Obra Completa - Universidade de Coimbra
Obra Completa - Universidade de Coimbra
Obra Completa - Universidade de Coimbra
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Editor<br />
MANUEL D'OLIVEIRA AMARAL<br />
Á VERDADE<br />
Serenamente, sem exageros, sem<br />
paixão, cumpre que se exponha bem<br />
alto, para que a oiça o país e o governo,<br />
a verda<strong>de</strong> dos acontecimentos<br />
<strong>de</strong> que esta cida<strong>de</strong> foi theátro na<br />
semana passada.<br />
Especuladores canalhas, que vêem<br />
perturbada a fácil tranquilida<strong>de</strong> que<br />
disfructam na vil exploração politica a<br />
que se entregam, que é a sua farça, o<br />
seu meio e o seu fim, vieram á imprensa,<br />
em artigos propositadamente<br />
pavorosos e conscientemente falsos,<br />
<strong>de</strong>turpar a significação pacifica, or<strong>de</strong>ira,<br />
cheia <strong>de</strong> razão e <strong>de</strong> justiça, que<br />
<strong>de</strong>terminou a attitu<strong>de</strong> do povo e do<br />
commercio <strong>de</strong> <strong>Coimbra</strong> dos dias <strong>de</strong>z a<br />
quinze dê te mês.<br />
Urge, por isso, historiar, com verda<strong>de</strong><br />
rigorosa, a origem e o <strong>de</strong>curso<br />
dêsses movimentos <strong>de</strong> ha pouco.<br />
Na terça feira, io, pela manha,<br />
accentuou-se no mercado um certo<br />
alarido das ven<strong>de</strong><strong>de</strong>iras d'hortaliças,<br />
que já na vespera tinham começado<br />
<strong>de</strong> se manifestar, em protesto contra<br />
as extorsões fiscaes <strong>de</strong> que estavam j<br />
sendo victimas, visto que os fiscaes j<br />
dos impostos lhes estavam exigindo<br />
licenças para venda, que ellas, na sua<br />
ignorancia, se promptificavam a pagar,<br />
mas ainda multas <strong>de</strong> 2$ooo réis a cada<br />
uma por não terem ainda tirado na<br />
repartição competente aquellas licenças.<br />
O governador civil, ao ter conhecimento<br />
dos protestos que começavam<br />
<strong>de</strong> se levantar, or<strong>de</strong>nou que os autos<br />
instaurados ficassem sem effeito e que o<br />
pessoal dos impostos recolhesse á sua<br />
repartição, não proseguindo em tal serviço.<br />
As ven<strong>de</strong><strong>de</strong>iras, porém, ou porque<br />
não tivessem conhecimento <strong>de</strong>sta ;<br />
<strong>de</strong>terminação, o que é mais provável,<br />
visto como o abuso da exacção se tinha |<br />
propagado pelas al<strong>de</strong>ias circumvizinhas;<br />
Ou porque não achassem garantia na<br />
promessa, visto como o povo está a ser<br />
constantemente illudido por vãs promessas,<br />
sendo cada vez maior o aggravo<br />
da sua situação; resolveram não<br />
trazer generos ao mercado e obstar a<br />
que alguém os trouxesse.<br />
E assim, na quarta feira <strong>de</strong> manhã,<br />
dia II, ás portas da cida<strong>de</strong> grupos <strong>de</strong><br />
mulheres e <strong>de</strong> rapazio obstavam a que<br />
entrassem na cidadç generos para con-<br />
PUBLICA-SE AOS DOMINGOS E QUINTAS FEIRAS<br />
sumo. E juntando-se no mercado muitas<br />
ven<strong>de</strong><strong>de</strong>iras, levantaram com intensida<strong>de</strong><br />
crescente um gran<strong>de</strong> alarido clamando<br />
contra o imposto, adherindo<br />
outras classes ven<strong>de</strong>doras no mercado,<br />
como a dos carniceiros, que maior vulto<br />
veiu dar ao clamoroso protesto contra<br />
as iniquas exigencias do fisco.<br />
Des<strong>de</strong> que homens, <strong>de</strong>cididos e<br />
fortes, junctaram ao d'aquellas o seu<br />
clamor, numeroso bando <strong>de</strong> populares,<br />
com muitas d'aquel!as mulhâres <strong>de</strong><br />
envolta, começaram <strong>de</strong> percorrer a cida<br />
<strong>de</strong>, promovendo o encerramento dos<br />
estabelecimentos <strong>de</strong> venda d'aquelles<br />
generos, passando ás fábricas e a to- J<br />
dos os estabelecimentos commerciaes;<br />
<strong>de</strong> maneira que pelas onze horas da<br />
manhã já eram ás centenas as pessoas<br />
dum e doutro sexo que se dirigiam á<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> e ao Lyceu, interrompendo<br />
as aulas a vêr se se lhes juntavam<br />
os estudantes, que só na quinta feira<br />
á tar<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois dos sangrentos acontecimentos,<br />
resolveram dar ao povo <strong>de</strong><br />
<strong>Coimbra</strong> o seu apoio moral, e material<br />
por meio duma subscripção pública<br />
<strong>de</strong> sua iniciativa.<br />
Pelo meio dia aquelles centenares<br />
<strong>de</strong> pessoas voltaram á baixa, em clamor,<br />
continuando a exigir o encerramento<br />
das lojas <strong>de</strong> commercio e das<br />
fabricas que ainda não tinham fechado,<br />
dirigindo-se pelas duas horas ao Pateo i<br />
<strong>de</strong> Inquisição, on<strong>de</strong> é a repartição dos<br />
Impostos, fazendo na sua frente uma<br />
ruidosa manifestação <strong>de</strong> — abaixo o<br />
imposto! — Como, porém, á janella j<br />
<strong>de</strong>sta repartição assomassem dois empregados<br />
voltando para o povo* o cano<br />
dos seus revólveres, o povo assim<br />
estimulado por aquelles que o amea<br />
cavam a tiro <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> lhes arrancarem<br />
a própria camisa do corpo, <strong>de</strong>sfechou<br />
sobre as janellas d'aquella repartição<br />
um chuveiro <strong>de</strong> pedradas.<br />
E d'alli seguiu o bando manifes<br />
tante ás fábricas da Sophia, Fóra <strong>de</strong><br />
Portas, Choupal e Santa Clara, a fazer<br />
cessar os trabalhos.<br />
Pela tar<strong>de</strong> a multidão pelas ruas<br />
era enorme. Todo o commercio havia<br />
fechado. Os operários <strong>de</strong> todas as<br />
fabricas e obras andavam na rua. A<br />
attitu<strong>de</strong> era expectante e pacifica.<br />
O commercio havia acabado <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>clarar que adheria ao justo protesto<br />
do povo; e <strong>de</strong> vez em quando, num<br />
ou noutro ponto da cida<strong>de</strong> clamava-se<br />
abaixo os impostos! abaixo o sello!<br />
Ajas a quasi totalida<strong>de</strong> da população<br />
Redacção e administração, RUA DE FERREIRA BORGES, 89, 2.° andar<br />
Ofãcina typográphica<br />
12 -RUA DA MOEDA —14<br />
«Depois <strong>de</strong> termos caldo na bancatrôta <strong>de</strong> 1892 e <strong>de</strong> havermos aceitado<br />
resignados nin CONVÉNIO que foi a ultima e in<strong>de</strong>corosa liquidação para<br />
que podíamos apelar, a administração publica, em vez <strong>de</strong> se penitenciar,<br />
<strong>de</strong>sandou <strong>de</strong>finitivamente no <strong>de</strong>clive das maiores iinmoralida<strong>de</strong>s, duma ignóbil<br />
corrupção politica. A' bambochata da administração tem-se juntado a<br />
bambochata das lestas, dos comboios especiaes, <strong>de</strong> viagens faustuosas,<br />
como a dos Açores, só para ostentação dum estadista, capitulos duma<br />
odysséa <strong>de</strong> impudor e <strong>de</strong>svergonha.»<br />
assistia como meramente espectadora.<br />
..<br />
— Entretanto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> terça feira que<br />
o governador civil insistia com o governo<br />
para que lhe mandasse para aqui<br />
uma força <strong>de</strong> cavallaria. O commissario<br />
<strong>de</strong> policia, sem policia, <strong>de</strong>clarava<br />
que assumia a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
manter a or<strong>de</strong>m com soldados <strong>de</strong> cavallaria,<br />
e que não lhe mandassem infantaria.<br />
..<br />
O governo, porém, com toda aquella<br />
reconÍAcida má vor.:a<strong>de</strong> que o minis'!<br />
tro da guerra tem a esta cida<strong>de</strong>, força<br />
nenhuma lhe mandava. E em consequência,<br />
o povo que se amotinára andou<br />
durante toda a quarta-féira positivemente<br />
á sua vonta<strong>de</strong>, <strong>de</strong>monstrando<br />
bem, pela,cordura que manteve e altitu<strong>de</strong><br />
or<strong>de</strong>ira que sempre revelou, que<br />
só sentimentos <strong>de</strong> protesto contra as<br />
iniquida<strong>de</strong>s revoltantes dos impostos o<br />
impulsionavam.<br />
E, como é natural, no calor que<br />
assumiu nas suas manifestações, integrou<br />
o seu protesto inicial contra os<br />
abusos dos fiscaes dos impostos por<br />
causa das licenças, no odio que as populações<br />
votam, em geral, a todos os<br />
impostos, tám absorventes e vexatorios<br />
como progressivos e inúteis.<br />
Na quarta-feira, dia em que esta<br />
cida<strong>de</strong> estava absolutamente <strong>de</strong>sprovida<br />
<strong>de</strong> forças militares, apezar <strong>de</strong> ser<br />
sé<strong>de</strong> d'uma divisão militar; em que o<br />
quartel não tinha guarda, e em que ao<br />
paiol não havia nem uma sentinella;<br />
em que a policia era, como sempre,<br />
impotente, e ao povo só se pou<strong>de</strong> oppôr<br />
uma força <strong>de</strong> vinte soldados, recrutados<br />
entre os impedidos dos oíficiaes<br />
e os artifices do regimento, o<br />
povo esteve inteiramente senhor da ci<br />
da<strong>de</strong>, não praticando, apesar <strong>de</strong> tudo,<br />
<strong>de</strong>smando algum illigitimol<br />
Veja-se neste extraordinário facto,<br />
a po<strong>de</strong>rosa mão occulta que orientava<br />
e dirigia o movimento...<br />
Na madrugada <strong>de</strong> quinta-feira, 12,<br />
chegaram as primeiras forças militares,<br />
todas <strong>de</strong> infantaria, e só pelas 4 horas<br />
da tar<strong>de</strong> appareceu o primeiro esquadrão<br />
<strong>de</strong> cavallaria!<br />
Neste dia, pela manhã, repetiu-se a<br />
mesma opposição á entrada dos generos<br />
na cida<strong>de</strong>; e não só ás portas mas<br />
pelas al<strong>de</strong>ias próximas, don<strong>de</strong> sám<br />
quasi todos os ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> hortaliças<br />
e leite-, havia tenaz opposição á venda<br />
• •<br />
(Palavras do artigo do fundo do JORNAL, folha monarchica, progressista, <strong>de</strong> 19 do corrente.)<br />
<strong>de</strong>stes productos e outros generos <strong>de</strong><br />
consumo. Só á porta da cida<strong>de</strong> houve<br />
pequenos inci<strong>de</strong>ntes na prohibição da<br />
entrada dêstes generos, inutilizando-se<br />
uns e fazendo retirar outros.<br />
E <strong>de</strong> estranhar seria que taes violências<br />
não houvesse.<br />
Continuava, absolutamente or<strong>de</strong>ira<br />
e pacifica, a attitu<strong>de</strong> geral da população.<br />
Pelas ruas, pejadas <strong>de</strong> gente, commentavam-se<br />
os factos, e cada um os apreciava<br />
conforme a natureza dos seus<br />
sentimentos indiviáuaes.<br />
Nada st p-ascafa na sidad-; <strong>de</strong> viulento<br />
e tumultuoso; o tribunal judicial<br />
funccionou até ás 3 horas da tar<strong>de</strong>, ou<br />
perto <strong>de</strong>lias; só havia <strong>de</strong> anormal o<br />
commercio fechado e a multidão que<br />
enchia as ruas da baixa...<br />
Antes do meio dia haviam se dado<br />
pequenos inci<strong>de</strong>ntes, em que o povo<br />
foi o provocado. Um na rua Larga, em<br />
frente da <strong>Universida<strong>de</strong></strong>, outro no largo<br />
<strong>de</strong> Samsão, juncto do edifício da camara<br />
municipal. Acolá, um alferes aggrediu<br />
um popular a ponta-pés;—foi, como<br />
era natural, espancado. Aqui um outro<br />
alferes, afastando-se da força <strong>de</strong> que<br />
fazia parte, correu sobre outro popular<br />
<strong>de</strong> espada <strong>de</strong>sembainhada ; —atiraramlhe,<br />
como era natural, uma pedrada.<br />
Começaram estes inci<strong>de</strong>ntes a correr<br />
<strong>de</strong> bocca em bocca: — a tropa<br />
aggredia o povo! Haviam atirado pedras<br />
á tropa! —E já se não ouviam,<br />
pelo meio dia, os gritos <strong>de</strong> — Viva o<br />
exercito!—com que as tropas eram<br />
frequentemente saudadas...<br />
A muliidão, no largo <strong>de</strong> Samsão<br />
era enorme. Corria que para os lados<br />
<strong>de</strong> Montarroio um grupo <strong>de</strong> populares<br />
preten<strong>de</strong>ra assaltar, pelos quintaes, a<br />
casa da repartição dos impostos ; —que<br />
uma força os perseguira e fôra apedrejada;<br />
que alguns populares queriam<br />
impedir que no Matadouro se abatesse<br />
gado; que outra força, que os persegui-<br />
ra, fôra apedrejada... E assim se ia<br />
estabecendo um sentimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança<br />
entre a tropa e o povo...<br />
Das duas para as trez horas da tar<br />
<strong>de</strong>, uma força militar que estava no<br />
átrio do edifício da Camara, saiu em<br />
accelerado em direcção á rua da Sophia;<br />
d'ahi por minutos a multidão que<br />
pejava o largo <strong>de</strong> Sansão, na boca<br />
d'aquella rua, fugiu espavorida para as<br />
ruas vizinhas, Direita, da Moeda, da<br />
Louça, etc. Diz-se que parte do povo<br />
tentára assaltar uma padaria naquella<br />
j rua, e que um alferes da força que<br />
para alli seguira or<strong>de</strong>nára uma <strong>de</strong>scarga<br />
sobre o povo, a que, por milagre,<br />
obstou o Commissário <strong>de</strong> policia,<br />
<strong>de</strong>scarga que teria massacrado, cobar<strong>de</strong>monte,<br />
<strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> pessoas. Tendose<br />
or<strong>de</strong>nado a essa força que recolhesse<br />
<strong>de</strong> novo aos Paços Municipaes, êsse<br />
alferes foi attingido por uma pedrada<br />
que o contundiu num braço.<br />
Pelas três horas ouviram se tiros<br />
repetidos para o lado <strong>de</strong> Montarroio;<br />
era a tropa a atirar sobre o povo! A<br />
cxcit^.çãc ;;errou-se.intensa. -U*na força,<br />
<strong>de</strong> commando <strong>de</strong> capitão, que estava<br />
no átrio dos Paços municipaes, correu<br />
para o lado <strong>de</strong> Montarroio, ficando em<br />
frente dêste edifício duas sentinellas.<br />
Ouviram-se novos tiros; e d'ahi a<br />
pouco um grupo <strong>de</strong> populares trazia<br />
nos braços um ferido, que foi pensado<br />
por alguns estudantes na pharmacia<br />
Neves, da rua do Viscon<strong>de</strong> da Luz.<br />
D'aí a pouco, outro grupo <strong>de</strong> populares<br />
conduzia dois cadaveres, que <strong>de</strong>positou<br />
em frente dos Paços Municipaes;<br />
e immediatamente fôram <strong>de</strong>sarmadas<br />
áquellas duas sentinellas.<br />
Uma força que viera do quartel<br />
em accelerado, commandada por um<br />
capitão, postou-se encostada á casa<br />
em que se acha installadó o Collegio<br />
' Mon<strong>de</strong>go, com a frente para a rua do<br />
! Viscon<strong>de</strong> da Luz. Nesta rua não ha-<br />
' via tumultos nem agglomeração <strong>de</strong><br />
pessoas; poucas eram as que ali se<br />
encontravam, e só ao cimo <strong>de</strong>sta rua,<br />
ao fundo das escadas da Associação<br />
Commercial, observando o que em<br />
baixo se passava, estava um magote<br />
<strong>de</strong> populares.<br />
Pois aquella força, sem motivo<br />
absolutameate nenhum, e sem os avisos<br />
regulamentares, <strong>de</strong>u duas <strong>de</strong>scargas<br />
pels rua do Viscon<strong>de</strong> da Luz acima,<br />
<strong>de</strong>scargas que feriram algumas pessoas<br />
e que não causaram a morte <strong>de</strong> nin-<br />
guém, por imperícia e por verda<strong>de</strong>iro<br />
acaso!<br />
Houve instantes <strong>de</strong> pavor 1<br />
Commentaram-se os tristes acontecimentos<br />
que acabavam <strong>de</strong> ter logar;<br />
a indignação era geral perante as brutalida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> que foi victima o povo<br />
<strong>de</strong>sarmado; o assassinato dos doie<br />
homens mortos pesava sobre a população<br />
como uma mortalha <strong>de</strong> chumbo!<br />
A cida<strong>de</strong> estava ce luto! As accusações<br />
ao governador civil, ao governo,<br />
e principalmente ao official que or<strong>de</strong>nára<br />
as <strong>de</strong>scargas eram constantes e