Visão Judaica - março de 2002 Nissan/Iyar 5762
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16<br />
* Yossef<br />
Dubrawsky é<br />
rabino do<br />
Beit Chabad<br />
Curitiba<br />
* Sami<br />
Goldstein é<br />
professor e<br />
lí<strong>de</strong>r espiritual<br />
da Sinagoga<br />
Francisco<br />
Frischmann,<br />
<strong>de</strong> Curitiba<br />
<strong>Visão</strong> <strong>Judaica</strong> - <strong>março</strong> <strong>de</strong> <strong>2002</strong> <strong>Nissan</strong>/<strong>Iyar</strong> <strong>5762</strong><br />
Carta a alguém que quer ser feliz<br />
Sami Goldstein*<br />
Meu amigo,<br />
Kafka conta a história sobre um<br />
homem que chega à porta da felicida<strong>de</strong>.<br />
Seu passo é firme e <strong>de</strong>cidido.<br />
Uma força invisível parece atraílo<br />
até ali. Era, <strong>de</strong> fato, sua porta da<br />
felicida<strong>de</strong>. Entretanto, enquanto se<br />
aproxima cheio <strong>de</strong> esperança, surge<br />
o guardião que, admirado e<br />
olhando-o fixamente, põe-se na sua<br />
frente. E como era amedrontador...<br />
Nosso homem fica um pouco<br />
perplexo, <strong>de</strong>sconcentrado e sem<br />
capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reação. Depois <strong>de</strong><br />
vacilar por alguns instantes, sentase<br />
no chão e fica pensativo, ensimesmado.<br />
E assim passa um bom<br />
tempo... Em seguida, começa a<br />
olhar ao seu redor, curioso: a porta,<br />
as janelas, o prédio, como se<br />
buscasse um modo <strong>de</strong> entrar e enganar<br />
o guardião. Nenhuma solução<br />
parece suficiente. Nervoso,<br />
luta com o <strong>de</strong>sejo, a dúvida, a in<strong>de</strong>cisão...<br />
E vai embora.<br />
Passam-se os anos e todos os<br />
dias o homem caminha em direção<br />
à porta da felicida<strong>de</strong>. Quantas maravilhas<br />
<strong>de</strong>veriam estar aguardando<br />
apenas pelo momento em que<br />
Pêssach<br />
O êxodo sempre presente<br />
Yossef Dubrawsky *<br />
A celebração <strong>de</strong> Pêssach é tão<br />
importante no judaísmo, que todos os<br />
dias somos solicitados a lembrar que<br />
“em cada geração uma pessoa <strong>de</strong>ve<br />
consi<strong>de</strong>rar a si mesma como se ela<br />
mesma tivesse saído do Egito”.<br />
O Rebe, em suas mensagens,<br />
nos coloca um dilema. De que tipo<br />
<strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> falamos quando os ju<strong>de</strong>us<br />
saíram do Egito: a libertação da<br />
escravidão foi condicionada apenas<br />
à obediência a D-us. Quando observamos<br />
a Torá e as 613 mitsvot, parece-nos,<br />
à primeira vista, um jugo pesado,<br />
algo a nos cercar durante todos<br />
os minutos <strong>de</strong> nossa vida.<br />
Para o homem, liberda<strong>de</strong> física, satisfação<br />
das necessida<strong>de</strong>s materiais,<br />
porém sem preencher as aspirações<br />
intelectuais, seria uma privação terrível.<br />
Mesmo assim, também a realização<br />
intelectual não representa a<br />
verda<strong>de</strong>ira liberda<strong>de</strong> para um ju<strong>de</strong>u.<br />
Devemos levar em consi<strong>de</strong>ração<br />
que a alma <strong>de</strong> um ju<strong>de</strong>u é parte <strong>de</strong><br />
D-us; a verda<strong>de</strong>ira liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />
ju<strong>de</strong>u só é conseguida quando sua<br />
alma po<strong>de</strong> unir-se à sua fonte, D-us,<br />
através da Torá e do cumprimento das<br />
mitsvot. Formam um suave caminho,<br />
porque a busca se resume a nosso<br />
potencial interior, buscando forças<br />
com as quais nascemos e crescemos.<br />
Entretanto, o mais difícil, a rota,<br />
as metas, o norte que procuramos<br />
está na Torá, um tesouro que não<br />
nos foi encoberto, mas sim revelado<br />
e em cujas palavras sempre novas<br />
luzes iluminam cada vez mais a escuridão<br />
da galut.<br />
A Torá e as mitsvot nos dão o livre<br />
arbítrio para crescer sempre mais,<br />
nos elevarmos mais, melhorar o mundo<br />
à nossa volta, alcançando a verda<strong>de</strong>ira<br />
liberda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>senvolvendo<br />
todo o nosso potencial físico e espiritual,<br />
e esta é a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> D-us, que<br />
nos quer como construtores <strong>de</strong> sua<br />
morada no mundo físico.<br />
Um tema chave na história <strong>de</strong><br />
Pêssach é a pressa: os filhos <strong>de</strong> Israel<br />
são <strong>de</strong>scritos como havendo “fugido”<br />
do Egito; a matsá é o pão que<br />
não fermentou porque fomos expulsos<br />
do Egito e não podíamos nos retardar;<br />
e o Korban Pêssach (a Oferenda<br />
Pascal), a chave para a re<strong>de</strong>nção<br />
e o eixo ao redor do qual gira toda<br />
a festivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pêssach, era comido<br />
“com pressa”. A pressa <strong>de</strong> Pêssach<br />
atravessasse pela soleira. Mas lá<br />
está o guardião, imponente como<br />
uma resistente muralha.<br />
O tempo não perdoa e o homem,<br />
já muito velho e doente, sente-se<br />
esmorecido. Quem sabe esse<br />
seu estado inspire compaixão ao<br />
guardião e o <strong>de</strong>ixe entrar... Assim,<br />
reunindo as últimas forças, aproxima-se<br />
da porta e pergunta com<br />
voz moribunda:<br />
- Se esta é a porta da minha<br />
felicida<strong>de</strong>, por que nunca me<br />
<strong>de</strong>ixou entrar?<br />
E o guardião, surpreso, retruca:<br />
- Mas você nunca me pediu...<br />
Felicida<strong>de</strong>... Poucas letras que<br />
contém <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si o segredo da<br />
existência humana. É uma palavra<br />
que precisa ser pensada, para não<br />
a termos como poesia separada da<br />
realida<strong>de</strong>. Vale lembrar que o direito<br />
à felicida<strong>de</strong> é assegurado pela<br />
Declaração dos Direitos do Homem,<br />
aprovada pela Organização da Nações<br />
Unidas. Muito antes disso, já<br />
advertia a Torá sobre como as pessoas<br />
tristes seriam punidas, “pois<br />
você não serviu ao Eterno com alegria<br />
e com o coração feliz” (Deuteronômio<br />
28:47). Portanto, embora<br />
enfatiza que a vida, para o ju<strong>de</strong>u,<br />
nunca mais será uma experiência<br />
imóvel e passiva que foi para a tribo<br />
<strong>de</strong> escravos hebreus sob o cativeiro<br />
egípcio.<br />
A pressa com que aconteceu o<br />
primeiro Se<strong>de</strong>r no Egito se expressou<br />
<strong>de</strong> três maneiras: cinturas cingidas,<br />
sapatos nos pés e cajados em<br />
suas mãos. O Rebe nos explica que<br />
estes atos correspon<strong>de</strong>m às três dimensões<br />
do movimento através da<br />
vida: nosso próprio <strong>de</strong>senvolvimento,<br />
nosso efeito sobre nossa comunida<strong>de</strong><br />
e nosso papel no mundo.<br />
A cintura (os quadris), que são a<br />
base do corpo, representam o ser humano<br />
como um todo.<br />
Pés calçados são os meios <strong>de</strong> locomoção<br />
<strong>de</strong> uma pessoa, com os<br />
quais viajamos do interior <strong>de</strong> nosso<br />
ser para influir em lugares e indivíduos<br />
que estão mais longe <strong>de</strong> um “pé<br />
<strong>de</strong>scalço”, uma personalida<strong>de</strong> presa<br />
ao seu espaço.<br />
O cajado representa a convicção<br />
própria do homem <strong>de</strong> que nada é impossível,<br />
que sempre po<strong>de</strong>mos encontrar<br />
uma maneira <strong>de</strong> esten<strong>de</strong>r<br />
nosso alcance mais além que a dis-<br />
amemos a poesia, não se trata <strong>de</strong><br />
suspirar pelo impossível, como alguns<br />
enten<strong>de</strong>m ser a poesia.<br />
A felicida<strong>de</strong> só é impossível<br />
àqueles que temem lançar-se ao<br />
<strong>de</strong>safio <strong>de</strong> buscá-la. Não a vejo<br />
como um objetivo, mas como um<br />
i<strong>de</strong>al. Não é uma situação, mas uma<br />
<strong>de</strong>cisão. Talvez não a conquistemos,<br />
mas teremos iniciado o caminho<br />
rumo ao seu encontro. E, principalmente,<br />
teremos dado um sentido,<br />
uma razão à nossa vida. É<br />
melhor fechar-se numa concha e<br />
<strong>de</strong>sistir da felicida<strong>de</strong> pelo puro<br />
medo do <strong>de</strong>sconhecido? É verda<strong>de</strong>:<br />
a felicida<strong>de</strong> traz consigo o sabor<br />
do <strong>de</strong>sconhecido. Passamos<br />
inúmeras vezes durante nossa existência<br />
por portas da felicida<strong>de</strong>. Queremos<br />
saber o que há lá <strong>de</strong>ntro; se<br />
realmente vale a pena. Imaginamos<br />
mil coisas e esperamos que ela se<br />
abra para nós com todas as garantias,<br />
pois somos merecedores. Com<br />
isso, esquecemos do essencial:<br />
pedir para entrar. O problema não<br />
é quem merece ou <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> merecer,<br />
mas quem toma uma atitu<strong>de</strong><br />
e corre atrás do que acredita e<br />
quer para si! E per<strong>de</strong>mos nossa<br />
chance, pelo mero receio <strong>de</strong> superar<br />
B"H<br />
tância <strong>de</strong> nosso braço natural, nosso<br />
próprio conhecimento.<br />
A festivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pêssach nos traz<br />
a força para atingir a verda<strong>de</strong>ira liberda<strong>de</strong>.<br />
O primeiro passo é nos livrarmos<br />
dos “ídolos”, nos livrarmos da <strong>de</strong>pendência<br />
<strong>de</strong> “o que o mundo pensa<br />
e no que o mundo crê”.<br />
O povo, a entida<strong>de</strong> nascida em<br />
Pêssach, era um “ser” que não se <strong>de</strong>fine<br />
como uma socieda<strong>de</strong> nem pela<br />
aparência intelectual, emocional ou<br />
física, senão pela faísca <strong>de</strong> Divinda<strong>de</strong><br />
que é a essência do homem. E esta<br />
faísca emana da Torá e em cada uma<br />
das mitsvot <strong>de</strong>legadas a nós ju<strong>de</strong>us.<br />
Neste ano <strong>de</strong> <strong>5762</strong>, no dia 11 <strong>de</strong><br />
<strong>Nissan</strong> (24 <strong>de</strong> <strong>março</strong>), estaremos comemorando<br />
o centenário do nascimento<br />
do Rebe <strong>de</strong> Lubavitch, o lí<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong> nossa geração. Ele soube, com<br />
ações e ensinamentos, nos ensinar<br />
o caminho da “saída do Egito”, rumo<br />
à verda<strong>de</strong>ira liberda<strong>de</strong>, à conexão<br />
com a faísca Divina existente em<br />
cada ju<strong>de</strong>u. A Torá é real, é a Torá da<br />
vida, que nos guia ainda nos dias <strong>de</strong><br />
hoje, para a verda<strong>de</strong>ira liberda<strong>de</strong>,<br />
para sermos somente servos <strong>de</strong><br />
D-us e <strong>de</strong> ninguém mais!<br />
nossos próprios limites. Meu amigo,<br />
muitas outras portas po<strong>de</strong>rão abrirse<br />
para você, mas talvez aquela se<br />
feche para sempre.<br />
A felicida<strong>de</strong> não é um prêmio; é<br />
uma escolha e ainda mais: um verda<strong>de</strong>iro<br />
atrevimento. Afonso Duarte<br />
<strong>de</strong> Barros dizia “felizes os que sonham,<br />
ainda que não possam realizar<br />
os sonhos.” Às vezes precisamos<br />
<strong>de</strong>ixar o passado para sonhar<br />
– mesmo sabendo que talvez não<br />
tenhamos as asas necessárias para<br />
alcançar as nuvens da felicida<strong>de</strong> –,<br />
mas tudo nesta vida tem seu preço.<br />
A questão é: arcamos com os custos<br />
<strong>de</strong> nossa felicida<strong>de</strong> ou não?<br />
Deixemos o velho <strong>de</strong> fora e abramos<br />
espaço para o novo. Assuma<br />
um compromisso comigo hoje e<br />
diga a si mesmo: eu vou ser feliz!<br />
Meu amigo, estarei aqui esperando<br />
pelo seu sucesso. Pois mesmo<br />
que fracasse, será um vencedor<br />
por apenas ter tentado. Faça <strong>de</strong><br />
sua poesia uma história viva e repleta<br />
<strong>de</strong> momentos felizes. Sempre<br />
haverá um amigo a apoiá-lo, palmas<br />
abertas a felicitá-lo e um braço estendido<br />
a consolá-lo. Afinal, não há<br />
quem feche a porta da amiza<strong>de</strong>.<br />
Boa sorte!