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VERDADE TROPICAL

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apresentáveis; as mulheres e moças "direitas" não deviam fumar; um<br />

cara com ar de cafajeste que comia os garotos (mas repetia-se sempre<br />

no ginásio que "quem começa comendo acaba dando" e esse mesmo<br />

cara já era tido como numa espécie de "fase de transição") encontrava<br />

um ambiente de cumplicidade masculina no botequim onde se<br />

insultavam os veados (ou quem quer que ao grupo de freqüentadores<br />

parecesse levemente efeminado); os homens casados eram<br />

encorajados a manter ao menos uma amante, enquanto as mulheres<br />

(amantes ou esposas) tinham que ostentar uma fidelidade inabalável<br />

etc. etc. Claro que os princípios que estavam por trás desses hábitos<br />

não eram uma exclusividade de Santo Amaro, nem mesmo das<br />

pequenas cidades do interior: nos anos 50, com as variações de região,<br />

classe e cultura, acontecia mais ou menos o mesmo em toda parte. E,<br />

se hoje aqueles costumes parecem revolucionados a ponto de muita<br />

gente alardear a ameaça do caos, os pressupostos que os<br />

sustentavam, e que já estavam aí havia muito tempo, permanecem,<br />

ainda que muitas vezes sejam apenas matéria de discussão.<br />

Que eu estivesse em desacordo com essas realidades era para mim<br />

muito claro. Mas todas elas vividas em conjunto, e somadas a tantas<br />

outras de que eu não tinha consciência, produziam um mal-estar difuso<br />

que eu tentava esconjurar com pequenas excentricidades e grandes<br />

reflexões. O ambiente em nossa casa era um tanto opressivo por imporse<br />

a cada um de nós como um mundo fechado em si mesmo. Um<br />

mundo pacífico e terno mas talvez demasiado introspectivo. O fato de<br />

meu pai trabalhar em casa (a agência postal-telegráfica tinha então<br />

que ser na casa de seu chefe) contribuía muito para criar essa<br />

sensação. As dimensões gigantescas do sobrado e o número elevado<br />

de membros da família também eram fatores agravantes. Muitos<br />

amigos nos freqüentavam. Todos trazíamos nossos colegas para brincar.<br />

Além das visitas que vinham ver nossos pais, companheiros de estudo e<br />

trabalho de nossas irmãs e primas mais velhas apareciam para<br />

conversas. Muitos eram visitantes diários indefectíveis. Assim, o casarão<br />

era um mundo também para toda essa gente que vinha do mundo.<br />

Nós próprios saíamos pouco, nunca nenhum de nós tendo tido o habito<br />

de ir brincar na "casa dos outros". Mas a vida alegre e sensual do<br />

recôncavo estava ali representada pela comida (cuja famosa alta<br />

qualidade fechava ainda mais nosso mundo), pela doçura no trato,<br />

pelas rodas de samba que se refaziam a cada festa. O que não devia<br />

estar em desarmonia com os costumes sombrios e solenes que nos<br />

davam a um tempo segurança e medo. Tomávamos a benção aos<br />

nossos pais todas as manhãs ao acordar e à noite antes de ir para a<br />

cama. Ouvíamos em resposta: "Deus lhe abençoe" ou "Deus lhe faça<br />

feliz" ou "Deus lhe dê sorte". Tratávamos nossos pais por "o senhor" e "a<br />

senhora", nunca podendo usar o "você" íntimo no Brasil, embora essa<br />

fosse uma forma abreviada de "vosmecê", um tratamento reverencial<br />

obrigatório até que, representando uma grande distensão, "o senhor" e<br />

"a senhora" vieram substituí-lo. Não podíamos dormir sem rezar. Ouvi

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