14.04.2013 Views

Euclides da Cunha, intérprete do Brasil: O diário de um povo ... - pucrs

Euclides da Cunha, intérprete do Brasil: O diário de um povo ... - pucrs

Euclides da Cunha, intérprete do Brasil: O diário de um povo ... - pucrs

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

<strong>Eucli<strong>de</strong>s</strong> <strong>da</strong> <strong>Cunha</strong>, <strong>intérprete</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>: O <strong>diário</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> <strong>povo</strong> esqueci<strong>do</strong><br />

O Homem<br />

O banco <strong>da</strong> praça e o seu entorno já estavam<br />

ambienta<strong>do</strong>s: oito exemplares d´Os sertões, materiais <strong>de</strong><br />

divulgação sobre o autor, sobre o livro e sobre o projeto<br />

<strong>da</strong>s Maratonas <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong>s estrategicamente para distribuição<br />

e consulta. O exemplar <strong>da</strong> edição comemorativa d´Ateliê<br />

Editorial (2001) era o <strong>de</strong>staque, com suas 900 páginas. Era<br />

o alvo <strong>da</strong> curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> muitos, passan<strong>do</strong> pelas mãos <strong>do</strong><br />

público, que se aglomerava e esperava o início <strong>da</strong> leitura.<br />

As muitas fotos <strong>do</strong> livro sobre <strong>Eucli<strong>de</strong>s</strong> <strong>da</strong> <strong>Cunha</strong>, edita<strong>do</strong><br />

pelo Instituto Moreira Salles (2002), também atraíram a<br />

atenção. De repente, <strong>um</strong> senhor <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong> se aproximou <strong>de</strong><br />

mim e com forte sotaque nor<strong>de</strong>stino perguntou:<br />

“Mas vocês vão ler to<strong>do</strong> esse livro?”<br />

Imediatamente associei a figura <strong>do</strong> homem com os<br />

sertanejos, que resistiam. Óbvio dizer que pelo sotaque<br />

e pela figura, ele parecia ter saí<strong>do</strong> <strong>do</strong> livro. Ele gostou <strong>da</strong><br />

minha atenção e disponibili<strong>da</strong><strong>de</strong> para escuta. E prosseguiu:<br />

“Sou <strong>da</strong>quela região. Não sabia que existia esse<br />

livro. É caro? É lançamento? Acho que meus filhos vão<br />

gostar, mas ele é gran<strong>de</strong>! E vocês vão ler to<strong>do</strong> o livro?”<br />

Respondi que iríamos ler apenas partes <strong>do</strong> livro e<br />

que estávamos ali justamente para divulgar a literatura e<br />

o nosso escritor barroco-científico <strong>Eucli<strong>de</strong>s</strong> <strong>da</strong> <strong>Cunha</strong>. E o<br />

homem era só perguntas. Perguntou muitas coisas. Parecia<br />

que <strong>um</strong> mun<strong>do</strong>, maior <strong>do</strong> que o seu sertão, tinha se aberto.<br />

Fiz o convite para que ele ficasse e lesse o trecho que<br />

<strong>de</strong>sejasse. Ele ficou com gosto, estava feliz. Posso apostar<br />

que vocês advinham qual foi o trecho que ele leu. Sim, ele<br />

começou a leitura <strong>do</strong> capítulo III, <strong>da</strong> parte O Homem:<br />

91<br />

O sertanejo é, antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> <strong>um</strong> forte.<br />

Não tem o raquitismo exaustivo <strong>do</strong>s<br />

mestiços neurastêmicos <strong>do</strong> litoral. A sua<br />

aparência, entretanto ao primeiro lance<br />

<strong>de</strong> vista, revela o contrário. Falta-lhe<br />

a plástica impecável, o <strong>de</strong>sempeno, a<br />

estrutura corretíssima <strong>da</strong>s organizações<br />

atléticas. É <strong>de</strong>sgracioso, <strong>de</strong>sengonça<strong>do</strong>,<br />

torto. Hércules-Quasímo<strong>do</strong>, reflete no<br />

aspecto a feal<strong>da</strong><strong>de</strong> típica <strong>do</strong>s fracos.<br />

(O homem, ao ler em voz alta, parecia estar se<br />

i<strong>de</strong>ntifican<strong>do</strong> com a <strong>de</strong>scrição e também por ser foco <strong>da</strong> atenção<br />

<strong>da</strong> ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> leitura, transfigurou-se: empostou a voz, esqueceu<br />

o cansaço e a preguiça. Foi em frente. O revezamento <strong>da</strong><br />

leitura e o próximo leitor podiam esperar. Ele queria ler e eu<br />

gostaria <strong>de</strong> ter o talento <strong>de</strong> <strong>Eucli<strong>de</strong>s</strong> para escrever muitas<br />

páginas sobre a transformação <strong>de</strong>sse homem enquanto lia.<br />

Arrisco-me em fazer <strong>um</strong> esboço, recortan<strong>do</strong> e inserin<strong>do</strong> em<br />

itálico trechos <strong>do</strong> capítulo que ele leu, pois naquele momento<br />

o guerreiro antigo exausto <strong>da</strong> refrega, vaqueiro <strong>do</strong> norte,<br />

parecia estar se aproximan<strong>do</strong> <strong>da</strong> sua antítese: o gaúcho <strong>do</strong><br />

sul. Na postura, no gesto, na palavra, na ín<strong>do</strong>le e nos hábitos,<br />

durante aquela leitura, ambos se equiparavam. O ar festivo<br />

<strong>da</strong>s estâncias <strong>do</strong> sul e a festa diária <strong>do</strong> gaúcho ao parar ro<strong>de</strong>io<br />

estavam naquele homem <strong>do</strong> sertão, que lia com a mesma<br />

<strong>de</strong>senvoltura <strong>de</strong> quem cola<strong>do</strong> ao <strong>do</strong>rso <strong>do</strong> seu cavalo vai pelas<br />

quebra<strong>da</strong>s. De repente, ele tinha extrema capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> teatral,<br />

não era mais chucro e nem <strong>de</strong>selegante. Lia com firmeza, com<br />

apr<strong>um</strong>o, não estava <strong>de</strong> cócoras e parecia ter a certeza que<br />

apren<strong>de</strong>r o a b c estava para além <strong>da</strong> arte <strong>de</strong> conhecer os<br />

ferros <strong>da</strong>s suas fazen<strong>da</strong>s e os <strong>da</strong>s circunvizinhas. Ler para

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!