Visão Judaica - março de 2002 Nissan/Iyar 5762
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Nahum Sirotsky *<br />
Raramente aceito escrever<br />
para publicações comunitárias em<br />
geral. Passei a vida empenhado<br />
em escrever o que penso do que<br />
observo, sem consi<strong>de</strong>rar i<strong>de</strong>ologias<br />
ou crenças. Não minto se<br />
digo que sou objetivo, pois isto<br />
não existe na observação da vida<br />
do homem. Todos enxergamos<br />
com os próprios olhos e ouvimos<br />
com os próprios ouvidos. Nunca<br />
me canso <strong>de</strong> visitar o Museu do<br />
Prado, em Madrid, sempre que<br />
passo pela cida<strong>de</strong>. Vou rever os<br />
Goyas que já vi incontáveis vezes<br />
e, a cada vez, <strong>de</strong>scubro que não<br />
vi bem. Há poetas, como Rilke,<br />
Elliot, cuja sabedoria jamais alcanço.<br />
E releio sempre. Nunca me<br />
canso dos compositores barrocos<br />
cuja mensagem procuro enten<strong>de</strong>r.<br />
E <strong>de</strong> ouvir o samba <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>.<br />
Meu livro bíblico favorito é<br />
Eclesiastes (Kohelet, como dizemos<br />
em hebraico). Estudo o Velho<br />
Testamento não só tentando<br />
enten<strong>de</strong>r esta obra-prima da literatura<br />
e a condição humana.<br />
Estudo para tentar apren<strong>de</strong>r a<br />
escrever, a sintetizar. E saber<br />
como foi possível ser criado pelo<br />
homem. Sei que se enten<strong>de</strong> com<br />
o que se sabe. Quero saber<br />
mais para enten<strong>de</strong>r melhor. Nunca<br />
hesito em mudar minhas interpretações,<br />
pois meus conhecimentos<br />
mudam todos os dias.<br />
Não sei o que valem meus escritos<br />
que nunca releio, publicados<br />
por consi<strong>de</strong>rar, sem falsa modéstia,<br />
que não são poucos os leitores.<br />
Cada um tem suas loucuras.<br />
O “Último Segundo“ do IG me convidou<br />
e me <strong>de</strong>u liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão<br />
pelo que sou muito grato.<br />
Leão Serva Pinto, meu editor<br />
e amigo, não gostará <strong>de</strong> saber<br />
que <strong>de</strong>ixei <strong>de</strong> abrir o IG <strong>de</strong>pois<br />
que me contratou como correspon<strong>de</strong>nte.<br />
Foi assim em toda a<br />
minha longa carreira.<br />
Não consegui negar o pedido<br />
<strong>de</strong> Curitiba, on<strong>de</strong> jamais vivi e tenho<br />
alguns dos melhores amigos<br />
que fiz na vida. Por uma posição<br />
ética profissional procuro não me<br />
tornar íntimo dos atores da vida<br />
pública. Quero a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> criticá-los.<br />
Mas me juntei aos <strong>de</strong><br />
Curitiba como amigo e parceiro.<br />
Ney Braga que respeitava pela<br />
integrida<strong>de</strong> e modéstia, infelizmente<br />
não chegou à Presidência<br />
da República on<strong>de</strong> seria sem dú-<br />
<strong>Visão</strong> <strong>Judaica</strong> - <strong>março</strong> <strong>de</strong> <strong>2002</strong> <strong>Nissan</strong>/<strong>Iyar</strong> <strong>5762</strong><br />
Da vida, dos gostos<br />
e o pedido <strong>de</strong> Curitiba<br />
vida alguma, dos maiores da história<br />
brasileira. Ele me chamava<br />
<strong>de</strong> “meu filho”, e mesmo <strong>de</strong> Israel,<br />
ele já aposentado, nos falávamos.<br />
Karlos Rischbieter, Saul Raiz, Alexandre<br />
Fontana Beltrão, Jayme<br />
Canet, Leônidas Lopes Bório,<br />
Maurício Schulman e há outros.<br />
Com o Jaime Lerner, no IPPUC,<br />
trabalhou meu filho único, Iossef,<br />
que tanto apren<strong>de</strong>u com a incrível<br />
criativida<strong>de</strong> do governador. Ele<br />
é hoje diretor <strong>de</strong> um Talmud Torá<br />
em Israel. Como profissional e ser<br />
humano me orgulho e me envai<strong>de</strong>ço<br />
<strong>de</strong> ser parte <strong>de</strong>ste grupo. As<br />
contribuições <strong>de</strong>les ao Estado e<br />
ao País são incomparáveis. Eles<br />
souberam dar <strong>de</strong> seus conhecimentos<br />
com amor ao muito que<br />
criaram. Gente limpa.<br />
Começo <strong>de</strong> publicação é sempre<br />
uma gran<strong>de</strong> angústia que sofri<br />
várias vezes. O que se imagina<br />
não se realiza no papel. Nunca se<br />
chega aon<strong>de</strong> se quer chegar. Jornalismo,<br />
no entanto, é, hoje, mais<br />
essencial à vida social do que jamais<br />
foi. A era da Informação tornou<br />
o mundo mais complexo e<br />
aumentou os <strong>de</strong>sentendimentos.<br />
Poucos têm acesso intelectual ao<br />
que se abre para eles na Net.com.<br />
A escola se atrasa em relação aos<br />
avanços. Num certo sentido, imagino<br />
que acontece com o homem<br />
confusão semelhante à provocada<br />
pelo patriarca Abrahão. Antes,<br />
todos tinham <strong>de</strong>uses visíveis. Um<br />
<strong>de</strong>us para cada fenômeno. Simplificava<br />
a relação do ser humano<br />
com o <strong>de</strong>sconhecido. É incompreensível.<br />
Ai chega um velho <strong>de</strong> Ur,<br />
na Caldéia, e diz que só existe<br />
Um, invisível, incompreensível,<br />
inatingível, o que os sábios ju<strong>de</strong>us<br />
viriam a qualificar <strong>de</strong> Einsof, sem<br />
fim. Ele <strong>de</strong>ve ter provocado fortíssima<br />
reação negativa, <strong>de</strong> raiva<br />
mesmo. A UNIDADE é a complexida<strong>de</strong><br />
abrangida e compreendida<br />
numa combinação em que tudo se<br />
sintetiza e as partes <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser<br />
visíveis, mas lá estão. A física viria<br />
comprová-lo. Mas não se chegou<br />
à fórmula matemática alguma<br />
para a Unida<strong>de</strong> proclamada pelo<br />
velho Abrahão. Há muito que tenho<br />
a tese <strong>de</strong> que é duro ser ju<strong>de</strong>u<br />
por causa <strong>de</strong> Avrahaam Avinu.<br />
Ele foi o começo do anti-semitismo.<br />
É um tanto menos perigoso<br />
agora. Com o Estado <strong>de</strong> Israel<br />
o ju<strong>de</strong>u conquistou sua liberda<strong>de</strong>.<br />
Ele po<strong>de</strong> ser ju<strong>de</strong>u sem ser<br />
israelense. E, na hora da necessida<strong>de</strong>,<br />
reclamar seu direito <strong>de</strong><br />
retorno e passar a israelense. Aliás,<br />
sou <strong>de</strong> família que sempre é o que<br />
é. E <strong>de</strong>la me orgulho também pelos<br />
seus sucessos e comportamento.<br />
Somos ju<strong>de</strong>us assumidos.<br />
Na verda<strong>de</strong>, em matéria <strong>de</strong> religião<br />
sou um ignorante, o que não<br />
muda minha qualida<strong>de</strong> essencial. É<br />
sempre um esforço, muito gran<strong>de</strong><br />
esquecê-lo na hora <strong>de</strong> escrever.<br />
Sou contratado para analisar<br />
uma situação e não para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<br />
posições. E a questão israelense-palestina<br />
é extremamente<br />
complexa. Ä distância, sem conhecer<br />
as histórias <strong>de</strong>sses povos<br />
e da região, ten<strong>de</strong>-se a vê-la como<br />
uma disputa <strong>de</strong> terra, na qual os<br />
pobres palestinos, econômica e<br />
militarmente inferiorizados, merecem<br />
e conquistam as simpatia do<br />
mundo. Se fosse assim teria solução.<br />
Nenhum dos lados consegue<br />
vencer com armas. Haveria<br />
<strong>de</strong> surgir lí<strong>de</strong>res que enten<strong>de</strong>riam<br />
o impasse e chegariam a um entendimento.<br />
A terra é o menor dos<br />
problemas. O conflito é étnico e<br />
religioso, é entre o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> mitos<br />
profundamente enraizados. Há<br />
inúmeros conflitos religiosos em<br />
todos os países islâmicos o que<br />
pouco se comenta. Em todos eles<br />
há o choque entre os mo<strong>de</strong>rnizadores<br />
e tradicionalistas. Os extremistas<br />
querem po<strong>de</strong>r para impor<br />
a lei canônica, a lei do Corão,<br />
querem ser os presi<strong>de</strong>ntes ou<br />
emires ou califas.<br />
Todos os países islâmicos<br />
com governos seculares sofrem<br />
<strong>de</strong> “jihads”, guerras santas. Os extremistas<br />
são sempre duramente<br />
punidos. O pai do atual presi<strong>de</strong>nte<br />
Assad, da Síria, Hafez, alawita,<br />
seita minoritária que nem todos<br />
os maometanos aceitam<br />
como parte do Islã, ameaçado e<br />
<strong>de</strong>safiado massacrou milhares <strong>de</strong><br />
xiitas em Holms. No Líbano, o conflito<br />
entre maronitas cristãos e xiitas<br />
é permanente. Eles já se enfrentaram,<br />
numa guerra civil <strong>de</strong> 20<br />
anos. Os wahabitas fundamentalistas<br />
da Arábia Saudita, dos quais<br />
Bin La<strong>de</strong>n foi ou é um <strong>de</strong>les, são<br />
uma ameaça permanente. Os chechenos<br />
na Rússia não aceitam as<br />
leis <strong>de</strong> Moscou. A lista é longa,<br />
mas a luta <strong>de</strong> vida ou morte contra<br />
os não-maometanos no Islã,<br />
seculares ou praticantes, tem o<br />
mesmo sonho <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> Ará-<br />
bia sem países não-islâmicos, interrompendo<br />
a sua continuida<strong>de</strong>.<br />
Arafat, o palestino, quer o domínio<br />
dos lugares santos maometanos<br />
e cristãos. Ele assumiu a <strong>de</strong>fesa<br />
dos lugares santos cristãos<br />
sem a aprovação do Vaticano. Na<br />
área coberta por Israel existem<br />
incontáveis lugares santos cristãos,<br />
da fronteira com o Líbano ao<br />
Mar Vermelho. Ele praticamente<br />
anuncia que quer a sua ban<strong>de</strong>ira em<br />
Nazaré, no mar da Galiléia, em Jerusalém<br />
e assim por diante. É esta<br />
a verda<strong>de</strong>ira questão relevante. E<br />
sem que Israel <strong>de</strong>sista pelo menos<br />
das áreas conquistadas em 1967 e<br />
todos os lugares santos maometanos<br />
o entendimento é irrealizável.<br />
A diferença está em que o<br />
mundo islâmico po<strong>de</strong> esperar.<br />
Dentro da área israelense-palestina<br />
há a bomba <strong>de</strong>mográfica, a<br />
barriga da mulher árabe que assegura<br />
maioria árabe <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />
poucas décadas. Os paises árabes<br />
ao redor progri<strong>de</strong>m econômica,<br />
científica e militarmente. Arrasar<br />
o estado ju<strong>de</strong>u está nos seus<br />
planos. Israel tem <strong>de</strong> tentar um<br />
entendimento com os palestinos<br />
como possível abertura para uma<br />
aceitação pelo mundo árabe e islâmico.<br />
Arafat envelhece e não<br />
po<strong>de</strong> esperar muito. Os palestinos<br />
atravessaram 500 anos <strong>de</strong> domínio<br />
otomano. Po<strong>de</strong>m aceitar uma<br />
solução intermediária e esperar<br />
pela <strong>de</strong>finitiva.<br />
Israel abriu para os ju<strong>de</strong>us a<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>, no prazo, serem<br />
encarados como são os italianos<br />
ou os libaneses: brasileiros para<br />
todos os efeitos. Mas na minha<br />
vivência, isto só acontecerá se<br />
assumirem suas origens e fé com<br />
naturalida<strong>de</strong>. Serem brasileiros e<br />
ju<strong>de</strong>us, no que não há contradição.<br />
Como brasileiros, assumirem<br />
plenamente suas responsabilida<strong>de</strong>s<br />
sociais do que o Jaime Lerner<br />
é um exemplo. E serem ju<strong>de</strong>us assumidos,<br />
cônscios <strong>de</strong> sua cultura<br />
e passado histórico. Aquele que se<br />
envergonha do que é se <strong>de</strong>smoraliza<br />
equivale muito <strong>de</strong> perto ao <strong>de</strong>lator<br />
que se usa e se <strong>de</strong>spreza.<br />
O jornal <strong>de</strong> vocês po<strong>de</strong> ser<br />
uma abertura para os ju<strong>de</strong>us do<br />
Paraná e, eventualmente, do Brasil.<br />
Em poucos anos Curitiba se<br />
transformou num centro cultural<br />
exemplar. Na sua cida<strong>de</strong> se faz<br />
muito bem o que se <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> fazer.<br />
Kadima. Pra frente.<br />
17<br />
* Nahum Sirotsky é<br />
jornalista,<br />
correspon<strong>de</strong>nte da<br />
RBS em Israel e<br />
colunista do Último<br />
Segundo/IG.