa, não somente a relação <strong>entre</strong> homens e mulheres, mas aprópria sociabilidade, na medida em que focaliza o controle <strong>do</strong> fluxo <strong>do</strong> desejo.246 É interessante notar similaridades <strong>entre</strong> este mito e aquele <strong>do</strong> yawari, conformecontam <strong>os</strong> Kamayurá, mito que é base <strong>do</strong> rito homônimo (ver Menezes Bast<strong>os</strong>,1990:182). Este autor m<strong>os</strong>tra que o ritual de yawari trata <strong>do</strong> ciúme, ten<strong>do</strong> canções queexpressamente dizem isto em suas letras.247 A palavra uki é traduzida por Richards por ciúme, e a forma ukitsapai parececorresponder à enciumar/invejar.


Antes de desenvolver este aspecto, preten<strong>do</strong> fazer agora uma breve incursãona fil<strong>os</strong>ofia e antropologia das emoções, comentan<strong>do</strong> alguns autores.294> |


295e psicologia (Benedict, 1959; Mead, 1988[1950]). Entretanto, o rendimentoanalítico da vida emocional nativa na interpretação da cultura, neste caso,limita-se muito ao âmbito da personalidade. Segun<strong>do</strong> Durham, “o interesse d<strong>os</strong>antropólog<strong>os</strong> ainda estava centra<strong>do</strong> na flexibilidade <strong>do</strong> equipamento genéticohumano e na capacidade da cultura de, por assim dizer, modelarpersonalidades diferentes nas diversas sociedades” (Durham, 2003:89).Na antropologia interpretativista norte-americana d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> 80 em diantesurgiram importantes estud<strong>os</strong> sobre categorias de emoções (Lutz, 1988;R<strong>os</strong>al<strong>do</strong>, 1995[1980]; Lutz e Abu-Lughod, 1990), inician<strong>do</strong> o que tem si<strong>do</strong>chama<strong>do</strong> de antropologia das emoções (Lutz e White, 1986). As paixões sãoaqui apresentadas como construções culturais, relativas a cada sociedadeestudada, refletin<strong>do</strong> diretamente na constituição da pessoa e na socialidade 251 .Uma corrente recente na antropologia americanista segue estas idéias epretende dar maior atenção à vida cotidiana e emocional d<strong>os</strong> grup<strong>os</strong> indígenasdas terras baixas da América <strong>do</strong> Sul (ver Lagrou, 1998; Overing, 2000;McCallum, 2001). De mo<strong>do</strong> geral, uma grande parte destas pesquisas têm umapreocupação importante com questões de gênero, informadas que são por umaantropologia feminista. Entretanto, esta perspectiva para a abordagem dasemoções não é a única no cenário americanista: um exemplo de estu<strong>do</strong>antropológico no qual a música é o foco central e no qual as emoçõesfundamentam muitas argumentações sobre a semântica musical é o deMenezes Bast<strong>os</strong> (1990) 252 .Pode-se dizer, em term<strong>os</strong> genéric<strong>os</strong>, que paralelamente ao crescenteracionalismo científico, abordagens <strong>do</strong> campo das emoções têm ganha<strong>do</strong>relevância na medida em que se m<strong>os</strong>tra sua profunda interconexão com arazão. Áreas como a fil<strong>os</strong>ofia das emoções e a psicologia social ou cognitiva, oumesmo as neurociências, apresentam pesquisas nesta direção. Nesta últimaárea, partin<strong>do</strong> de uma preocupação com o fun<strong>do</strong> biológico que dá sustentaçãoàs construções simbólicas da razão humana, alguns autores consideramemoções e sentiment<strong>os</strong> como forças orienta<strong>do</strong>ras e propulsoras da razão. Nafil<strong>os</strong>ofia das emoções de Sousa (1997[1987]), é da<strong>do</strong> que razão e emoção não251 Para o cenário brasileiro não-indígena, ver o estu<strong>do</strong> de Rezende (2002).252 Há algumas etnografias sobre a música em outras regiões <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que levam emconta a perspectiva em questão, como Feld (1982).


296são antagonistas naturais, a emoção sen<strong>do</strong> vista como um tipo de percepçãoque informa as crenças, desej<strong>os</strong> e decisões, acaban<strong>do</strong> por moldar a razão que,por sua vez, é apreendida através de sua transmutação em ações e políticas.Conforme este autor, as emoções limitam o universo de informação que oorganismo levará em conta, as inferências tomadas d<strong>entre</strong> uma infinidade dep<strong>os</strong>sibilidades e o conjunto de opções vivas <strong>entre</strong> as quais se fará a escolha. Noprocesso de deliberação racional ele mesmo, as emoções tornam saliente umapequena proporção das alternativas disponíveis e d<strong>os</strong> fat<strong>os</strong> concebíveis comorelevantes (Sousa, 1994).Paralelamente à fil<strong>os</strong>ofia, pesquisas nas neurociências m<strong>os</strong>tram que asemoções afetam o mo<strong>do</strong> de operação <strong>do</strong> cérebro e que a razão não pode sertomada como algo exterior ou independente das paixões. Damasio afirma que“as emoções e sentiment<strong>os</strong> podem não ser de to<strong>do</strong> uns intrus<strong>os</strong> no bastião darazão, poden<strong>do</strong> encontrar-se, pelo contrário, enredad<strong>os</strong> em suas teias, para omelhor e para o pior” (1996[1984]). Também para este autor, as emoções sãofundamentais para a tomada de decisões pelo cérebro, e por isso sãoprofundamente racionais 253 .> |


297sentimento envolve o me<strong>do</strong> da perda de algo que n<strong>os</strong> pertence, o segun<strong>do</strong>aponta para o desejo sobre aquilo que pertence a outro. As semelhanças edistinções <strong>entre</strong> estas paixões são importantes: ambas são emoções que estãona base das relações sociais.Uki é um sentimento que funde duas idéias (ciúme e inveja), ocupan<strong>do</strong>lugar especial tanto nas relações cotidianas como na vida ritual, bem como narelação com outr<strong>os</strong> seres que não <strong>os</strong> human<strong>os</strong> propriamente. Ele está presentenas elaborações poéticas das letras das canções, na forma como <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> serelacionam, em seu discurso cotidiano, nas brincadeiras, ten<strong>do</strong> ainda profun<strong>do</strong>impacto na ética e repercutin<strong>do</strong> na sensível questão da <strong>do</strong>ença. Como vim<strong>os</strong>, a<strong>do</strong>ença está ligada ao mun<strong>do</strong> d<strong>os</strong> desej<strong>os</strong>, sen<strong>do</strong> que o desejo nãocorrespondi<strong>do</strong> gera uki 255 .O ciúme-inveja, portanto, é uma das paixões que compõe a patologia<strong>Wauja</strong>, ocupan<strong>do</strong> sua base. Isto de acor<strong>do</strong> com uma ética que coloca a questãoda (in)adequação <strong>do</strong> desejo no cerne da causação da <strong>do</strong>ença enquantop<strong>os</strong>sibilidade. É importante ressaltar: acredito que <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> são conscientesdeste papel funda<strong>do</strong>r da patologia na c<strong>os</strong>mologia. Embora <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>reconheçam a distinção acima explicitada <strong>entre</strong> ciúme e inveja, o fato deusarem uma mesma palavra para cobrir <strong>os</strong> <strong>do</strong>is sentid<strong>os</strong> <strong>os</strong> aproxima de formasubstancial. De fato, ciúme-inveja são sentiment<strong>os</strong> imbricad<strong>os</strong> um no outro namedida em que ao demonstrar inveja de alguém se está incitan<strong>do</strong> o ciúmedeste potencial pólo irradia<strong>do</strong>r de inveja.Como observei durante toda a festa <strong>do</strong> pequi, a causação <strong>do</strong> ciúmevisava colocar a pessoa a quem eram dirigidas as provocações em p<strong>os</strong>ição maisfrágil, à mercê das manipulações de seus incita<strong>do</strong>res, expon<strong>do</strong> suavulnerabilidade. Falar de uki é, basicamente, tratar de relações, <strong>do</strong> la<strong>do</strong>complica<strong>do</strong>, difícil das relações humanas, aquele que envolve o desejo daquilo255 G<strong>os</strong>taria de lembrar algumas palavras de Espin<strong>os</strong>a: “o desejo é a tendência interna<strong>do</strong> conatus a fazer algo que conserve ou aumente sua força. O desejo <strong>do</strong> homem livre éo desejo no qual, <strong>entre</strong> o ato de desejar e o objeto deseja<strong>do</strong>, deixa de haver distânciapara haver união” (apud Chauí, 1983:XVIII). Curi<strong>os</strong>o notar aqui que estas palavras,provindas de um cenário tão distante no tempo e no espaço, tenham tanto a ver com aética <strong>Wauja</strong>, na medida em que, segun<strong>do</strong> esta ética, a pessoa <strong>Wauja</strong> somente devedesejar o que está ao alcance de suas p<strong>os</strong>sibilidades, deve buscar a manutenção deuma integridade, de uma “união” <strong>entre</strong> desejo e objeto deseja<strong>do</strong>, o que acaba por serefletir em sua saúde, de um mo<strong>do</strong> geral.


298que não se p<strong>os</strong>sui, bem como a provocação <strong>do</strong> desejo no outro. Além disso, ukiremete ao me<strong>do</strong> de perder o que se deseja ou que já se tem, me<strong>do</strong> de serrejeita<strong>do</strong> pelo outro, me<strong>do</strong> de despertar o desejo de outr<strong>os</strong> sobre suas p<strong>os</strong>ses,me<strong>do</strong> de ter e de não ter.Expressar ou provocar uki é uma forma de manter sempre na pauta <strong>do</strong>dia um sentimento que, para <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, parece ser, d<strong>entre</strong> tod<strong>os</strong>, aquele quemais inclinação anti-social carrega, aquele com maior capacidade de provocarrupturas no trato social 256 . Para<strong>do</strong>xalmente, este sentimento é, ao mesmotempo, aquele que, por excelência, move as relações <strong>entre</strong> as pessoas, que dásenti<strong>do</strong> às trocas e à reciprocidade. O ciúme-inveja, quan<strong>do</strong> em sua formaradicalmente p<strong>os</strong>itiva (excesso), se aproxima da mesquinharia e da avareza 257 ,poden<strong>do</strong> levar uma pessoa à solidão e ao aban<strong>do</strong>no. E mais, leva a umaaproximação ao mun<strong>do</strong> d<strong>os</strong> apapaatai, como n<strong>os</strong> m<strong>os</strong>tra o final <strong>do</strong> M7, o mito<strong>do</strong> pequi: o mari<strong>do</strong>, isola<strong>do</strong> e entristeci<strong>do</strong>, toma<strong>do</strong> pelo excesso de uki,transforma-se em apapaatai. Já em sua forma radicalmente negativa(ausência), se aproxima <strong>do</strong> desinteresse e da auto-suficiência, poden<strong>do</strong>inviabilizar a sociedade 258 . Neste caso, há igualmente uma aproximação <strong>do</strong>mun<strong>do</strong> d<strong>os</strong> apapaatai, como no caso das mulheres transformadas emiamurikuma, aban<strong>do</strong>nadas devi<strong>do</strong> ao desinteresse d<strong>os</strong> homens que, por suavez, já estavam se transforman<strong>do</strong> em apapaatai. A sociedade <strong>Wauja</strong>, portanto,256 Gonçalves (2000) analisa o ciúme <strong>entre</strong> <strong>os</strong> índi<strong>os</strong> Paresi, povo aruak <strong>do</strong> Mato Gr<strong>os</strong>so.Este sentimento surge, no mito de origem <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> Paresi, como disruptor dafraternidade ideal <strong>entre</strong> o par de demiurg<strong>os</strong> homens. Esta dissociação original só ganhao contorno assimétrico quan<strong>do</strong> se estabelece uma relação triangular <strong>do</strong> par masculinocom um termo exterior, de sexo diferente: a irmã mais velha de um destes homens. Ociúme surge como uma “<strong>do</strong>ença” antisimétrica e antisocializa<strong>do</strong>ra, que ameaça esteideal de indiferença e tranqüilidade da vida <strong>entre</strong> parentes. Gonçalves m<strong>os</strong>tra que <strong>os</strong>Paresí pensam a diferença essencialmente como a criação de uma assimetria <strong>entre</strong> duasp<strong>os</strong>ições, originariamente forjadas no plano da igualdade, e assim, afirma que é o ciúmeque estrutura a própria diferença.257 Viveir<strong>os</strong> de Castro aproxima ciúme da avareza na patologia Araweté ao tratar dehaihī, o ciúme, como um zelo excessivo (1986: 425 n.81).258 Rodger observa <strong>entre</strong> <strong>os</strong> Ikpeng (povo considera<strong>do</strong> historicamente como inimigo d<strong>os</strong><strong>Wauja</strong>) algo a que chamou de “fluxo negativo e oculto de inveja”. Este fluxo teria umadimensão sociopolítica altamente p<strong>os</strong>itiva sobre eles, visto que a inveja d<strong>os</strong> outr<strong>os</strong>serviria para inibir a acumulação, manten<strong>do</strong> a redistribuição de recurs<strong>os</strong> mais ou men<strong>os</strong>equilibrad<strong>os</strong> em uma população que procura evitar tanto a coerção quanto o conflitointerno (2002:93). No entanto estam<strong>os</strong> chaman<strong>do</strong> de “negativo” a coisas diferentes:enquanto penso no extremo de um contínuo que corresponde à falta de interesse,Rodgers está tratan<strong>do</strong> por negativo o sentimento que vem de encontro, aquele senti<strong>do</strong>pel<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> e projeto sobre <strong>os</strong> Ikpeng.


299tanto em seu máximo excesso quanto na sua máxima falta, se dá n<strong>os</strong> limites<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> d<strong>os</strong> apapaatai, e não n<strong>os</strong> limites de uma idéia de natureza, n<strong>os</strong>enti<strong>do</strong> <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de guerra hobbesiano 259 . Uki, em sua forma radicalmentep<strong>os</strong>itiva, torna qualquer tipo de aliança imp<strong>os</strong>sível, poden<strong>do</strong> levar à guerra e àpredação, pensada como apropriação <strong>do</strong> outro 260 . Ao passo que a ausência deuki representa uma tal falta de interesse e estímulo que impede o curso dequalquer tipo de relação de troca, tornan<strong>do</strong> as alianças desnecessárias 261 . Poroutro la<strong>do</strong>, uki em sua forma branda, em sua correta medida, estimula ointeresse pel<strong>os</strong> outr<strong>os</strong>, fomentan<strong>do</strong> o desejo e a reciprocidade, geran<strong>do</strong> asocialidade.Desta forma, cantar, tocar, fazer troça ou brincadeira empregan<strong>do</strong> umsentimento tão central como ciúme/inveja são maneiras encontradas pel<strong>os</strong><strong>Wauja</strong> para <strong>do</strong>minar as potencialidades extremas que esta paixão carrega, etambém para chamar a atenção sobre a importância de sua capacidade motriz.A causação de ciúme/inveja, conforme ocorre n<strong>os</strong> rituais, tende a incitar o la<strong>do</strong>excessivo deste páth<strong>os</strong>, tiran<strong>do</strong> a pessoa por ele atingida da indiferença.Contu<strong>do</strong>, tal incitamento visa alcançar aquilo que chamei de forma branda,controlada. Por meio destas estratégias, busca-se, portanto, encontrar amedida certa de uki em diferentes situações pois, ao se tratar de uma questãode grau, não há uma fórmula única em jogo: há que se buscar o ponto certo, ad<strong>os</strong>e correta para cada um em cada situação.> |


300com <strong>os</strong> outr<strong>os</strong>, e não n<strong>os</strong> objet<strong>os</strong>, apesar <strong>do</strong> <strong>alto</strong> grau de interesse que têm porcert<strong>os</strong> artefat<strong>os</strong> 262 . Pensan<strong>do</strong> na equação <strong>entre</strong> reciprocidade e troca de bens(cf. Polanyi, 1980 [1944] e Sahlins, 1972) 263 , podem<strong>os</strong> entender esta idéia n<strong>os</strong>enti<strong>do</strong> daquilo que Gregory (1982), na esteira de Mauss (2003 [1925]), chamade troca-<strong>do</strong>m: aquela em que se privilegia a relação <strong>entre</strong> pessoas em op<strong>os</strong>içãoà troca-merca<strong>do</strong>ria, conforme conhecem<strong>os</strong> na sociedade de classes (Gregory,1982: 41). Assim sen<strong>do</strong>, a reciprocidade a que me refiro aqui é aquela na qualo que conta são <strong>os</strong> víncul<strong>os</strong> <strong>entre</strong> pessoas, a produção e circulação de corp<strong>os</strong>que concorrem para a reprodução social.A acumulação de bens ou a auto-suficiência não parecem alv<strong>os</strong> deinteresse para <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>. Muito pelo contrário, apontam para a negação dasocialidade. Em to<strong>do</strong> o Alto <strong>Xingu</strong>, as especializações de cada grupo sinalizampara a necessidade da manutenção das diferenças, das especificidades, eapesar de cada grupo saber ou poder aprender a fazer <strong>os</strong> objet<strong>os</strong> que valorizamlocalmente, não há interesse na auto-suficiência: o huluki, o moitará, as trocas,estão na base da socialidade d<strong>os</strong> putakanau (xinguan<strong>os</strong> – “gente que sabetrocar”), assumin<strong>do</strong> um caráter ritual bastante marca<strong>do</strong> na região, conformevisto no Capítulo II.Justamente porque a questão da troca é ritualmente marcada <strong>entre</strong> <strong>os</strong><strong>Wauja</strong>, há pessoas responsáveis pela circulação d<strong>os</strong> objet<strong>os</strong>: são homens emulheres que passaram por um processo de iniciação mais longo, e queocuparam p<strong>os</strong>ição de destaque durante <strong>os</strong> rituais de iniciação na puberdade,tornan<strong>do</strong>-se, respectivamente, amunau e amuluneju 264 Note-se, portanto, quea troca <strong>entre</strong> <strong>os</strong> xinguan<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> depende – como em tant<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> cenári<strong>os</strong>262 Lembran<strong>do</strong> o que foi dito sobre <strong>os</strong> presentes que lhes interessam (Capítulo I),miçangas tchecas e anzóis noruegueses, vê-se que a lógica da qualidade prevalece aquisobre a da quantidade (incluin<strong>do</strong> a diversidade).263 Sahlins (1970) equaciona reciprocidade e parentesco, configuran<strong>do</strong> seu célebrediagrama <strong>do</strong> esquema tribal generaliza<strong>do</strong> (:29). Ali, à maior proximidade de parentesco(esfera <strong>do</strong>méstica) corresponde uma reciprocidade mais generalizada (ou seja,p<strong>os</strong>itiva), enquanto que <strong>os</strong> setores gradualmente mais extern<strong>os</strong> apontam para umacrescente negatividade da reciprocidade. Já para Ingold (1986), reciprocidade nada tema ver com distância de parentesco, mas sim com diferentes formas de reciprocidadenegativa ou p<strong>os</strong>itiva, que se dão nas diferentes esferas sociais (ver Gregory, 1997:924).264 Como dito anteriormente, <strong>os</strong> grup<strong>os</strong> de huluki são constituíd<strong>os</strong> por pessoas <strong>do</strong>mesmo sexo e faixa etária (co-participantes de uma turma de iniciad<strong>os</strong>).


301etnográfic<strong>os</strong> - das p<strong>os</strong>ições, envolven<strong>do</strong> a relação hierárquica <strong>entre</strong> <strong>os</strong> quetrocam 265 .Para além d<strong>os</strong> rituais de troca, a idéia de huluki envolve o mun<strong>do</strong> da<strong>do</strong>ença e d<strong>os</strong> apapaatai. A palavra hulukista, “trocar”, tem relação com a noçãode adequação, acor<strong>do</strong>. Para <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, trata-se de um atributo aprendi<strong>do</strong> comas an<strong>do</strong>rinhas apapaatai, chamadas hulukialu, conforme conta o mito de origem<strong>do</strong> huluki. Neste aunaki, <strong>os</strong> timbres vocais d<strong>os</strong> pássar<strong>os</strong> apapaatai, prim<strong>os</strong>paralel<strong>os</strong> por parte de mãe, não eram adequad<strong>os</strong> em relação a seus corp<strong>os</strong>: porexemplo, kamiki 266 , um pássaro grande, tinha a voz “fininha” 267 , enquanto quekumesi, o pequeno beija-flor, p<strong>os</strong>suía uma voz forte, de grande projeção. Daí,por meio de um huluki, prop<strong>os</strong>to por kamiki, efetua-se a adequação, istoatravés de procediment<strong>os</strong> sonoro-musicais. Além destes nex<strong>os</strong>, a an<strong>do</strong>rinhahulukialu é considerada um apapaatai que, como tod<strong>os</strong>, pode causar <strong>do</strong>ença,geralmente diagn<strong>os</strong>ticada através de um sonho <strong>do</strong> <strong>do</strong>ente, no qual este se vêtrocan<strong>do</strong> objet<strong>os</strong>.Pouco acima, mencionei a palavra puta o-pete, “pagar”, empregada n<strong>os</strong>enti<strong>do</strong> de “dar o troco”, responder uma provocação. A noção embute a idéiade o-pete, “preço”, “valor”. Trata-se portanto de algo como “emprestar ovalor”, apontan<strong>do</strong> fortemente para uma versão nativa <strong>do</strong> conceito de valor-deuso:o que é troca<strong>do</strong> não são as coisas, mas seus valores, que não têm umafixação de equivalência 268 . Note-se que o radical puta, “emprestar”, estápresente também em outr<strong>os</strong> term<strong>os</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> da troca, como por exemploputamalũ, “emprestar-falso”, significan<strong>do</strong> “dar sem troca”. O sufixo malũ indicaa imperfeição <strong>do</strong> ato de dar pensa<strong>do</strong> fora <strong>do</strong> âmbito da troca, algo próximo <strong>do</strong>que entendem<strong>os</strong> por altruísmo 269 . Enfim, o que motiva a troca para <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>são as relações que se estabelecem, e não <strong>os</strong> objet<strong>os</strong> em si. A reciprocidade265 Sobre este aspecto, no contexto da Roma antiga, ver Veyne (1995[1976]).266 Pássaro não identifica<strong>do</strong>.267 Magatokupai, categoria sonoro-musical relacionada à espacialidade (ver Mello ePiedade, 2005).268 Para Deleuze e Guattari, o valor-de-troca introduziu o “pesadelo de uma economiade merca<strong>do</strong>”, sen<strong>do</strong> que a “economia primitiva procede por barganha, antes que porfixação de um equivalente” (1980 [1972]:220). Para aprofundar <strong>os</strong> múltipl<strong>os</strong> context<strong>os</strong>da troca e da barganha, ver Hugh-Jones & Humphrey (1992).269Interessante que Sahlins (1970) coloca o altruísmo na forma máxima dereciprocidade generalizada, no âmbito co-residencial. Sobre o sufixo malũ, ver Viveir<strong>os</strong>de Castro (2002:38).


302<strong>Wauja</strong> opera na adequação daquilo que é excessivo, através <strong>do</strong> controle <strong>do</strong>fluxo <strong>do</strong> desejo.Segun<strong>do</strong> as concepções éticas <strong>Wauja</strong>, conforme exp<strong>os</strong>to anteriormente,há uma constante preocupação com o controle <strong>do</strong> fluxo <strong>do</strong> desejo, istoimplican<strong>do</strong> em um controle de tod<strong>os</strong> sobre tod<strong>os</strong>. A vigilância capilar à qual serefere Menezes Bast<strong>os</strong> (2001:341), Gregor (1982 [1977]), bem comoobservada por Quain (Murphy e Quain, 1966[1955]) no Alto <strong>Xingu</strong>, encontra<strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> seu ponto de convergência nestas concepções que incorporamainda um aspecto c<strong>os</strong>mológico a ela, da<strong>do</strong> por uma assimetria instaurada pelap<strong>os</strong>sibilidade de terem seus pensament<strong>os</strong> e desej<strong>os</strong> vigiad<strong>os</strong> pel<strong>os</strong> apapaatai. Arelação que <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> estabelecem com <strong>os</strong> apapaatai através d<strong>os</strong> rituais, seinsere neste circuito como forma de interferência neste processo, instauran<strong>do</strong>relações de longo prazo de prestação e contraprestação que colocam ex<strong>do</strong>entes,parentes e espírit<strong>os</strong> protetores em contato estreito. Para <strong>do</strong>mesticar<strong>os</strong> apapaatai e fazer com que eles se tornem seus aliad<strong>os</strong> frente a outr<strong>os</strong> seresdesconhecid<strong>os</strong> e perig<strong>os</strong><strong>os</strong>, <strong>os</strong> homens oferecem o ritual em forma de alimento,tabaco, e muita produção estética: dança-música-pintura corporal, máscaras,diferentes artefat<strong>os</strong>.Entre <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, bem como <strong>entre</strong> a maioria d<strong>os</strong> pov<strong>os</strong> amazônic<strong>os</strong>, háuma ênfase no bem viver, na alegria da vida comunitária, no cuida<strong>do</strong> com ascrianças, na cooperação <strong>entre</strong> <strong>os</strong> adult<strong>os</strong>. Contu<strong>do</strong>, este éth<strong>os</strong> pacifista nãodeve ser confundi<strong>do</strong> com o não reconhecimento por parte d<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> de que oconflito é importante e necessário para a vida em sociedade. Eles estão a to<strong>do</strong>momento apontan<strong>do</strong> para formas de lidar com as forças afetivas que secontrapõem a<strong>os</strong> objetiv<strong>os</strong> da convivialidade 270 . No entanto, creio que para <strong>os</strong><strong>Wauja</strong>, manter equilibrad<strong>os</strong> o fluxo e a redistribuição de recurs<strong>os</strong> –materiais eafetiv<strong>os</strong>-, requer atenção e esforço constante em relação a tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> afet<strong>os</strong> quea isto se contrapõem. Eles têm que lidar cotidianamente com a predação e a<strong>do</strong>mesticação <strong>do</strong> “outro”, com a potência <strong>do</strong> ciúme-inveja, com a sempre realou virtual quebra da reciprocidade, com as formas de se estabelecer e manteralianças, e com a fofoca, kuhuki, que a tu<strong>do</strong> pode envenenar.270 Overing (2000) trata deste conceito como uma série de pressup<strong>os</strong>t<strong>os</strong> morais aoprocesso de socialidade, cuja ênfase recairia sobre um ideário ameríndio de busca poruma “vida afetiva confortável”.


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304um namora<strong>do</strong>, delata a esp<strong>os</strong>a e se oferece para matá-la. Em M2,“mapapoho”, Kamo, o sol, devi<strong>do</strong> a uki, resolve envenenar o povo abelha poiseles eram <strong>os</strong> conhece<strong>do</strong>res das músicas de kawoká. O insucesso destaempreitada torna o uki de Kamo ainda maior, pois é traí<strong>do</strong> por sua esp<strong>os</strong>a comum d<strong>os</strong> mapapoho. Em M4 se passa algo semelhante, com a diferença de que ociúme-inveja de Kamo recai sobre Iapojoneju, com quem se casa por interesseem obter as flautas kawoká. Em M8, “Kamukuaka”, é mais uma vez o ciúmeinvejade Kamo que provoca o início da guerra. Sen<strong>do</strong> feito, sente uki da beleza<strong>do</strong> povo de Kamukuaka e pretende matá-l<strong>os</strong> por causa disto. Em M9,“Yakanukalá”, é a inveja <strong>do</strong> rapaz, desej<strong>os</strong>o d<strong>os</strong> pêl<strong>os</strong> pubian<strong>os</strong> de suacunhada, que incita o ciúme <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> desta. Ao final, <strong>os</strong> <strong>do</strong>is homens morremqueimad<strong>os</strong> e de suas cinzas nasce o milho. Enfim, <strong>os</strong> mit<strong>os</strong> estão replet<strong>os</strong> deepisódi<strong>os</strong> tematizan<strong>do</strong> estes afet<strong>os</strong>. <strong>Mito</strong>s e rit<strong>os</strong> são espaç<strong>os</strong> de reflexão acerca<strong>do</strong> controle <strong>do</strong> fluxo <strong>do</strong> desejo.No cotidiano, é através da criação poético-musical que <strong>os</strong> conflit<strong>os</strong>suscitad<strong>os</strong> por sentiment<strong>os</strong> como uki são contornad<strong>os</strong>. A p<strong>os</strong>itividade ounegatividade de uki é uma questão de grau: todas as estratégias (brincadeiras,mit<strong>os</strong>, rit<strong>os</strong>) concorrem assim para a busca de um ponto intermediário nestecontinuum <strong>entre</strong> o excesso e a ausência de uki. No entanto, este ponto“equilibra<strong>do</strong>” não prescinde <strong>do</strong> conflito: ao contrário, ele só pode ser alcançad<strong>os</strong>empre de forma provisória, lidan<strong>do</strong> com a tensão, sen<strong>do</strong> alimenta<strong>do</strong> por ela.Vê-se que, através de toda a elaboração estético-ritual, detectada desde otratamento detalhista na construção motívica d<strong>os</strong> cant<strong>os</strong>, passan<strong>do</strong> pelatransferência destes cant<strong>os</strong> de um gênero sexual a outro, e por re-elaboraçõesde fat<strong>os</strong> <strong>do</strong> cotidiano que são inserid<strong>os</strong> n<strong>os</strong> moldes d<strong>os</strong> cant<strong>os</strong>, to<strong>do</strong> esteprocesso, enfim, só surge durante a performance, que acaba por darconcretude ao mito e significa<strong>do</strong> às questões existenciais. Quero dizer que todaesta criação ritual trata da demarcação de limites, de estabelecer proporções,de precisar d<strong>os</strong>es, criar diferenças, construir fronteiras, criar o espaço humanode agência no mun<strong>do</strong>. E este espaço se instaura no ritual, onde a música é o“dito” que se torna “feito”.Ao falar em proporções, penso n<strong>os</strong> perig<strong>os</strong> que representam <strong>os</strong> cant<strong>os</strong>kanupá quan<strong>do</strong> entoad<strong>os</strong> de forma incorreta, n<strong>os</strong> perig<strong>os</strong> de se errar a ordem


305das peças ou d<strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> rítmico-melódic<strong>os</strong> dentro de uma suíte de kawoká.Igualmente, penso na d<strong>os</strong>e das infusões de ervas dad<strong>os</strong> a<strong>os</strong> rapazes reclus<strong>os</strong>na puberdade, cujo erro no preparo pode levar a um efeito contrário aodeseja<strong>do</strong>: ou seja, a falha na d<strong>os</strong>e, ao invés de fornecer força muscular, podelevar à total flacidez, causan<strong>do</strong> a morte <strong>do</strong> jovem. A d<strong>os</strong>e certa, a precisão,estabelecer limites, lidar com proporções, agir de forma tão contundente porsobre o tênue fio que separa a vida da morte, o mun<strong>do</strong> d<strong>os</strong> human<strong>os</strong> e o d<strong>os</strong>apapaatai, tu<strong>do</strong> isto indica a profundidade que a necessidade de superação daindiferença pode atingir. Trata-se de uma criação da diferença que não envolvauma escolha <strong>entre</strong> bem e mal, mas <strong>entre</strong> ausência e presença, <strong>entre</strong> motivaçãoe passividade: a ativação da potência de existir e de agir como derivação d<strong>os</strong>afet<strong>os</strong>.De toda esta elaboração mítico-ritual percebe-se que é eleva<strong>do</strong> o grau deconsciência d<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> sobre a existência de um contínuo <strong>entre</strong> o poder decurar e o de matar, <strong>do</strong> remédio ao veneno. Tu<strong>do</strong> isto sen<strong>do</strong> uma questão degrau, de proporção, talvez algo próximo <strong>do</strong> que convencionam<strong>os</strong> chamar de“arte”: saber lidar esteticamente com <strong>os</strong> perig<strong>os</strong> e prazeres que a ação humanagera no mun<strong>do</strong>.Tratar o sentimento de uki como um d<strong>os</strong> motores operantes para que aaliança <strong>entre</strong> as pessoas aconteça, significa perceber que o ciúme-inveja põeem movimento as disp<strong>os</strong>ições, retira o ser da inércia, da apatia, provocareações. Ao pensar na forma negativa <strong>do</strong> ciúme/inveja, deparam<strong>os</strong> por um la<strong>do</strong>com o descaso, afeto relaciona<strong>do</strong> àqueles que não se importam com o que têm,que não cuidam, não zelam por suas coisas (incluin<strong>do</strong> aqui pessoas equalidades).Por outro la<strong>do</strong>, o contrário da inveja também é um descaso, mas emrelação ao que <strong>os</strong> outr<strong>os</strong> têm ou são, é uma indiferença que faz transpareceruma auto-suficiência. Esta dupla indiferença, esta apatia, parece assusta<strong>do</strong>raa<strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>. De mo<strong>do</strong> que, ao la<strong>do</strong> d<strong>os</strong> aspect<strong>os</strong> negativ<strong>os</strong> suscitad<strong>os</strong> por uki,meus informantes chamaram minha atenção para o la<strong>do</strong> que consideramp<strong>os</strong>itivo destes sentiment<strong>os</strong>. E aqui talvez esteja a observação maisinteressante <strong>do</strong> ponto de vista etnográfico: ciúme-inveja não é algo comrelação a que se deva m<strong>os</strong>trar indiferença ou rejeitar por completo,


306diferentemente de sentiment<strong>os</strong> como kamusixiapa, “raiva ou ódio” 271 , quedevem ser prontamente aplacad<strong>os</strong>. Ao contrário, uki deve ser cultiva<strong>do</strong>, e sedeve aprender a lidar com isto desde ce<strong>do</strong>. Segun<strong>do</strong> <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>, uki é a faíscaque acende as relações; como me disse um informante, “é como a pimenta quearde, mas é boa”, sem a qual a comida ficaria ins<strong>os</strong>sa. O mérito de saber lidarcom estes sentiment<strong>os</strong> estaria no controle da medida certa em provocar e emaceitar provocações, em saber a hora certa para o revide, em não provocaralém <strong>do</strong> limite aceitável. Durante as brincadeiras joc<strong>os</strong>as, avalia-se muito oquanto homens ou mulheres agüentam de provocação sem revidar, mastambém é esperada e até mesmo apreciada a boa resp<strong>os</strong>ta no momento certo.> |


307“quanto mais perig<strong>os</strong>a for a situação, mais a prática tenderáa ser codificada. O grau de codificação varia de acor<strong>do</strong> com ograu de risco (...). Quanto mais a situação for carregada deviolência em potencial, mais haverá necessidade de a<strong>do</strong>tarcertas formalidades, mais a conduta livremente confiada àsimprovisações <strong>do</strong> habitus cederá lugar à condutaexpressamente regulada por um ritual metodicamenteinstituí<strong>do</strong> e mesmo codifica<strong>do</strong>” (ênfase <strong>do</strong> autor, 1990:98).Toda a sofisticação musical estudada no Capítulo V aponta para estesaspect<strong>os</strong>. Ao tomarm<strong>os</strong> as canções de kawokakuma em sua interface com amúsica das flautas, percebem<strong>os</strong> operações de diferenciação significativas. Porexemplo, o fato de muitas destas canções começarem com o tema , apontapara a tradutibilidade <strong>entre</strong> <strong>os</strong> <strong>do</strong>is repertóri<strong>os</strong>, inverten<strong>do</strong> a formalizaçãoa<strong>do</strong>tada na música instrumental de kawoká. Em to<strong>do</strong> o repertório dekawokakuma destaca-se o valor estratégico de , aquele que recebe a letra eque se distancia e se aproxima <strong>do</strong> centro tonal consolida<strong>do</strong> pela frase ,através de um jogo dialético realiza<strong>do</strong> por meio de sutis moviment<strong>os</strong> dasterminações motívicas.Opera aqui a gravidade que governa o sistema musical, as tensõesconfluin<strong>do</strong> para o ponto de densidade máxima que é o centro tonal, memóriade todas as operações antecedentes e conseqüentes. Entre vári<strong>os</strong> exempl<strong>os</strong>,podem<strong>os</strong> lembrar da canção K24, na qual há um insistente movimento emdireção à nota fá, abaixo <strong>do</strong> centro tonal, ao mesmo tempo que o motenahatejá, “ouviram?” salienta esta tensão. Lembro que esta canção trata deuma mulher que fora estuprada ritualmente devi<strong>do</strong> à visão das flautas kawoká.Em muitas canções, como por exemplo K55, as inclusões motívicas ressaltamas transformações temáticas, agregan<strong>do</strong> maior significação à ordem préestabelecida<strong>do</strong> tema.A espetacular codificação <strong>do</strong> que é mais perig<strong>os</strong>o é particularmenteconstatada na canção K102, considerada kanupá, extremamente valorizada eenvolta de grandes perig<strong>os</strong>. Pode-se observar ali uma série de operaçõesdiferenciadas em relação à totalidade <strong>do</strong> repertório: sua notável lentidão, <strong>os</strong>silênci<strong>os</strong> carregad<strong>os</strong> de tensão, a ausência da frase , sua gama cromáticaestendida de 8 notas, a presença de solo da cantora central, a semelhança com


308a peça homônima de flautas kawoká, também considerada kanupá, a qualexibe características igualmente discrepantes em relação ao respectivorepertório.A linguagem enfeitada e pintada que é o canto, <strong>os</strong> corp<strong>os</strong> enfeitad<strong>os</strong> eproduzid<strong>os</strong>, as formações coreográficas e seus traçad<strong>os</strong> <strong>entre</strong>cortan<strong>do</strong> a aldeia,indicam a necessidade da elaboração ritual por meio desta alta formalização.Assim, as regras que observam<strong>os</strong> nas práticas rituais <strong>Wauja</strong> aparecemexplicitamente como uma forma de codificação, no senti<strong>do</strong> acima exp<strong>os</strong>to, deBourdieu, apontan<strong>do</strong> para a construção de um sistema coerente que dê contadas tensões suscitadas pel<strong>os</strong> afet<strong>os</strong>.Aqui está, creio, a centralidade da música no ritual: onde se encontra aformalização em seu grau máximo. Basso (1985) afirma que esta p<strong>os</strong>içãofundante da música no ritual está diretamente ligada ao fato d<strong>os</strong> nativ<strong>os</strong>crerem que, através da execução musical, podem compensar as ilusões dacriação verbal. Opinião confirmada por Franchetto ao afirmar que, nestecenário, há um continuum in<strong>do</strong> da fala ao canto, em cuj<strong>os</strong> extrem<strong>os</strong> estariamsituadas a mentira e a verdade, o mais humano e o sobrenatural (1986:249).Para esta autora, <strong>os</strong> mit<strong>os</strong> fundamentam a execução ritual, e esta, por sua vez,tem a música como seu aspecto mais importante, pois <strong>os</strong> nativ<strong>os</strong>, “através dasensualidade e d<strong>os</strong> sentiment<strong>os</strong> que a musicalidade inspira, transformam aconsciência de si, a consciência coletiva e a apreensão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>” (1986:288).Estudar, de forma detalhada, tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> aspect<strong>os</strong> envolvid<strong>os</strong> no ritual,como a pintura corporal, a música, a dança, <strong>os</strong> discurs<strong>os</strong> e as narrativasmíticas, é uma forma de acessar esta codificação e, assim, buscar umacompreensão mais substancial <strong>do</strong> evento como um to<strong>do</strong>. É no momento <strong>do</strong>ritual que a sociedade <strong>Wauja</strong> cria condições privilegiadas para que homens emulheres, através de um jogo em torno d<strong>os</strong> sentid<strong>os</strong> e das proporções, tratem,de forma intensa e musical, de questões importantes como namoro e sexo, ede afet<strong>os</strong> fundamentais como o ciúme e a inveja.> |


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327Anex<strong>os</strong>M7 - Mapulawa,O mito sobre o ciúme: como começou o pequi”.[Narra<strong>do</strong> por Iatuná e traduzi<strong>do</strong> de Tupanumaká].“Havia um homem que se chamava Irixiulakuma que era chefe, cacique, e tinhaoito mulheres: Kajujuto,“arara”, Ujau, Irixiulakuma Enejo, Kuyakuya, Sukuto,Soutoju, Kuri e (f<strong>alto</strong>u o nome de uma, são tod<strong>os</strong> nome de pássar<strong>os</strong>). Estehomem resolveu fazer uma roça bem grande, plantou até cabaça pra fazer uaũ,“chocalho”. Ele sempre ia na roça pra ver suas plantas. Quan<strong>do</strong> cresceumaoma, “cabaça”, e deu fruto, iapa, “paca”, tava comen<strong>do</strong> to<strong>do</strong> maoma, ohomem viu e falou: “pôxa, paca tá comen<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>, vai estragar tu<strong>do</strong>. Tenho quevoltar outro dia para esperar”. No outro dia bem ce<strong>do</strong>, às 5 horas, ele foi eficou esperan<strong>do</strong> a paca. Aí a paca veio e encontrou. Ele preparou sua flechapara atirar, mas a paca viu e falou: “pôxa, não faz isso não. Deixa eu te contaruma coisa, tenho novidade pra você”. Aí o homem desarmou e falou: “o que éque você quer contar pra mim?” E a paca disse: “eu queria te contar uma coisa.Sua mulher está te train<strong>do</strong>. Ela está procuran<strong>do</strong> namora<strong>do</strong> dela até queencontrou. Tá namoran<strong>do</strong> com um “bicho”, você vai ver, ele é iakajokuma,“jacaré”, mas lá dentro tem rapaz bem bonito. Você vai ver. Sua mulher está tejudian<strong>do</strong>, fazen<strong>do</strong> coisa muito feia com você”. O homem ficou triste e falou:“pode comer a cabaça, pode tomar conta da minha roça também”. Aí a pacafalou “vam<strong>os</strong> lá. Você quer assistir quan<strong>do</strong> eles estão transan<strong>do</strong>?” E o homemrespondeu: “vamo embora”. Paca levou Irixiulakuma até a beira <strong>do</strong> rio e ficouescondi<strong>do</strong>. Lá pelas 8 horas da manhã as duas mulheres vieram assobian<strong>do</strong>,chaman<strong>do</strong> to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> para vir junto. E o mari<strong>do</strong> escondi<strong>do</strong>. Elas estavam comuma cuia cheia de mingau, tinha beijú e sal com pimenta. Quan<strong>do</strong> a mais velhachegou na beira <strong>do</strong> rio gritou: “jacaré, vam<strong>os</strong> namorar!” E o jacaré nemrespondeu. Gritou novamente e nada. O jacaré g<strong>os</strong>tava mais da mais nova.Então a mais nova gritou: “jacaré, vam<strong>os</strong> namorar!” E aí ele respondeu, fez pupu-pu...[barulho], ele tava feliz porque g<strong>os</strong>ta da mais nova. Aí ele veio, encheu


328água e veio até a beira <strong>do</strong> rio, tirou a capa e saiu um rapaz bem bonito. Entãoela falou: “você já chegou... vam<strong>os</strong> comer beijú, tomar mingau”, “tá bom” elerespondeu. Comeu beijú, tomou mingau e o mari<strong>do</strong> dela assistin<strong>do</strong>. Jacarétransou com a mais velha, transou, transou, transou e gozou. Não gozavatanto, só desmaiou um pouquinho. Depois transou com a mais nova edesmaiou. Por isso ele g<strong>os</strong>ta de transar com a mais nova, porque ele gozamais. Então o mari<strong>do</strong> falou: “vou flechar ele”. E a paca falou: “calma, não mataele agora. Você tem que chamar seu povo pra matar pra você, senão você nãovai dar conta de matar ele. Senão ele vai escapulir e vai embora e você vaiperder. Quem vai sair perden<strong>do</strong> é você. Você tem que esperar um pouco. Temque agüentar”. “Tu<strong>do</strong> bem”, ele respondeu. Daí a pouco o jacaré acor<strong>do</strong>u, foino rio tomar um banho, colocou a máscara dele e foi embora. O homem foiembora triste. Chegou em casa e as duas mulheres já estavam lá, era mais oumen<strong>os</strong> 10 horas da manhã. Elas ofereceram mingau pra ele dizen<strong>do</strong>: “ah, podecomer alguma coisa”, mas ele nem respondeu, já estava com ciúme. A outrafalou: “vem comer beijú, tomar mingau”, e ele nem falou nada, ficou cala<strong>do</strong>,deita<strong>do</strong> na rede. Aí Kajujuto foi lá, tentou falar com ele e ele ficou lá deita<strong>do</strong>,nada. Depois foi papagaio, tentou conversar com ele e ele não conversou.Depois foi periquito e nada. Por último, as duas foram conversar com ele, masnada aconteceu. À tarde ele foi lá no meio da aldeia conversar com o pessoal.Chamou o povo dele, o pessoal chegou e falou: “o que é que foi, chefe?” E eledisse: “tem “bicho” que está namoran<strong>do</strong> com minha mulher”. Então elesperguntaram “o que que é?” E ele falou: “é jacaré, e dentro dele tem rapazbem bonito que está namoran<strong>do</strong> com minhas duas mulheres. Estão me train<strong>do</strong>muito feio”. “Ah, então tá, vam<strong>os</strong> matar ele”, responderam. No outro dia trouxeflecha bem grande pro pessoal preparar, fazer bastante flecha, bastante arco,material pra matar, vara pra cutucar, dar furada nele, tu<strong>do</strong>. Então homem faloupras outras mulheres da aldeia: “vocês poderiam ir pra roça amanhã, pra ralare fazer bastante beijú pr<strong>os</strong> marid<strong>os</strong> levarem pra pescaria. Lá a gente vairesolver caçar e ficar uns cinco dias”. Aí elas foram pra roça, trouxerammandioca, ralaram, fizeram beijú, ficou tu<strong>do</strong> pronto e eles falaram: “vam<strong>os</strong>embora amanhã”. Um d<strong>os</strong> homens falou: “eu vou pegar ele”, outro falou “euvou queimar a capa dele”, “eu vou também”, outro disse “eu vou matar a


329coruja”. Tu<strong>do</strong> prepara<strong>do</strong>. Chegan<strong>do</strong> lá entraram na canoa, desceram umpouquinho, enc<strong>os</strong>taram a canoa e voltaram até onde as pessoas tomam banho.Ficaram lá esperan<strong>do</strong>. Era um cerco grande, tinha muita gente lá. Não tinhaninguém no rio, mas daí a pouco as duas vieram, chegaram lá, tu<strong>do</strong> feliz,sorrin<strong>do</strong>. A mais velha chamou, chamou, não teve resp<strong>os</strong>ta. Daí a pouco a maisnova chamou, chamou e aí ele respondeu. Mesma coisa, né. Aí chegou lá nabeira <strong>do</strong> rio, tirou máscara, aí saiu rapaz bem bonito. To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> falou: “pôxa,ele é bonito”, <strong>os</strong> guerreir<strong>os</strong> falaram. O pessoal queria atirar “não, espera umpouquinho se não ele vai embora. Deixa ele transar primeiro, aí quan<strong>do</strong> eledesmaiar nós vam<strong>os</strong> matar”. Ele chegou, abraçou as mulheres, elas deramkapsalagá, “pirão de pimenta”, beijú, tu<strong>do</strong>. Aí ele transou com a mais velha,transou e desmaiou só um pouco. Aí ele acor<strong>do</strong>u e o pessoal queria atirar nelemas o chefe falou: “não, não atira não. Quan<strong>do</strong> ele transar com a mais novaele vai desmaiar mais longo, vai demorar pra acordar e então nós vam<strong>os</strong>atirar”. “Tu<strong>do</strong> bem”, o pessoal respondeu. Jacaré transou com a mais nova,transou, transou, aí desmaiou, gozou e desmaiou. Quan<strong>do</strong> estava demoran<strong>do</strong>muito pra acordar o pessoal atirou nele, atirou, pessoal gritou, outro pegoucoruja e matou 272 . Outro foi lá, arrancou a máscara dele, rasgou tu<strong>do</strong>, bateu.Outro atirou muito nele, mas mesmo assim ele tentou escapar. Levantou,correu com um monte de flechas nas c<strong>os</strong>tas, na barriga, tentou entrar namáscara, mas o pessoal puxou a máscara, rasgaram tu<strong>do</strong>, mataram, pegou elena cabeça e morreu. Depois, o chefe foi lá e bateu nas mulheres, bateu, bateue foi embora. Chegou na casa e bateu em to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, nas outras mulheres. Opessoal voltou pra casa, levaram a máscara e o corpo para bem longe daaldeia. Queimaram lá a máscara, tu<strong>do</strong>. O homem ficou muito triste, pegou arede dele e foi embora, fugiu pro mato, foi embora para o rio, para outro lugar.A mulher tomou um banho, ficou triste. Passou um ano, <strong>do</strong>is an<strong>os</strong>, aí foi lá vero pequi, viu uma planta que chama pequi, tinha uma outra, uma outra. Era <strong>do</strong>namora<strong>do</strong> dela, onde tinham queima<strong>do</strong> ele, nasceu pé de akãi, “pequi” e ietula,“mangaba”, tinha uma outra planta também. Ela foi embora e voltou no outro272 Tupanumaká explicou que a referência à coruja é porque sempre que as mulheres,no mito, tiravam o sapalaku (uluri) elas o colocavam na cabeça da coruja, e, como acoruja não havia conta<strong>do</strong> nada para o chefe, este concluiu que ela estava guardand<strong>os</strong>egre<strong>do</strong> para as mulheres, portanto ela era cúmplice na traição.


330ano, já tava grande, pequi grandão, cheio de fruta. Tinha um pequi caí<strong>do</strong> nochão, então elas pegaram, cortaram e cheiraram, era muito cheir<strong>os</strong>o, muitog<strong>os</strong>t<strong>os</strong>o. Aí elas falaram: “isso aqui é pequi”. Levaram para casa e nem falaramnada pra ninguém. Pegaram as redes delas e foram embora morar lá embaixo<strong>do</strong> pequi. Ficaram lá comen<strong>do</strong> pequi, mudaram pra lá. Cada visita mulher quechegava lá, ficava, não queria mais voltar. Assim elas fizeram matapu,[zuni<strong>do</strong>r] e a festa que chama kuri. No final foram fazen<strong>do</strong> aluwa,[morcego],iupe,[tamanduá], ukalu,[tatú], tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> cant<strong>os</strong>. Quan<strong>do</strong> o pequi já estavaacaban<strong>do</strong> fizeram mapulawa. Quan<strong>do</strong> elas estavam fazen<strong>do</strong> mapulawa, forambuscar o mari<strong>do</strong> e disseram: “bora, vamo embora, vam<strong>os</strong> fazer festa <strong>do</strong> pequi.É pra você ir lá comer pequi, pequi é tão g<strong>os</strong>t<strong>os</strong>o”. Mas o mari<strong>do</strong> falou: “não,não vou embora. Só agora que eu vou aceitar ele pra comer? Não, isso aí é devocês. Vocês me traíram tanto..., não quero comer pequi. Isso é namora<strong>do</strong> devocês”. [Neste momento da narrativa, Iatuná fez uma brincadeira comigodizen<strong>do</strong>: “assim que seu mari<strong>do</strong> vai falar pra você. Ele não vai querer voltarmais pra sua casa]. O mari<strong>do</strong> ficou sempre triste. O pessoal ia lá e ele fugia <strong>do</strong>pessoal. Eles faziam uh-uh-uh..., gritan<strong>do</strong>, mas ele não respondia. Por isso temum pássaro que se chama makaná 273 . É um chefe que foi embora para o mato,que chama makaná. Ele é Irixiulakuma, “um tipo de gralha”, tem muito aqui norio e faz assim: uuuh! mas é sempre triste. O pessoal chama ele de homemtriste, ele é chefe d<strong>os</strong> pássar<strong>os</strong>”.> |


331pode arrancar'. mas o cunha<strong>do</strong> mexia, ria e ela falava para não mexer, que oirmão não g<strong>os</strong>tava daquilo. Enquanto seu mari<strong>do</strong> estava na pescaria, <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>lá. Pegou muito peixe. A mulher, que estava em casa não cui<strong>do</strong>u, não olhou ocunha<strong>do</strong> e ele fez assim, kruxhi...., arrancou o cabelo dela. Ela ficou brava efalou, 'poxa, seu irmão vai ficar com ciúme, vai ficar bravo comigo. por quevocê fez isso comigo?'. Ele respondeu 'não, é porque eu g<strong>os</strong>to'. A mulher ficoupreocupada com o mari<strong>do</strong> que ia ficar bravo. Então ele voltou da pescaria,levou peixe no enekutaku, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> comeu peixe, estavam alegres. Depoisque deu o peixe, foi para casa, descansou, deitou e então reparou que tinhamarranca<strong>do</strong> o cabelo da mulher. Aí ele ficou bravo e perguntou, 'quem arrancouseu cabelo?' ficou triste. A mulher disse que foi o irmão dele que arrancou. 'Maspor que?' ele perguntou. 'Ele queria fazer brinco pra ele, por isso ele arrancou.Eu não deixava, nunca deixava, mas um dia eu estava fazen<strong>do</strong> alguma coisa eele me pegou de surpresa e aí eu não tinha o que fazer'. 'Ah, tá certo',respondeu o mari<strong>do</strong>. Ele ficou triste e <strong>do</strong>rmiu.Bem ce<strong>do</strong>, ele começou a se pintar, não demonstrou mais ciúme. O irmãotambém se pintou. Lá para o meio-dia ele falou para o irmão, 'vam<strong>os</strong> queimarn<strong>os</strong>sa roça?', 'vamo', respondeu o irmão. Então eles foram, tocaram fogo,tocaram, tocaram, aí no meio eles não tocaram, subiram nas árvores que aindaestavam em pé, que eles não tinham derruba<strong>do</strong>. Um subiu em uma e o outrona outra. [Tupa acrescentou que eles ficaram lá cantan<strong>do</strong>, cantan<strong>do</strong> até quecaíram no fogo que se aproximou das árvores. Um deles tinha o corpo to<strong>do</strong>pinta<strong>do</strong> de vermelho e o outro de preto.] Eles morreram queimad<strong>os</strong> lá. Aípassou, quan<strong>do</strong> a primeira chuva caiu, a mulher dele foi lá na roça dele, commuita saudade que ela estava. Aí ela viu milho nascen<strong>do</strong>, nem ligou e foiembora. Depois, quan<strong>do</strong> o milho já estava grande, ela voltou na roça e entãoela falou, 'ué, o que será que é isso aqui?' Voltou pra casa mas ficoupreocupada pensan<strong>do</strong> naquilo e voltou logo para a roça. Viu muito milho, tavatu<strong>do</strong> pronto. Ela pegou uma espiga, tirou a casaca e viu gente sorrin<strong>do</strong> paraela. Ela disse 'ué, é meu mari<strong>do</strong> que morreu?' e ele respondeu, 'é, sou seumari<strong>do</strong>'. Então a mulher falou pra ele 'não faz iso não, se você fizer issoninguém vai querer comer você como milho, não faz não'. Então ela voltou eavisou o pessoal da aldeia e aí eles foram lá buscar o milho e levar para a


332aldeia. Então eles foram passar arranhadeira (mepiagakunapai) porque é igualà casca <strong>do</strong> milho, toda arranhadinha. É porque passou arranhadeira que ficouassim, que Aianakalukaná passou antes de queimar. por isso o pessoal arranha.Quan<strong>do</strong> começava a pegar milho, <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong> se arranhavam. Hoje não, <strong>os</strong> <strong>Wauja</strong>têm me<strong>do</strong> de arranhar. Kalupuku falou isso”.> |


333da cumeeira da casa em que estávam<strong>os</strong>]. Então Kamukuwaká falou: vam<strong>os</strong>subir, vam<strong>os</strong> fugir.Então Kamukuwaká flechou o céu com a flecha amarrada no wananaĩ,“barbante”, e rezou, sopran<strong>do</strong> pra virar cipó, pohoká inxeokitsapapi. Eles foramsubin<strong>do</strong> [pelo cipó em forma de escada] até no céu. Daí, como Uwapi tinharouba<strong>do</strong> Alapokumalu, a mulher de Kamo, enquanto eles estavam banhan<strong>do</strong>,Kamo só encontrou o barbante de amarrar no joelho dela, kuwapitsa. Kamopegou este barbante e transformou em kapsalapi, um tipo de cobra, queman<strong>do</strong>u para comer o pessoal. Os irmã<strong>os</strong> esconderam Alaweru com kamalupo,“grande panela de barro” [Alaweru é a irmã mais nova de Alapokumalu]. Entãoui, “a cobra”, começou a subir atrás deles e perguntou: ‘quem está cortan<strong>do</strong>meu pedaço?’. Era a irmã <strong>do</strong> Kamukuwaká que estava cortan<strong>do</strong>, cortan<strong>do</strong>,cortan<strong>do</strong> até a cabeça dele. Alaweru, a irmã de Kamukuwaká, jogou tod<strong>os</strong> <strong>os</strong>pedaç<strong>os</strong> no buraco. Ela tinha filho pequeno que era macaco.O pessoal foi então pro céu, e lá no céu encontraram o gavião, que perguntou:‘onde é que vocês vão?’, “nós vam<strong>os</strong> na sua aldeia”, responderam. Então eleexplicou como é que chegava na aldeia das aves. O pessoal errou o caminho efoi parar na aldeia das onças. Quan<strong>do</strong> perceberam que tinham erra<strong>do</strong>, foram seesconder no kuwakuho, “a casa das flautas”. Os ianumaka, “onça”, tinham i<strong>do</strong>pescar, e tinha fica<strong>do</strong> só um na aldeia que foi avisar <strong>os</strong> pesca<strong>do</strong>res paravoltarem e matar eles. Quan<strong>do</strong> <strong>os</strong> onças voltaram pra aldeia, começaram amatar o pessoal <strong>do</strong> Kamukuwaká. Só sobrou quatro, só <strong>os</strong> caciques, o restomorreu tu<strong>do</strong>. Aí <strong>os</strong> onças começaram a cozinhar o pessoal na panela, e quan<strong>do</strong>estava ferven<strong>do</strong>, Kamukuwaká desceu <strong>do</strong> teto e começou a matar <strong>os</strong> ianumaka.Matou to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, não sobrou quase ninguém. Aí, Kamukuwaká derramou equebrou as panelas para salvar o pessoal de volta. Ele pegou folhas e derramouo pessoal dele em cima das folhas e começou a rezar, soprou neles e elesviveram de novo.O pessoal percebeu então que o corpo deles estava to<strong>do</strong> queima<strong>do</strong> ecomeçaram a discutir. Falaram que Kamukuwaká tinha leva<strong>do</strong> eles ali só paraestragar o corpo deles. Brigaram com Kamukuwaká e aí começou a inveja.Porque antes eles eram tod<strong>os</strong> bonit<strong>os</strong> e para estragar o corpo deles, teria queacontecer alguma coisa. Ficaram discutin<strong>do</strong> e resolveram voltar para a aldeia,


334descer para a terra. Desceram, pegaram canoa lá <strong>do</strong> Kamukuwaká e ondeencontravam redemoinho eles caíam lá e falavam: ‘eu vou ficar aqui’. Cadagrupo ficou em um lugar. Então, Kamukuwaká foi lá na irmã dele. Ficou juntocom kapulu, soteju, e começou a cantar: ‘vam<strong>os</strong> embora, vam<strong>os</strong> lá naAlaweru’, cantan<strong>do</strong>... ‘Alapokumalu casou com Uwapi, “peixe-cachorro”,cantan<strong>do</strong>. Então eles foram lá, lá no fun<strong>do</strong> da água.Aí quan<strong>do</strong> <strong>Wauja</strong> foi lá pescar, ouviu a festa gritan<strong>do</strong>. Então <strong>Wauja</strong> falou: ‘ué, oque é que é isso?’, e começou a ouvir música deles. Aí falou: ‘ué, aquele lá éKamukuwaká, <strong>Wauja</strong> pensou. Porque ele tinha deixa<strong>do</strong> a aldeia dele. Lá noKamukuwaká que era aldeia e procurou outra aldeia. Então começou a fazeratujuá [grande máscara re<strong>do</strong>nda]. Tu<strong>do</strong> que ele falou Kamukuwaká fez. Sevocê f<strong>os</strong>se lá, apapaatai ia comer você. Isto é história”.> |


335tocou?” (estavam todas molhadas). Ele enganou, o verdadeiro ele escondeu.“Então vou levar”. De noite, saiu, tocou, mas ninguém ouviu, só na aldeia deleque ouviram. Amanheceu, <strong>do</strong>is, três dias, tocou o verdadeiro de novo. To<strong>do</strong>mun<strong>do</strong> ouviu. Aynama pensou “Não é esse que eu trouxe”. Foi até a aldeia <strong>do</strong>primo e falou: “Poxa primo, qual aquele jakuí com som mais <strong>alto</strong>?” Enganan<strong>do</strong>de novo, o primo diz “esses três daqui”. “Como você fez?” Aí m<strong>os</strong>trou como fez.Certo dia Ayanama descobriu e falou: “primo, você ta me enganan<strong>do</strong>. Eu seique você está tocan<strong>do</strong> jakuí verdadeiro que pegou da água, eu sonhei, eu sei.Me m<strong>os</strong>tra!” Aí o primo m<strong>os</strong>trou. Ayanama quis tomar, roubar. A turma dele éo grupo da abelha, foi lá na grande festa. Tinha grande mingau envenena<strong>do</strong>. Aturma <strong>do</strong> Ayanama ficou envenenada. Dentro da casa d<strong>os</strong> homens, Ayanamatirou a braçadeira, cuspiu e falou “quan<strong>do</strong> homem me procurar bastante, poderesponder”. Entrou na casa dele e escondeu. Transou com a mulher dele.Enquanto isso Mawutsiní, <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora perguntava: “Primo você ta aí, vocêta bem?” e a braçadeira respondia, “to aqui, primo, to bem”. Então o povoabelha viveu de novo, e foram embora tocan<strong>do</strong>, com a flauta verdadeira.Kanaratỳ que achou”.> |

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