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VERDADE TROPICAL

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num nível acima daquele no qual meu pensamento podia transitar. Mas<br />

eu lhe mostrei Chet Baker e acho que também Billie Holiday. Mostrei-lhe<br />

também algumas gravações de Thelonious Monk. Sentia-me à vontade<br />

para falar de bossa nova e de música popular brasileira em geral: era<br />

um assunto que eu conhecia melhor do que ele. Mas mesmo ai, se sua<br />

opinião divergisse da minha, ou se apresentasse a menor nuance em<br />

relação à minha, eu parava para rever minha posição.<br />

Bethânia gostou de saber que eu tinha encontrado aquele de<br />

quem já éramos amigos sem que ele o soubesse. E Duda deslumbrou-se<br />

com Bethânia. Eu saia muito com Duda e Alvinho; às vezes ficávamos<br />

no Jardim de Nazaré conversando até altas horas da madrugada.<br />

Nesses encontros Bethânia não estava. Mas saiamos também os quatro.<br />

E Duda passou a vir vez por outra à minha casa. Em breve Bethânia e<br />

ele conversavam também a sós. De todo modo, Bethânia não saia à<br />

noite sem mim.<br />

Lembro do espanto e da raiva com que um colega de sala no<br />

Severino Vieira reagia a minhas referências a programas feitos em<br />

conjunto com minha irmã mais nova: era inacreditável e mais ainda<br />

inaceitável para ele que um rapaz de dezenove anos saísse<br />

freqüentemente com a irmã de quinze; ele próprio tinha uma irmã<br />

menor e, sendo um moço másculo parecido com um garoto comum da<br />

alta classe média de qualquer cidade do Ocidente na segunda<br />

metade do século XX, nada via na irmã além de um estorvo, um<br />

amontoado de incompetências femininas e infantis a atrapalhar suas<br />

pequenas (esportivas, intelectuais, amorosas) aventuras cotidianas. Eu e<br />

Bethânia, ao contrário, nos divertíamos muito na companhia um do<br />

outro e, em nossos périplos pela vida cultural de Salvador nos primeiros<br />

anos da década de 60, descobrimos que éramos uma dupla algo<br />

insólita. Ela lia Carson McCullers e Clarice Lispector, escrevia uns textos<br />

bonitos de prosa poética e fazia pequenas esculturas em cobre e<br />

madeira. Apaixonou-se pela cor roxa e passou a fazer para si mesma<br />

roupas de cetim roxo. Jamais vou esquecer uma cena que, contada<br />

hoje, pode parecer inspirada na Família Adams, de que na época não<br />

tínhamos a menor notícia. Na semana do Natal, ela e eu estávamos no<br />

ponto de ônibus do Jardim da Piedade, cercados de pessoas que<br />

voltavam das compras e entupiam as ruas. O Natal nunca fora<br />

propriamente nossa festa favorita, mas em Santo Amaro a gente<br />

gostava dos presépios (que ainda se viam em Salvador em grande<br />

número pelas janelas das casas) e, sobretudo, do hábito de cobrir o<br />

chão das casas com uma fina camada de areia branca da praia e<br />

encher os cômodos de ramos de pitangueira, a planta nativa brasileira<br />

que dá aquela fruta vermelha pequena e cheia de gomos, e cujas<br />

folhas exalam um cheiro absolutamente delicioso pelo frescor (esse<br />

hábito também ainda permanecia em Salvador e mesmo os ônibus<br />

traziam, na semana do Natal, ramos de pitanga atados à frente e ao<br />

fundo). Talvez a areia branquíssima trazida das dunas estivesse fazendo

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