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213<br />
me como serva de todos, a fim de trabalhar pela minha salvação... Jesus, que<br />
me deu a coragem de confessar o crime, não me há de faltar com as energias<br />
necessárias ao esfôrço regenerador!...<br />
Nesse momento, fêz uma pausa mais longa. Jaques, estático, permanecia<br />
calado, Alcione e Beatriz choravam amargamente. O marido infelicitado, porém,<br />
parecia dementado pela dor. Olhos arregalados como a fitar o passado de<br />
sombras, Cirilo Davenport transportara-se em espírito ao ano de 63, esquecera<br />
momentâneamente todos os trabalhos e deveres das segundas núpcias. À sua<br />
frente via Madalena ultrajada, humilhada, perseguida. Sentia-se rodeado de<br />
inimigos implacáveis, que se haviam alojado em seu próprio coração. A idéia de<br />
vingança se lhe embutira no cérebro com vigor incoercível. Apesar dos<br />
conhecimentos evangélicos, não podia libertar-se da velha concepção que<br />
impunha lavar com sangue a dignidade ferida. Pela primeira vez,<br />
experimentava o supremo ultraje ao nome, à honra pessoal, ao amor próprio<br />
ofendido.<br />
Enquanto se perdia em dolorosas reflexões, Susana fixou nêle o olhar e<br />
exclamou compungidamente:<br />
— Perdoa-me e terei fôrças para me transformar!...<br />
Soluços amargos acompanharam o apêlo. Mas o filho de Samuel, com<br />
feições de louco sacou de um punhal e, cambaleando e rugindo, ameaçadoramente,<br />
acercou-se da postulante, bradando:<br />
— Não há perdão para o teu crime, Susana! As víboras hediondas devem<br />
ser esmagadas.<br />
Entretanto, num ápice, Alcione colocou-se entre êle e a infeliz. Observando<br />
a atitude impulsiva e resoluta do genitor, abraçou-se à filha de Jaques e,<br />
quando viu que a mão armada ia desferir o golpe, exclamou com acento<br />
inesquecível:<br />
— E Jesus, meu pai?<br />
O braço ultriz pendeu inerte. Era preciso recordar Aquêle que não<br />
desdenhara o madeiro infamante. Cirilo sentiu-se apossado de estranhas e<br />
novas sensações. Pela primeira vez, Alcione lhe chamava “meu pai”. Por que<br />
não lhe seguir a exemplificação de sofrimento e sacrifício? Madalena havia<br />
partido em paz. Quem sabe poderia acompanhá-la na mesma tranqüilidade de<br />
coração? Por que arruinar o porvir com uma ação execrável? Recordava, agora<br />
que as lágrimas lhe manavam dos olhos doridos, as lições evangélicas do culto<br />
doméstico. Ninguém poderia sanar um mal com outro mal, resgatar um crime<br />
com outro crime. O pranto corria-lhe em onda volumosa, quis andar livremente,<br />
mas uma sensação de súbito mal-estar lhe anulava as fôrças. Não conseguiu<br />
senão arrastar-se com dificuldade e, apoiando-se em Alcione, que acabava de<br />
acomodar Susana no divã, entregou-lhe a arma perigosa, como a dizer que<br />
renunciava a toda idéia de vingança por suas próprias mãos. Jaques e Beatriz<br />
perceberam que Cirilo sentia algo de grave e correram a ampará-lo.<br />
— Meu pai, meu pai — dizia a filha de Susana em tom angustiado —, não<br />
te entregues assim ao sofrimento!.<br />
Ele, porém, não mais respondeu ao chamado dos circunstantes e foi<br />
conduzido ao leito, desfalecido, em deplorável situação.<br />
Cirilo Davenport não resistira ao sofrimento que lhe causara a revelação<br />
tenebrosa. Alguns vasos cerebrais se romperam em penhor de morte. Mais de<br />
um médico foi convocado, a salvar o rico negociante de fumo, mas não houve<br />
meios de o seqüestrar ao coma.