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VERDADE TROPICAL

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útil comparar essas duas gravações para entender o significado do<br />

gesto fundamental da invenção da bossa nova. A interpretação de<br />

João é mais introspectiva que a de Maysa, e também violentamente<br />

menos dramática; mas, se na gravação dela os elementos essenciais do<br />

ritmo original do samba foram lançados ao esquecimento quase total<br />

pela concepção do arranjo e, sobretudo, pelas inflexões do fraseado,<br />

na dele chega-se a ouvir - com o ouvido interior - o surdão de um bloco<br />

de rua batendo com descansada regularidade de ponta a ponta da<br />

canção. É uma aula de como o samba pode estar inteiro mesmo nas<br />

suas formas mais aparentemente descaracterizaclas; um modo de,<br />

radicalizando o refinamento, reencontrar a mão do primeiro preto<br />

batendo no couro do primeiro atabaque no nascedouro do samba. (E<br />

o arranjo de cordas é do alemão Klaus Ogerman.) Quanto a mim,<br />

encontro nessa gravação de "Caminhos cruzados" por João um dos<br />

melhores exemplos de música de dança – e isto aqui não é uma<br />

opinião excêntrica rebuscada: eu de fato gosto de sambar ao som<br />

dessa gravação, e toda vez que o faço sinto a delícia do que é sambar<br />

e do que é saber que João Gilberto está me mostrando o sambasamba<br />

que estava escondido num samba-canção que, se não fosse<br />

por ele, ia fingir para todo o sempre que era só uma balada.<br />

Por ocasião de um recital de João em Nova Iorque, em 1988, o<br />

jornalista Julian Dibell, que sabe muito sobre a música popular brasileira<br />

e tem uma visão muitas vezes original e sempre inteligente sobre o tema<br />

-, publicou no jornal Village Voice um artigo em que ele procura dar ao<br />

leitor americano uma idéia da dimensão revolucionária da bossa nova<br />

no ambiente musical e social brasileiro, caracterizando João Gilberto<br />

como o Elvis do Brasil. Essa comparação, feita quase em tom de<br />

brincadeira, aparece como imediatamente rica de estímulos para uma<br />

mente brasileira. Surgida no contexto apressado do jornalismo, ela pode<br />

aparentar certa irresponsabilidade, mas revela que seu autor tocou um<br />

ponto vivo da questão.<br />

É claro que uma renovação do samba, nascida de um requinte do<br />

gosto musical em grande parte desenvolvido no culto à qualidade da<br />

canção americana dos anos 30 e ao tratamento cool dos jazzistas dos<br />

anos 50, não pode ser identificada com o rock, que é<br />

fundamentalmente um gesto de recusa a toda sofisticação. O que<br />

pensar, no entanto, se os dois são convidados a desempenhar funções<br />

semelhantes? Com efeito, as reações contra o rock nos Estados Unidos<br />

e contra a bossa nova no Brasil se alimentavam da insegurança dos<br />

medíocres diante do que quer que ultrapassasse o convencional. E os<br />

que desejavam transgredir as convenções e sair da mediocridade<br />

reuniam-se em torno daqueles movimentos.<br />

Em Santo Amaro nós cultuávamos João Gilberto em frente a um<br />

boteco modesto que chamávamos "bar do Bubu", por causa do nome<br />

do preto gordo que era seu dono. Ele comprara o primeiro LP de João,<br />

Chega de saudade – disco inaugural do movimento -, e tocava-o

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