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VERDADE TROPICAL

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tudo me punha diante de pistas falsas: em meio a tantas outras<br />

canções em que se condenava o latifúndio e a exploração, a idéia da<br />

rapina parecia adequar-se á caracterização do explorador: no<br />

entanto, louvava-se a saúde da ave rapace e mesmo sugeria-se que<br />

do seu ato se extraísse uma lição. No meio do número, enquanto o trio<br />

acompanhante (violão, baixo e bateria) executava uma série<br />

ascendente de modulações (com os músicos repetindo, cada vez meio<br />

tom acima, a palavra carcará) a cantora recitava informações<br />

estatísticas sobre a crescente emigração de nordestinos para as<br />

grandes cidades do Sul, o que confirmava o caráter de protesto social<br />

da canção, ou pelo menos transformava em ameaça de revolução<br />

sangrenta a retomada do refrão uns dois tons mais alto: "pega, mata e<br />

come". Imediatamente percebi que Bethânia faria daquilo um numero<br />

extraordinariamente eficaz. E de fato, desde a reestréia do Opinião,<br />

"Carcará" com Bethânia se tornou um culto de platéias, politizadas e,<br />

desde que saiu num compacto, um sucesso de massas. Se alguma<br />

coisa se perdeu, na passagem da interpretação de Nara para a de<br />

Bethânia, foi o destaque do longo grito "carcaráááááá" que, frisando o<br />

vôo alto do pássaro, Nara fazia uma oitava acima - o que, em sua voz<br />

aguda e frágil, tornava-se quase lírico -, efeito que o contralto áspero<br />

de Bethânia não poderia (e ela sabia que não deveria tentar). No mais,<br />

a canção simplesmente revelou-se. E, como se tratasse, tanto para o<br />

público em geral quanto para os próprios autores e diretores do show,<br />

de uma revelação também daquela cantora, tendeu-se a atribuir a<br />

adequação da canção à intérprete mais ao fato de esta ser baiana - o<br />

que, do Rio para baixo, se confunde facilmente com ser nordestina - do<br />

que ao seu especial talento dramático e à sua personalidade guerreira.<br />

Eu, que conhecia a predileção de Bethânia por Noel Rosa e pelas<br />

canções de dor-de-cotovelo do final dos anos 50, sabia que o "Carcará"<br />

seria episódico em sua carreira: dessem-lhe uma canção "literária" à<br />

francesa ou um bolero de puteiro, contanto que tivessem potencial<br />

dramático e poder de identificação com sua sensibilidade, e ela faria -<br />

como de fato veio a fazer muitas vezes com exatamente esse tipo de<br />

material - arrebatadores números de palco, a música servindo ao<br />

drama como na ópera. Mas, para todos que só começaram a<br />

conhecê-la então, Bethânia chegou com uma marca de regionalismo<br />

que para nós foi motivo, a princípio de surpresa curiosa e, em breve, de<br />

embaraços e mal-entendidos que, na verdade, nunca se desfizeram de<br />

todo. É óbvio que se o "Carcará" tivesse caído nas mãos da gaúcha Elis<br />

Regina, esta teria podido dar-lhe um tratamento mais próximo ao que<br />

lhe deu Bethânia do que àquele que lhe tinha dado Nara - enquanto a<br />

baiana Gal Costa teria ficado mais perto desta.<br />

Isso, naturalmente, não era possível de ser pensado pelos<br />

produtores do show - um grupo de homens de teatro e intelectuais de<br />

esquerda -, que tinham, entre outras coisas, de arranjar uma linha de<br />

imagem para a nova estrela lançada. É curioso constatar que, para<br />

nós, a primeira experiência com as falsidades do marketing tenha sido

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