Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Veio o criado.<br />
— Prepara as minhas malas e previne à senhora <strong>de</strong> que lhe <strong>de</strong>sejo falar ainda esta noite.<br />
O criado curvou a cabeça e saiu.<br />
— Mas eu hei <strong>de</strong> partir assim sem mais nem menos?... observou Gregório, ao último ponto<br />
contrariado.<br />
— É para o seu interesse, meu amigo: a perda <strong>de</strong> um paquete podia acarretar consigo a da<br />
ocasião. Lembre-se do velho provérbio indiano: “A fortuna só tem cabelos na frente da cabeça e é<br />
calva na nuca”; se a não agarrarmos <strong>de</strong> frente, ela se irá por uma vez e nunca mais a pilharemos.<br />
O senhor só sairá daqui para bordo!<br />
— Mas os meus interesses, os meus compromissos, que me esperam lá fora?...<br />
— Tudo isso não vale a vigésima parte do tesouro que o reclama com urgência!<br />
— Mas uma coisa não elimina o outra; bem podíamos conciliar as duas e...<br />
— Deixemo-nos <strong>de</strong> meias medidas, meu caro senhor; já lhe disse o que tinha a dizer; agora<br />
só me resta acrescentar que, nas condições apresentadas, estou pronto a acompanhá-lo; noutras,<br />
não! Lembre-se, porém, <strong>de</strong> que, sem o meu concurso, lhe será muito difícil chegar a qualquer<br />
resultado prático a respeito da herança <strong>de</strong> seu pai!...<br />
— Mas, Sr. con<strong>de</strong>, objetou Gregório; se eu fizer o que V. Exa. me aconselha, fico<br />
absolutamente sem recursos: abandono meu emprego, abandono tudo!<br />
— E que falta lhe po<strong>de</strong>m fazer essas coisas? E o con<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma pausa, disse com a<br />
mais resoluta calma: Enfim, senhor, eu sigo amanhã no paquete que parte para a Europa, quer ou<br />
não quer acompanhar-me?!<br />
— Bem! respon<strong>de</strong>u Gregório, inspirado pelo ar resoluto do con<strong>de</strong>. Estou às suas or<strong>de</strong>ns!<br />
— Neste caso, vou apresentá-lo à minha família, que irá também.<br />
O rapaz consertou rapidamente o laço da gravata, passou a mão pelos cabelos, e, pouco<br />
<strong>de</strong>pois, em companhia do con<strong>de</strong>, era anunciado nos aposentos da con<strong>de</strong>ssa.<br />
Ao chegar à porta sentiu logo um doce perfume <strong>de</strong> paz honesta. Tudo ali era castamente<br />
tranqüilo; havia na atmosfera o aroma grave <strong>de</strong> flores secas, esquecidas no fundo <strong>de</strong> uma velha<br />
gaveta <strong>de</strong> família. Os móveis, o tapete, os quadros e as cortinas revelavam a mesma sobrieda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> gosto, o mesmo recato <strong>de</strong> simpatias, as mesmas inclinações finas e aristocráticas.<br />
Não se encontravam ali as fantasias baratas do luxo mo<strong>de</strong>rno; não havia as fragilida<strong>de</strong>s<br />
douradas da falsa opulência; tudo era bom e sincero. O biscuit não substituía o mármore, o gesso<br />
pintado não tomava o lugar do bronze e o cromo litográfico não fazia as vezes da aquarela e da<br />
pintura a óleo. Cada objeto dizia sinceramente a sua espécie e a sua qualida<strong>de</strong>.<br />
Predominava em tudo a mesma singeleza bem educada. Nada <strong>de</strong> arrebiques, nada <strong>de</strong> frisos<br />
<strong>de</strong> pinho envernizado, nada <strong>de</strong> guarnições impertinentes. As boas gravuras inglesas e as<br />
magníficas águas-fortes <strong>de</strong>stacavam-se perfeitamente da nu<strong>de</strong>z austera das pare<strong>de</strong>s. Os móveis <strong>de</strong><br />
ma<strong>de</strong>ira sem lustro tinham cada um a sua utilida<strong>de</strong> imediata. Não havia os preguiçosos divãs que<br />
conduzem à volúpia e ao dolce far niente; não havia as dúbias ca<strong>de</strong>iras que obrigam o corpo a<br />
uma posição enervante e sem-cerimônia.<br />
Gregório transpôs a porta daquele santuário, inteiramente penetrado pela alma misteriosa que<br />
daí se evaporava, como o perfume religioso <strong>de</strong> um templo.<br />
A con<strong>de</strong>ssa, assentada junto à mesa, lia um grosso volume <strong>de</strong> capa azul à luz vermelha <strong>de</strong> um<br />
can<strong>de</strong>eiro <strong>de</strong> alabastro. Vestia uma roupa inteira e afogada <strong>de</strong> casimira indiana, e tinha a cabeça<br />
resguardada por uma touca <strong>de</strong> renda <strong>de</strong> Valença. Não se lhe via luzir uma jóia. Ao lado <strong>de</strong>la, em<br />
uma ca<strong>de</strong>ira mais baixa, bordava a filha, toda preocupada com o seu trabalho.<br />
Maria Luísa, é este o nome da menina, teria <strong>de</strong>zessete anos, não travessos e ruidosos, mas angélicos e<br />
tranqüilos, como tudo o que a cercava. À luz do can<strong>de</strong>eiro <strong>de</strong>stacava-se bem a sua cabecinha loura, redonda,<br />
encimada pelas tranças, que a envolviam à moda das velhas estátuas. Sentia-se o azul dos seus olhos por <strong>de</strong>baixo das