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O ESTRANHO - Charles Guimarães Filho

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O <strong>ESTRANHO</strong><br />

<strong>Charles</strong> <strong>Guimarães</strong> <strong>Filho</strong><br />

Rio de Janeiro, dezembro de 2009.


Numa experiência de imaginação do inconsciente<br />

ou de uma expansão da consciência durante um<br />

período de sono alguém é considerado ...<br />

3


DO LADO INICIAL<br />

5


O ET<br />

Num ambiente outrora por demais conhecido de um ser, lá estava<br />

ele mergulhado nas lembranças vividas diante de uma platéia<br />

boiando nos esquecimentos a ponto de o estarem considerando<br />

um extraterrestre. O que se há de fazer a não ser, nada a<br />

vontade, caminhar rapidamente pelas recordações e lentamente<br />

sob a observação intranqüila dos demais que se indagam: “O<br />

que irá acontecer?” E o próprio espionado também tem a mesma<br />

“pergunta” inquietadora.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando temeroso): O que irá acontecer!<br />

(continuando a pensar): Dizem que de perto ninguém é normal.<br />

Eu, por exemplo, comprovo essa teoria desde pequeno. Quem me<br />

conheceu durante a infância sabe que eu era uma criança<br />

estranha, bastante estranha, estranhíssima até. Afinal eu troquei a<br />

alimentação com leite da mãe para a dieta vegetariana da<br />

natureza. Vivia sempre rindo com polegar para cima sem nunca<br />

reclamar, chorar e dizer não. Passava horas sem querer brincar<br />

apenas pensando. A primeira língua que falei foi o esperanto.<br />

Corria para debaixo da cama ou me escondia dentro do armário<br />

quando começavam a tocar rock’n roll de qualquer espécie quer<br />

seja maçante pauleira ou excitante sem pau ou palito. Isso sem<br />

mencionar a aprendizagem precoce das três coisas imutáveis no<br />

ser humano: a de que ninguém lhe pergunta nada por não ter<br />

nenhum interesse no que você pensa, diz, escreve ou faz, a não<br />

ser que venha a ser incomodado no que ele mais preza que é a sua<br />

inércia; a de que ninguém que vem em sua direção sai da frente<br />

para lhe dar passagem; a de que ninguém é culpado de nada, a<br />

menos que o outro o considere uma pobre vítima.<br />

Descuidando-se um pouco com sua imaginação, o ser olha para<br />

aqueles freqüentes que fingem como ordinários que são não<br />

estarem lhe vendo, que equivale, sem exceção, as pessoas ali<br />

existentes. O que é uma coisa bem banal, nada de extraordinário,<br />

7


nem de irregular e destoante, para um público vulgar, ou seja,<br />

um procedimento muito comum.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando com preocupação): Eu hein! Nesse<br />

momento tão solene e especial e eu aqui absorvido a me lembrar<br />

que estranho é algo que sempre me qualificaram em todas as<br />

idades. Mas, alto lá, espera aí ... me considerarem um ET, isso é<br />

um pouco demais, não? Ou melhor, é um enorme exagero.<br />

Passa uma das mãos pelo cabelo grisalho como se, não<br />

conseguindo se concentrar no que iria acontecer ali no presente,<br />

estivesse sim dando asas as suas recordações.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (recordando): Isso tudo começou logo na primeira<br />

idade – infância - já muito curioso, olhava atentamente todos os<br />

dias para o céu do ângulo da minha casa num subúrbio carioca,<br />

de modo resoluto no absoluto, eu o imaginava para além daquela<br />

imensidão de estrelas como um soberano, puro, único, eterno,<br />

incondicional e completo, e assim ia me credenciando, sem notar,<br />

sem querer, sem desejar, à anormalidade, a ser um retirante deste<br />

mundo material. E por que desse credenciamento? Como ele se<br />

deu? E logo comigo que havia, desde cedo, aprendido a trilogia<br />

da imutabilidade humana? Que era um respeitador deste modo de<br />

vida alheia tão imperante e inoperante corporal, emocional e<br />

mental?<br />

Pondo-se a refletir, rapidamente lhe vem a resposta.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (continuando a pensar): É que inocentemente,<br />

mesmo que solitariamente sem nenhuma idéia de polemizar,<br />

examinava em alto e bom som o que havia suposto sobre o<br />

absoluto por argumentos com fim de alcançar a verdade ou<br />

elucidar dificuldades. Desse vacilo fui julgado um pancada por<br />

querer discutir o indiscutível, e assim surgiram três posições<br />

terapêuticas entre os familiares, vizinhos e ex-presidiários:<br />

primeira, queriam que eu fosse tratado com choque em hospício;<br />

segunda, com passes em terreiros de macumba; terceira posição,<br />

8


que eu fosse dar beliscões nas nádegas dos garotos maiores do<br />

outro bairro. Por sorte, desenvolvi criança, caboclo e preto-velho,<br />

ficando bons anos naquela religião brasileira que sincretiza<br />

catolicismo, espiritismo e seitas afro-brasileiras.<br />

Seu rosto esboça um sorriso.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (continuando): Quando jovem e estudante, já<br />

muito esforçado, observava todas as aulas da minha escola numa<br />

sub-cidade ou eventual periferia urbana, atendo-me de maneira<br />

determinada a ser expulso de todos os colégios como protesto<br />

pela baixíssima qualidade de ensino. Também pudera, aquelas<br />

lições!<br />

Rindo.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (continuando): Na segunda idade – maturidade –<br />

quando adulto e profissional, já pesquisador e professor<br />

acadêmico e militante político, comprovava todas as alienações e<br />

omissões do meu trabalho, do meu povo e do meu país, levandome<br />

a ser um perdedor de empregos, status, convívios e<br />

serenidades.<br />

Seus olhos agora consentem algumas lágrimas.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (continuando): Na terceira idade – velhice –<br />

quando idoso e ultra-religioso, já com muitíssimo espírito de<br />

busca, percebi da minha consciência ter estado numa aventura<br />

existencial de resultado incerto, encaminhando-me a ser um<br />

involucionista reacionário, e não um progressista revolucionário.<br />

Sua face impõe uma contração.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (continuando): E agora! O que tenho é verdadeiro,<br />

mas o que eu sou é falso. Como fazer?<br />

9


Para resolver esta questão, seu espírito se sente na obrigação de<br />

relembrar como tudo começou em plena maturidade, no auge da<br />

fama.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (continuando): Ah! Há vinte anos atrás, eu saia<br />

pelas portas desse parlamento suéco com corpo todo flácido, com<br />

uma cor de cera bem branca e postura para lá de fora do prumo,<br />

entretanto, por outro lado, muito bem barbeado, vestido com<br />

roupas novas, caras e elegantes, sendo cumprimentado sem parar,<br />

aplaudido, dando autógrafo, tudo isso com um sorriso preso numa<br />

sem gracisse devidamente incomodado.<br />

Lembro perfeitamente de quando consigo me desvencilar daquela<br />

multidão entrando num automóvel de fazer inveja a qualquer<br />

milionário, com chofer e tudo, sou recebido no seu interior,<br />

inesperadamente, por ela ... ela, a minha ... a minha amante. Finjo<br />

alegria com aquela surpresa. Só que o carro anda e ela corre com<br />

muito mais velocidade na sua fala. O tempo passa e a minha<br />

outrora paixão não pára nem por um segundo. Nesse instante<br />

confesso de ter tido saudades de minha esposa atual e talvez até<br />

de minhas ex-esposas.<br />

Porém, por incrível que pareça, naquele dia, um grande<br />

congestionamento de automóveis se faz presente naquele país<br />

com tanta intensidade a ponto de me lembrar das stresses e<br />

amolações com as prisões constantes pelas vias da minha pátria.<br />

Era a gota d’água que faltava, não suportava voltar para aquelas<br />

ruas engarrafadas, daquela esposa limitada, nem ficar nesta nação<br />

com essa concubina a tagarelar. Como tudo estava bloqueado<br />

mesmo, então, como um gentleman, pedi educadamente<br />

permissão aquela ao meu lado que cederia aos meus impulsos e<br />

iria comprar um ramalhete de flores e um anel de brilhantes para<br />

ela. Avisei apenas pró forma ao motorista que me aguardasse, o<br />

que era algo inevitável diante daquela retenção.<br />

Sorrindo fui, fui andando, fui me distanciando, fui desaparecendo<br />

e nunca mais apareci, para aquela amante, para aquele carro, para<br />

aquele motorista, para aquele país, todavia, contudo, no entanto,<br />

... retornei ao ...<br />

10


Quando se ouve naquela platéia uma voz interpelativa.<br />

VOZ EM ESPERANTO (indagando): Se o estranho que<br />

julgamos ser um ET, por acaso, me entende ou sabe falar uma<br />

língua entre as mais faladas da atualidade daqui do planeta,<br />

gostaria de saber de que parte do espaço você vem?<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (respondendo em português): Brasil.<br />

A tradução simultânea é feita e o público fica abismado, não só<br />

porque ele entende e fala uma linguagem existente na Terra, mas<br />

principalmente de saber que ele veio daquela terrinha daquele<br />

povinho. Outro interpelante, só que desconfiado procura pô-lo<br />

em teste.<br />

VOZ EM INGLÊS: Nós cientistas não podemos nos curvar para<br />

qualquer experiênciazinha ou ensaiozinho. Prepare-se ô etezinho<br />

canarinho para ser sériamente sabatinado culturalmente.<br />

(toma folêgo e pausadamente): No ocidente se tem o sol poente,<br />

no oriente o sol nascente. No ocidente se tem a Europa e as<br />

Américas, no oriente a Ásia. No ocidente se tem ... se tem ...<br />

E com as mãos faz gesto de modo a indicar que ele prossiga. E a<br />

comunicação é perfeita com aquela tradução eficiente e<br />

simultânea.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (prosseguindo): ... se tem: América do Sul com o<br />

Brasil, 5º em população mundial e 8º no idioma empregado<br />

mundialmente, ou seja, o português; se tem América Central com<br />

o México, 11º em população e 6º com espanhol; América do<br />

Norte com Estados Unidos, 3º, 2º com inglês; Europa, com<br />

Rússia, 9º, 7º com russo; Europa Ocidental com França, 21º, 4º<br />

com francês.<br />

VOZ EM INGLÊS: No oriente se tem ... se tem ...<br />

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E aquelas mãos continua com aqueles mesmos gestos do “vá em<br />

frente”.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: No oriente: Médio com Irã, 19º, 13º, persa;<br />

Sudeste com Indonésia, 4º, 10º com indonésio; Sul com Índia, 2º,<br />

3º com hindi; Extremo com China, 1º, 1º com mandarim.<br />

E as mãos no prossiga.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (continuando): No ocidente a vestimenta para o<br />

luto é de cor preta, no oriente esta é branca. No ocidente se reza<br />

para o exterior, Deus se encontra nos céus, no oriente se reza para<br />

o interior, para despertar a divindade que existe em nós. No<br />

ocidente se escreve da esquerda para a direita, em muitos países<br />

do oriente a escritura é da direita para a esquerda. No ocidente a<br />

escritura forma palavra de modo letra por letra, no oriente se<br />

escreve palavra por palavra ou idéia por idéia. No ocidente as<br />

bandeiras são horizontais, já no oriente são verticais. No ocidente<br />

a roupa por muito tempo utilizada era a escura e opaca, no oriente<br />

era colorida e brilhante. As guloseimas das crianças do ocidente<br />

foram por muito tempo a base de sabores doces, no oriente os<br />

sabores são azedos, agridoces e ácidos. A alimentação ocidental é<br />

preferencialmente com base salina, a oriental é doce, amarga e<br />

ácida, inclusive na Índia se provam os sete sabores a cada dia da<br />

semana. No ocidente se corta a comida na mesa se utilizando<br />

facas, no oriente toda a comida já é cortada antecipada e<br />

adequadamente. A música culta do ocidente é suave, no oriente é<br />

estridente. No ocidente se dança com os pés e o corpo de maneira<br />

harmoniosa porém rígida, no oriente se dança com todo o corpo<br />

inclusive com os ombros, olhos, boca, batendo os pés e mãos<br />

como nas danças indianas e chinesas. O calendário ocidental é<br />

solar, já o chinês é lunar. O ano novo chinês é variável entre o<br />

fim de janeiro até meados de fevereiro, o ocidental é fixo, 1 de<br />

janeiro. A astrologia ocidental é mais celeste que terrestre<br />

baseando-se num zodíaco cósmico, a oriental é ao contrário,<br />

muito mais terrestre que celeste baseando-se nos animais da terra,<br />

como o feng shui. No ocidente a maior parte dos idiomas são<br />

12


linguagens onde a pronúncia se apóia com o uso da língua, no<br />

oriente são guturais com apoio da garganta e sons nasais. No<br />

ocidente a medicina é do tipo química, enquanto no oriente é<br />

energética tipo acupuntura.<br />

VOZ EM PORTUGUÊS (indagando): Como compatriota do<br />

estranho gostaria de saber se és um Silva.<br />

VOZ EM INDIANO: Shiva?!<br />

VOZ EM PORTUGUÊS (impaciente): Siiilllvaaa.<br />

VOZ EM INDIANO: Joga em que posição?<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (respondendo): Continuei o mesmo só que<br />

diferente em face, aspecto e lugar, e, por uns tempos, só que não<br />

cobrado e inalterado em lateral, banda e flanco.<br />

VOZ EM ESPERANTO: O ET brasileiro ...<br />

VOZ EM INGLÊS: ... isso está um pouco por demais<br />

complicado.<br />

VOZ EM PORTUGUÊS: Você sabe que para nós, não cobrado<br />

significa isento.<br />

VOZ EM INDIANO: Agora o restante não comprendi nada,<br />

acabei ficar sem saber o que você continuou sendo e de que lado<br />

você joga, poderia ser mais claro?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Ô brasileiro, logo de início também fui<br />

considerado um isento e aí ...<br />

Dando conta de começar assim ninguém iria lhe entender o que<br />

estava comunicando, se volta para um outro caminho.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Desculpem-me, é que assim não vai dar.<br />

13


(pausa e continua): Antes de responder necessito que os senhores<br />

escutem uma história, não de vinte anos passados quando tudo<br />

começou, mas sim uma de apenas a metade desse tempo, isto e´,<br />

a minha história de dez anos atrás que vou contar para saberem<br />

quem sou eu de fato. Permitam-me? Posso?<br />

A platéia já meia fofoqueira balança a cabeça em sinal de<br />

concordância.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (contando): A minha história tem dez personagens<br />

secundários que vivenciam por várias partes do mundo em países<br />

populosos e/ou cujos idiomas estão entre os mais falados, eles são<br />

contados de maneira humorada em diversos aspectos desde a<br />

economia no mato, a justiça na favela, a segurança na delegacia, a<br />

saúde no hospício, a educação na sarjeta, a guerra no campo de<br />

batalha, o lazer na casa de tolerância, a religião na árvore sagrada,<br />

a política no comício, a ideologia na nave numa viagem espacial,<br />

a ultra-religião num local sagrado e finalmente esta premiação<br />

alternativa neste parlamento suéco.<br />

O personagem principal ganha vários papéis dos personagens<br />

secundários como: selvagem, santo, traficante, maluco, mendigo,<br />

tããão esperado ansiosamente, gigolô, parturiente, candidato nerd,<br />

espião, convertido e seguidor. É ameaçado por algema, AR15,<br />

soco inglês, seringa, cassetete, punhal, pincel, livrinho vermelho<br />

de Mao Tse-tung, lixo espacial e voz do além. Mas, também, é<br />

ameaçador com inteligência, conhecimento, experiência e<br />

exposição de filosofias ocidental e oriental, chegando até a abalar<br />

os alicerces dos que adotam a cultura vigente. Por um lado, é um<br />

real embaraçado na fisionomia por se ver barbado, algemado,<br />

desdentado, cueiroado, marcado, herniado, chateado, pintado,<br />

engarrafado, acorrentado, espetado e destinado. Por outro lado,<br />

também, é um potencial colaborador na destruição e construção<br />

em prol da civilização.<br />

(pausa): Os personagens secundários apresentam deficiências<br />

físicas e psicológicas e tem papéis pertinentes aos aspectos<br />

mencionados como: auditor fiscal da receita federal, policial,<br />

gerente de tóxico, ajudante de ordem, delegado, escrivão, doutor,<br />

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enfermeira, professor, senador, comandante de tropa, ladrão,<br />

mulher da vida, segurança e astronauta.<br />

VOZ EM FRANCÊS: Esse personagem principal ao ganhar<br />

esses papéis tão variados por atores tão diversos, certamente ele<br />

manifestou sua essência que é singular de forma múltipla, não?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Certamente que sim. A essência estranha foi até<br />

profetizada em termos de isento, desligado, suspeito, arredio,<br />

destituído, malfeito, estrangeiro, peregrino, bizarro, desconhecido<br />

e hoje um ponto de interrogação que eu explicitaria por diferente.<br />

VOZ EM ÁRABE: Eu notei que o estranho está sem aparelho no<br />

ouvido e está entendendo em todas essas linguas. O ET é um<br />

poliglota?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Das quinze linguas mais faladas no mundo só não<br />

falo uma delas.<br />

VOZ EM ESPANHOL: Que pasa?<br />

Ao ouvir essa língua, curioso, ele pega rapidamente o aparelho<br />

para saber o que se está dizendo. Logo, traduzido, logo<br />

entendendo.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: É espanhol! Desculpa-me mas é essa exatamente a<br />

que não falo.<br />

Risos.<br />

VOZ EM MANDARINO: Existe resposta ainda não dada.<br />

Favor, responder a pergunta do indiano, qual seja: “O que<br />

continuou sendo e de que lado você joga?”<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Tem razão.<br />

(respondendo): A resposta é que continuei sendo o estranho, só<br />

que inicialmente considerado ...<br />

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DO LADO OCIDENTAL<br />

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O ISENTO<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: A partir de agora eu vou contar a minha história,<br />

só que depois que dez anos se passaram quando sorrindo eu fui e<br />

nunca mais voltei para aquela amante, para aquele carro, para<br />

aquele motorista, para aquele país, todavia, contudo, no entanto,<br />

retornei ao Brasil.<br />

Ele pára insatisfeito.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: De antemão, gostaria de deixar bem claro que eu<br />

vou contá-la não com o meu primeiro eu, o sujeito da ação, mas<br />

sim com o meu segundo eu, não tanto como sujeito da reflexão,<br />

mas sim como o relator da observação. Assim espero e peço<br />

compreensão por essa tentativa. Sem mais delongas, vamos lá ...<br />

Há dez anos atrás, num pedaço da selva amazônica, num MATO<br />

caminham atentamente dois homens por entre árvores silvestres<br />

que só visualizam duas coisas: o ermo sombrio e o acompanhado<br />

pelo parâmetro da ECONOMIA. Um deles, estranhamente, de<br />

terno e o outro, fardado, que se chamam respectivamente e<br />

respeitosamente por DOUTOR AUDITOR FISCAL e CANA-<br />

DURA. Ao adentrarem cada vez mais na floresta o exclusivo fato<br />

visível é que eles se tornam cada vez menos vigorosos. Quando<br />

as pernas dos exaustos davam indícios de que iriam parar, seus<br />

olhos sinalizam abismados com um abismo que deparam.<br />

Precipitados pelo precipício de onde avistam um lindo<br />

descampado e nele uma enigmática sombra logo fugaz porque se<br />

vê de imediato tratar apenas de uma palhoça. O paisano ajeita<br />

aquele seu traje civil, quando olha para o militar nota que este o<br />

está observando com grande satisfação.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (sorrindo): Enfim o<br />

encontramos.<br />

19


Só que concomitantemente eles escutam um urrar, e como num<br />

filme de terror, olham apreensivamente em busca e se deparam<br />

com uma onça aparentemente farta e feroz. O doutor tira os<br />

sapatos e o outro tira uma dúvida.<br />

CANA-DURA (com muito medo): Com todo respeito e<br />

obediência que eu lhe devo, mas, o doutor auditor fiscal acha que<br />

adianta tirar os sapatos? Por acaso, vai correr mais rápido do que<br />

essa bichona!<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Eu não quero correr mais do<br />

que a onça. Quero apenas correr mais rápido do que você!<br />

Dito isto, ambos revigorados por aquela descoberta põem-se a<br />

descer apressadamente aquele despenhadeiro. Na frente,<br />

precipício abaixo, o descalço, logo atrás, desesperado, o<br />

incomodado calçado. Nos últimos instantes do declive saltitando<br />

por uma rocha extensa se iniciam num energético desejo de<br />

correrem até aquela casa coberta de palha, possivelmente<br />

motivado por aquela personal training que está as suas costas. À<br />

medida que vão se aproximando percebem a não onça e o quanto<br />

é miserável a casa e mais chocante do que isso para os seus<br />

intentos: ela parece vazia. O policial pára, ao olhar para trás,<br />

não se aperta e vai tirando seu quepe da cabeça, desabotoando o<br />

colarinho, afrouxando o cinto, mostrando todo o seu<br />

contentamento em não ser devorado e, ao mesmo tempo, todo seu<br />

possível desapontamento.<br />

CANA-DURA (suspirando): Será doutor auditor fiscal, que esse<br />

sacrifício de descobrir isso aqui tão distante, com onça e tudo, foi<br />

tudo a toa?<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (também consolado e<br />

desolado): É Cana-Dura, a vida nos reserva esses encontros com<br />

a solidão e susto, mas não com o solitário procurado. E nesses<br />

instantes, só resta aos exemplares executores da lei entrar neste<br />

casebre minúsculo e arruinado para cumprir com dignidade pela<br />

20


metade a missão outorgada. Nada mais tendo a declarar e a<br />

lamentar.<br />

CANA-DURA (querendo imitar, inicia um discurso): E eu como<br />

um bom Cana-Dura ...<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (cortando): Que Cana-Dura<br />

nada, vamos lá seu Guarda-Mole, o que está esperando, põe logo<br />

essa fuça para dentro dessa coisa.<br />

O policial, embora chateado por essa quebra no seu discurso e<br />

principalmente por todo aquele aparente esforço em vão, mas, de<br />

forma obedecida e determinada, põe o rosto para dentro da<br />

maloca, mas só que, imediatamente o devolve assustado para o<br />

exterior. Ameaça sacar o revolver o que é contido pelo coletor.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (temeroso): O que vimos aí<br />

dentro? Um animal carniceiro?<br />

CANA-DURA (ofegante): Pelo contrário, eu vi a presa dele.<br />

DOUTOR AUDITOR FINAL (intrigado): Como assim? Quem<br />

é o comestível?<br />

CANA-DURA (com água na boca): O contribuinte.<br />

DOUTOR AUDITOR FINAL: Você não perde esse costume<br />

mesmo, hein, de ser canibal. Lembra que você já perdeu até<br />

pontos para a promoção por causa daquele dedinho mindinho<br />

daquele gordo.<br />

CANA-DURA (salivando): Eu sei que o doutor auditor fiscal é<br />

vegetariano, mas, valeu a pena ter perdido os pontos, pois, era um<br />

petisco humano imperdível.<br />

O doutor abre um escancarado sorriso porque agora é a sua vez<br />

de adentrar sua face, só que ela com olhos alegres e curiosos. Ao<br />

21


fazê-lo se defronta com uma fronte aparentemente solitária num<br />

visível corpo asseado, musculado, corado, alinhado, porém ultra<br />

barbado, inserido em vestuários finos bem desgastados. Fixando<br />

mais os olhos ele observa que o <strong>ESTRANHO</strong> está em meditação.<br />

Como não cabem dois corpos naquele pardieiro, ele sai<br />

demoradamente do interior por estar arquitetando a atitude que<br />

deveria ser tomada. Posto de fora ela já estava em sua boca, ou<br />

melhor, iria estar na boca do policial antropófago.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (ordenando): Cana-Dura dá um<br />

sacode neste orante psíquico que habita este orate.<br />

CANA-DURA (desapontado, sem entender): Só um sacode!<br />

Orate?<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (impaciente): É Orate ... o<br />

mesmo que casa de maluco.<br />

Vendo o esforço de compreensão que o seu serviçal estava<br />

fazendo, procura esmiuçar sua ordem.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Traduzindo: traga o demente<br />

que está fazendo oração de mente neste hospício.<br />

Prontamente, um braço uniformizado leva a mão na direção do<br />

qualificado doido e o puxa para fora. Este atirado ao chão<br />

desperta da contemplação e que, por incrível, sem se abalar, não<br />

perde a paz por nenhum segundo. Ele volta a meditar. Só que ...<br />

CANA-DURA (babando): Que presuntão!<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (pisca o olho para o policial e<br />

dirige sua visão para aquele decaído): Já acabou de curtir seu<br />

matutar nesse vazio?<br />

22


O silêncio como resposta, para eles, é algo desrespeitoso e<br />

inimizante. O militar inconformado cutuca com a perna o corpo<br />

do eremita.<br />

CANA-DURA (chamando a atenção do solitário, salivando): Ô<br />

contribuinte gostoso deixe de ser impróprio, não vê que o doutor<br />

auditor fiscal está generosamente lhe fazendo uma pergunta?<br />

O que está no chão vagarosamente se senta no solo e fica com<br />

seu olhar distante para algum ponto para fora de si ou quem<br />

sabe apenas concentrado para dentro. O doutor que a tudo<br />

observa sem tirar o foco do estranho, tira uma folha de rúcula do<br />

bolso que a leva na boca com grande satisfação, volta a<br />

interpelá-lo.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (procurando ser formal e<br />

objetivo): Cumpro-lhe informar que a Receita Federal recebeu<br />

uma informação que havia alguém que morava neste cafundó do<br />

Judas e como não podia deixar de ser o Leão não podia ficar<br />

omisso em suas responsabilidades e nos incumbiu da digníssima<br />

tarefa de investigar. Por isso, eu ...<br />

Notando que aquele para quem dirigia a palavra não o escutava,<br />

estufa o peito, encolhe a barriga e solta a voz com toda<br />

imponência.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: ... eu, na qualidade de coletor<br />

da união, na forma da lei, exigimos saber se o senhor declara<br />

imposto de renda. Sim ou não?<br />

Após esta interrogação, as únicas coisas que se escutam são o<br />

zumbires das abelhas, o zunirem das cigarras, o tritilares dos<br />

grilos e o piar dos pardais.<br />

CANA-DURA (ameaçando): Ô sonegador, deixa de fingimento.<br />

Esperteza só para os apadrinhados dos poderes, só para aqueles<br />

filhos da ...<br />

23


DOUTOR AUDITOR FISCAL (interrompendo, muito<br />

nervoso): Ô cana cuidado! Todos esses apadrinhados e afilhados<br />

da ... eles sempre têm umas escutas para nos incriminar, uns<br />

hábeas corpus que lhes permitem não responder coisa nenhuma.<br />

Para a nossa segurança, vê se ele não tem algum.<br />

Como todo bom policial bronco, ele nada escuta e continua.<br />

CANA-DURA (ameaçando mais fortemente): Cadê o seu CPF?<br />

Diga o seu número, seu nome, antes que eu lhe ponha no<br />

caldeirão ou no espeto.<br />

Aquele prenúncio de desgraça em nada parecia mudar aquele<br />

ambiente bucólico a não ser as vozes dos animais, pois agora é o<br />

taramelar das araras, o bigomear das arapongas, o cantar dos<br />

bem-te-vi. No entanto, alguém naquele cenário campestre se<br />

transformaria.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (procurando acalmar):<br />

Paciência Cana-Dura, desconfie que nós estejamos diante de um<br />

completo abobalhado. Sendo verdade, não adianta rugir, urrar,<br />

bramir.<br />

CANA-DURA (inconformado): Puxa doutor o senhor nem<br />

parece judeu, já pensou se todos os bobos aqui no Brasil não<br />

pagassem imposto? Fatalmente, seríamos o país mais pobre da<br />

face da Terra.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (procurando se justificar): É<br />

que eu sou um judeu raro.<br />

CANA-DURA: Como assim doutor auditor fiscal?<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Muito distinto mesmo,<br />

chegando a ser muito desigual. Só para lhe dar uma idéia, veja<br />

como é a educação na nossa família.<br />

24


Um dia eu perguntei para o Jacózinho: “Quanto tempo está<br />

chupando esse pirulito?”. Ele me respondeu: “Duas horas, babai”.<br />

Aí eu disse: “Então, já pode tirar o papel.”.<br />

CANA-DURA: Puxa o senhor tem razão mesmo, é bem fora do<br />

comum. Eu que sou um teso dou presente de casamento,<br />

nascimento, aniversário, natal, páscoa, dia das mães, dos pais, dos<br />

padrastos, das amantes, do são nunca, falecimento, enfim, mas o<br />

que conta é o doutor auditor fiscal. Com esposa também é muito<br />

dessemelhante?<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: E como! Certa vez, Sara<br />

virando-se para mim, de olhos fechados, falou gemendo: “Põe,<br />

põe Isaac, põe ... põe tudo. Põe tudo no meu nome.”<br />

CANA-DURA: Puxa que relação quente! Que afetividade!<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Até relação com vizinho<br />

também é incomum e diverso.<br />

Um dia um vizinho paulista me contou: “Meu! Corre na sua casa<br />

que sua mulher tá te traindo com um amigo seu”. Saí correndo<br />

desesperado com três oitão na mão. Quando eu vi o que vi, fiquei<br />

fulo de raiva e voltei para o que me havia contado, dei-lhe uma<br />

bronca daquelas: “Mas você é um mentiroso, hein? Que amigo o<br />

quê, eu nem conheço o cara!”<br />

O coletor vegetariano ao acabar de contar desaba chorando de<br />

dor sob o espanto e solidariedade daquele apreciador de carne<br />

humana. Mas, se recupera num segundo para não gastar<br />

lágrimas e nem o tempo de contar um caso.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (continuando): Mais tarde,<br />

quando eu contei para aquele vizinho paulista: “Minha mulher<br />

fugiu com meu melhor amigo”. Ele todo abismado e curioso me<br />

indagou: “É mesmo? E quem é ele?”. Respondi prontamente:<br />

“Quem é ele eu não sei, só sei que agora é o meu melhor amigo”.<br />

(indagando): Como você é com a sua esposa?<br />

25


CANA-DURA: Eu não sou ... eu serei ...<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (cortando): Eu quero saber<br />

como você é e não como você não é ou como será. Isso não é<br />

uma questão de sou e não sou, entendeu?<br />

CANA-DURA: Eu sou solteiro e vou casar.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Então quem manda atualmente<br />

em você?<br />

CANA-DURA: O senhor é claro.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (sem dar bola para aquela<br />

resposta): Você sempre teve essa profissão?<br />

CANA-DURA: Eu fui guarda rodoviário por um dia, ou melhor,<br />

por uma noite.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Apenas por doze horas! Por<br />

quê?<br />

CANA-DURA: Por quê?! O senhor vai me dar razão. Ao pegar<br />

um plantão numa madrugada fria, sem uma viva alma, quando fiz<br />

parar um carro que vinha a toda velocidade pela estrada, com um<br />

sujeito totalmente embriagado sentado no banco do carona e ...<br />

pasme doutor auditor fiscal: um cachorro dirigindo! Cheguei todo<br />

bronqueado e disse: “O senhor é doido! Como que deixa o<br />

cachorro dirigir o carro?” Ele me respondeu: “Calma, seu guarda,<br />

eu não tenho nada a ver com isso, só tô pegando um carona ...”<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Mas, só por causa disso, largou<br />

aquele grande negócio de pedágio informal.<br />

CANA-DURA: Só é grande negócio para quem é desonesto, eu<br />

...<br />

26


DOUTOR AUDITOR FISCAL: ... por favor não pronuncie essa<br />

palavra perto de mim, eu tenho alergia. Olha só como o meu<br />

braço vai ficando todo empolado?<br />

(pausa): Mas, foi só por causa daquilo ou não?<br />

CANA-DURA: Não, não foi só por causa daquilo não.<br />

Aconteceram várias coisas que não tenho nem coragem de contar.<br />

A gota d’água foi o telefonema do meu chefe fanho que, diga-se<br />

de passagem, estava ausente do serrviiiçoooo, ligou lá para nós,<br />

eu atendo e ele perguntou: “Ãdifinha quem tá falando?”.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Inacreditável! Entretanto, ... e<br />

o negócio?<br />

CANA-DURA (não querendo aquele tipo de conversa, muda a<br />

prosa): O doutor sempre teve essa profissão?<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Eu fui repórter por uma<br />

manhã.<br />

CANA-DURA: Por uma manhã! Apenas por quatro horas, por<br />

quê?<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Porque fui despedido logo<br />

após a minha primeira matéria.<br />

CANA-DURA: Que matéria fatal e fulminante foi essa?<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Foi sobre o que ocorreu com o<br />

meu amigo Moisés.<br />

(citando a matéria): “Pelos elementos averiguados, conclui-se<br />

que o assassino matou para roubar. A vítima Moisés, no entanto,<br />

felizmente havia, na véspera, depositado todo o seu dinheiro no<br />

banco. Desse modo, não perdeu nada, exceto a vida.”<br />

CANA-DURA: Caramba, o que é isso!<br />

27


DOUTOR AUDITOR FISCAL: Isso é para você ver como o<br />

mundo é injusto, esse que nós vivemos. Isso é perseguição.<br />

(ataque de sentimento de culpa): Mas, vamos deixar de papo,<br />

vamos para o serrviiiçoooo. De que estávamos falando mesmo a<br />

respeito daquele ali?<br />

CANA-DURA: Sabe doutor auditor fiscal, eu andei pensando ...<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (interrompendo): Calma, meu<br />

soldado, uma coisa de cada vez. Primeiro, não ande.<br />

CANA-DURA: Mas, eu já estou parado.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Então está em segurança, então<br />

prossiga com o que está pensando.<br />

CANA-DURA: O selvagem gostoso não é uma pessoa física?<br />

Então, tem que contribuir. Assim como, ele mora nesse cômodo<br />

singular tem que pagar o IPTU.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (interrompe): Calma lá, daqui a<br />

pouco você vai querer que ele pague IPVA, ICMS, PIS, IE,<br />

ISSQN, ISPN.<br />

CANA-DURA (abismado): Tem tudo isso! Eu só conheço IPVA,<br />

ICMS e PIS, o que são os outros? Afinal eu também quero pagar<br />

por estes desconhecidos.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (admirado ele pensa): Que cara<br />

mão-aberta é esse aí.<br />

(respondendo): IE quer dizer Imposto de Exportação; ISSQN,<br />

Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza; ISPN, Imposto<br />

Sobre Porra Nenhuma.<br />

CANA-DURA (compreensivo): Pensando bem, é muito imposto<br />

para um brasileiro só, o doutor auditor fiscal tem razão, acho que<br />

esse solitário não é cidadão, ele é um seqüestrado do convívio<br />

28


humano, um ignorante, um tremendo de um inculto. Não sei nem<br />

se ele é indígena ou alienígena. Não sei nem se ...<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (interrompendo): ... ele é um<br />

livre e pelo jeito não precisamos ...<br />

CANA-DURA (complementando): ... de ficar com medo, pois<br />

parece passível de ser domesticado.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (irritado): Eu lá quero<br />

domesticar alguém, isso é coisa para FUNAI. Nós somos da<br />

mordida do Leão. E faça o favor de não me interromper.<br />

(eufórico): O que eu estava dizendo é que tudo indica que não<br />

precisamos de nos preocupar com ele.<br />

CANA-DURA: Por que não? Por acaso ele é isento?<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Claro! Estamos diante de um<br />

não-cidadão, um estranho que não quer ser habitante de uma<br />

cidade, um indivíduo que não acredita em cidade em nenhuma<br />

hipótese, por isso é que ele vive nesse lugar miserável ... vamos<br />

dizer nesse campo.<br />

CANA-DURA: Ou então quem sabe o isento não é um daqueles<br />

suburbanos convicto que, na surdina, entre essas moitas, está com<br />

gato-NET, gato-luz, gato-gás, introduzindo uma nova cidade, não<br />

é doutor auditor fiscal?<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Se ele é da área rural, urbana<br />

ou do entorno que se urbanizou precariamente não sabemos, o<br />

que temos certeza, ao juntarmos nossas opiniões, é de que se trata<br />

de um descrente construtor.<br />

CANA-DURA: Ou de um construtor descrente.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: É isso aí.<br />

29


O que estava sentado contemplando dirige seu olhar para os dois<br />

e ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pausadamente): O quanto de alheio sou se não<br />

acreditando em cidade de modo nenhum vir a introduzir uma?<br />

Os dois se olham sem graça e o doutor muito fulo da vida.<br />

CANA-DURA: A coisa fala!<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: E fala coisa impertinente,<br />

algeme prontamente esse estranho isento barbudo.<br />

CANA-DURA (inseguro): Será que temos permissão para fazer<br />

isso?<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (assertivo): Isso lá é hora de<br />

questionamento! Se na cidade vale tudo, imagina nesse meio do<br />

mato. Afinal, por que estamos aqui? Já esqueceu seu<br />

desmemoriado?<br />

CANA-DURA: Claro que não! Este terreno inculto em que<br />

crescem plantas agrestes vai ser doado pelo governo para o<br />

Madeirão Boizão.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (incisivo): Como ousa falar<br />

dessa maneira de sua excelência o dono da companhia “Corta a<br />

Madeira e mostra o Boi”, um dos maiores empreendedor que já se<br />

teve neste país.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Duvido que neste país se tenha uma resposta a um<br />

governo, como a do Cacique Seatle ao governo dos Estados<br />

Unidos em querer comprar as terras do chefe indígena, em 1854.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (ordenando): Muito obrigado<br />

pela informação, mas eu lá quero saber notícias da FUNAI<br />

americana, chega de ouvir conversa fiada.<br />

30


(ordenando): Algeme imediatamente esse isento impertinente e<br />

infeliz que com sua moradia está atrapalhando os planos do<br />

magnífico proprietário de trazer imediatamente suas cortadeiras e<br />

queimadas da prosperidade eterna, os seus gados exterminadores<br />

da gula infinita dos golas de ponta branca e, acima de tudo,<br />

aumento de arrecadação na economia promovedor da felicidade<br />

da elite e do governo, bem como do calmante do mercado<br />

neurótico nervoso.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pausadamente): O quanto de isento sou se estou<br />

atado e preso, se oprimem o meu pensamento e aprisionam as<br />

minhas mãos?<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Boa idéia. Aproveite e<br />

amordace-o também.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pausadamente): Que venha então a cidade, pois<br />

agora estou preparado a ir até as minúsculas estrelinhas em<br />

termos de dedicação e relação.<br />

CANA-DURA: Isso é um baita de um barbudo subversivo, deve<br />

ser parente do Fidel Castro. Fica o dia inteiro a meditar nessa<br />

espelunca, notou doutor auditor fiscal que nestas frases tem muita<br />

coisa nas entrelinhas.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pausadamente): De fato, o autor delas quer<br />

meditar para a subversão.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (ridicularizando): É, o<br />

subversivo é esse autor mesmo. Estou quase acreditando, fala<br />

mais uma vez para eu acreditar.<br />

(passando-lhe um pito): O que eu tenho certeza é que o estranho<br />

com seu comportamento não é contrário à ordem, você apenas<br />

não age certo quando quer permanecer isento.<br />

31


<strong>ESTRANHO</strong>: Como é possível não estar agindo certo se tenho o<br />

conhecimento no comportamento. Quem sabe, age certo. Quem<br />

não sabe é sempre refutado pela lógica, pego pelas contradições.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (pensando com carinho): Acho<br />

que eu posso fazer negócio com esse estranho aí! Talvez levá-lo<br />

num programa de auditório com essas idéias excêntricas. Vou<br />

testar um pouco mais os seus conhecimentos até onde vão.<br />

(dirigindo sua palavra ao quase amordaçado): Que livros você<br />

conhece?<br />

Mesmo não entendendo direito uma indagação daquela,<br />

responde.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: “Velho Testamento”.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Muito bem, um bom começo,<br />

um livro judaico. Mas, não precisa me bajular. Comece com os<br />

livros que lhe fosse apropriado a este momento em que você está<br />

vivendo.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: “Sobre a liberdade” de John Stuart Mill, “O<br />

Processo” de Kafka, “A origem das espécies pela seleção<br />

natural”, Darwin, “Desobediência Civil” de Thoreau, “O caminho<br />

da servidão” de Friedrich von Hayek, “Drácula” de Stoken ...<br />

CANA-DURA (por conta): Drácula! Ta vendo doutor auditor<br />

fiscal, lá vem ele com suas indiretas e subversão, saiba que eu sou<br />

um homem civilizado ...<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Psiu, calado. Você não está<br />

vendo que esse sujeito é uma mina de ganhar dinheiro, um bom<br />

negócio.<br />

(pausa): E discursos históricos que lhe fosse apropriado a este<br />

momento em que você está vivendo?<br />

32


CANA-DURA (pensando com preocupação): Esse negócio dele<br />

falar o que ele está vivendo, não é um bom negócio.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Um que eu já usei foi o discurso de Sócrates em<br />

sua defesa.<br />

CANA-DURA (pensando ainda com preocupação): Ele começa<br />

assim na defesa e daqui a pouco parte para o ataque que nem o<br />

jogador do São Paulo fazia. Deixe embaralhá-lo.<br />

(dirigindo-se a ele): Discurso de brasileiros é o que importa.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: José Bonifácio de Andrade e Silva, patriarca da<br />

independência, em seu discurso na Assembléia Geral,<br />

Constituinte e Legislativa, de 1824, um libelo contra escravidão,<br />

que não isenta nem a Igreja.<br />

CANA-DURA: Viu! Não disse doutor auditor fiscal Ele está<br />

protestando novamente e agora é contra as algemas que coloquei<br />

no bicho apetitoso.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: É, mas você não prestou<br />

atenção que ele meteu o pau na Igreja, não dá isenção para ela.<br />

Prossiga, por favor.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Joaquim Nabuco com seu discurso que propõe a<br />

abolição; Rui Barbosa com seu discurso de um ano após a<br />

promulgação da Lei Áurea; Orlando Villas-Boas em 1972, época<br />

em que a ditadura militar alegava que os índios não poderiam se<br />

constituir num entrave ao desenvolvimento do país, ele com uma<br />

coragem pessoal irretocável fez um discurso contrário a essa<br />

política integracionista, de modo a ...<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Tá bom, tá bom, vamos para os<br />

de fora.<br />

33


<strong>ESTRANHO</strong>: Gandi quando foi preso e levado a julgamento<br />

discursou nessa ocasião, foi condenado há seis anos, e a exemplo<br />

de Sócrates não fez concessões.<br />

CANA-DURA (pensando, invocado): E o doutor auditor fiscal<br />

está completamente cego. Será que ele não vê que isso é uma<br />

corja só. Ah! Se eu pudesse matava e comia essa gente toda, mas<br />

essa coisa de civilização é que atrapalha a justiça.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Enma Goldman ...<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Essa com nome judeu parece<br />

ótimo.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Ela discursou em seu julgamento em Nova York<br />

em 1917. Lá pelas tantas disse: “Se não fossem estes grandes<br />

pioneiros e rebeldes, a França teria continuado sob a submissão<br />

do indolente Luiz XVI, para quem o esporte de matar coelhos era<br />

mais importante do que o destino do povo da França ...”<br />

CANA-DURA (pensando): Aí eu concordo com ela, carne de<br />

coelho não é muito saborosa que nem a ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (continuando o discurso dela): “Eu sei que muitas<br />

pessoas – eu mesmo sou uma delas – que não nasceram aqui,<br />

tampouco solicitaram cidadania, ainda assim amam a América<br />

com uma paixão mais profunda e com maior intensidade que<br />

muitos nativos, e manifestam-se puxando, chutando e insultando<br />

aqueles que não se levantam quando o hino nacional é tocado.<br />

Nosso patriotismo é aquele do homem que ama a mulher de olhos<br />

abertos. Ele está encantado com a sua beleza, mas também vê<br />

suas falhas. Como nós também, que conhecemos a América,<br />

amamos a sua beleza, sua riqueza, as suas imensas possibilidades;<br />

nós amamos as suas montanhas, seus desfiladeiros, suas florestas,<br />

sua foz do Niágara, e seus desertos – acima de tudo, amamos as<br />

pessoas que ajudaram a criar sua riqueza, seus artistas que<br />

criaram a beleza, seus ilustres apóstolos que sonham e trabalham<br />

34


pela liberdade – mas com a mesma emoção passional, odiamos<br />

sua superficialidade, sua artificialidade, sua corrupção, e o louco<br />

e inescrupuloso culto ao altar do “Bezerro Dourado”.”<br />

Eles recordando sua juventude, no tempo em que queriam mudar<br />

o mundo, começam a chorar.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (continuando o discurso dela): “Seu veredicto, é<br />

claro, pode nos afetar temporariamente, num sentido físico – não<br />

afetará de maneira nenhuma nosso espírito. Porque mesmo se<br />

formos declarados culpados e condenados a enfrentar o pelotão,<br />

gritaríamos as mesmas palavras do grande Lutero: “Aqui estou, e<br />

aqui ficarei, porque sou incapaz de agir de outra maneira.””<br />

Os dois abraçados choram copiosamente.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (continuando o discurso dela): “Nada neste mundo<br />

me fará mudar de idéia exceto uma coisa: se vocês me provarem<br />

que minha posição está errada, indefensável, ou faltando com a<br />

verdade. Posso lhes lembrar de dois grandes americanos, sem<br />

dúvida conhecidos por vocês, senhores do júri: Ralph Waldo<br />

Emerson e Henry David Thoreau. Quando Thoreau foi preso por<br />

se negar a pagar impostos, foi visitado por Ralpho Waldo<br />

Emerson que lhe perguntou: “David, o que você está fazendo<br />

nesta cela?” e Thoreau respondeu: “Ralph, o que é que você está<br />

fazendo aí fora, quando toda pessoa honesta está presa por causa<br />

de seus ideais?””.<br />

CANA-DURA: É isso aí. Honestidade.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: É isso aí como? Agora quem<br />

pergunta sou eu: já pensou se todos os honestos aqui no Brasil<br />

não pagassem imposto? Fatalmente, seríamos o país mais<br />

miserável da face da Terra. Era capaz de nem haver mais<br />

corrupção por falta de dinheiro.<br />

CANA-DURA: É tem razão, bordoada nele.<br />

35


DOUTOR AUDITOR FISCAL: Calma que ainda acho que esse<br />

cara estranho com essa cultura pode render muitos novos sheqel.<br />

CANA-DURA: O que é isso?<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Dinheiro israelense, seu tapado<br />

de pouca ambição.<br />

(falando para o algemado): Vamos passar para ciência que é bem<br />

objetiva. O que você sabe a respeito dos cientistas?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Descobridores ou inventores de novos conceitos e<br />

instrumentos sobre a natureza, mas não pela manipulação para<br />

finalidades escusas.<br />

CANA-DURA: Lá vem ele com suas críticas.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Agora eu tenho que dar razão<br />

para este sanguinário inculto. Disserte um pouco sobre algo light<br />

e diet não polêmico ... como, por exemplo, sobre os cem maiores<br />

cientistas da história.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Grande parte é constituída de homens, no sentido<br />

de sexo masculino, brancos de descendência européia, vieram de<br />

níveis sociais não inferiores, com algumas exceções como<br />

Michael Faraday com sua teoria clássica do campo<br />

eletromagnético.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Em que lugar esse pobre<br />

ocuparia na sua classificação.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Décima primeira.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Bom, de vez em quando isso é<br />

inevitável. E os primeiros em Física, Química, Medicina, ...<br />

CANA-DURA (interrompendo, para mostrar participação):<br />

Mas, não esqueça, com classificação entre os cem primeiros.<br />

36


<strong>ESTRANHO</strong>: Isaac Newton com sua revolução na física, para<br />

mim, foi o primeiro cientista.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Isaac, chará, muito bom! E o<br />

segundo?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: O grande físico judeu Albert Einstein com sua<br />

ciência no século XX.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Excelente. Em terceiro?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Provindo de uma família judaica, Niels Bohr<br />

compreendendo a estrutura atômica e física quântica.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (entusiasmado): Como vamos<br />

ganhar novos sheqel. Não tem pra ninguém, só dá nós.<br />

CANA-DURA (querendo ajudar): E na Química e Medicina<br />

citada pelo doutor auditor fiscal.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Louis Pasteur, um católico, de maior importância<br />

na química e medicina com a pasteurização, com sua teoria da<br />

doença causada pelos germens.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (descontente): Católico! Aponte<br />

separadamente, senão embola e dá essas aberrações aí.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Separadamente se tem Antoine Laurent Lavoisier<br />

que revolucionou a Química; Andréas Vesalias e Claude Bernard<br />

na Medicina com a nova anatomia e a criação da fisiologia,<br />

respectivamente.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (decepcionado): Esses nomes<br />

afrancesados. Depois que o cana-dura foi fazer pergunta só deu<br />

coisa errada. Que pé-frio!<br />

(por conta, sem esperança): Sem os da terrinha, não dá. Vamos<br />

andando, vamos andando seu estranho isento.<br />

37


E a obediência caminha e consequentemente lá vão os três se<br />

pondo a andar por elevações nada facilitadas. E por apenas<br />

cinco minutos e os dois de fora já estão exaustos pelas<br />

pirambeiras brabas, parando para descansar. O coletor não<br />

tendo nada o que fazer e a ganhar pensa em restabelecer o<br />

diálogo na esperança de algum lucro futuro.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Qual uma das grandes<br />

invenções?<br />

Novamente acha aquilo um tanto sem propósito, contudo<br />

novamente responde.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Acredita-se que o plano inclinado seja entre as<br />

máquinas fundamentais a que vem sendo usada há muito tempo,<br />

cerca de dois milhões e meio antes de Cristo. Os construtores<br />

usaram esse tipo nas pirâmides, ainda hoje nas construções de<br />

escadas e até em rampas usadas para deficientes físicos. Um<br />

plano inclinado se baseia num conceito simples: quando um<br />

objeto precisa ser transportado de um lugar mais baixo para um<br />

lugar mais alto, é necessário mais força para movê-lo numa<br />

superfície com grande inclinação do que num menos inclinado.<br />

Isso é válido quando movemos nossos corpos em subida ...<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (interrompe irritado): E por<br />

que você seu selvagem inútil e preguiçoso não fez um plano<br />

inclinado para gente subir sem esse sufoco.<br />

(ordenando): Amordace-o, não quero ouvir mais besteiras de<br />

tanto conhecimento e cultura.<br />

CANA-DURA (contente): Agora sim, assim é que se fala e que<br />

se age. Se quiser, o civilizado aqui trata e traça esse selvagem.<br />

Amordaçado e algemado é agora puxado, lá vão os três de volta<br />

para a civilização, pelo menos é o que pensa o formado e o<br />

fardado; o terceiro talvez ache que de volta para a cultura<br />

selvagem.<br />

38


<strong>ESTRANHO</strong> (lembrando): Alfred Nobel, que personalidade.<br />

Além de ser o inventor da dinamite foi o fundador do prêmio<br />

Nobel, que desde 1901 tem premiando nas categorias da Física,<br />

da Química, Medicina, Literatura, Paz e da Economia.<br />

E o fabuloso americano Linus Pauling que no século passado foi<br />

o único indivíduo a ter conquistado dois prêmios Nobel: um por<br />

Química, em 1954, outro pela paz, em 1962. E era ateu, hein!<br />

Quem diria ...<br />

Ele é cortado em seu vôo por um som estridente.<br />

CANA-DURA: Por que você, um barbudo forte selvagem tão<br />

pertinente e próprio da liberdade, não lutou para não ir para a<br />

cidade?<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (pensando): Não sou profeta<br />

não, mas, pelo que sei, no mínimo, este barbado lá na cidade será<br />

considerado ...<br />

39


O DESLIGADO<br />

Semanas se passam, eles estão perdidos só que agora fora da<br />

selva amazônica, fora do Brasil, ou melhor, da América do Sul.<br />

Por uma pista esburacada vai um veículo em alta velocidade<br />

levando aqueles três. Até que por uma fatalidade um dos pneus<br />

estoura e com ele o controle do carro de modo que este capota<br />

por diversas vezes sendo atirado para fora da via indo parar no<br />

meio de uma FAVELA, onde abriga a JUSTIÇA. Seus moradores<br />

curiosos vão se aproximando velozmente e começam a aplicar a<br />

lei e a eqüidade naquela jurisdição plena de licitude e retidão,<br />

retiram os da frente que se encontra aparentemente em coma ou<br />

desmaiado, bem como destacadamente os seus pertences, e de<br />

quebra apenas resgatam o de trás, um estranho barbudo<br />

amordaçado e algemado, um nítido necessitado, que<br />

milagrosamente nada sofrera somente suas roupas que ficaram<br />

mais surradas e suas lembranças menos associadas a ponto de<br />

apagar a língua portuguesa de sua memória.<br />

De repente, ao se escutar uma música de mariachi com guitarra,<br />

violino e trombeta, os favelados vão abrindo passagem para um<br />

grupo de mexicanos fortemente armados, na frente o de maior<br />

sombreiro, o chefe dos traficantes de alcunha DUMAL, um negro<br />

bigodudo, alto e forte, logo atrás, a sua ajudante de ordem,<br />

apelidada de DUMALZINHA, uma branca com um avantajado<br />

buço, baixinha e franzina, cuja característica é de ser estrábica.<br />

Eles param diante do acidentado. O chefe está visivelmente em<br />

dúvida.<br />

DUMAL: Dumalzinha, você está vendo o que eu estou vendo?<br />

DUMALZINHA: Sim, comandante.<br />

O chefe como sempre desconfiado daquele olhar da sua<br />

ordenança, dirige sua visão para ela.<br />

41


DUMAL: Como eu posso confiar em você! Não sei o que acha<br />

de tão interessante nesse seu nariz que não pára de olhar para ele.<br />

Eu já não ordenei que desse uma paralela nesses olhos.<br />

DUMALZINHA: É que o pescoço fica doendo, comandante.<br />

DUMAL: Deixa que eu cuide disso.<br />

Pegou seu fuzil de assalto semi-automático e disfarçando o<br />

aponta para a casa do vizinho ali da frente.<br />

DUMAL (informando-a): Você viu só que horror? O vizinho se<br />

matou com um tiro nos cornos.<br />

DUMALZINHA: Puxa vida, né? O que será que passou pela<br />

cabeça dele?<br />

DUMAL: Uma bala com certeza!<br />

E voltando imediatamente aquele fuzil na direção dela.<br />

DUMAL: E foi com uma bala bem menor do que essas daqui.<br />

E saí disparando daquela arma balas perto da cabeça de sua<br />

ajudante de ordem, o que faz ela rodar a cabeça para todos os<br />

lados e a vesga deixar de sê-la por aquele instante.<br />

DUMAL (garboso): Viu já tá boazinha. Eu não sou santo não,<br />

mas faço meus milagres.<br />

(ordenando para a recém-curada): Retira a mordaça desse<br />

estranho aí, que eu quero ter uma prosa, tirar umas dúvidas.<br />

À medida que ela vai sendo retirada a certeza do chefe vai<br />

aumentando até que a confirmação chega inabalavelmente.<br />

DUMAL (ultra-contente): Javier! Puxa Javier, como você<br />

mudou! Você era moreno, agora é louro, tinha olhos negros,<br />

42


agora tem olhos verdes, era magro, agora tá gordo. Você tá<br />

mesmo mudado, hein Javier?<br />

Falando para os seus músicos.<br />

DUMAL: Toquem a música preferida do meu amigão Javier,<br />

toquem a rancheira.<br />

E lá vem os músicos com a rancheira para perto do chamado<br />

“Javier” na esperança de muito agradá-lo.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (falando para si): Que coisa insuportável! O que<br />

será que quer dizer essa palavra “Javier” que ele falou quatro<br />

vezes? Que língua é essa que ele está falando? Vou falar em<br />

inglês que quase todo mundo entende um pouco. Vou dizer que<br />

está tudo bem, para ver se ele desgruda.<br />

(falando para Dumal): All right.<br />

DUMAL: Pô, Javier! Você mudou até de nome? Agora se chama<br />

All right.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): Esse tipo de cara eu já conheço. É do<br />

tipo que fica mais tempo com você do que você com ele, só não<br />

ronca quando dorme, para falar com você fica cutucando seu<br />

corpo o tempo todo. Quando está com tosse não vai ao médico,<br />

mas sim ao teatro. Só fuma para ficar filando cigarro dos outros,<br />

só pára de fumar para ficar aborrecendo quem fuma. Tagarela<br />

enquanto anda a seu lado, mas pára de dois em dois metros<br />

porque não sabe conversar andando. Sujeito para quem você fala<br />

“passa lá em casa!” e ele passa mesmo. Não existe nada mais<br />

chato do que um chato chateado.<br />

Dumal começa a duvidar que ele seja o Javier por ver o<br />

algemado dividido, pois, pelo seu olho direito enxerga um santo<br />

abençoado, pelo esquerdo, um bandido amaldiçoado.<br />

43


DUMAL (assustado): Desconjuro, essa praga que jogaram em<br />

cima da Dumalzinha tá passando pra mim.<br />

Tentando se recompor daquela falta de coragem momentânea,<br />

mas ainda ressabiado se está diante de um santificado ou de um<br />

desavergonhado, fala para o recém desamordaçado.<br />

DUMAL (hesitante): Tá ligado irmão All right?. A que<br />

irmandade você pertence? Beneditina ou do Comando Vermelho?<br />

Franciscana ou do Terceiro Comando?<br />

Ainda com a cabeça zonza devido ao acidente, o retirado do<br />

automóvel se encontra nesse momento meio desatento a tudo. Só<br />

raciocinando e falando em urdu, língua do Paquistão.<br />

DUMALZINHA: Comandante, vai ver que o mano All right é de<br />

fora. Deixa agora comigo.<br />

(indagando): A que irmandade você pertence? Culto aos<br />

Egungun ou Primeiro Comando da Capital? Yorubá ou Máfia<br />

Africana?<br />

O chefe começa a supor algo tenebroso que o deixa em pânico,<br />

ficando sem coragem até de pronunciar.<br />

DUMAL (somente pensando): Será que o maninho All right é do<br />

Capeta do Mal ou Amigo dos Amigos de Brasília?<br />

(recomendando): Acho melhor Dumalzinha a gente dizer um até<br />

logo para ele e se mandar para sempre.<br />

Com o braço acenando.<br />

DUMALZINHA (para o algemado): Hasta luego.<br />

O absorto algemado, concentrado em seus pensamentos<br />

avariados em decorrência da pancada na cabeça no teto do<br />

carro, procura lembrar em que país ele se encontra para poder<br />

retribuir aquele “Até logo” e poder despachar aquele cara chato<br />

44


que está à sua frente. Até que elaborou uma possibilidade do<br />

chamado comandante ser um imigrante ilegal africano na<br />

França. E, além do urdu, já raciocina e fala em francês.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Au revoir. Au revoir.<br />

DUMAL (desfazendo sua dúvida): Ah, voar! Ah, veio do céu! Se<br />

tudo que vem do céu é sagrado, exceto aquilo do urubu, logo,<br />

logo, o senhor é um santo abençoado pelo milagre divino.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): Ih, o chato não entende francês. Às<br />

vezes é um desses exilados exaltados que ninguém atura na<br />

África e vai mandado para outro lugar da Europa que não seja a<br />

França.<br />

Sua cabeça dá um estalo.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (contente): Oba! Já recuperei também o inglês, o<br />

italiano e o esperanto.<br />

Sem perda de tempo, como diz o provérbio “Quem arrisca não<br />

petisca”.<br />

(tenta outras): Goodbye ... Arriverdeci ... Gis Revido ...<br />

DUMAL (desfazendo mais uma dúvida): Com esse dom de falar<br />

língua estranha, só pode ser um protestante pentecostal.<br />

(se ajoelhando): Valha-me meu Espírito Santo que não sou digno<br />

de entender o que está sendo dito.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): Ih, vai ver que ele é japonês. Mas,<br />

escuro desse jeito? Sei lá como tudo está mudando, muita gente<br />

viajando, pode ser até que seja do poder militar do Japão. Vou<br />

tentar.<br />

(tenta outra): Sayanora Xogum?<br />

DUMAL (perplexo): Sai Iara de Ogum? Ih! Como esses santos<br />

modernos são tudo enrolado, trocam tudo.<br />

45


(emocionado): Sim meu santo que tudo sabe, eu sou de Ogum<br />

Iara. Tô ligado.<br />

Fica todo arrepiado e começa a chorar e cantar, acompanhado<br />

evidentemente de Dumalzinha.<br />

DUMAL E DUMALZINHA: “Se meu Pai é Ogum, Ogum.<br />

Vencedor de demanda. Quando chega ao reino é para salvar<br />

filhos de Umbanda. Ogum, Ogum Iara. Ogum, Ogum Iara.”<br />

(agachando as cabeças e batendo nos peitos): “Saravá São Jorge<br />

que trabalha com orixá feminino.”<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): Interessante. Por um lado, chorou com<br />

o que eu disse, chegou a cantar. Por outro, eu não entendo nada<br />

do que ele diz.<br />

(cheio de dúvida): Será que ele diz coisa com coisa? Será que na<br />

gramática japonesa eu disse algum verbo que apresenta mais de<br />

uma forma para um ou mais tempos ou pessoas? Vou tentar uma<br />

expressão latina.<br />

(tenta mais uma): Quid abundat non nocei.<br />

DUMAL (desconfiado): Abundat? Se esse santo pelo menos<br />

soubesse falar português. Pois, essa língua, modesta a parte, eu<br />

aprendi direitinho com meu amigo Carioca do tráfico. Aliás, até<br />

minha mãe que é uma tapada conseguiu aprender português<br />

comigo por correspondência. Quem sabe espanhol é fácil<br />

aprender português. Assim, como o contrário, esse meu amigo<br />

brasileiro aprendeu facilzinho o espanhol. Só um burro é que não<br />

consegue. Por isso, eu acho que esse barbado algemado não é<br />

brasileiro, e muito menos espanhol.<br />

O barbado algemado ao se esforçar para traduzir aquela<br />

expressão latina para aquele tão maçante na sua presença, o<br />

morro do piolho esquenta de modo que nessa energia intensa sua<br />

cabeça estala e a sua língua irrompe na versão portuguesa.<br />

46


<strong>ESTRANHO</strong> (falando rapidamente): “Quid abundat non nocei”<br />

quer dizer “O que abunda não faz mal”.<br />

DUMAL (mais uma dúvida se vai): Milagre! Falando em<br />

português. A bunda! A preferência nacional, claro que não faz<br />

mal. Esse santo sabe das coisas mesmo.<br />

Aí todos os três começam a raciocinar e falar em português.<br />

DUMALZINHA: Vai ver que ele é que nem o carcará: pega,<br />

mata e come.<br />

Dumal ignorando Dumalzinha, se colocando na posição de um<br />

guia anfitrião do milagroso, faz aquele convite piscando um dos<br />

olhos.<br />

DUMAL: Quer conhecer a Raimunda?<br />

Indiferente àquele aborrecido, não só não o está escutando,<br />

como se encontra, no momento, arrependido de estar entendendo<br />

novamente em português. O traficante percebendo aquela<br />

ausência de nenhuma manifestação.<br />

DUMAL: Qualé o da santidade. Põe água na boca dos outros e<br />

puxa o freio de mão.<br />

(pensando): Santo é assim mesmo é tudo vacilão. Não fica ligado<br />

o tempo todo.<br />

O estranho persiste incomodado de estar ali com aquele que só o<br />

deixa aborrecido, procura urgentemente a saída.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Bom, a conversa está muito boa, mas, está ficando<br />

tarde, tenho que partir.<br />

DUMAL (com sentimento de culpa, pensa): Epa! Será que faltei<br />

com respeito ao santo? Tenho que fazer alguma obrigação para<br />

ele me perdoar, mas, qual? Será que caixas de velas ... acho que<br />

47


não. Talvez uns galões de marafá da boa ... também não. Ah! Já<br />

sei.<br />

(todo risonho): Tá ligado que estou pensando em fazer em sua<br />

homenagem - o nosso santo pentecostal - uma imagem enorme de<br />

ouro e fixá-la no nosso santuário?<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (estranhando, fala baixo): Protestante e imagem?<br />

Insiste de me chamar de santo. Eu que estou realmente ligado,<br />

vou entrar na desse defasado senão eu não saio daqui nunca.<br />

(falando alto): Que assim seja feita a sua vontade.<br />

(continuando a falar só que em tom normal): Bom, como eu disse<br />

ainda a pouco, está passando da hora e tenho que picar a mula.<br />

DUMAL (preocupado): E o lugar para o santuário? Qual a<br />

melhor localização?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Aí não tem uma caverna?<br />

DUMAL: Tem.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Onde ela fica?<br />

DUMAL: Onde desovamos os nossos desafetos.<br />

Não prestando nenhuma séria atenção no que estava sendo dito,<br />

pois, a sua única preocupação é a de ir embora para longe<br />

daquele enfadonho sujeito.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Ótimo lugar, reservado, bem respeitoso e<br />

tranqüilo, onde os vivos temem e os mortos apodrecem. Perfeito<br />

para os tementes a Deus e para os sossegados do inferno.<br />

Dito isto, parto.<br />

DUMALZINHA (lembrando dos amigos do tráfico brasileiro,<br />

canta): “Quem parte leva a saudade de alguém que fica chorando<br />

de dor.<br />

48


DUMALZINHA E DUMAL: Por isso eu não quero lembrar<br />

quando partir meu grande amor. Aí, aí, aí, ai, ai, ...”<br />

E os dois tomando tequila estão começando a ficarem<br />

embriagados.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (falando para si): Mas que piolhos-das-virilhas,<br />

que danadas de moscas. Vou mudar de assunto para poder sair<br />

correndo desses inconvenientes insistentes.<br />

(falando para o comandante): Qual é o seu nome?<br />

DUMAL (contendo o soluço da tequila e da tristeza): Eu não<br />

tenho nome não, só tenho dois apelidos: Dumal, dado pela galera;<br />

Tomé, devido ao meu pai.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Ah que interessante! Seu pai também tinha o<br />

apelido de Tomé.<br />

DUMAL: Não entidade, meu pai é aquele que se chamava<br />

Pancho.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Como assim?<br />

DUMAL: Eu o matei.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Como!<br />

DUMAL: Com facão e serrote.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Não era interrogação, era interjeição de espanto.<br />

DUMAL (em crise com remorso): Eu sou um pecador, eu sou um<br />

pecador do mal, atira em mim minha ajudante de ordem.<br />

DUMALZINHA: Mas, existe pecador do bem?<br />

49


DUMAL (por conta): Quem fica em dúvida aqui sou eu, sua<br />

buçenta miserável. Atira logo nesse pecador aqui.<br />

O barbudo com medo do olho trocado daquela mulher se<br />

manifesta para lá de ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (receoso): É para lá. Cuidado para não<br />

desobedecer a ordem de seu chefe e acabar atirando em mim.<br />

Nada de incompetência nessa hora.<br />

DUMALZINHA: Deus peca?<br />

Vendo que a sua ordem não estava sendo obedecida.<br />

DUMAL: Deixa que eu cuide disso.<br />

Pegou seu fuzil de assalto semi-automático e dispara novamente<br />

balas perto da cabeça da sua ajudante desordenada, o que faz<br />

outra vez a interrogativa deixar de sê-la por aquele instante.<br />

DUMALZINHA (ligeirinho): Deus faz o plano, tem o livrearbítrio,<br />

e é o homem que peca.<br />

DUMAL (garboso): Viu já tá boazinha. Eu não sou santo não,<br />

mas faço meus milagres.<br />

DUMALZINHA: Eu só não sei por que ele peca?<br />

Estranho temendo pela recaída de Dumalzinha e o instrumento<br />

de milagre do Dumal.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Ele peca porque quer, ele tem o livre-arbítrio,<br />

vontade.<br />

DUMALZINHA: Então o plano divino não é tão importante<br />

quanto à responsabilidade do homem?<br />

50


<strong>ESTRANHO</strong> (pensando rápido): Será que ela é tão deficiente de<br />

visão que não vê que, além de nublar Deus, está ocupando o<br />

papel do Duvidoso?<br />

(respondendo mais rápido ainda): Não, os dois são importantes,<br />

pois, se o homem fosse tão responsável pelo mal, daqui a pouco<br />

ele seria também pelo bem.<br />

DUMALZINHA: Isso não é possível, pois foi Deus que criou o<br />

bem. O mal é que foi criado pelo homem, correto?<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (ultra-rápido): Não, Deus é quem criou o bem e o<br />

mal, ambos fazem parte do plano Dele.<br />

(procura envolver o chefe na conversa): Qual a sua opinião?<br />

DUMAL (emburrado): Prá início de conversa: Deus não tem<br />

plano. Quem tem plano é bandido.<br />

Notando que o santo estava prestes a ser despedido, concorda<br />

sem pestanejar.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Isso é verdade, isso é coisa de grego achar que os<br />

deuses estão entre nós fisicamente, que tem até um local aqui na<br />

Terra para eles morarem.<br />

DUMAL (emburrado): Nada disso, estrangeiro só fica matutando<br />

besteira, imaginando isso, imaginando aquilo.<br />

Distante daquela tensão.<br />

DUMALZINHA (refletindo alto): Será que os deuses criadores<br />

se envolvem com os pobres mortais que nem a gente?<br />

Respondendo a um e tentando agradar o outro com posições<br />

tradicionais do catolicismo.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: As atuações são distintas: Deus para o bem, e o<br />

homem fazendo surgir o mal. Para não confundir as atuações é<br />

51


que os deuses e santos só aparecem por milagres. Por isso é que a<br />

Igreja é ciosa com milagres, fazendo uma série de investigações<br />

para ter certeza que foi um milagre mesmo.<br />

(procura novamente envolver o chefe na conversa): Não é assim?<br />

Quando o chefe ia começar a falar.<br />

DUMALZINHA: E o Santo Antônio de cabeça para baixo que<br />

faz casar, isso não é contado como milagre pela Igreja? Se não<br />

for computado, olham o mal que isso pode fazer para nós<br />

mulheres que desejam matrimoniar. Explica isso aí, o cabeludo.<br />

DUMAL (interrompe bruscamente): Isso não pára nunca não, é?<br />

Observando que a cara do chefe não está nada boa, e ainda mais<br />

com mais medo daquela zarolha atrapalhada a pôr mais lenha na<br />

fogueira.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (concordando): Esse conversar é para explicar o<br />

mal, o melhor é ... mas, deixa isso para lá.<br />

(querendo passar a atenção): O chefe, por acaso, tem algum<br />

inimigo?<br />

DUMAL (ainda emburrado): Graças a Deus, não.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Como conseguiu essa virtude?<br />

DUMAL: Matei todos.<br />

Dumalzinha saí para atender alguém que lhe havia chamado. O<br />

barbudo impressionado com aquelas palavras de matei todos<br />

graças a Deus.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: De que Deus está falando quando diz “Graças a<br />

Deus”? Por acaso do Cristão Jeová, do Hebreu Javé ou do<br />

Muçulmano Alá?<br />

Silêncio.<br />

52


<strong>ESTRANHO</strong> (continuando impressionado): Quem lhe orienta?<br />

Sacerdotes, rabinos, ministros, iogues ou gurus?<br />

DUMAL (se sentindo pressionado): Nenhum desses, eu sou<br />

orientado pelos grandes lideres espirituais. Como santo deve<br />

conhecê-los, então, é melhor ir dizendo em vez de ficar querendo<br />

saber dos outros.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (falando para dentro): Ainda está meio aborrecido,<br />

vamos logo atendê-lo.<br />

(falando): Os mais antigos pela ordem são: Abraão, Akhenaton,<br />

Moisés, Zarastrusta, Mahavira, Lao-Tsé, Buda, Confúcio, Jesus<br />

Cristo, Maomé, Guru Nanak, Lutero, Helena Blavatsky,<br />

Ramakrishna, ...<br />

DUMAL (interrompe): Esses com esses nomes, não sei não, tá<br />

parecendo que nenhum na terra do canarinho não presta.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Claro que tem só que são mais recentes. Mas,<br />

antes mesmo de Vivekananda e Gandhi tem o famoso Padre<br />

Cícero.<br />

DUMAL: E a Mãe Menininha do Gantois e o Chico Xavier que o<br />

meu amigo Carioca seguia?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Também.<br />

DUMAL: Quem foi esse mais antigo? Esse tal de Abraão.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Ele viveu há quase quatro mil anos atrás, foi o<br />

patriarca dos hebreus, acreditava em um ser supremo que está por<br />

trás de todas as forças da natureza e do acaso, adquire sabedoria<br />

através da submissão à vontade divina, mesmo quando isso pode<br />

significar o sacrifício do filho tão pretendido com sua esposa e a<br />

expulsar o primogênito que teve com a escrava.<br />

53


DUMAL: Esse é sangue bom. E esses dois filhos dele ficaram<br />

comandante pancadão ou bastardo chorão?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Um ficou comandante dos judeus e o outro se<br />

tornou o legendário pai dos árabes.<br />

DUMAL: Eu escuto isso tudo, mas para mim quem foi grande,<br />

foi Jesus.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Foi, foi. Principalmente no mundo ocidental. Ele<br />

contou com São Paulo que foi o principal difusor da nova religião<br />

da cristandade. Santo Agostinho foi o maior teólogo na sua<br />

época.<br />

DUMAL (atento a outra coisa): Eu não sei ler mais gosto de<br />

comprar livros, na minha residência é livro de tudo quanto é<br />

tamanho e principalmente cor.<br />

(pausa): Esses que você citou escreveram algum livro, para que<br />

eu possa comprar e colocar na minha estante?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Num certo sentido sim. Por exemplo, Cristo<br />

escreveu O Novo Testamento, Agostinho a chamada Confissões,<br />

que estão entre os dez livros mais importantes.<br />

DUMAL: De que tamanho e cor eles são? Será que aquele de<br />

nome complicado tem livro de cor bonita?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Quem?<br />

DUMAL: O que você falou depois de Abraão, mas esquece ele<br />

tem um nome muito complicado, por isso eu passo para o<br />

próximo e pergunto sobre o Moisés?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Esse é o amplamente admirado. Em termos de<br />

discursos históricos importantes ele é tido como o segundo mais<br />

antigo. Trata-se de um relato do seu encontro no Monte Sinai<br />

54


com Deus que lhe entrega as Tábuas das Leis contendo Os Dez<br />

Mandamentos.<br />

DUMAL: Se Moisés foi o segundo, então, então aquele de nome<br />

complicado que era o segundo líder espiritual não fez discurso<br />

histórico importante?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Não, Akhenaton não fez não. Quem foi o primeiro<br />

mais antigo foi Tutancámon, um faraó egípcio, do século XIII a.C<br />

inaugurando com grandes festas e cerimônias defronte do Templo<br />

de Karnac.<br />

DUMAL: Nossa! Se aquele nome já era complicado, imagina<br />

esse.<br />

Mas, fale de livros, eu gosto de livros. Também não sei por que<br />

mais tenho simpatia quando falam dos gregos. Entre os dez livros<br />

mais importantes tem algum autor que era grego?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Sim, claro que tem. Tem Aristóteles com Obras,<br />

bem como Platão com A República. O primeiro foi o maior<br />

filósofo e cientista do mundo antigo, o segundo foi o ponto de<br />

partida da filosofia política do ocidente, bem como grande parte<br />

do nosso pensamento ético e metafísico.<br />

A estrábica volta esbaforida, a cara de Dumal se tranca. Ela vem<br />

com uma pergunta.<br />

DUMALZINHA: Comandante, a sua comadre perguntou se o<br />

compadre que veio falar consigo ainda pouco ainda está por aqui.<br />

DUMAL (ríspido): Não vi e nem ouvi.<br />

DUMALZINHA: Mas, falou. Estava falando com ele ainda<br />

pouco.<br />

DUMAL (mais ríspido): Diga a ela que ele não está não. Ele foi<br />

ao cemitério.<br />

55


DUMALZINHA: Sabe se ele vai demorar?<br />

DUMAL: Diga para ela que eu acho que vai.<br />

DUMALZINHA: Por quê?<br />

DUMAL: Porque ele foi dentro do caixão.<br />

Ela foi dá a notícia para a viúva inconsciente do ocorrido mortal,<br />

enquanto isso o algemado com toda aquela situação<br />

impressionante está completamente fora do ar. Mas,<br />

imediatamente, ela está de volta. E como boa mãe e patroa no<br />

tráfico.<br />

DUMALZINHA (gritando para a sua empregada): Jureeemaa.<br />

Vá ao colégio e veja o que os meninos estão fazendo e diga-lhes<br />

que não façam isso.<br />

(contando um caso para algemado desligado): Eu ainda estou pê<br />

da vida, minha vizinha deu uns cascudos no meu primeiro. Eu fui<br />

lá tirar satisfação: “Por que a senhora bateu no meu filho?”. A<br />

vizinha disse: “Ele é muito malcriado, me chamou de gorda”. Aí<br />

eu não agüentei e falei: “E a senhora acha que vai emagrecer<br />

batendo nele?”.<br />

(continuando a falar para o desligado, agora toda orgulhosa): O<br />

caçulinha é um danadinho, ele é incrível. Ele tá com um aninho e<br />

já fez três meses que está andando. Dessa maneira onde ele vai<br />

chegar? O que acha?<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (no ar): Onde ele vai chegar depende da direção,<br />

agora que ele já deve estar bem longe daqui é isso que eu acho.<br />

DUMALZINHA: Raciocinando dessa maneira, você vai acabar<br />

sendo a favor de casamento de padres?<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (ainda aéreo): Claro que sim, se eles se amam, por<br />

que não?<br />

56


Movida pela compulsão da fala não se incomoda com as<br />

palavras do ouvinte.<br />

DUMALZINHA (rindo): Você não sabe o que aconteceu com o<br />

comandante ali?<br />

Num temporal daqueles, ele foi a feira e pediu numa barraca uma<br />

meia melancia. O empregado informou que ali só vendia<br />

melancia inteira. Mas, como ouviu: “Mas eu só quero meia, pô”.<br />

Olhando o tamanho daquele brutamonte disse que tudo bem que<br />

ele esperasse só um instantinho. Vai até a barraca do lado onde<br />

está o patrão, e fala baixinho: “Tem um filha da puta de um negão<br />

bigodudo querendo comprar meia melancia”. Mal acaba de falar e<br />

nota que o monstrão está colado atrás. Rapidamente, o<br />

empregado falou para o patrão: “... e esse cidadão aqui quer a<br />

outra metade.”<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: E como acabou essa história debaixo daquele pé<br />

d’água?<br />

DUMALZINHA: O nosso macho pelotão mexicano de<br />

fuzilamento, amassando barro, escoltando o preso até o local de<br />

execução. O condenado daquele empregado, à frente do tétrico<br />

cortejo, suspira: “Que dia horrível para morrer ...” E o<br />

comandante Dumal falou: “Você está reclamando é? E nós que<br />

ainda vamos ter que voltar debaixo dessa chuvarada.”<br />

Notando que o comandante ia estourar com tanta falta de<br />

atenção.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (querendo passar a atenção): Qual foi o motivo de<br />

ter matado seu pai?<br />

Fica contente por voltar a ser o centro das atenções novamente.<br />

DUMAL (todo garboso): É que meu pai falou para minha mãe<br />

que só vendo o amor dela é que ele acreditava. Ela foi mostrar e<br />

aí ... antes de eu nascer ... o carcará do Pancho foi embora ... e o<br />

57


povo do morro queria colocar o meu nome de Tomé em<br />

consideração a atitude do meu pai em “ver para crer”.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (aliviado com o sorriso do chefe, fala para si):<br />

Acho que voltei a ser o seu santo preferido.<br />

(perguntando): Mas, ele não assumiu?<br />

DUMAL: Não, ele sumiu. Minha mãe na ocasião falou para ele:<br />

“o que você fez comigo não tem nome”. E Pancho declarou: “E<br />

nem vai ter sobrenome”.<br />

A prosa ia caminhando normal quando a ficha caiu e assim tudo<br />

recairia.<br />

DUMAL (amargurado gritando): Como são infelizes as vidas<br />

daqueles que perderam seus pais. Eu quero meu pai de volta, eu<br />

amo meu paizinho, não me deixe só, não me deixe só de tanta dó.<br />

Eu sou um pecador, eu sou um pecador do mal, atira em mim<br />

minha ajudante de ordem.<br />

E volta a chorar por aquelas tristes recordações, enquanto o<br />

ouvinte doido para se esquivar daquele chororó e súplica<br />

sinistra.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando com angústia): Já imaginou se ele<br />

cisma que eu sou a reencarnação do pai dele? Aliás, para esse<br />

pancada basta achar que o Pancho está encostado em mim. Vou<br />

mudar urgentemente esta prosa.<br />

(falando para o chefe dos traficantes): Ah entendi! Por isso, é<br />

que você vive chorando.<br />

DUMAL (curioso susta o choro): Como assim?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Porque quando a coisa costuma estar muito preta<br />

até quem tem mãe na zona chora.<br />

DUMAL: Eu bem que desconfiava.<br />

58


E as lágrimas escorrem sem parar pela face de chefe.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando rapidamente): Deixa-me voltar para<br />

aquele assunto inicial, antes que eu enlouqueça.<br />

(falando): Não esqueça de por a estátua no fundo da caverna e de<br />

não permitir que seus adoradores não fiquem anos sem sair de<br />

frente dela, não conversando e nem olhando para os lados como<br />

os cavalos com cabresto e tapa-olho.<br />

DUMAL: Por que dessa orientação sem pé nem cabeça? Perdoeme,<br />

digo desse profundo ensinamento.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Porque os “congelados” da caverna vão acabar<br />

achando que a realidade são as sombras das coisas, criaturas e<br />

pessoas que agem do lado de fora. Se um desses “congelados”<br />

sair daquela grande cavidade encontrada no interior da Terra e se<br />

deparar com o Sol e com os entes projetados pela entrada da<br />

caverna pode voltar a entender o que é a realidade.<br />

DUMAL: Aí ele volta e conta para os de dentro.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: E quem diz que eles vão acreditar.<br />

DUMAL: Tem razão, vão andar pensando que ele andou<br />

bebendo.<br />

Mas, os de dentro vão continuar iludidos, achando que a sombra é<br />

a realidade. O que se deve então fazer meu guru?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Vou lhe explicar.<br />

(apontando): Está vendo aquela linda formosura triangular ali?<br />

DUMAL (bronqueado): Tá maluco entidade, aquela ali é minha<br />

senhora. Ali ninguém faz nada, nem papai do céu, papai Noel, pai<br />

falecido, nem pai vivo que nem o senhor, só o papai aqui.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Ih, esquece essa história perigosa de papai. Eu não<br />

sou seu pai Pancho e nem seu padrasto, sou apenas uma pessoa<br />

59


que, com todo respeito, lhe pergunta: sua esposa é ou não é<br />

bonita?<br />

Enquanto, o chefe tomando mais uma golada daquela garrafa de<br />

tequila, nada responde por estar invocado com aquela<br />

apreciação considerada excessiva, o estranho ingenuamente está<br />

todo contente por ter dado o troco, afinal o chato ficou chateado.<br />

Vendo a possibilidade de azucrinar mais aquele traficante, fica<br />

ainda mais alegre.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Fique tranqüilo porque o seu intelecto não muda a<br />

idéia de beleza e nem a forma geométrica do triângulo, o que<br />

muda é beleza de sua esposa e o triângulo instrumento musical<br />

usado no forró e xaxado, juntamente com o acordeão. Estes são<br />

as sombras, aqueles as realidades.<br />

DUMAL: Tá maluco novamente entidade, vai me dizer que a<br />

beleza da minha mulher não é real, o que é real é a idéia de<br />

beleza. O sensível não é mais a realidade?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Não, o que é realidade não é essa cidade que está<br />

aí, mas sim a cidade justa. O que é a realidade é a ...<br />

O do morro pressentindo alguma coisa o interrompe falando<br />

rapidamente.<br />

DUMAL (interrompendo): ... é a morte, os tiros, o tráfico, a<br />

polícia, ...<br />

DUMALZINHA (gritando): Corra que os homens estão aí.<br />

As balas zunem por todos os cantos e guitarras, violinos,<br />

trombetas, garrafas de tequila, sombreiros são perfurados,<br />

quebrados e rasgados, alguns daqueles mexicanos conseguem se<br />

esconder, outros não tem esta sorte e são abatidos, Dumalzinha<br />

some, o que não é uma novidade de tão baixinha e magrinha.<br />

Mas, os soldados usam uma tática de golpe baixo devastadora.<br />

60


Eles gritam “Pablo!”. Boa parte dos pertencentes à falange<br />

Dumal se levantam e respondem: “Chamou-me!”. E passaram<br />

fogo neles. Depois gritaram: “Juan!”. Levanta mais um tanto:<br />

“Chamou-me!”. E tome balas. O comandante da polícia militar<br />

querendo continuar a por em prática o bem-sucedido plano, mas<br />

não lembrando de mais nenhum nome espanhol, ordena a um de<br />

seus soldados que grite qualquer nome que lhe vier à cabeça. Ele<br />

obedece e grita: “Washington”. O restante dos mexicanos se<br />

levanta e gritam: “Aqui não tem ninguém com esse nome!”.<br />

Nesse próprio caos altamente desorganizado para as tropas do<br />

Dumal, exceto para este comandante que retira seu fuzil dos<br />

ombros e põe no colo daquele até então santo algemado.<br />

DUMAL: Com todo respeito, mas santo moderno não tem que<br />

ficar desarmado que nem Santo Antônio, viu como ele acabou<br />

todo flechado? O que você tem a dizer com esse AR15?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Uma rajada de balas rápida e contínua sempre foi<br />

importante numa guerra, os projetistas sempre procuraram um<br />

modo de reduzir a quantidade de tempo necessária para recarregar<br />

a arma após o disparo. A primeira etapa foi o revólver inventado<br />

em 1836, depois a espingarda de repetição em 1860,<br />

metralhadora em 1884, canhão vulcan em 1960 capaz de disparar<br />

seis mil tiros por minuto.<br />

DUMAL: Vai falando que eu estou ligado nessa coisa de<br />

conhecimento e cultura.<br />

Pensando e agindo rapidamente rasga e amassa suas roupas e<br />

um pouco mais a do outro, remexe nos bolsos procurando algo.<br />

DUMAL: E os veículos para que eu possa me mandar?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Bicicleta em 1790, locomotiva em 1802, barco a<br />

vapor em 1807, elevador em 1851, automóvel em 1889 ...<br />

Até que encontra.<br />

61


DUMAL (feliz): Oba! Tenho essa carteira aqui que roubei de um<br />

policial civil.<br />

Quando os policiais militares chegam até os dois, ele mostra a<br />

carteira escondendo o retrato com os dedos.<br />

DUMAL: Sou da casa. Lutei com esse bárbaro bandido barbudo,<br />

tomei sua arma e o algemei. Não quero nada, são todos de vocês.<br />

Os policiais militares ficam exultantes com aqueles presentes:<br />

uma presa e uma arma apreendida. Todos batem afetuosamente<br />

nos ombros do “dissimulado”, felicitando-o por aquela ação que<br />

vai render condecorações para aqueles militares com direito a<br />

medalhas, e quem sabe até promessas de promoções.<br />

DUMAL (confirmando): Então tão ligados que esse estranho<br />

desligado é todo de vocês?<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (sorrindo): O quanto de desligado sou se estou<br />

interessado em estar sem sombra de dúvida, mas ligado com a<br />

realidade de certeza de que a luz vencerá o indício da mancha<br />

obscura que paira sobre mim? Um bem daqui a alguns anos<br />

poderá ser desprezado amanhã, por tornar-se falso.<br />

Os militares completamente desinteressados daquele arrazoado<br />

arrastam o zoado algemado com “sua” arma. Este fazendo jus<br />

ao rótulo que lhe é dado, se desliga daquela situação.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): Lavoiser foi o mais importante no<br />

desenvolvimento da Química. Por outro lado, passado mais de<br />

um século e nenhum brasileiro ganhou prêmio Nobel. Otto<br />

Gottlieb foi o único craque a disputar o Nobel de Química em<br />

1999. E era um ateu naturalizado, hein! Quem diria que ...<br />

Enquanto isso o finório disfarçado de policial civil vai saindo de<br />

fininho com uma grave e grossa dúvida.<br />

62


DUMAL (pensando): Por que o santo barbado algemado que<br />

explica até sobre o mal não me acusou? Por que ele que muitas<br />

vezes se mostrou indiferente e desatento foi tão seguro e<br />

confiável para a prisão? Pelo que sei, no mínimo, ele lá será<br />

considerado ...<br />

63


O SUSPEITO<br />

Ainda barbado algemado, porém acrescido de estar desdentado,<br />

com um corpo surrado, rosto espancado, inteiramente mal<br />

amado, ali está o ainda pouco santificado, agora um pobre<br />

coitado. Sentado numa cadeira que quase tomba de muito mal<br />

cuidada, numa situação que se pode chamar na corda bamba.<br />

Um dos olhos fechado, o outro incomodado por um concentrado<br />

foco de luz que também o deixa todo suado.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando o que havia se passado): Lá fui eu no<br />

camburão com aqueles soldados cruzando fronteira sem nenhum<br />

molestamento, enfrentando uma enorme manifestação com faixas<br />

e cartazes protestando sobre uma medida governamental de que<br />

não se poderia trabalhar mais do que as contratuais oito horas por<br />

dia sem revogar o descanso dos fins de semana, confesso que<br />

fiquei confuso sem nada entender. Mas, quando vi as faixas<br />

maiores escritas em inglês “Abaixo as férias, feriados e fins de<br />

semana” e “Viva a escravidão do trabalho”, e tudo isso sob o coro<br />

dos manifestantes “Adictos unidos jamais serão vencidos, adictos<br />

unidos jamais serão vencidos”, entendi em que país estava, só que<br />

agora estou aqui ...<br />

Na posição de interrogado pelo delegado interrogativo de nome<br />

PAUL, paira uma suposição naquela DELEGACIA que não se<br />

tratava de um usuário de arma, mas sim de um traficante de<br />

armamento. Isso tudo em prol da SEGURANÇA.<br />

PAUL: Fala logo seu jumento estranho, cadê as demais AR15<br />

que você estava trazendo para vender naquele morro chefiado<br />

pelo do mal.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (raciocinando): Do mal ou Dumal?<br />

PAUL: Cadê as metralhadoras, granadas, mísseis?<br />

65


Como de costume, uma não resposta, um soco inglês por todo<br />

corpo. Só que agora foi dois seguidos em uma das faces.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (vira a outra face, pensando): No sermão da<br />

montanha se teve a revelação cristã do princípio do amor: “dar a<br />

outra face”.<br />

Recebe a mesma quantidade de soco na face só que na outra.<br />

PAUL: O que lhe vem na cabeça após essa sessão, ou melhor,<br />

essa recepção?<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (lembrando): Adianta dizer que são dores? Adianta<br />

dizer que são livros como: “As Confissões” de Jean Jacques<br />

Rousseau. “Diálogo sobre os grandes sistemas do universo” de<br />

Galileu Galilei o maior responsável pelo desenvolvimento do<br />

método científico. “A Cabala” discorrendo sobre a parte animal<br />

da alma, associada aos instintos.<br />

O ESCRIVÃO, um gordão, que a tudo assiste é solicitado pelo<br />

delegado.<br />

PAUL: Atenção rolha de poço! Prontidão com essa máquina de<br />

escrever.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (olhando para aquele arcaico, pensa): Máquina de<br />

escrever foi inventada em 1867, computador em 1941,<br />

microcomputador em 1977, Internet em 1983.<br />

Enquanto aguarda o escrivão gordão guardar tudo em cima da<br />

mesa para poder ouvir o bater das teclas, o delegado tenta fumar<br />

um cigarro, mas os palitos de fósforos não acendem, apenas um<br />

ameaça arder, irritado joga-os no chão com a caixa e tudo.<br />

Resolve sentar numa bola suíça para Pilates, se desequilibra e<br />

vai fazer companhia a caixa de fósforos.<br />

66


<strong>ESTRANHO</strong> (olhando para aquele estatelado, pensa): Há certa<br />

lógica naquilo tudo que assisti. Pois a produção e o uso do fogo<br />

datando meio milhão de anos atrás foi um fato consumado em<br />

muitos lugares na Terra antes do marco do registro histórico. Já a<br />

roda é mais recente, data de menos de seis mil anos atrás, quando<br />

os primeiros europeus cruzaram o Atlântico descobriram que<br />

ninguém nas Américas, nem mesmo os tão evoluídos astecas e<br />

incas, havia inventado a roda.<br />

PAUL: Escreve aí, cegueta.<br />

ESCRIVÃO: Não dá, esqueceu o meu problema?<br />

PAUL (admoestando): Mas, você não está cuidando do seu<br />

futuro, hein! É excesso de peso, é deficiência de visão.<br />

ESCRIVÃO: É que é um método difícil de aprender.<br />

PAUL (resmungando): O pior cego é o que não quer aprender o<br />

método braile.<br />

(falando para o servidor): Então, como de costume, ligue o<br />

gravador. Pelo menos isso você sabe fazer.<br />

(ditando): “O até então suspeito, ainda não identificado, confessa,<br />

por sua livre e espontânea vontade, de possuir um arsenal que<br />

seria vendido no morro da Unidade da Perdição, quando ...”<br />

ESCRIVÃO (interrompe): Mas, esse cara esfarrapado ainda é<br />

um pobretão enigmático!<br />

PAUL: Alto lá seu zureta!<br />

ESCRIVÃO (corrigindo): Zureta nãããooo, cegueta.<br />

PAUL: Não enche não. Cegueta, zureta, perneta, careta,<br />

gordureta, é tudo igual.<br />

(retomando o que estava dizendo): Achá-lo misterioso até<br />

concordo. Pois ainda não conseguimos nem arrancar seu nome,<br />

67


apenas seus dentes, mas miserável não. Repara que ele é sarado e<br />

as roupas desse maltrapilho são todas de grife.<br />

ESCRIVÃO (prestando atenção com muita dificuldade visual):<br />

Ih! Não é que é mesmo!<br />

PAUL: Então! E aí! O que você quer com esse “suspeito”?<br />

O Escrivão fica pensando, pensando, pensando naquilo tudo, até<br />

que o delegado cansado de esperar.<br />

PAUL: Por que não responde logo?<br />

ESCRIVÃO: Estou tendo uma visão.<br />

PAUL: Como! O cegueta deixa ...<br />

(lembrando ser um supersticioso): ... deixa de ser um visionário.<br />

Você sabe que eu não gosto de brincar com essas coisas.<br />

Fantasma é coisa séria.<br />

ESCRIVÃO: Eu não sei se sou um fantasista ou um utopista?<br />

PAUL: Você sabe como manter pessoas em suspense, hein?<br />

ESCRIVÃO: Claro que sei.<br />

PAUL: Como?<br />

ESCRIVÃO: Não posso contar agora.<br />

Pulando nas tamancas.<br />

PAUL: Você é mesmo um coitadinho.<br />

ESCRIVÃO (corrigindo): Coitadinho não! Ceguinho! Epa!<br />

Paralisa parecendo ter encontrado uma resposta.<br />

68


PAUL (pensando, com medo): Lá vêm de novo com essas suas<br />

visões de cegueta.<br />

ESCRIVÃO: Já sei! O estranho só pode ser surdo.<br />

PAUL (aporrinhado): Parabéns, você não está perdendo visão<br />

não, você está perdendo é cérebro mesmo. Aonde você quer<br />

chegar com essa sua “insuspeita” investigação? Deixar de lado<br />

esse seu “seguro” surdo sem nomeação, endereço, e-mail,<br />

qualificação, batizado e até sem apelido? Talvez pretenda<br />

protegê-lo, agradá-lo ou quem sabe absolvê-lo? Se apetecer<br />

venerá-lo não se acanhe pode ir ficando de quatro e pedindo a<br />

benção.<br />

ESCRIVÃO: Não, não, claro que não, a função aqui é investigar<br />

e registrar.<br />

PAUL: Ô adorador, isso é para delegacia frouxa, para saco coçar.<br />

Aqui, a função é de acossar, atormentar, importunar e punir.<br />

ESCRIVÃO: Castigar!<br />

PAUL: Por que desse seu espanto? Daqui a pouco vai achar que<br />

eu sou um ...<br />

Quando menos se esperava se ouve algo de desesperar.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Paul, Paul, por que me persegues?<br />

Os dois não acreditam no que estão ouvindo e pior, para o<br />

delegado: o que está sendo dito.<br />

ESCRIVÃO (exultante): Milagre! Milagre!<br />

PAUL (irritado): Que milagre porra nenhuma. Esse cara<br />

estranho, além de estar me sacaneando o tempo todo ao ficar<br />

69


calado, agora vem me acusando de persegui-lo. Isso é a primeira<br />

coisa na vida que eu não admito ser insinuado como um ...<br />

ESCRIVÃO (ainda exultante): O surdo falou!<br />

PAUL (mais irritado): E isso é a segunda coisa para mim, isso<br />

não interessa se foi o surdo que falou, se foi o mudo que escutou,<br />

se foi por motivo religioso ou profano que ele não queria falar, o<br />

que está em pauta aqui é que fui acusado por esse mudo falador.<br />

Você tem que dar um jeito nessa infâmia.<br />

ESCRIVÃO: Mas, isso é fácil de resolver. Vou registrar.<br />

PAUL: Então que o faça imediatamente.<br />

ESCRIVÃO (falando para o gravador a fim de registrar a<br />

ocorrência): “O delegado, falando para si mesmo, declarou que:<br />

“Você tem o direito de permanecer em silêncio. Qualquer coisa<br />

que diga, pode e vai ser usada contra você”. Feito isto ele ficou<br />

tranqüilo e aguarda o seu advogado de defesa ...”<br />

PAUL (indignado): Advogado de defesa, para mim! O réu é ele,<br />

que me difamou.<br />

Paul está completamente transtornado, o escrivão compreensivo<br />

se aproxima do delegado e passa a mão na sua cabeça com<br />

intuito de consolá-lo, vai até o algemado e lhe dá uma barrigada<br />

e um pito.<br />

ESCRIVÃO: Como você, seu estranho suspeito, tem coragem de<br />

deixar o querido delegado nesse estado latismável, isso é<br />

torturante. Fique sabendo que a tortura é proibida pela convenção<br />

das Nações Unidas, adotada pela Assembléia Geral em 10 de<br />

dezembro de 1984 vigorando desde 26 de junho de 1987, e pela<br />

terceira Convenção de Genebra. Ela constitui uma grave violação<br />

dos Direitos Humanos. Não obstante, a tortura ainda é praticada<br />

70


no mundo, frequentemente coberta por uma definição imprecisa<br />

da lei ou legislações locais vagas.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Como foi aqui no meu caso.<br />

PAUL (ainda mais indignado): Viu, ele está novamente<br />

levantando falso testemunho contra a minha autoridade, não<br />

aceita que eu ...<br />

ESCRIVÃO (afoito): É isso aí, o seu pecado é não aceitar que o<br />

Paulzinho seja um torturador.<br />

PAUL (fulo de raiva): Eu! Torturador? Isso é a primeira coisa na<br />

vida que não tolero de ser chamado.<br />

ESCRIVÃO (ingênuo): No artigo primeiro da Convenção das<br />

Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas<br />

Cruéis, Desumanos ou Degradantes é dito: “Para fins da presente<br />

Convenção, o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual<br />

dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos<br />

intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira<br />

pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela<br />

ou terceira pessoa tenha cometido, ou seja, suspeita de ter<br />

cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas;<br />

ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer<br />

natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um<br />

funcionário público ...”<br />

(interrompe a leitura por ficar tão contente): Viu como eu estou<br />

certo?<br />

PAUL (mais fulo de raiva): Como certo!<br />

ESCRIVÃO (didático): É tão lógico. Vamos pensar um pouco.<br />

Todo funcionário público não é é torturador?<br />

71


PAUL (agitado): Isso é inegável. No atendimento ao público por<br />

exemplo, quando não é no verbal e nem no físico é no braço<br />

mesmo. Eu mesmo ...<br />

ESCRIVÃO (parando com aquele arrebatamento): Você não é<br />

funcionário público?<br />

PAUL (orgulhoso): Claro. E sem concurso.<br />

ESCRIVÃO: Então, logo, você é um torturador, entendeu como<br />

é simples? Nada de complexo e nem de complexado. Nada de<br />

transtorno nem de transtornado. Nada de toque nem de tocado.<br />

Nada de trantorno obssessivo compulsivo e nem de estorvado<br />

tantalizado coativado.<br />

PAUL (acabrunhado): Você tem razão. Eu reconheço que meu<br />

comportamento é excessivo, mas é que eu tento ignorar essas<br />

idéias persistentes geradoras de ansiedade e angústia.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): Ansiedade e angústia maior do<br />

homem moderno, não são da infelicidade ou desprazer, mas, sim<br />

o da frustração. Não ter lugar ao Sol, mas sim de lugar onde o Sol<br />

é o olho do outro, não estou causando inveja no outro, os outros<br />

não me olham, não faço espetáculo, não sou notado.<br />

ESCRIVÃO (penalisado com a tragédia do seu colega de<br />

trabalho, vira-se para o outro): E você seu ex-deficiente não tem<br />

pena dele não? Você tem que aceitar que o coitadinho do<br />

Paulzinho cumpra sua missão e lhe dê umas bolachas de vez em<br />

quando. Está ouvindo o que eu disse seu surdo?<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): Viver com sabedoria é conseguir não<br />

ser Maria vai com as outras. Quase toda barbárie decorre das<br />

pessoas irem com as outras. Fenômenos de massa. No Nazismo,<br />

participou quando não fez nada para mudar e acabou<br />

contribuindo.<br />

72


PAUL (suspirando aliviado): Ufa! Até que enfim o meu nobre<br />

colega deu uma dentro, agora você está sendo realista.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Realista?<br />

Delegado fica travado. Enquanto o do mesmo lado ...<br />

ESCRIVÃO: Realista é ser objetivo.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (falando baixinho para si mesmo): Morno.<br />

ESCRIVÃO: É tão lógico. Vamos aprofundar um pouco a<br />

realidade de que Paul é torturador. Prepare-se para receber uma<br />

aula.<br />

PAUL: Lá vem você com essa idéia de novo, sabe que eu não<br />

tolero de ser chamado de ...<br />

ESCRIVÃO: ... psiu, psiu, essa palavra não existe, calma,<br />

calminha. Torturador é um universal que existe ...<br />

PAUL (fazendo biquinho): Existe aonde? Em quem?<br />

ESCRIVÃO: Existe objetivamente na forma de transcender em<br />

relação aos particulares de Paul como ato de dar soco em suspeito<br />

com a intenção de obter do socado informações ou confissões.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (falando baixinho para si mesmo): Está<br />

esquentando.<br />

Paul não está gostando nenhum pouquinho daquela aula.<br />

Resolve saber o que pensa o outro aluno.<br />

PAUL: O que o presidiário está entendendo dessa meia aulinha?<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (surpreendido, fala alto): Esqueenntou ...<br />

eeennntornou ... sobrooouuu para mim.<br />

73


(refazendo-se): Mas, também, pode ser entendido, como<br />

imanente encontrado nas coisas individuais.<br />

ESCRIVÃO (emendando rapidamente): No que você acabou de<br />

dizer, o torturador é intrínseco e permanente no soco de Paul;<br />

enquanto, no que eu mencionei, o torturador é exterior e<br />

transitório no soco de Paul.<br />

Dez minutos se passam com os dois falando. Eles de tão felizes se<br />

procuram circundar por aquela troca intelectual, cultural, aliás,<br />

digo que eles procuram abraçar porque o algemado encontra<br />

dificuldade em fazê-lo. O delegado assistindo o que para ele uma<br />

grande palhaçada, está completamente desiludido.<br />

PAUL (pensando): É soco para todo lado e é sempre soco do<br />

Paul. Esses dois precisam ser urgentemente internados em razão<br />

de um dos três critérios principais do delírio ser por demais<br />

acentuado, qual seja: a certeza mantida com absoluta convicção<br />

de que sou torturador. Isso é uma idéia fixa, caduca, falsa, não<br />

procede, difamatória, injuriosa.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Antes de vir para cá, no México, eu não tive a<br />

oportunidade de explicar que, em linhas gerais, Platão<br />

desenvolveu a noção de que o homem está em contato<br />

permanente com dois tipos de realidade: a inteligível e a sensível.<br />

A primeira é a realidade imutável, igual a si mesma. A segunda<br />

são todas as coisas que nos afetam os sentidos, são realidades<br />

dependentes, mutáveis e são imagens das realidades inteligíveis.<br />

Tal concepção de Platão também é conhecida por teoria das<br />

Idéias ou Teoria das Formas. Foi desenvolvida como hipótese no<br />

diálogo Fédon e constitui uma maneira de garantir a possibilidade<br />

do conhecimento e fornecer uma inteligibilidade relativa aos<br />

fenômenos.<br />

Para Platão, o mundo concreto percebido pelos sentidos é uma<br />

pálida reprodução do mundo das Idéias. Cada objeto concreto que<br />

existe participa, junto com todos os outros objetos de sua<br />

categoria de uma Idéia perfeita. Uma determinada caneta, por<br />

74


exemplo, terá determinados atributos (cor, formato, tamanho etc).<br />

Outra caneta terá outros atributos, sendo ela também uma caneta,<br />

tanto quanto a outra. Aquilo que faz com que as duas sejam<br />

canetas é, para Platão, a Idéia de Caneta, perfeita, que esgota<br />

todas as possibilidades de ser caneta. A ontologia de Platão diz,<br />

então, que algo é na medida em que participa da Idéia desse<br />

objeto. No caso da caneta é irrelevante, mas o foco de Platão são<br />

coisas como o ser humano, o bem ou a justiça, por exemplo.<br />

ESCRIVÃO: O problema que Platão propõe-se a resolver é a<br />

tensão entre Heráclito e Parmênides: para o primeiro, o ser é a<br />

mudança, tudo está em constante movimento e é uma ilusão a<br />

estaticidade, ou a permanência de qualquer coisa; para o segundo,<br />

o movimento é que é uma ilusão, pois algo que é não pode deixar<br />

de ser e algo que não é não pode passar a ser; assim, não há<br />

mudança.<br />

Apurinhado está o delegado com aquela conversa.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Isso aí! Por exemplo, o que faz com que<br />

determinada árvore seja ela mesma desde o estágio de semente<br />

até morrer, e o que faz com que ela seja tão árvore quanto outra<br />

de outra espécie, com características tão dessemelhantes? Há aqui<br />

uma mudança, tanto da árvore em relação a si mesma, pois com o<br />

passar do tempo ela cresce, quanto da árvore em relação a outra.<br />

Para Heráclito, a árvore está sempre mudando e nunca é a<br />

mesma, e para Parmênides, ela nunca muda, é sempre a mesma e<br />

sua mudança é uma ilusão .<br />

Platão resolve esse problema com sua Teoria das Idéias. O que há<br />

de permanente em um objeto é a Idéia; mais precisamente, a<br />

participação desse objeto na sua Idéia correspondente. E a<br />

mudança ocorre porque esse objeto não é uma Idéia, mas uma<br />

incompleta representação da Idéia desse objeto. No exemplo da<br />

árvore, o que faz com que ela seja ela mesma e seja uma árvore e<br />

não outra coisa, a despeito de sua diferença daquilo que era<br />

quando mais jovem e de outras árvores de outras espécies e<br />

mesmo das árvores da mesma espécie é a sua participação na<br />

75


Idéia de Árvore; e sua mudança deve-se ao fato de ser uma pálida<br />

representação da Idéia de Árvore.<br />

O delegado está batendo cabeça de tanto sono.<br />

ESCRIVÃO: Platão também elaborou uma teoria gnosiológica,<br />

ou seja, uma teoria que explica como se podem conhecer as<br />

coisas, ou ainda, uma teoria do conhecimento. Segundo ele, ao<br />

ver um objeto repetidas vezes, uma pessoa se lembra, aos poucos,<br />

da Idéia daquele objeto que viu no mundo das Idéias. Para<br />

explicar como se dá isso, Platão recorre a um mito ou uma<br />

metáfora segundo a qual, antes de nascer, a alma de cada pessoa<br />

vivia em uma estrela, onde se localizam as Idéias. Quando uma<br />

pessoa nasce, sua alma é "jogada" para a Terra, e o impacto que<br />

ocorre faz com que esqueça o que viu na estrela. Mas, ao ver um<br />

objeto aparecer de desiguais formas como as árvores que se<br />

distinguem, a alma se recorda da Idéia daquele objeto que foi<br />

visto na estrela. Tal recordação, em Platão, chama-se anamnesis.<br />

Graças à Deus que entram empurrados por soldados quatro<br />

figuras: um caminhoneiro, um anão, um fugitivo e um jovem com<br />

roupas espalhafadosas. O que acorda o delegado, porém<br />

deixando-o mais ...<br />

PAUL (entediado): Já começou o dia e não muda nada.<br />

Escrivão se levanta, tropeçando nas mesas e cadeiras vai até os<br />

soldados e escuta o que eles tem para dizer e volta tropeçando<br />

nas mesmas coisas.<br />

PAUL: Eu não disse!<br />

ESCRIVÃO (relatando em tom de cumpridor de sua função):<br />

Relato um: O caminhoneiro que já foi por nós várias vezes<br />

advertido por carregar no seu parachoque os dizeres: “Não<br />

carrego puta nem soldado da polícia”. Finalmente, atendendo os<br />

nossos pedidos trocou para: “Apaguei, mas não carrego”.<br />

76


PAUL (aperta a mão do caminhoneiro): Parabéns por nos ter<br />

atendido.<br />

ESCRIVÃO: Relato dois: “Num mictório público, este anão aqui<br />

presente pediu para um camarada que estava mijando: “Amigo!<br />

Me bota em pé nesse banquinho prá eu poder mijá?” O cara<br />

atende ao pedido. Assim que sobe no banco o anão meliante<br />

agarra o saco do sujeito e diz: “Isso é um assalto! Me passa logo a<br />

carteira senão eu pulo do banquinho.”<br />

PAUL: Você não pára com essas brincadeiras não, seu anão?<br />

Quando é que você vai crescer?<br />

ESCRIVÃO: Relato três: o fugitivo que sempre se negando a<br />

ficar preso, fugiu mais uma vez, e agora foi da nossa delegacia.<br />

PAUL: Impossível! Eu mandei vigiar todas as saídas.<br />

ESCRIVÃO: É, mas ele fugiu pela entrada.<br />

PAUL: Está bom. De agora em diante mande cimentar toda a<br />

entrada da delegacia.<br />

ESCRIVÃO: Relato quatro: O jovem de roupas espalhafadosas<br />

muito conhecido de todos nós, particularmente querido da<br />

autoridade aqui presente ...<br />

PAUL: ... prossiga, deixe de ser prolixo.<br />

ESCRIVÃO: O jovem querido quando inquirido “Por que você<br />

está aqui?”, respondeu “Vim trabalhar”. Reformulando-se a<br />

inquisição: “Por que você está aqui pelo que fez lá fora?”,<br />

respondeu: “Concorrência comercial. O governo e eu fabricamos<br />

notas iguais”.<br />

PAUL: Parabéns, eu tenho orgulho de pessoas assim, é dessas<br />

pessoas com iniciativa que o país precisa, embora muitas vezes<br />

77


não sejam devidamente compreendidas. Isso merece uma<br />

comemoração.<br />

(ordenando para um dos soldados): Abra aquele vinho para nós.<br />

Todos estão bebendo exceto o escrivão cegueta que não foi<br />

servido, ele então resolve acabar com aquele jejum<br />

descriminatório.<br />

ESCRIVÃO: Por favor, um copo de vinho.<br />

PAUL: Branco ou tinto?<br />

ESCRIVÃO: Qualquer um, eu não enxergo nada mesmo.<br />

Todos embiritados papeam alegre e intimamente.<br />

PAUL: Perai, o jovem espalhafadoso quer mais aumento! Vou<br />

ver o que posso fazer. Escrivão escreva aí ...<br />

ESCRIVÃO: Tudo bem delegado. Ele é seu filho, o senhor paga<br />

a ele o quanto quiser. Mas já que eu faço o mesmo serviço, não<br />

digo nem da qualidade e rapidez, não acha que o senhor devia me<br />

dar o mesmo salário?<br />

PAUL: Ah, é? E você deixa fazer com a sua mãe o que eu faço<br />

com a dele?<br />

ESCRIVÃO: Tudo bem, não se leva mais adiante essa conversa.<br />

Diga lá o quanto ele vai ser aumentado para a gente incluir na<br />

folha.<br />

Delegado abre a boca, parecendo não ter dormido muito bem a<br />

noite.<br />

ESCRIVÃO: Passou mal a noite?<br />

78


PAUL: Minha mulher que não me deixa dormir. Qualquer<br />

barulhinho, ela já pensa que é assaltante e me acorda.<br />

ESCRIVÃO: Por que não fala para ela que assaltante não faz<br />

barulho?<br />

PAUL: Já falei. Agora é que ela não me deixa dormir mesmo.<br />

ESCRIVÃO: Eu tenho uma solução é só você ver na astrologia<br />

...<br />

PAUL (como bom supersticioso): Boa idéia! Porque eu não<br />

pensei nisso antes.<br />

(comunicando): Eu nasci às seis horas da manhã no dia seis do<br />

mês seis, no quarto número seis da maternidade. Quando fiz seis<br />

anos de casado, comprei um bilhete final 006 ganhei seis milhões.<br />

Aí fui no hipódromo e joguei tudo no cavalo número seis, no<br />

sexto páreo.<br />

ESCRIVÃO: Puxa! E quanto ganhou?<br />

PAUL: Nada! O cavalo chegou em sexto lugar.<br />

ESCRIVÃO: Que azarado! Isso é muito triste.<br />

PAUL (querendo sensibilzar): Pois é, eu sem sorte desse jeito, e<br />

ainda tem gente que acha que eu sou um ...<br />

(fala baixinho, quase inaudível): ... torturador.<br />

(falando bem alto): Eu sou é um incompreendido, aposto que é<br />

bem capaz de quando eu morrer, até de você, meu colega de<br />

trabalho, de tantos anos juntos, ir cuspir na minha sepultura.<br />

ESCRIVÃO: Não, isso é impossível. Detesto entrar em fila.<br />

PAUL (armando, pensa): Pensam que eu esqueci é. Vou dar<br />

trelha para esses dementes, vou entretê-los até que eu possa<br />

prendê-los e interná-los no manicômio de uma dessas Ong’s<br />

79


malucas com sede bem longe daqui. Aliás, um já está até<br />

algemado, só falta o gordão cego. Mas, vamos a ação chutando<br />

qualquer coisa.<br />

(falando): Felicidade. Foi o que fizeram ao estudar a felicidade.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (corrigindo): O que foi feito, eu diria que foi algo<br />

como estudar para a felicidade.<br />

PAUL (chuta outra): Gravidade não é entidade, é uma equação.<br />

Logo, não é animismo, antroporfismo.<br />

Os outros dois ficam se entreolhando como se dissessem “o que<br />

deu nele?”.<br />

PAUL (continuando): Se os cães, as cutias e as chinchilas<br />

nasceram com dentes é para roerem.<br />

ESCRIVÃO: Se pensarmos assim ...<br />

PAUL (“complementando”): ... aonde estará a virtude?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Ora, onde sempre esteve?<br />

PAUL: E isso é aonde? Aonde? Dou lhe uma, dou-lhe duas, ...,<br />

dou-lhe ...<br />

ESCRIVÃO (afobado): No meio.<br />

PAUL (aceitando): Está bem. Dou-lhe dois e meio ...<br />

ESCRIVÃO: O vício se dá ou na falta ou no excesso. Por<br />

exemplo: coragem é uma virtude e seus contrários são a<br />

temeridade, que é o excesso de coragem, e a covardia, a ausência<br />

de coragem<br />

PAUL (visualizando uma brecha para se livrar daquela pecha):<br />

Pois é, por isso que em vez de ficarem dizendo que sou um<br />

80


torturador, e outros amigos meus de acharem que sou um<br />

excelente consolador, porque não concluírem que eu sou uma<br />

espécie de Salomão, um árbitro de futebol, um juiz Laláu.<br />

ESCRIVÃO: Isso é lá com o lado mencionado pelo barbudo que<br />

apregoa a justiça como a virtude suprema, a sintonizadora das<br />

demais virtudes. O lado exposto por mim, a vê no meio com a<br />

idéia de pesar e ponderar para deliberar.<br />

PAUL: Por isso que eu não sou de direita e nem de esquerda.<br />

ESCRIVÃO (se dirigindo ao outro): O que você acha?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Acho que não podemos fazer definições nem<br />

deixar de fazê-lo, mas nem por isso devemos de abster-nos de<br />

ficar no meio-termo.<br />

ESCRIVÃO: Pessoa em cima do muro tem de ser derrubada, é<br />

isso que quer dizer e é o que eu concordo.<br />

Sentindo que do ângulo fechado da visão do seu colega de<br />

profissão a batata está ficando quente para o seu lado, procura<br />

jogar uma última cartada do prisma do barbudo para ver se<br />

consegue ficar no ponto de escapar daquele estigma que não<br />

convém nem pronunciar.<br />

PAUL (procurando seduzir): Você que ainda estranho, já não é<br />

tão misterioso e complicado, mas, sim um explicável e simples.<br />

Você que ainda é um preso algemado, mas que merece ser um<br />

solto desatado nesse Estados Undos da América do Norte, me<br />

diga com toda sinceridade contida no seu coração em apenas duas<br />

palavras ... vou lhe dar uma palhinha, ela começe com a letra “c”<br />

de consolador. Inclusive, vale ser esta palavra. Dou-lhe uma,<br />

duas, dois e meio, ...dou-lhe ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Corrupto torturador.<br />

81


O delegado olha furioso para este que acaba de falar e o põe de<br />

joelho.<br />

PAUL (bufando de raiva): Suspeeeiiitttooo.<br />

Este se ergue e ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (altivo): La Passionária bradou: “Mais vale morrer<br />

de pé do que viver de joelhos.”<br />

(e continua): O quanto de estranho suspeito sou que se presta a<br />

ser explicável em prol do esclarecimento. Vide: “Dialética do<br />

esclarecimento” de Adorno e Horkheimer.<br />

PAUL (ultra irado): Ainda tem gente ... tem gente ... que<br />

acredita em conhecimento e cultura.<br />

Sem que se esperasse o delegado se atira agressivamente para o<br />

outro lhe dando uma gravata e lhe pondo as algemas. O que<br />

repentinamente a ira dá lugar a um descanso pela garantia de<br />

ver brevemente os algemados como pacientes de manicômio lá<br />

muito longe.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): A segunda importante personalidade<br />

da história foi Isaac Newton, o mais influente cientista que já<br />

nasceu, um dos seus livros é o do mais valioso para a<br />

humanidade: “Princípios Matemáticos da Filosofia Natural”. A<br />

décima personalidade foi Albert Einstein o maior cientista do<br />

século XX que escreveu o por demais significativo livro<br />

“Relatividade”. Isso sem esquecer de Rutheford que foi o maior<br />

físico experimental do século XX e Heisenber o prêmio Nobel de<br />

Física em 1932.<br />

Lembro nos inícios do século XXI que o brasileiro que chegou<br />

mais perto do Nobel da Física foi o César Lattes. Sabe aquele gol<br />

que o juiz não marcou porque não viu a bola? Essa parece ser a<br />

única explicação para César Lattes não ter ganho o prêmio de<br />

Física de 1950. E era um ateu místico. Quem diria que mais tarde<br />

...<br />

82


PAUL (pensando): Por que esse barbado algemado desdentado<br />

um baita de um traficante de armas não me ameaçou com a rede<br />

internacional dos contrabandistas, não se aproximou com aquele<br />

jeitinho de subornador ou enforcador ... É se continuar assim ele<br />

lá será apenas considerado ...<br />

83


O ARREDIO<br />

Há oito anos atrás, ao lado de um perigoso quartel cheio de<br />

explosivo se encontra uma ameaça maior. Um edifício onde se<br />

acolhem tormentos e se recolhem e tratam sofrimentos de modos<br />

especiais em doentes especiais, havia um destacado letreiro na<br />

porta dizendo: “Não Há Mais Vagas”. Ele de tão enorme<br />

escondia o nome daquele estabelecimento: “Recanto dos<br />

Alienados”. Ousando-se a passar pela porta se vê vários<br />

enrolados numa enorme bandeira vermelha com foice e martelos<br />

em cores amarelos e uma estrela vermelha na ponta cantando a<br />

Internacional comunista, outros espantando imaginários animais<br />

de grande porte baseados no grupo folclórico de dança<br />

organizado pela Balalaica, alguns exorcizando, outros sendo<br />

exorcizados, alguns discursando, outros ouvindo a Hora da<br />

Rússia, vários são os animadores de auditório, roteiristas e<br />

artistas de novelas, repórteres de jornalismo, estudantes,<br />

sindicalistas, bolsistas, executivos, enfim, é por demais<br />

compreensível que não exista lugar disponível e que se tenha<br />

aprendido com outros governantes distantes: “nunca na história<br />

desse país se viu tanta alienação, por isso o alto índice de<br />

aprovação [o restante se está cansado de ouvir e de acreditar]”.<br />

Andando mais um pouco se nota alguém todo vestido de branco,<br />

muito risonho, provavelmente mais um da equipe, pois, em suas<br />

costas está escrito “DOUTOR P. IRADO”. Uma mulher meia de<br />

tudo, ou seja, meia normal, meia piranha, meia perua, meia<br />

acabada com cabelo indefinido entre maria chiquinha e maria<br />

chuquinha, meia coberta com curtas blusa e saia mostrando as<br />

gorduras na barriga e varizes nas pernas, vem correndo com<br />

sapatos de salto altíssimo em sua direção com uma seringa na<br />

mão e com as demais características de ser uma ENFERMEIRA.<br />

Ela o toca no ombro indicando que lhe vai enfiar a agulha com<br />

intuito de dar um sossega leão naquele tão sorridente que vira,<br />

vê e ...<br />

DOUTOR P. IRADO (assustado): Meu Deus, o que é isso!<br />

85


Quando vê quem é, suspira um pouco aliviado.<br />

ENFERMEIRA (esbaforida, porém romântica): Piotr querido,<br />

Piotrinho para os íntimos, você não tem jeito mesmo.<br />

Ele com uma das mãos no pulso, com a outra passando um lenço<br />

branco no rosto pálido.<br />

DOUTOR P. IRADO (trêmulo): Quase duzentos de pulsação.<br />

Você sabe como eu reajo imediatamente a situação nova ou de<br />

tensão. Taquicardia e sudorese estão lá para o espaço de tão altas<br />

que nem o Iuri Gagarin consegue ver.<br />

ENFERMEIRA: Não é nada dessas suas frescuras com medo de<br />

pavor ou pavor de alegria. É que você ... você outra vez com o<br />

jaleco trocado! Assim não dá! O que o pessoal vai pensar do meu<br />

Piotr? Afinal o meu amor é um médico respeitável.<br />

DOUTOR P. IRADO: Aqui não tem problema não. Aqui só tem<br />

maluco ou já esqueceu meu bem que isso aqui é um HOSPÍCIO?<br />

(mudando de atitude): Trocado é isso aqui, essa revista de moda<br />

feminina no lugar do prontuário dos pacientes, a alienação no<br />

lugar da SAÚDE. Aliás, o que eu exijo é que saiba a respeito de<br />

cada um dos internados.<br />

ENFERMEIRA: Mas, são os mesmos. Não entrou ninguém<br />

novo.<br />

DOUTOR P. IRADO: Perfeição minha santa, perfeição é o que<br />

temos de atingir. Veja como eu consigo falar de cabeça da cabeça<br />

de cada um desses internados. Está vendo aquele com roupa de<br />

carteiro que quando me viu saiu correndo e está pulando<br />

apressadamente o muro do hospital?<br />

ENFERMEIRA: Esse eu conheço, que ingratidão! Logo, fingir<br />

que não viu você ... você que acabou de operá-lo ainda há pouco.<br />

86


DOUTOR P. IRADO: De fato, tem razão, ele não só é ingrato<br />

como mal educado.<br />

(narrando o ocorrido): Ao acordar da anestesia, esse carteiro<br />

começou a me xingar, a gritar, a fazer o maior fuzuê. Eu dentro<br />

das minhas extremas responsabilidades médicas, calmo, procurei<br />

lhe conscientizar: “Controle-se amigo, não tem nenhum cachorro<br />

querendo lhe morder por aqui. Isso que, aliás, já está passando é<br />

causado pelo efeito da anestesia. Afinal de conta acabei de tirar<br />

seu apêndice há apenas meia hora.” Sabe o que o ingrato e mal<br />

educado me falou: “Por isso mesmo! Eu só vim entregar um<br />

telegrama!”.<br />

ENFERMEIRA: Incrível! Como é que você ia adivinhar, ele<br />

deve ter errado de entrada. Bem feito para não se meter onde não<br />

é chamado.<br />

Ela pára de falar porque percebe que dois estão olhando com<br />

cara feia para o médico.<br />

ENFERMEIRA: Outros dois sem gratidão são aqueles ali. O<br />

coroa então, eu me lembro muito bem que você pegou o avião e<br />

se mandou e atendeu o chamado dele no meio da noite, num frio<br />

de fazer inveja a pingüim, para ir naquela fazenda dele longe a<br />

bessa, e tá ali com aquela tromba de elefante.<br />

DOUTOR P. IRADO: As pessoas são assim mesmo, o que se há<br />

de fazer? Ele é um coronel do sertão lá na Sibéria, muito brabo e<br />

excessivamente hipocondríaco.<br />

(contando o caso): Só por que ao examiná-lo com cuidado lhe fiz<br />

um “pergunta clínica”, duas “recomendações” e um<br />

“diagnóstico”, ele ficou assim.<br />

Indaguei: “Coronel, o senhor já fez seu testamento?”. O velho<br />

ficou branco que nem cera, e veio com aquela hesitação: “Mas,<br />

doutor ...”. “Mande chamar o tabelião, agora!”. O tabelião veio,<br />

naquela madrugada gélida na Sibéria. “Agora chame a sua família<br />

toda”. Mais gente gelada e sem dormir. Tabelião a posto, família<br />

reunida, o coronel choraminga: “Pelo amor de Deus, doutor. Eu<br />

87


estou tão ruim assim?”. “Que nada, coronel! O senhor não tem<br />

nadinha. Eu só não queria ser o único idiota a ser acordado à toa,<br />

a esta hora da noite congelante.”<br />

ENFERMEIRA: Se você não me contasse com todos os detalhes<br />

eu não acreditava que você não tivesse feito nada de mal para ele.<br />

(lembrando): Ah! Faltou aquele detalhe. Não foi ele que saiu<br />

correndo com uma foice e um martelo para lhe matar? Puxa! Se<br />

ele sair daqui ele vai acabar consigo, não é?<br />

DOUTOR P. IRADO: Então, por que acha que ele está aqui<br />

dentro?<br />

ENFERMEIRA: Só não entendo por que ele tem de estar aqui<br />

zangado. A opção foi dele, não foi? Então agüenta as<br />

conseqüências. Que velho mal-humorado, nossa!<br />

(apontando para o outro bronqueado): E aquele outro?<br />

DOUTOR P. IRADO: O Sergei? O Sergei foi o seguinte. Você<br />

sabe como eu sou cuidadoso com as coisas alheias, não sabe?<br />

ENFERMEIRA (se jogando nos seus braços): E como!<br />

Principalmente com as minhas.<br />

DOUTOR P. IRADO (recompondo-a para longe dos seus<br />

braços): Mas, voltando ao assunto do Sergei. Ao examiná-lo<br />

indaguei: “Já extraí suas amídalas?”. “Não”. “Seu apêndice?”.<br />

“Não”. E toco a fazer perguntas e ele só diz não. Até que: “Você<br />

tem uma namorada chamada Valentina Pavlova?”. “Tenho”. “Eu<br />

sabia que tinha tirado alguma coisa de você”. Mais um que correu<br />

atrás de mim só que com um facão de cozinha.<br />

ENFERMEIRA: Mas, tirado não é tarado, ou é? Só por isso, ele<br />

ficou de mal? Esse pessoal de hoje anda muito sensível, qualquer<br />

coisinha, pronto. Não liga não querido.<br />

DOUTOR P. IRADO: Você sabe que eu não sou tarado.<br />

88


ENFERMEIRA: Sobre isso não tenho a menor certeza. Lembro<br />

que você chegou ir ao psicanalista por causa disso. Quando ele<br />

lhe mostrou um triângulo, seus olhos se encantaram, seus cabelos<br />

se arrepiaram, os pés se levantaram, e quando ele lhe perguntou:<br />

“O que é isto?”.<br />

DOUTOR P. IRADO (na lata): “Uma fechadura e não quero<br />

nem pensar no que está acontecendo aí dentro.”, foi a minha<br />

resposta imediata, para não deixar dúvida.<br />

ENFERMEIRA: E agora com o retângulo, a mesmas sensações<br />

e interrogação: “O que é isto?”<br />

DOUTOR P. IRADO: E eu pumba: “Uma janela de motel. Não<br />

quero nem pensar no que está acontecendo aí dentro.<br />

ENFERMEIRA: E da parte dele foi feio quando lhe mostrou o<br />

círculo e “O que é isto?”<br />

DOUTOR P. IRADO: Olhei bem feio para ele e disse: “Um<br />

olho mágico. Nossa, não quero nem pensar no que está<br />

acontecendo aí dentro.”<br />

ENFERMEIRA: E ele com aquela cara de pau dá o seu<br />

diagnóstico: “É, não há dúvida de que você tem mesmo<br />

problemas sexuais”.<br />

DOUTOR P. IRADO: Ah! Mas eu não deixei barato: “Eu tenho<br />

problemas ... problemas sexuais! E o senhor, que ficou me<br />

mostrando o tempo todo esse material pornográfico?”<br />

Nesse ínterim, outro passa e vira a cara para o outro lado,<br />

demonstrando muito desdém.<br />

ENFERMEIRA: E esse outro sensível aí o que foi?<br />

(gritando para o que acabou de passar): Também tá de mal, é?<br />

89


DOUTOR P. IRADO: E olha que eu fui muito educado com ele.<br />

Ele me fez uma pergunta e eu sem me fazer de rogado, sem<br />

arrogância costumeira dos médicos, sem tapear ninguém, com<br />

muita sinceridade, com muita ...<br />

ENFERMEIRA: Conta logo.<br />

DOUTOR P. IRADO: “Escuta peixe é realmente saudável?”.<br />

Eu, na miinnhaaa, com raiva e hostilidade contida, respondi:<br />

“Bom, pelo menos até hoje eu nunca atendi nenhum em meu<br />

consultório.”<br />

ENFERMEIRA: O que ele queria? Que você mentisse, ficasse<br />

contando vantagem, que o seu consultório tem vários clientes<br />

como peixes, aves, microorganismos. Será que ele pensou que<br />

você era veterinário, hein?<br />

(apontando para um outro): E aquele no cantinho todo<br />

envergonhado que não consegue olhar direito para o meu<br />

Piotrinho?<br />

DOUTOR P. IRADO: Esse falou para mim todo sem jeito:<br />

“Sabe o que é doutor? Eu tenho um amigo que pensa que<br />

apanhou uma doença venérea e ...”. Eu interrompi logo e disse<br />

para ajudá-lo “Tudo bem, tudo bem, tire o seu amigo para fora<br />

para eu examiná-lo ...”<br />

ENFERMEIRA: É mais aquele ali não se cansa de acenar<br />

alegremente para você.<br />

DOUTOR P. IRADO: É que eu curei a mulher dele com crises<br />

de nervos.<br />

ENFERMEIRA: Como! Você disse o que para ela.<br />

DOUTOR P. IRADO: Que isso era sinal de velhice, que as<br />

amigas dela estavam melhores do que ela, apontei que elas<br />

tinham perdido cinqüenta gramas, e assim por diante.<br />

90


ENFERMEIRA: Que técnica é essa?<br />

DOUTOR P. IRADO: Técnica do CC, isto é, da cura pela<br />

competitividade.<br />

Agora é a vez do doutor. Ao olhar para um grupinho, fecha a<br />

cara.<br />

ENFERMEIRA: O que eles lhe fizeram?<br />

DOUTOR P. IRADO (desconcentrado): Minha memória foi<br />

embora.<br />

Depois de quinze minutos. Ela lembrou da técnica do CC – cura<br />

pela competitividade - empregada ainda pouco e assim saber o<br />

que fazer nesses casos. A criatura contra o criador.<br />

ENFERMEIRA: Não se preocupe, se você não melhorar eu<br />

chamo o seu substituto que está melhor do que você, e não só em<br />

concentração como também em titulação, experiência, conquista<br />

...<br />

DOUTOR P. IRADO: Já me lembrei. Aquele com cara<br />

enfezada, só porque eu vendo a sua ficha, falei: “E então, o<br />

senhor sofre de artrite.” Ele de pronto: “É claro! O que o doutor<br />

queria? Que eu desfrutasse de artrite, que eu usufruísse de artrite,<br />

que eu me beneficiasse de artrite?”<br />

Eu fingi que não entendi aquela má criação e puxei outro assunto.<br />

“Vi você saindo da farmácia, está doente?”. E ele de pronto: “Por<br />

que tenho de estar doente? Por acaso estou morto quando saio do<br />

cemitério?”.<br />

ENFERMEIRA: Nossa que ignorante! E aquele com um<br />

vidrinho?<br />

DOUTOR P. IRADO: Nossa digo eu! Esse veio com aquele<br />

vidrinho, todo contente, e me entrega dizendo: “Olha aí doutor,<br />

91


acabei de inventar um remédio que deixa a gente com poder de<br />

adivinhar as coisas.”. Eu abri, cheirei o conteúdo: “Mas, isso aqui<br />

é urina!”. “Adivinhou! Viu só como o remédio é bom?”.<br />

ENFERMEIRA: E aquele com aquela tela totalmente em<br />

branco?<br />

DOUTOR P. IRADO: Aquele foi o seguinte. Eu fui à exposição<br />

de quadros do hospício e ele estava expondo aquela tela.<br />

Desconfiado, perguntei: “O senhor é interno ou de fora?”. Ele me<br />

indagou: “Por que da dúvida? Por acaso se deve a essa obraprima<br />

que pintei representando “A passagem pelo Mar<br />

Vermelho”?”. “Mas, onde está o Mar Vermelho?”. “Afastou-se,<br />

ao comando de Moisés.” “E onde está o Moisés?”. “A frente dos<br />

hebreus.” “Mas onde estão os hebreus?” “Já passaram.” “E os<br />

egípcios?” “Ainda não chegaram.”. Aí ele teve a cara de pau de<br />

me perguntar: “O senhor, com essas dúvidas todas, é interno ou<br />

de fora?”.<br />

ENFERMEIRA: Sem comentários! Ele ter uma dúvida a esse<br />

seu respeito ... bem, pensando bem, o meu bem não bate muito<br />

bem, não é bem?<br />

Ele não prestando atenção. No que ela dizia, mas sim naquele<br />

paciente que escrevia uma carta.<br />

DOUTOR P. IRADO: Aquele ali escreve carta para si mesmo.<br />

Quando eu procurei saber o que estava escrito, ele me disse que<br />

não sabia por que ainda não havia recebido.<br />

ENFERMEIRA: Mas, isso é normal, o correio tem atrasado<br />

muito a entrega da correspondência, principalmente se os escritos<br />

estão em português. Quando eu quero mandar uma cartinha para<br />

o meu filhinho lá no México, não estando em espanhol, é a<br />

mesma coisa. Também com os entregadores de hoje em dia que<br />

se tem. Não viu aquele que você operou seu apêndice ainda<br />

92


pouco, que saiu correndo sem ter tido alta hospitalar e baixa<br />

desrespeitar?<br />

DOUTOR P. IRADO (sentindo-se culpado): Mesmo que eu não<br />

compreenda o que a carta em português tem a ver com o atraso<br />

que existe entre nós, fique convencida que eu adoro falar<br />

português com você, porém, eu não consigo me perdoar.<br />

ENFERMEIRA: Querido, mesmo que você não entenda direito<br />

o que uma coisa tem a ver com a outra, procure não ser tão autoexigente<br />

consigo, pois, todos têm direito de errar.<br />

DOUTOR P. IRADO: Eu não tinha esse direito, eu devia ter<br />

anotado o registro daquela carta. Se o correio extraviar a carta do<br />

doidinho como ele vai saber o que estava escrito nela?<br />

Fora do grupinho que deixou o doutor meio emburrado, um o<br />

deixa feliz a ponto de fazer um sinal de positivo.<br />

DOUTOR P. IRADO: Aquele é um homem de princípios.<br />

Quando eu bati o martelo para cima dele: “Vamos por ordem.<br />

Como foi o começo para o senhor?”. Muito compenetrado e com<br />

uma paz interior de fazer inveja, disse: “Bem, no princípio eu<br />

criei o céu e a terra ...”<br />

ENFERMEIRA: E a roda dos depressivos? Aliás, aqueles ali<br />

ficaram assim depois que eu falei com eles.<br />

DOUTOR P. IRADO: Foi! E como foi isso?<br />

ENFERMEIRA: O de cabeça baixa me perguntou: “O<br />

enfermeira, o doutor tem certeza que estou com tuberculose? Às<br />

vezes os médicos diagnosticam tuberculose e o doente morre de<br />

outra doença.” Eu procurei acalmá-lo pondo fim na sua dúvida:<br />

“Fique tranqüilo. Quando o doutor diz que é tuberculose o cliente<br />

morre de tuberculose mmeeesmooo.”<br />

93


DOUTOR P. IRADO: Ah! Ainda bem que não faltou com a<br />

verdade para o paciente e nem deixou pressentimento de que eu<br />

faltasse com ela.<br />

ENFERMEIRA: Isso é para você ver que pode confiar em mim.<br />

(falando do outro ao lado): O de cabeça no chão: “Puxa<br />

enfermeira, eu nunca poderia supor que tivesse problemas de<br />

saúde.”. “Viu como foi bom vir ao médico? Do contrário, o<br />

senhor iria continuar a viver alegre, despreocupado e ficaria velho<br />

sem sequer suspeitar que seja um homem doente ...”<br />

DOUTOR P. IRADO: Magnífico! Formidável essa sua<br />

intervenção. A gente não pode compactuar com a inconsciência<br />

individual e coletiva.<br />

ENFERMEIRA: Obrigada. Como é bom trabalhar num local e<br />

com pessoas que reconhecem o seu trabalho.<br />

(falando do próximo): Quanto ao deitado, você pode ficar<br />

despreocupado, pois acabei de acordá-lo para tomar o remédio<br />

para dormir.<br />

DOUTOR P. IRADO: Muito bem.<br />

(apontando): E aqueles dois caixeiros viajantes já ...<br />

ENFERMEIRA: ... já melhoraram um pouco. Agora mesmo, um<br />

puxou conversa com o outro: “Sua fisionomia não me é estranha.<br />

Acho que o vi não sei onde ...”. O caladão olhou-o de cima em<br />

baixo: “É. Eu vou lá de vez em quando.”<br />

O médico notando alguma coisa.<br />

DOUTOR P. IRADO: Êpa! Por que quando aquele me viu, saiu<br />

correndo e está se escondendo. Eu nunca o vi mais magro nem<br />

mais gordo em toda a minha vida.<br />

ENFERMEIRA: Não esquenta não, aquele rapaz trabalha na<br />

limpeza. É que ele falou para mim: “Perua velha é que dá bom<br />

94


caldo. Tô gamado em você, enfermeira. Por mim, eu não saia<br />

mais desse hospital.” Eu vendo que você e o rapaz não se<br />

repararam, joguei duas mentiras para cima dele: “E não vai sair<br />

mesmo, seu pilantra! Aquele médico que acabou de ver você<br />

passando a mão em mim é o meu marido.”<br />

Reparando nela, se dando conta daquela seringa que não saia de<br />

entre seus dedos.<br />

DOUTOR P. IRADO: Mas, o que o meu amor vai fazer com<br />

essa ojeriza em sua mão.<br />

ENFERMEIRA: Esqueci.<br />

DOUTOR P. IRADO: Você não vai voltar com ela por aí. Daqui<br />

a pouco vão achar que você é uma incompetente.<br />

ENFERMEIRA (nervosa): Então, o que eu faço?<br />

DOUTOR P. IRADO: Aplique num desses qualquer,<br />

provavelmente deverá estar precisando. Maluco é tudo igual.<br />

Um dos internados que se encontra barbado algemado<br />

desdentado que está apenas de fralda, um típico cueiroado,<br />

escutando aquilo tudo se põe a ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): Algumas das invenções que provocam<br />

verdadeira ruptura não são objetos, mas sim modos de analisar<br />

nosso relacionamento com o meio ambiente e com nós mesmos,<br />

uma das mais importantes concepções foi o método do médico<br />

grego Hipócrates, no ano de 400 a.C., que via o paciente como<br />

um indivíduo cuja constituição reagiria à doença de modo<br />

particular. Imagina se todo paciente é igual?<br />

ENFERMEIRA (embevecida): O seu diagnóstico é perfeito.<br />

Vou lhe dar o direito de escolha. Feche os olhos, dá uma<br />

rodadinha e, sem abri-los, aponte para um.<br />

95


Ele obedece e termina por apontar para um lá num canto,<br />

sozinho, bem retraído, recém chegado. Os dois, de mãos dadas,<br />

vão saltitando alegremente na direção daquele que ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando, assustado): No túnel do tempo para o<br />

passado: no século passado, abreugrafia, penicilina e soro<br />

antiofídico; no século retrasado, anestesia; no século XVIII,<br />

vacinação; e lá vêm eles, antes de Cristo, hospital.<br />

... pressentindo o perigo vai ...<br />

ENFERMEIRA (chamando a atenção): O estranho, ai, ai, ai,<br />

não fuja aos padrões sociais.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (continuando a pensar e assustado): Como não! É<br />

deles que vivo fugindo há muito tempo, estes padrões sociais não<br />

têm nada de normal.<br />

... e vai tentando se desviar, digo tentando porque o doutor<br />

conseguiu segurá-lo.<br />

DOUTOR P. IRADO: Aonde que o Napoleão pensa que vai?<br />

ENFERMEIRA: O arredio não precisa ficar com medo não, isso<br />

não é arco e flecha não, ela parece que só dói um pouquinho.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando, estressado): Parece! Ela tem a<br />

impressão! Eu tenho a certeza de que o sistema de arco e flecha<br />

data de 50 mil anos atrás, embora ainda seja empregado por<br />

várias tribos primitivas. A origem de aumentar a resistência do<br />

arco deu origem à besta que eu não sei se tem parentesco com<br />

essa mulher de seringa na mão.<br />

Enquanto isso, o doutor tem outras preocupações.<br />

DOUTOR P. IRADO: Mas, esse medicamento que está na<br />

seringa não é de tarja preta?<br />

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ENFERMEIRA: Não, ele é toda preta.<br />

DOUTOR P. IRADO: Ah! Então são aquelas que os donos das<br />

funerárias adoram.<br />

ENFERMEIRA: Não sei, nunca apliquei em nenhum deles.<br />

DOUTOR P. IRADO: Aproveita e espeta esse aí, porque todo<br />

barbudo tem pinta de ser dono de funerária. Vamos isso é para<br />

ontem.<br />

ENFERMEIRA: Relaxa. Tudo com você é para anteontem.<br />

(sonhando alto): Vai ser uma experiência e tanto. Eu sempre<br />

sonhei com isso, eu, uma simples mortal mulher.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (lembrando e associando): Não sei por que<br />

grandes livros estão me vindo na memória neste momento: “A<br />

interpretação dos sonhos” do fundador da psicanálise, Sigmund<br />

Freud; “Elogio da loucura” de Erasmo; “O Segundo Sexo” de<br />

Simone de Beauvoir.<br />

DOUTOR P. IRADO: Rápido! Rápido!<br />

ENFERMEIRA: Que homem estressado é esse!<br />

Ela olha aquele ombrão que o doutor está segurando<br />

estressadamente, se concentra, fecha os olhos, e pimba, só que o<br />

pinta de dono de funerária se esquiva e o doutor é que é<br />

espetado. Ela abre os olhos e começa a falar.<br />

ENFERMEIRA (emocionada): Essa foi a minha primeira vez,<br />

eu nunca vou esquecer.<br />

DOUTOR P. IRADO: Quem não vai esquecer sou eu, com esse<br />

seu patuá de escorpião, balaio de gato, mochila de cobra, sacola<br />

de ...<br />

97


ENFERMEIRA (não entendendo nada do que havia<br />

acontecido): Que apelido carinhoso, meu amor: sacola. Confessa:<br />

você nunca viu essa experiência, hein seu Piotrinho, seu<br />

pesquisador gostosinho. Diz para sua sacola o que você não vai<br />

esquecer?<br />

DOUTOR P. IRADO (esbravejando): Esquecer que fui eu, fui<br />

eu que recebi aquela dose, foi um ato de ...<br />

ENFERMEIRA (procurando adivinhar a complementação):<br />

Coragem! Que pesquisador! Que honra em participar dessa sua<br />

experiência com o próprio corpo.<br />

No ar se percebe um tremendo mau cheiro partindo daquele cara<br />

pálida não indígena.<br />

DOUTOR P. IRADO (um verdadeiro medo pensante): Acho<br />

que vou morrer. Estou suando frio e todo borrado.<br />

ENFERMEIRA (decepcionada): Perai, posso por tudo a perder.<br />

Eu só injetei a metade, tenho que lhe injetar o restante. Tudo pela<br />

ciência! Tudo por mim!<br />

Já cheio de dor, aponta para o seu paciente.<br />

ENFERMEIRA: Tudo por ele também!<br />

O algemado encrencado com a cara de “por mim não”, aponta<br />

insistentemente com o dedo para o doutor, este espantado com o<br />

que havia ouvido dela só disse uma palavra.<br />

DOUTOR P. IRADO: Ele?!<br />

ENFERMEIRA: Já entendi, eu não sou lesada. Foi por ele que<br />

você tomou, ah, como eu lhe aprecio, que ato generoso.<br />

98


DOUTOR P. IRADO (expressando com intenso sofrimento e<br />

indignação): Nada disso! Ele se esquivou.<br />

ENFERMEIRA (falando para o esquivador): Que feio hein.<br />

Não gostei nem um tantinho. O maluquinho tem que deixar de ser<br />

esquivo como o doutor disse. Siga a prescrição dele, doravante<br />

nada de arredio, cismado, intratável, insociável.<br />

O doutor mais doido, não tanto com a dor, mas, sim com aquela<br />

confusão da amada.<br />

DOUTOR P. IRADO: Você não existe!<br />

ENFERMEIRA (toda dengosa): Assim eu fico toda<br />

envergonhada, eu sei que sou muito especial para você, mas, não<br />

fica dizendo isso aí na frente das pessoas. Ou acha também que<br />

ele não existe?<br />

DOUTOR P. IRADO: Claro que existe, tanto existe que acabou<br />

não tomando a injeção.<br />

ENFERMEIRA: Está bom, se esse extravagante barbudo<br />

algemado desdentado não provar que existe eu vou lhe dar o que<br />

resta nessa seringa. Vamos logo com essa prova, senão vai provar<br />

...<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (assustado implora): Que baixe sobre mim o<br />

“Discurso sobre o Método”.<br />

(começa a prova): Eu duvido de tudo, inclusive do meu corpo,<br />

das minhas mãos, só não posso duvidar do pensamento, pois, para<br />

estar enganado ao seu respeito eu preciso estar pensando. Como<br />

eu penso logo existo, não como corpo, mãos, homem, mas, sim,<br />

como pensamento.<br />

ENFERMEIRA (preocupada): Caramba! Será que eu existo?<br />

DOUTOR P. IRADO: Esse é o ponto.<br />

99


ENFERMEIRA: Ponto de vista da sacola ou da escola? Será que<br />

eles existem?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Todos dois, o primeiro é algo pertinente a sua<br />

ótica, o segundo a sua intuição em apreender e extensão em<br />

abstrato, sem dimensões.<br />

ENFERMEIRA: Não entendi nada, mas adorei o que disse o<br />

insensato. Aproveita e prova a existência de Deus para mim.<br />

(ameaçando ameaçar): Senão, olha aqui seu matusquelinha a<br />

bonitinha da seringuinha toda prontinha.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Todos nós temos a idéia de Deus como um ser<br />

perfeito, este por ser perfeito tem todos os atributos, inclusive o<br />

da existência. Logo, Deus existe.<br />

Ela bate palmas entusiasticamente, mesmo continuando a adorar<br />

sem entender patavina. Seu corpo de fanzoca abraça o paciente e<br />

o seu olho pisca para o amor “agonizante”.<br />

DOUTOR P. IRADO: Que interessante! O corpo está para um<br />

lado, e a mente para o outro. Ação ou ração?<br />

O barbudo algemado pressente algum mal-entendido no ar e<br />

procura desfazê-lo imediatamente.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Nem uma coisa nem outra, ou seja, nem ação ou<br />

ração, mas sim algo para a razão.<br />

Desconsiderando aquela explicação, continua inalteradamente<br />

no caminho dos obcecados.<br />

DOUTOR P. IRADO: Barbudo ou chifrudo? Gema de ovo ou o<br />

de sempre de novo?<br />

100


Ela percebendo que aquilo é uma tremenda de uma ciumeira,<br />

provoca o doutor cujo nome verdadeiro é Lucas Petrovich,<br />

embora ele tenha horror deste.<br />

ENFERMEIRA: Provador algemado ou doutor amalucado?<br />

Gemas ou Lucas?<br />

DOUTOR P. IRADO (irado): Não agüento com o que estou<br />

ouvindo, me chamar de ...<br />

O algemado querendo sair daquela encrenca, ameaçado com<br />

aquela seringa ainda pela metade e quem sabe a contrair uma<br />

dor inteira.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: No livro “Ética” se considera que corpo e mente<br />

são aspectos de uma única substância.<br />

A dose injetada está apagando o médico de maluco, para outros,<br />

o maluco de médico. Ele quer entender o que está se passando<br />

com ele e aquela substância.<br />

DOUTOR P. IRADO (voz lenta): Que substância da natureza<br />

circula no sangue que faz sentir distante deste mundo e solitário<br />

para Deus?<br />

Os dois demais não estão percebendo a gravidade e continuam<br />

na sua.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Para estes alguns que estou comentando no<br />

momento não existe porque esta substância única, que é a causa<br />

de si mesma, com distintos nomes, insere que Deus, o mundo e a<br />

natureza são idênticos.<br />

ENFERMEIRA: Seu ciumento bonitinho como pode passar pela<br />

sua cabeça que eu poderia preferir um adoidado algemado mui<br />

pouco lavado, a um ajuizado liberado mui pouco largado e muito<br />

gamado? Uma gema de ovo que nem pinto é, comparado ao meu<br />

101


galo garnisé? Um louco tarado comunicativo de indecências e<br />

colado de sem vergonhice a um ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (surpreso, lembrando): Mas, foi ela que sussurrou<br />

dizendo que ia acabar com a minha inocência e quase fez fusão<br />

com meu corpo.<br />

Num esforço de dizer suas últimas palavras.<br />

DOUTOR P. IRADO (quase inaudível): Fuja maluco.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (se dando conta do estado do médico): Parece que<br />

o centralizador de tarefa vai fazer um daqueles baitas discursos<br />

históricos como o do Getúlio Vargas em sua Carta Testamento.<br />

ENFERMEIRA (fixa na sua alucinação): Eu sou muito prática,<br />

não gosto muito de conhecimento e cultura e muito menos de<br />

conversinha fiada de tarado. Tem mulher que usa spray de<br />

pimenta, eu prefiro seringa. E não vai ficando arredio não, hein<br />

seu estranho! Está na hora de tomar sua garrafada contida nessa<br />

seringada.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: O quanto de estranho arredio sou se ela mesma<br />

diz que sou comunicativo e colado ...<br />

Ela corre com a seringa na direção de quem acabou de ter<br />

falado.<br />

ENFERMEIRA: Eu vou lhe mostrar.<br />

Só que mais uma vez nesse ano o quartel de explosivo ao lado<br />

estoura de tal maneira que o manicômio vai para os ares ficando<br />

em destroços, uma abertura enorme desobstrui o confinamento.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): Entre as dez maiores personalidades<br />

da história está Pasteur, o químico e biólogo francês, geralmente<br />

prezado o mais importante na medicina devido à teoria dos<br />

102


micróbios da doença e pelo desenvolvimento da técnica de<br />

inoculação preventiva, a famosa pasteurização.<br />

O Brasil até já marcou seu gol de honra na competição, mas a<br />

jogada foi anulada. Peter Medawar, que nasceu no Brasil, ganhou<br />

o Nobel de Medicina em 1960. Só que ele "virou a casaca",<br />

trocou a camisa verde-amarela pela avermelhada da Inglaterra. E<br />

ficou um ateu desbrasileirado. Quem diria que mais tarde um ...<br />

Ele antes de correr para a rua, para o recomeço, escuta.<br />

DOUTOR P. IRADO (despedindo-se): Adeus, barbado<br />

algemado desdentado cueiroado para onde for lá será considerado<br />

...<br />

103


104


O DESTITUÍDO<br />

Ele correu pelas ruas, pelas estradas, pelas montanhas, nadou<br />

pelos rios, atravessou a Ucrânia, Eslováquia, Áustria, Suíça até<br />

que ouviu a Marselhesa em Marselha no Mar Mediterrâneo e lá<br />

muito comovido ficou e o tempo passou.<br />

Há sete anos atrás. Chove muito, faz muito frio e o mar está<br />

bastante revolto, agitado estão os pescadores que não saem com<br />

seus barcos, não arrumam redes e nem carregam robalos e<br />

espadas. A estes só restam ficar contando casos, alguns até que<br />

verídicos.<br />

Afastado na SARJETA sob uma imensa marquise protetora da<br />

chuva está a EDUCAÇÃO com um colégio caquético e um velho<br />

atlético de barba branca sem camisa conhecido como<br />

PROFESSOR que leva uma prosa com o ainda barbado<br />

algemado desdentado cueiroado acrescido de marcado pelo<br />

rosto devido àquela explosão ocorrida no quartel vizinho do<br />

hospício. Na proximidade, um pobre coitado sonolento chamado<br />

por SENADOR SARGENTÃO cuja cabeça descansa num<br />

cassetete duro.<br />

PROFESSOR: Eu já fui um estranho destituído que nem você.<br />

Vivia sempre na esperança do futuro de um serviçinho, de uma<br />

comidinha, uma caminha que nunca, enfim de coisas que custam<br />

a chegar. O que custam a sair de fato é desemprego, fome e<br />

relento.<br />

(olhando para o tempo): Apesar de em dias como esse de chuva<br />

para fora com temporal e aguaceiro para dentro com cachaça é<br />

que tudo termina em poça, sendo o único momento que a gente se<br />

sente empossado em algum cargo, algum ofício. Em resumo é<br />

uma farta de falta tudo.<br />

(olhando para o que lhe escuta): Vou contar a minha história<br />

para que vocês possam ter uma luz no fim do túnel.<br />

(começando): Minha mãe era uma celebridade ultra-reconhecida.<br />

Ela dizia sempre que eu nunca ia ser ninguém na vida, e de fato,<br />

sua profecia se concretizou e me tornei um ser otimista.<br />

105


O ouvinte abre um olho, aquele de curiosidade, o outro<br />

permanece fechado, aquele de descrente que percebe um absurdo<br />

a vista.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (curioso): Mas, como?<br />

PROFESSOR: Por que a vida é uma constante alegria mesmo<br />

para um joão-ninguém.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (mais surpreso): Não diga! Como consegue essa<br />

proeza?<br />

PROFESSOR: Viver embriagado. Não há tristeza que<br />

permaneça, ela vai logo embora.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: E quando está sóbrio, você tem alguma<br />

melancolia, algum desgosto ou talvez um desalento?<br />

PROFESSOR: Alguns não, todos e o dia inteiro.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Quando não está mamado, é óbvio.<br />

PROFESSOR: Que nada!<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: E por quê?<br />

Ele desvia o olhar para a imensidão do mar, seus olhos marejam.<br />

PROFESSOR: Eu tenho uma grande mágoa que carrego há mais<br />

de sessenta anos.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: É!?<br />

PROFESSOR: É. A mulher do meu melhor amigo não quis<br />

abandoná-lo para ficar comigo.<br />

Pasmo está o ouvinte.<br />

106


<strong>ESTRANHO</strong>: Ih, como resolveu esse problema?<br />

PROFESSOR: Simples. Eu fiquei com ele.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Para poder ficar com ela, é claro! Malandro, hein?<br />

PROFESSOR: De jeito nenhum, eu sou com orgulho um exheterossexual.<br />

Isso me abalou de tal modo que deu origem para<br />

que eu fosse uma pessoa sempre alegre.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Mas, o senhor com essa idade toda,<br />

provavelmente deve ter tido algumas recaídas e ter tentado voltar<br />

a ativa.<br />

PROFESSOR: Por incrível que pareça foram apenas duas e<br />

todas no ano passado.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Quantos anos essas senhoras tinham?<br />

PROFESSOR: Não eram senhoras não. Uma foi num puteiro.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: É!? O que fez? Como fez?<br />

PROFESSOR: Cochichei no ouvido de uma por uma e todas não<br />

me entenderam. As mais novas diziam: “Tá pensando que eu sou<br />

o quê, hein? Vá propor isso para sua mãe.” Quando procurava as<br />

de mais idade, tipo experiente, daquelas que topa qualquer<br />

parada, me davam tapão e saiam xingando até a última geração<br />

do velhote aqui.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Porra, bisa! Desculpa a expressão. Eu nunca<br />

imaginei que algum dia prostitutas reagiriam dessa maneira. O<br />

que tão cabeludo o bisavô propôs a elas?<br />

PROFESSOR: Nada demais! Eu só perguntei se elas faziam de<br />

graça.<br />

107


<strong>ESTRANHO</strong>: De graça!<br />

PROFESSOR: Claro! Por que dessa surpresa? Eu não gosto de<br />

misturar amor de uma das partes com interesse, nem sexo com<br />

desinteresse da outra parte, entendeu?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Tá bom, tá bom, é lógico, é muito lógico.<br />

(pensando): Do jeito que esse bisa é confuso vai ver que a outra é<br />

uma ninfeta.<br />

(perguntando): E a segunda tentativa?<br />

PROFESSOR: Foi com a filha de dona Marocas na praia. Ela é<br />

aquela menina adolescente sexualmente hiperdesenvolvida e<br />

sedutora.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Bingo!<br />

PROFESSOR: Que bingo nada.<br />

(contando): Eu, como tinha tido aquela experiência com aquelas<br />

mulheres lá da zona, cheguei de mansinho e propus o máximo:<br />

“Minha filha, eu sou riquíssimo, tipo ancião sarado, tarado,<br />

excelente saúde, quer se casar comigo?” Ela na bucha seca:<br />

“Não”. Intrigado eu a indaguei: “E posso saber por quê?”. Sem<br />

pestanejar: “Por causa da sua ótima saúde.”<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (espantado): De modo que ...<br />

PROFESSOR (interrompendo): ... todo dia para mim é um<br />

folguedo. É festa do desagrado, da desconsolação, da desolação,<br />

do desprazer, do dissabor. É divertimento pela aflição, pela<br />

agrura, pela amargura, pela angústia.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Tipo: “Tristeza, por favor, não vai embora”.<br />

PROFESSOR (exultante): É isso aí! Assim é que eu canto essa<br />

música. Pois, quem canta seu mal não espanta, mas sim atrai e<br />

chama.<br />

108


<strong>ESTRANHO</strong>: A vida, então, é um constante sofrimento?<br />

PROFESSOR (mais exultante): Até que enfim encontrei alguém<br />

que me entende nessa cadência de mar a minha carência de amar.<br />

O mar, o céu, o cosmo tudo é horrível.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Pessimismo em relação a tudo?<br />

PROFESSOR: Exatamente! Total, pois o que comanda o mundo<br />

é a razão.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (admirado): Que capacidade!<br />

(lembrando): Eu diria que “O mundo como vontade e<br />

representação” do Schopenhauer é um livro que ocuparia o 31º<br />

lugar entre os livros mais influentes no mundo.<br />

(contrapondo): Mas, nem todos pensam assim. Alguns acham<br />

que se a razão comandasse o mundo isso implicaria em otimismo<br />

e não em sofrimento. Aliás, os que acham que a vida é um<br />

constante sofrimento é porque o que comanda o mundo é a<br />

vontade e não a razão.<br />

PROFESSOR: Vontade ... força cósmica que está em tudo, está<br />

na pedra, na cadeira, inclusive no próprio homem. E todas as<br />

coisas se manifestam na vontade do homem. E como a vontade<br />

tem objetivo então ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Aí é que você se engana. A vontade não tem<br />

objetivo, ela não é a razão que tem objetivo, ela é caótica. Ora no<br />

mundo caótico as coisas ruins vão acontecer, o curso do mundo<br />

não é necessariamente bom.<br />

O que houve está excitado com aquela conversa que resolve por<br />

o sonolento na mesma. Dá-lhe um sacode.<br />

PROFESSOR: Acorda aí Senador Sargentão.<br />

109


Ele acorda assustado com cassetete em punho para distribuir<br />

pauladas a torto e a direita. O algemado mais temeroso que ele<br />

recua, enquanto o professor acostumado logo atua.<br />

PROFESSOR (chamando atenção): Senador Sargentão sou eu,<br />

abaixe a arma, você está no presente.<br />

SENADOR SARGENTÃO (ainda no passado): Não fui eu, juro<br />

que não fui eu. Plantaram aqueles dólares na minha cueca, me<br />

obrigaram a receber quantias mensais, eu não vi nada, não escutei<br />

nada, não falei nada, não sabia de nada.<br />

O professor vendo que o outro está mais assustado do que o<br />

Senador Sargentão.<br />

PROFESSOR: Relaxa. É que ele pertencia a seita Inocentes dos<br />

Últimos Anos.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (mais assustado): Mas, até Sargento pode fazer<br />

parte dessa seita?<br />

PROFESSOR (rindo): Que nada.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (acalmando-se): Ah! Bem! Sargento é sargento,<br />

senador é senador, poderoso é poderoso.<br />

PROFESSOR: Mas, o Sargento não é sargento.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (intrigado): Mas, ele é o que? Você não o chamou<br />

de Sargentão?<br />

Falando no ouvido do algemado de forma que o outro não<br />

escutasse.<br />

PROFESSOR: A gente o chama de Sargentão para que ele não<br />

fique muito deprimido. No fundo estamos querendo dizer<br />

Sarjetão, ou seja, o rei da sarjeta.<br />

110


<strong>ESTRANHO</strong> (ainda mais intrigado): Se ele não é sargento, ele é<br />

o que para ser respeitado como sua majestade da sarjeta.<br />

PROFESSOR: Ele é um senador da República que se desiludiu<br />

com os corruptos brasileiros que não conseguem atingir a meta<br />

estabelecida do PIB da Corrupção Mundial. O suborno não<br />

consegue atingir um PIB brasileiro, fora a depravação que não<br />

conseguir mais chocar ninguém, a desmoralização não atinge o<br />

patamar do sem-vergonhismo irrestrito.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (intrigadaço): E o que falta?<br />

PROFESSOR: Você sabe qual é o cúmulo da ignorância?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Não.<br />

PROFESSOR: Eu também não. Pergunta para ele.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (querendo dar o troco): E você sabe qual é o<br />

cúmulo do egoísmo?<br />

PROFESSOR: Eu não. E você sabe?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Sei. Mas não conto. Não conto, não conto, não<br />

conto.<br />

PROFESSOR: Tá bom você mostrou que é bem egoísta, agora,<br />

vai querer o título também do mais ignorante?<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (falando para si, a fim de se convencer): Não é<br />

para se ter receio. A invenção mais antiga são as ferramentas de<br />

pedra ... A lâmina de faca mais antiga data de quase três milhões<br />

de anos atrás e foi descoberta na África ... Porretes desse tipo é<br />

algo recente, ocidental, civilização ... Falar em cassetete é<br />

lembrar de audíocassetete, ou melhor, audiocasete, videocassete.<br />

(um pouco mais fortalecido): Excelentíssimo Senhor Senador<br />

Sargentão, por que desse enorme cassetete? Era do seu tempo de<br />

111


militar? De algum soldado seu? De algum primata não hominídeo<br />

em evolução?<br />

PROFESSOR: O que é isso! A pergunta a ser feita não é essa.<br />

Acatando a reprimenda.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (retomando o assunto): O que ainda Vossa<br />

Excelência, por incrível que pareça a todo um povo, consegue<br />

fazê-lo se sentir limitado na sua ambição?<br />

SENADOR SARGENTÃO (olha firmemente): Vou lhe<br />

escandalizar.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Isso é possível! Não é muita pretensão da sua<br />

parte?<br />

SENADOR SARGENTÃO: De jeito nenhum. Um bom senador<br />

é possível de tudo.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Bom, lá isso é verdade.<br />

SENADOR SARGENTÃO: Escute para você ver se não vai me<br />

dar razão.<br />

(contando): Você sabe que eu eleito o senador corrupto do ano,<br />

não tinha acesso total a Casa da Moeda. Era uma burocracia sem<br />

fim. Mesmo quando conseguia ficavam me perguntando o que eu<br />

queria lá. Isso é coisa que se pergunte a um corrupto do meu<br />

porte. Paciência.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): Como a vontade não tem limite,<br />

distinta da razão, consequentemente vamos para o caos, a<br />

crueldade sem que saibamos. Vou exacerbar o seu desejo para ver<br />

se ele se toca.<br />

(falando): Não acha que para ser amplo e irrestrito nos seus<br />

intentos óbvios você deveria ter autorização do governo para ter<br />

uma máquina de fazer dinheiro em casa.<br />

112


SENADOR SARGENTÃO: Pensa que não enviamos para o<br />

Congresso uma matéria nesse sentido. Alegamos cansaço físico e<br />

mental de mantermos um alto nível de tramóia e maracutaia.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Eu que não entendo é porque o senhor largou<br />

aquela vida por esta.<br />

PROFESSOR: Ele ficou pessimista com a decadência dos<br />

corruptos e a saída que ele encontrou foi através do hinduísmo e<br />

do budismo.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: É, faz sentido. Aproximação do budismo e do<br />

hinduísmo de como se retirar do mundo é uma forma de controlar<br />

a vontade. Se quisermos ser ético não podemos nos envolver com<br />

esse mundo que não é bom, participar dele é participar do mal.<br />

Mas, a saída não é a meditação, e sim pela contemplação da arte,<br />

usar a estética para a ética, e não usar a religião.<br />

SENADOR SARGENTÃO: E quem disse que eu não vou usar a<br />

religião?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Bom, o que eu conheço é que quando eu<br />

contemplo as obras de arte, eu não tenho vontade de possuir,<br />

apenas a arte oferece uma trégua temporária nos meus desejos.<br />

Vide Narciso, a música clássica, Leonardo da Vinci. É a arte pela<br />

arte, arte pelo belo.<br />

(preocupado): Mas, apreciar a obra de arte é preciso ter<br />

educação. O senhor está preparado?<br />

SENADOR SARGENTÃO: Isso tem sido uma marca na minha<br />

vida, até na própria família tenho sido singular, excepcional, de<br />

que no gênero não há outro.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Então você é filho único?<br />

SENADOR SARGENTÃO: Não, tenho quinze irmãos e uma<br />

irmã.<br />

113


<strong>ESTRANHO</strong>: Tudo isso! Todos vivos?<br />

SENADOR SARGENTÃO: Não, vivo só eu. O resto tudo<br />

trabalha.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Algum enriqueceu com o fruto do seu trabalho?<br />

SENADOR SARGENTÃO: Não, tudo analfabeto, miserável de<br />

guardar o almoço para ter o que comer na janta. Nunca comeram<br />

carne, nunca viram sangue.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (lembrando): “A ópera dos três vinténs” do Brecht.<br />

(dando esperança): Isso não quer dizer nada. Stalin foi criado na<br />

pobreza e foi um dos tiranos mais sanguinários sobre a face da<br />

Terra. Às vezes de onde menos se espera surge um poderoso, um<br />

rico sem trabalhar ...<br />

SENADOR SARGENTÃO (interrompendo): ... Sobre a minha<br />

irmã é que pairou uma leve suspeita de que poderia ficar rica sem<br />

trabalhar, logo desmentida pelo meu pai.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Se não seria pelo trabalho seria de que modo?<br />

SENADOR SARGENTÃO: Casando com um homem rico.<br />

Mas, como eu disse o meu pai tirou a dúvida de todos nós quando<br />

a gente foi comentar sobre o casamento dela, ele foi logo<br />

dizendo: “Pobre rapaz!”.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Então ninguém se formou?<br />

SENADOR SARGENTÃO: Apenas um irmão, ele foi médico.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Que bom!<br />

SENADOR SARGENTÃO: Que bom nada, esse então é que<br />

morreu muito cedo mesmo.<br />

114


<strong>ESTRANHO</strong>: O que aconteceu com ele?<br />

SENADOR SARGENTÃO: Uma velhinha, na casa lotérica,<br />

confere a aposta do marido e descobre que ele ganhou sozinho na<br />

supersena acumulada. Preocupada com a saúde do marido, um<br />

velhinho de mais de noventa anos, hipertenso, diabético e<br />

safenado, ela encarrega o meu irmão, que era médico da família,<br />

de dar a notícia ao felizardo de uma forma bem amena.<br />

Numa consulta de rotina, depois dos habituais exames, meu<br />

irmão pergunta, sem dar muita ênfase às palavras: “Suponhamos,<br />

seu Mathis, que o senhor ganhasse sozinho vinte milhões na<br />

supersena ... o que o senhor faria?” Ele olhou carinhosamente<br />

para o meu irmão e disse: “Ah, doutor Mathéo, o senhor tem sido<br />

como um filho para mim. A primeira coisa que eu faria era dar a<br />

metade para o senhor.” Pronto, meu irmão caiu durinho no chão,<br />

com um ataque fulminante do coração.<br />

PROFESSOR: Faltou assistência, medicamentos.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Eu não acredito nisso.<br />

PROFESSOR: O que em remédios?<br />

SENADOR SARGENTÃO: Pois a mim, meus caros, os<br />

remédios fizeram muito, muito bem.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Verdade? E o que você tinha?<br />

SENADOR SARGENTÃO: Uma farmácia.<br />

Os dois que escutaram se entreolharam e nada falaram a<br />

respeito. Apenas mudaram de conversa.<br />

PROFESSOR: Embora jovem, você já casou?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Como a conheceu?<br />

115


SENADOR SARGENTÃO (contando): Eu fui jantar sozinho<br />

num restaurante grã-fino, quando notei a presença de uma<br />

tremenda gata, sentada sozinha em outra mesa, e resolvi me<br />

aproximar. Educadamente, me dirigi a ela: “Me perdoe, senhorita,<br />

não quero parecer atrevido, mas não pude deixar de notá-la. Será<br />

que posso sentar um instante?”. Sem mais nem menos, ela<br />

começou a gritar: “O QUÊ?! IR PARA O SEU QUARTO?!<br />

FICOU DOIDO, É?! EU NEM O CONHEÇO!!!<br />

Sem entender nada, morrendo de vergonha, voltei mansinho para<br />

minha mesa, debaixo do olhar de reprovação de todo o<br />

restaurante.<br />

Daí a pouco, a tipinha se levanta e veio falar comigo, baixinho:<br />

“Queira me desculpar. Acontece que eu estou defendendo uma<br />

tese em Psicologia sobre a reação de grupos humanos em<br />

situações inusitadas. Foi apenas um teste para minha pesquisa”.<br />

Então refeito do ocorrido lhe digo com toda tranqüilidade: “Ah,<br />

sim! Entendo perfeitamente ...” E de repente comecei a berrar:<br />

“COMO?! DOIS MIL REAIS?! FICOU DOIDA, É?!”<br />

PROFESSOR: Alguém se “deformou” de lagarta em borboleta<br />

que nem eu?<br />

SENADOR SARGENTÃO: Eu.<br />

PROFESSOR (muito alegre): Então! Então eu posso dizer que<br />

conheci um ex-gay? Foi quebrada a questão universal: “Você já<br />

conheceu um ex-gay”?<br />

SENADOR SARGENTÃO: Como não! Saiba que antes de ser<br />

hetero eu fui gay.<br />

PROFESSOR (excitadíssimo): Conta! Conta logo!<br />

SENADOR SARGENTÃO (contando): Tudo começou com o<br />

diretor do colégio interno no qual eu era um recém-admitido. Ele<br />

me chamou em sua sala e me informou: “Meu filho, tenho boa e<br />

má notícia para lhe dar.”. Falei: “O senhor pode começar pela má<br />

116


notícia.”. “É que o seu teste psicológico acusou uma forte<br />

tendência homossexual em sua personalidade.” “E a boa<br />

notícia?”. “Bem ... é que você é uma gracinha ...”<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (voltando a pergunta que não parece ter sido<br />

respondida): Mas, o senhor não respondeu: está ou não está<br />

preparado?<br />

SENADOR SARGENTÃO: Estou me preparando.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: E para que?<br />

SENADOR SARGENTÃO: Para não ser pego.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Ah! Pego na sua vontade, no seu querer que é<br />

cheio de intenção. Claro! Já as coisas não têm intenção racional.<br />

Elas estão lá para ...<br />

SENADOR SARGENTÃO: ... isso aí ... para serem pegas.<br />

PROFESSOR: É um tal de pego e pega e eu sem pegar ninguém.<br />

Eu não estou entendendo mais nada. Que doutrina é essa sobre a<br />

qual estão dialogando?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Eu não tenho também muita certeza, parece que<br />

ele transita por aquela que considera que ninguém consegue viver<br />

sua própria doutrina, ou seja, fazer o que prega.<br />

PROFESSOR: O que prega ou o que pega?<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (falando para o sarjetão): Não é você viver sua<br />

própria doutrina, mas sim tentar estar no mundo de acordo com a<br />

sua própria doutrina.<br />

SENADOR SARGENTÃO: É isso aí. Eu estou tentando.<br />

PROFESSOR: Eu não sei em que, estando aqui.<br />

117


<strong>ESTRANHO</strong>: Dispor-se de tudo é um caminho.<br />

SENADOR SARGENTÃO: Pera aí, agora sou eu que estou sem<br />

entender nada.<br />

PROFESSOR: Ficar na pior para subir ... fundo do poço,<br />

entendeu?<br />

O Senador Sargentão põe um braço em cada um, aproximando<br />

seus ouvidos de sua boca, como se fosse contar um grande<br />

segredo.<br />

PROFESSOR: Do jeito tão sigiloso, vai ver que você vai roubar<br />

o Vaticano.<br />

SENADOR SARGENTÃO (falando baixinho): É isso aí. Tenho<br />

que treinar em não ter nada. Vou me passar por um hinduísta<br />

fervoroso que está visitando aquela cidade. Como já consegui<br />

entrar em contato com alguns iluminati lá dentro, uns até já<br />

levaram um por fora. E creu nas obras de arte do Vaticano. E<br />

assim se papa o Papa. Entenderam?<br />

PROFESSOR: E por que você está contando isso para esses dois<br />

humildes, um ainda mendigo.<br />

SENADOR SARGENTÃO (falando baixinho): Vocês serão as<br />

aparições de dois discípulos de Cristo. Um ainda acorrentado<br />

moderno com essas algemas sofisticadas. O outro idoso com<br />

essas barbas brancas. Enquanto vocês despistam, eu tento entrar<br />

no Vaticano de acordo com a minha doutrina.<br />

PROFESSOR: Eu sou um declarado barbaçana do ensino e da<br />

heterossexualidade aposentada, mas não sou cúmplice de roubo<br />

nenhum.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Eu sou privado de movimentos das mãos, mas não<br />

sou prisioneiro de sua ambição desmedida.<br />

118


SENADOR SARGENTÃO (falando baixinho): Eu poderia<br />

demiti-los, por justa causa, dos meus intentos. Como sou<br />

persistente na minha vontade, vou dizer para as duas coisas aqui<br />

na minha frente que não têm intenção racional. Ou continuam<br />

carentes ou ficam abastados? Ou vocês aderem a Inocência dos<br />

Últimos Anos ou são encaminhados a Culpa dos Primeiros e<br />

Sempre Otários. Vou dar um tempo para vocês pensarem.<br />

Enquanto isso ...<br />

Desfere uma paulada com aquele cassetete na cabeça do que<br />

tinha as mãos soltas. Amarrando-as, apanha um saco e começa a<br />

introduzi-lo ali dentro.<br />

SENADOR SARGENTÃO: Um já foi. Agora vamos para você.<br />

Qual é a tua decisão estranho destituído?<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (continuando): O quanto de estranho destituído<br />

sou se me obriga a continuar na trilha do abastado, empossado e<br />

farto?<br />

SENADOR SARGENTÃO: Qual é a tua? Continuar<br />

vivenciando sofrimento misturado com conhecimento e cultura<br />

ou falar de ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (cortando a palavra): ... dele. Procurar as causas e<br />

as conseqüências do sofrimento.<br />

Agora, pelo que tudo indica vai repetir a mesma dose com o<br />

outro ainda não ensacado.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (parecendo rezar): Adam Smith, principal<br />

personagem do desenvolvimento da teoria econômica, escreveu o<br />

25º livro mais influente: “Uma pesquisa sobre a natureza e as<br />

causas da riqueza das nações”. Outro brilhante foi Keynes que<br />

escreveu: “Teoria geral do emprego, lucro e dinheiro”. Isso sem<br />

esquecer do “Pragmatismo” de William James e “As origens da<br />

família, da propriedade privada e do Estado” de Friedrich Engels.<br />

119


O paraibano Celso Furtado foi a nossa esperança ao Nobel da<br />

Economia. E era um ateu nacionalista. Quem diria que mais tarde<br />

um brasileiro ...<br />

SENADOR SARGENTÃO (pensando): Por que esse barbado<br />

algemado desdentado cueiroado marcado, um estropiado<br />

mendigo rejeita a trilha dos cheios não tenho a menor idéia, só sei<br />

que, para mim, ele lá será o considerado ...<br />

120


LADO ORIENTAL<br />

121


122


O MALFEITO<br />

Avistam-se de um CAMPO DE BATALHA uma GUERRA vivaz e<br />

um avião abatido. Desta aeronave soltando fumaça se enxerga<br />

uma pessoa que se atira, logo se vê pára-quedas abrindo e<br />

navegando por cinco minutos sobre intenso bombardeio e<br />

acentuada apreensão dos soldados. O que vem do céu vai caindo<br />

bruscamente neste entrincheiramento provisório, os militares<br />

externam um sentimento oscilante para com o estranho entre a<br />

apoderação e a adoração, enquanto o acima vem ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): E eu que tenho ou tinha mil lugares<br />

para conhecer antes de morrer.<br />

Na África: das grandes Pirâmides de Gizé no Egito ao Masai<br />

Mara no Quênia, da Costa de Esqueleto na Namíbia aos Montes<br />

Drakensberg na África do Sul, da Cidade de Pedra de Zanzibar na<br />

Tanzânia ao Delta do Okavango em Botsuana.<br />

Na Ásia: da Cidade Proibida de Pequim e dos Guerreiros de<br />

Terracora de Xi’na na China ao Festival de Neve de Sapporo no<br />

Japão, do Palácio de Mármore de Calcutá na Índia aos Dervixes<br />

Rodopiantes de Konya na Turquia, do Delta do Mekong no<br />

Vietnã ao Monte Everest no Nepal.<br />

Na Europa de onde estou vindo: do Castelo de Windsor na<br />

Inglaterra a Ávila na Espanha, do Castelo do Conde Drácula na<br />

Romênia ao Anfiteatro de Arles na França, de Santorini na Grécia<br />

a Pompéia na Itália, do Vaticano que era para onde deveríamos<br />

ter ido para um local que ainda não seeeiiiiii.<br />

Porém, no momento da queda, o pára-quedista parecendo um<br />

principiante sem nenhum comando do aparelho destinado a<br />

diminuir a velocidade da queda dos corpos cai relativamente<br />

acelerado com os pés juntos ocasionando um tremendo impacto<br />

no seio daquela barricada. Contorcendo-se em dor, olha para<br />

baixo para ver o tamanho do estrago e vê um volume enorme que<br />

diagnostica imediatamente como uma imensa hérnia inguinal<br />

direta.<br />

123


E assim, no meio do intenso lançamento de projéteis de artilharia<br />

e do violento arremesso de intestino na bolsa escrotal que<br />

causam tanto sofrimento, os soldados olham com muita, mas<br />

muita, muita atenção e estranheza, nas algemas e naquela<br />

volumosa bolsa, fora o excesso de barba e marcas e a escassez<br />

de dentes e fralda. Até que irrompe uma exaltação com louvores,<br />

saudações e palmas, dando impressão de veneração triunfante.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (acabando de pensar, mesmo com dor): Na<br />

Oriente Médio onde estou: do Mar Morto à Cidade Velha de<br />

Jerusalém, de Petra na Jordânia a Krak das Chevaliers na Síria,<br />

do Mercado de Ouro de Dubai à Velha Sanaa no Iêmen, mas,<br />

afinal em que lugar?<br />

Surge um sujeito fardado, muito respeitado, todo condecorado,<br />

por demais jubilado, não de aposentado, mas, sim de<br />

contentamento, conhecido na área por Dario, que lhe dá um forte<br />

abraço e, este nada mais nada menos, era aquele doutor auditor<br />

fiscal de impostos que ele havia conhecido no seu tempo de<br />

silvícola.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Que bom rever o selvagem de<br />

novo. Ih! Perdão pelo excesso de intimidade com o talvez tããão<br />

esperado ansiosamente.<br />

(mais comedido): Oh! Continua com as minhas algemas, como é<br />

sentimental, apegado as coisas que lhe é dado.<br />

Próximo deles tem uma dúzia de canhões, o mais chegado ao<br />

algemado dá um tiro, dificultando-lhe a audição.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (em reflexão e incomodado): Os chineses<br />

inventaram a pólvora em 1040 e usaram os canhões para derrotar<br />

a frota mongol na costa japonesa em 1281. Se definirmos arma<br />

como um tubo através do qual um projétil é lançado, então uma<br />

zarabatana como a que os nativos da bacia do rio Amazonas<br />

ainda usam seria uma, assim como esse canhão aqui próximo,<br />

124


mas, convenhamos o foguete já foi inventado em 1926. Acho que<br />

está na hora de aposentar essa arma aqui perto do meu ouvido.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Como você é um cara bacana,<br />

sabe conquistar os outros com essa atenção especial de usar os<br />

presentes que lhe são oferecidos. E como para os negócios Isso é<br />

de suma importância, então ...<br />

O barbudo impaciente já com aquela cena do Doutor Auditor<br />

Fiscal acrescida com a daquela peça de artilharia, resolve<br />

entender o que está acontecendo naquele tumulto, para isso se<br />

aproxima muito do Doutor Auditor Fiscal a ponto dele não ficar<br />

muito a vontade, mais precisamente, ficar muito cabreiro.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Por que de tamanha<br />

proximidade, eu só estava elogiando o seu comportamento. Nesse<br />

momento, eu só tenho um único interesse, que é de saber o que<br />

você está fazendo aqui.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (com ingenuidade): Eu é que pergunto: o que você<br />

está fazendo aqui?<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (ainda cabreiro): Eu estava<br />

distante, você é que veio se chegando para tão pertinho.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (entendendo tudo errado): Isso é verdade. Eu<br />

estava lá no ocidente e vim aqui para onde você estava que<br />

provavelmente é algum ponto do oriente, pois, o piloto<br />

embriagado com tanta bebida, passou batido pelo Vaticano, com<br />

aquele monte de batida de tudo quanto é tipo.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Ainda bem que vocês não<br />

foram para o oeste.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Por quê?<br />

125


DOUTOR AUDITOR FISCAL: Dois acidentes sérios em<br />

Portugal.<br />

De Lisboa chegou a notícia da morte de duzentas pessoas. Cem<br />

morreram num desastre aéreo com um avião a jato. As outras<br />

cem, na reconstituição.<br />

Do Porto a notícia de que um helicóptero caiu em cima de um<br />

cemitério. A gravidade foi tanto que horas depois a equipe de<br />

salvamento já havia resgatado mais de trezentos corpos.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Helicóptero foi inventado em 1940. Avião a jato<br />

em 1928. Enfim, o sonho do ser humano data de quando nossos<br />

ancestrais olharam os pássaros com inveja. Houve vários projetos<br />

de máquinas voadoras, inclusive uma de Leonardo da Vinci no<br />

século XV, mas pelo que se saiba, nenhum foi funcional. O padre<br />

Bartolomeu de Gusmão, em 1709, pioneiro do vôo humano<br />

usando um balão. Mas, o mais pesado que o ar foi com o<br />

brasileiro Santos Dumont com seu 14-Bis.<br />

(se dando conta que divagava): Mas, isso não vem o caso. Você<br />

não me respondeu a minha pergunta: o que você está fazendo<br />

aqui?<br />

Entendendo um pouco melhor, embora ainda um pouco menos<br />

desconfiado.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: O mesmo que você, ora.<br />

Agora é uma canhonada que os faz serem arremessados<br />

diretamente para o chão. Procurando se levantarem, o Doutor<br />

Auditor Fiscal como sempre ajeita a sua indumentária.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Não é possível você também estava indo para o<br />

Vaticano como discípulo de Cristo? Não vai dizer que aquele<br />

Senador Sargentão ou Sarjetão, também te pegou? Aquilo é um<br />

tremendo safa ...<br />

Um canhonaço distante interrompe a palavra, pois nada mais se<br />

escuta.<br />

126


DOUTOR AUDITOR FISCAL (pensando de forma a<br />

desvendar): Safa! O que ele quis dizer com safa? Safa em árabe<br />

significa “pureza” que é a origem da palavra “sufismo”, este por<br />

sua vez é uma corrente do islão praticada em segredo nos países<br />

muçulmanos. Ah! Mas, quem será esse sufista que faz tremer,<br />

que é o formidável, o respeitável, o extraordinário?<br />

(indagando): Você é um safa?<br />

O algemado sabedor do que tinha dito, qual seja: “Aquilo é um<br />

tremendo safado”.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Eu nunca fui um safado, no máximo que eu fui foi<br />

um safo.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (pensando): Será que ele é um<br />

sufisto? Acho que não, acho que aquela descarga de canhões<br />

embolou de vez as idéias na cabeça do silvestre.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Sim, mas você não me respondeu o que você está<br />

fazendo aqui?<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (pensando preocupadamente):<br />

Coitado! Ficou que nem papagaio burro.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): Estou cansado de não ter resposta.<br />

Vou mudar de pergunta.<br />

(lembrando): Como eu o sei ele é judeu.<br />

(falando para receber uma resposta): Isaac, isso tudo foi graças a<br />

Jeová, não?<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Não! Eu me chamo Dario e é<br />

Graças a Alá.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: O que! Você passou para o lado dos maometanos?<br />

Virou a casaca?<br />

127


DOUTOR AUDITOR FISCAL (enrolando meio nervoso): O<br />

que você está fazendo aqui, para fazer uma pergunta tão óbvia?<br />

Nós estamos na República Islâmica do Irã. O islamismo é a<br />

religião fundada pelo profeta Maomé no início do século VII, na<br />

região da Arábia. O Islã é o conjunto dos povos de civilização<br />

islâmica, que professam o islamismo; em resumo, é o mundo dos<br />

seguidores dessa religião. O muçulmano é o seguidor da fé<br />

islâmica, também chamado por alguns de islamita. O termo<br />

maometano às vezes é usado para se referir ao muçulmano, mas<br />

muitos rejeitam essa expressão - afinal, a religião seria de<br />

devoção a Deus, e não ao profeta Maomé. Entendeu? E, por<br />

favor, não vai pensar que estes soldados muçulmanos do Islã são<br />

árabes.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Eu sei que árabes no Irã são muito menos de dez<br />

por cento da população da República Islâmica do Irã, sei que<br />

mais da metade são persas, sua língua natural é Indo-européia, o<br />

que contraria a essência da cultura árabe cuja língua dos Árabes é<br />

a semítico-Asiática.<br />

Mas, isso não vem ao caso, o que eu lhe perguntei ...<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (interrompendo totalmente<br />

nervoso): ... o que você me perguntou eu sei, o que eu não sei é o<br />

que você está fazendo aqui, para fazer uma pergunta dessa tão<br />

perigosa?<br />

Não agüentando mais tanta insistência, puxa rapidamente ele<br />

pelo braço para um canto e deixa os canhões dispararem todos<br />

juntos para que não seja passível de tradução labial simultânea<br />

por algum dos soldados. Após mais uma canhonada daquelas.<br />

Levantam-se meio tontos.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (informando sigilosamente): Eu<br />

sou um comandante mercenário infiltrado, entendeu? Estou<br />

ganhando pelos dois lados, um excelente negócio. Portanto, abafa<br />

o caso.<br />

128


<strong>ESTRANHO</strong>: Ah! Então é por isso que você não me respondia o<br />

que está fazendo aqui? Mas, isso não impede de você me dizer o<br />

que eu estou fazendo aqui?<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Como! Ainda não sabe?! Por<br />

acaso, esses buns de canhão a toda hora têm lhe feito um estrago<br />

no cérebro? Pode deixar que eu vou dar um jeito nisso.<br />

Tira folhas de espinafre dos bolsos e se põe a mastigá-las com<br />

grande voracidade.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (gritando para a tropa,<br />

principalmente para os canhoneiros): Vão fazer barulho com<br />

esses canhões para bem longe daqui, seus bebuns, seus pés de<br />

cana molengas, o seu tããão esperado ansiosamente precisa de<br />

silêncio para poder tramar a estratégia do confronto final.<br />

Enquanto isso, uns vão por esse lado atirando para o mar Cáspio<br />

no sentido de pegarem submarinos ou urubus desatentos, outros<br />

vão para aquele outro lado mandando tiros para as piscinas<br />

infláveis no deserto de Dasht-e-Lut com a finalidade de pegarem<br />

escafandristas ou bichinhos de crianças nos fundos desses<br />

reservatórios de água.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Como é que eles entendem o que você fala?<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (apontando para um soldado<br />

com a camisa do Flamengo): Aquele ali é um brasileiro que eu<br />

trouxe. Ele dá o seu jeito.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Quem é esse tããão esperado ansiosamente?<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Acho bom recobrar logo essa<br />

memória, senão o negócio pode ficar feio para o seu lado.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Como assim?<br />

129


DOUTOR AUDITOR FISCAL (olha seriamente nos olhos do<br />

pára-quedista): O cara, você é o cara! Por que acha que foi<br />

ovacionado aqui? Você é o exótico barbado algemado desdentado<br />

cueiroado marcado e defeituoso do ovo que desceria do céu com<br />

o saco cheio para cumprir a profecia.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): Defeituoso do ovo deve ser a essa<br />

hérnia enorme; mas, o saco ficou cheio aqui com a batida no<br />

chão. Exótico deve ser por estar barbado algemado desdentado<br />

cueiroado marcado e ainda por cima pular de pára-quedas; mas,<br />

fique sabendo, em nada disso tive escolha.<br />

Aliás, onde estarão os dois que estavam naquele avião? Epa! Isto<br />

eu deixo para depois. O urgentíssimo é saber ...<br />

(falando): Eu vou cumprir que profecia?<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: A de acabar com essa guerra,<br />

ora bolas. Isso sem nenhuma menção as suas que devem ser<br />

tratadas com reverências.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (irritado): E eu lá quero reverência para os meus<br />

testículos. O que eu exijo saber é que guerra é essa?<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Não se lembra? Ela é a<br />

primeira e única.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Puxa! Que lugar formidável para se morar, tão<br />

antigo e só teve essa guerrinha recente.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Como assim? Desde que esse<br />

local foi descoberto há milênios iniciou com essa guerra que até<br />

hoje não acabou.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: O que! E eu que vou terminar com essa confusão?<br />

Nem morta. Vou sair de fininho para que eles não me sigam, se<br />

você quiser pode me seguir.<br />

130


O Doutor Auditor Fiscal agradecido por aquele convite põe no<br />

agraciado sua larga túnica escura de lã, o que protege inclusive<br />

da visão daquele saco monstruoso. Eles caminham resolutamente<br />

em direção contrária a sua tropa.<br />

Horas se passam quando eles se vêem surpreendidos pelos<br />

inimigos invasores com espadas sarracenas nas mãos que são<br />

liderados por um camelo barbado com uma coroa de metal<br />

vagabundo na cabeça, todo enfeitado, pintado de negro. Ao seu<br />

lado, vem a nossa conhecida vesga e agora reconhecidamente<br />

uma sobrevivente da favela no México. Ao se verem eles se<br />

abraçam fortemente.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (falando para si): Nossa que<br />

coisa feia aquela anazinha magrinha, bigoduda e zarolha. De que<br />

continente deve ser isso aí? Bom, levando em conta, o que<br />

aprendi em geografia. A mulher dos 15 aos 20 anos é como a<br />

África: meio virgem, meio explorada. Dos 20 aos 30 é como a<br />

Ásia: quente e misteriosa. Dos 30 aos 40 é como a Europa:<br />

eficiente. Dos 40 aos 50 é como a Europa: devastada, mas com<br />

muita história. Dos 50 em diante é como a Oceania: todo mundo<br />

sabe onde é, mas ninguém vai lá. Portanto, ela deve ser da<br />

Oceania, quem sabe uma australiana.<br />

E olhando para ela começa a comer alface com broto de bambu.<br />

Ela se sentindo muito mal com aquela comida e com aquela<br />

olhada, pára de abraçar, fica desconfiada com aquele<br />

desconhecido, por medida de segurança de sua tropa vai ao seu<br />

encontro cobrando identificação.<br />

DUMALZINHA: Sabes a senha?<br />

Pensando em se tratar do seu cartão de crédito coloca a mão na<br />

cabeça para pensar os números. Enquanto isso ...<br />

131


DOUTOR AUDITOR FISCAL<br />

(falando para si)<br />

Que bom! Até nesse fim de mundo se faz negócios fantásticos<br />

com promessas de lucro fácil e rápido. Vou me dá bem nesse<br />

negócio da China. Epa! Mas, isso aqui, com essas espadas<br />

sarracenas, está com pinta de negócio da Arábia. Ah! Tanto faz,<br />

negócio é negócio.<br />

Mas quase que instantaneamente lembra dos números de seu<br />

cartão de crédito.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (contente fala): Sei.<br />

DUMALZINHA (aliviada): Então entra.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Ah! Mas eu só disse que sabia.<br />

DUMALZINHA: Árabe confia se alguém diz que sabe é porque<br />

sabe. Os persas é que não esquecem, eles estão com duas derrotas<br />

entravadas na garganta: uma para os gregos e a outra para os<br />

árabes.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Árabe você notou que eu não<br />

sou, judeu nem pensar, então você ficou em dúvida entre eu ser<br />

persa ou grego. Como veio a certeza?<br />

DUMALZINHA (saudosa): Pela lógica. Se eu gostava de meu<br />

ex-chefe e ele simpatizava com os gregos então eu tenho atração<br />

pelos gregos. Como eu me amarrei na sua, então você deve ser<br />

grego e vai poder entrar a vontade.<br />

Ela o abraça afetivamente deixando-o muito nervoso por não<br />

saber qual era o negócio.<br />

DUMALZINHA: Então, você é o conquistador Alexandre, hein?<br />

Pode ficar calmo que eu não lhe vejo como um demônio com<br />

cabelos desgrenhados, nascido da raça da cólera.<br />

132


DOUTOR AUDITOR FISCAL (pensando, nervoso): Será que<br />

ela pensa que é uma rainha amazona da Antiguidade com a idéia<br />

de querer ter um filho com o rei Alexandre da Grécia? Mas, ele<br />

era gay, mas eu não sou gay.<br />

Ela caminha para dentro da tropa e o solta. E volta para aquele<br />

conhecido.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (aliviado): Oba! Acho que ela<br />

desistiu. Fazer negócio com aquela trufu ia sair muito caro,<br />

vamos ver o que tem de baratinho aqui.<br />

(observando atenciosamente em volta): É! Talvez estas espadas<br />

sarracenas de menos de três quilos. Uma das maiores conquistas<br />

da metalurgia, que nos inícios do domínio árabe era forjada e<br />

temperada em Damasco na Síria. Elas durante as Cruzadas<br />

deixaram os europeus atônitos com suas enormes espadas<br />

pesando doze quilos que iam sendo quebradas ao meio por<br />

aquelas árabes.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (surpreso): Dumalzinha! O que você está fazendo<br />

aqui neste deserto?<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (pensando): Em vez de fazer<br />

negócio fica ... Será que todos os Aguardados fazem essa mesma<br />

pergunta. Vai ver que é para saber se a pessoa tem consciência do<br />

seu papel aqui na Terra.<br />

DUMALZINHA: Eu agora sou ajudante de ordens do rei.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Que rei?<br />

DUMALZINHA: Desse Camelo.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (lembrando do que o ex-chefe dela havia feito<br />

consigo lá no México): Você largou o outro?<br />

133


DUMALZINHA: Eu não costumo tratar os meus ex-chefes<br />

desrespeitosamente.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (ainda recordando): Você sabe que fim ele levou?<br />

DUMALZINHA: Sei que ele está fugido por aqui, no ramo de<br />

camelo procurando sua mãe pelo mundo.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (interessado): Um camelo ou<br />

uma cáfila?<br />

(observando que não estava sendo entendido): Ele está no ramo<br />

da camelaiada, não é?<br />

DUMALZINHA (meio zangada): Você é surdo? Foi isso que eu<br />

disse.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (tão interessado que não<br />

percebe que ela estava magoada): Aonde é a rota das caravanas?<br />

Uma camelaiada deve ser algo muito difícil de ser comprada,<br />

não?<br />

DUMALZINHA (meio magoada, mas educada): Comprada? Foi<br />

tudo roubada!<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Mas, isso é normal. Eu<br />

também já entrei em cada roubada.<br />

DUMALZINHA (meio deseducada, volta o foco para o outro):<br />

Sabe que em homenagem ao chefe Dumal até pintei esse camelo<br />

de preto como você deve ter notado. Foi um frisson aqui nessa<br />

terra árida.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Então, você é uma espécie de Tarik Ibn Ziad, um<br />

general árabe que conquistou a Espanha e fez um discurso<br />

memorável ao exortar às suas tropas antes da decisiva batalha de<br />

Guadalupe em 711.<br />

134


DUMALZINHA: Menos, menos. Algo mais para o nosso<br />

continente de origem: a fabulosa América.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Então talvez um Simon Bolívar que libertou cinco<br />

países sul-americanos do domínio espanhol, atuação tão<br />

dominante na história de todo um continente. Ou, ao contrário,<br />

Francisco Pizarro, conquistador do império inca no Peru.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (simpático para retratar-se e<br />

reafirmar bons negócios): Ela merece mais, mais, mais.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Mas, ô Isaac ... digo Dario ...<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (nervoso com aqueles nomes<br />

citados): ... Alexandre, não esqueça: Aleeexandreee.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Ela era uma bandida com enorme importância<br />

negativa na vida de um imenso número de pessoas.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Uma Hitler da América, de<br />

saias.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Claro que não. Mas, você não me respondeu a<br />

minha pergunta: “o que você está fazendo aqui?”.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Eu?!<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Não a outra.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (pensando preocupadamente):<br />

Caramba! A volta do papagaio burro.<br />

DUMALZINHA: Eu pertenço a facção dos inimigos dos<br />

inimigos do amigo da seita dos ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (interrompe rapidamente): Olha, como eu estou<br />

um pouco com pressa.<br />

135


DUMALZINHA: Sempre apressado, hein? Cuidado porque o<br />

coração é uma bomba e um dia ele dá um ...<br />

Estouro ensurdecedor.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Lá vêm esses canhões de novo<br />

com esses bum.<br />

DUMALZINHA: Não foi bum de canhão, foi um pum real. O rei<br />

sempre faz isto quando está entediado.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (rapidamente): Ih! Alegria,<br />

alegria. Acho melhor a gente contar piadas para ele. “Era uma<br />

vez um camelo todo cheio de ouro e seda, imponente que nem<br />

aquela sua majestade ali ...”<br />

DUMALZINHA (falando baixinho): Pssiiiuuuu! Você quer ser<br />

decapitado com uma sarracena? Não reparou que sua coroa não é<br />

de ouro e que sua roupa não leva seda? Pois é, ele é um camelo, e<br />

não uma camela, entendeu?<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (pensando): Nossa contar uma<br />

piada aqui no Irã é muito complicado. Mas, o mais complicado é<br />

aquele camelo não rir. Vamos continuar.<br />

(prosseguindo): “Aí um camelão passou perto daquele camelo<br />

todo cheio de ouro e seda, e falou: “Florzinha, não pode andar<br />

sem burka por aí não, hein belezoca”<br />

O rei sem nenhum blaterar se joga ao chão e de barriga para<br />

cima ri sem parar. O perigo não está apontando para a terra, ele<br />

está dirigido no momento para o céu e sem ameaçá-lo.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Daqui a pouco vão dizer que esse camelo acha<br />

que Deus está morto.<br />

DUMALZINHA: Isso já está presente no século XIX. Pela<br />

perspectiva dele, um camelo atualizado, Deus está vivo nos dias<br />

136


de hoje, embora a elite privilegiada ao qual ele faça parte tende a<br />

não precisar de religião.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Será que ele não está constatando, a perda da<br />

religiosidade, mas não a da religião? Já que a arte deixa de ser<br />

sacra, a teologia passa para a ciência.<br />

DUMALZINHA: Talvez. Todavia, ao notar que estamos indo<br />

para não se ter mais apreço do mundo e as pessoas, pois, estes são<br />

tidos como ruins, o que traz um crescente tédio, e uma vontade<br />

que o mundo e as pessoas acabem. No entanto, ele quer combater<br />

esse pessimismo.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Será que ele não está considerando que se deve<br />

voltar a harmonia dos helenos: as forças da forma de Apolo ou<br />

então o desregramento da música e vinho de Dionísio, um<br />

autêntico bacanal?<br />

DUMALZINHA: Talvez. No entanto, ele quer entender a razão<br />

que nos levou a sermos muitos chatos. Ele quer escapar do<br />

pessimismo.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (pensando mal): Bacanal! Eu<br />

chato! Que camelo devasso e petulante. Mas, vou ficar na minha<br />

senão acabo explodido pelo rei ou todo espetado por esses súditos<br />

desta majestade.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: A razão é porque perdemos a nossa capacidade de<br />

invenção, evitamos ousar, vivemos uma vidinha e somos apenas<br />

seguidores de rotinas, somos seres de prudência vide a enxurrada<br />

de seguros como de casa, carro, incêndio, saúde. Acreditamos em<br />

poucas coisas e nem naquilo que dizemos que acreditamos não<br />

seguimos, nós nos perdemos no cotidiano sem exercitar nenhuma<br />

das faculdades, principalmente a imaginação. A completa<br />

melancolia parece ser algo elegante. Avançado é ser descrente,<br />

contrário e derrotista, caso for esperançoso, risonho e otimista<br />

passa por bobo.<br />

137


DOUTOR AUDITOR FISCAL (preocupado): Por favor, só não<br />

mencionem a palavra “tédio”.<br />

Foi só ele ter falado sem notar que mais um daquele petardo real<br />

insuportável é solto pelo camelo deixando o ambiente todo<br />

contaminado fazendo até escorpião gerar seu próprio calor a fim<br />

de abandonar a captação de fontes externas que se encontram<br />

completamente poluídas.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (pensando com dificuldade):<br />

Que porcalhão é esse que nem camelo é, isso é apenas um<br />

dromedário fumacê. Um bicho de uma corcova só, com pelagem<br />

curta e não vistosa.<br />

DUMALZINHA: O rei fez isso porque você ainda não disse<br />

como escapar do tédio.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: A perspectiva de quem estou a dissertar é o das ...<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (pensando impacientemente):<br />

Mais uma perspectiva! A do dromedário porcalhão, a dessa<br />

estrábica que deve ver tudo complicado e agora essa das ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: ... perspectivas.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (pensando, a ponto de<br />

estourar): Mais de uma! Várias! Ih! Se isso vem desde daquele<br />

mato vazio em que ele vivia, vai ser ... mas, se vier desde quando<br />

o Irã se chamava Pérsia, isso vai ser o matutar das perspectivas.<br />

Vai ter até a perspectiva de Zarastrusta.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Zaratustra foi um profeta nascido na Pérsia,<br />

provavelmente em meados do século VII a.C. Ele foi o fundador<br />

do Masdeísmo ou Zoroastrismo e também o possível criador do<br />

deus que conhecemos hoje do monoteísmo. O quinto livro mais<br />

influente no mundo é o Avesta desta religião que prega que o<br />

138


esforço e o trabalho eram atos santos, uma de suas frases: “O que<br />

semeia milho, semeia a religião. Não trabalhar é um pecado."<br />

Esse fundador foi tão valioso que um livro que faz referência a<br />

ele é um dos entre os cinqüentas mais importantes: “Assim falou<br />

Zaratrusta” do Nietzsche.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: Não acabei de dizer! Fala<br />

Zara!<br />

DUMALZINHA (pensando preocupada): Fala nada! Abaixo o<br />

conhecimento e cultura.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Ele fala que para escapar do tédio temos que<br />

montar um saber onde essas coisas entediantes desaparecessem,<br />

mas se isso desaparecer nós não estamos mais falando do homem,<br />

mas sim além-do-homem. Não de um super-homem que seria o<br />

homem elevado a uma superpotência. Este ser além-do-homem<br />

vive a vida sem ansiedade. Quanto as coisas boas ou ruins ele<br />

simplesmente as vive, por isso, ele não é homem. É a utopia do<br />

homem e não a da cidade.<br />

Zarastrusta não escreve em prosa, mas sim por metáforas.<br />

Inclusive, diga-se de passagem, que o herói não é Zarastrusta,<br />

mas sim o último dos homens, o que vai anunciar Zarastrusta; já<br />

o que escreve esse livro é o penúltimo dos homens, é o que<br />

escreve a vida deste herói. Ele não descreve muito porque se o<br />

fizer existe um local no papel, passando a ser profecia.<br />

O animal mamífero se desvira e fica muito sério.<br />

DUMALZINHA (falando baixinho de modo confidencial): Eu<br />

não disse para não falar nada. O rei é árabe, muçulmano, islamita,<br />

maometano e ele odeia o persa masdeísta, zoroastrista,<br />

zaratrustita. Fale algo sobre Maomé, mas de coração porque se<br />

ele perceber que alguém está mentindo, já era uma cabeça.<br />

Sem temor e com muita sinceridade.<br />

139


<strong>ESTRANHO</strong>: Maomé, para mim, é a primeira personalidade da<br />

história, foi o único homem extremamente bem-sucedido em<br />

ambos os níveis: secular e religioso. Fundador da religião que<br />

mais cresce na atualidade e que ocupa a segunda colocação entre<br />

os números de adeptos. Um de seus discurso – A Surata do<br />

Acontecimento Inevitável – é o sexto mais influente na história.<br />

O seu livro – O Corão –, num determinado sentido, é um dos dez<br />

mais influentes no mundo.<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL: O camelo real está chorando!<br />

Dumalzinha se aproxima do rei para servi-lo naquela sua<br />

comoção. Os dois confabulam de alguma maneira não muita<br />

explicita. Porém, ela volta assustada para comunicar o que se<br />

passou, passa e que vai passar.<br />

DUMALZINHA: O rei chorou por ter sido atendido em seus<br />

anseios profundos diante do que havia falado Zaratrusta. Ele está<br />

disposto a mudar de religião e deixar aquela vida de luxo no<br />

deserto.<br />

E não é conversa não. Ele abaixa a cabeça deixando aquela<br />

coroa tombar nas dunas o que representa o abandono ao trono,<br />

ou seja, a renúncia real. E num sinal de gratidão, com sua boca<br />

vai tirando a túnica daquele ser tão aprimorado e caprichado<br />

como demonstração simbólica de passar a ser um servo a<br />

disposição daquele mais do que perfeito.<br />

DUMALZINHA (muito emocionada, fala para o algemado):<br />

Esse ato nunca irá se apagar da minha memória, o rei<br />

reconhecendo a grandeza do ser esmerado que você é.<br />

Quando a túnica desce de modo a tocar inteiramente no chão, os<br />

olhos dos armados com as espadas sarracenas se esbugalham<br />

com o que vê, o ex-rei de tanto assustado foge. Quando o recém<br />

destunicado ia indagar o que estava acontecendo, tem em volta<br />

de seu corpo todas as espadas sarracenas.<br />

140


<strong>ESTRANHO</strong> (se indagando): Grosseiro, não fui. O que será que<br />

eu fiz?<br />

(se indagando mais ainda): O quanto de estranho malfeito sou se<br />

o rei me achava até ainda bem pouco um ser bem-feito?<br />

DUMALZINHA (se preparando para dar no pé): Eu não me<br />

lembro de nada, esqueci tudiiinho. Bom, eu como eterno serviçal<br />

de sua ex-realeza tenho que ir ao seu encontro. E você como uma<br />

pessoa sociável se entenda com esses reservados espadados.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (se indagando): Mas, o estranho aqui não sou eu?<br />

Como posso ser sociável?<br />

DOUTOR AUDITOR FISCAL (outro se desvencilhando): Eu<br />

acabei de entrar para a facção dos inimigos dos inimigos do<br />

amigo da seita dos ... dos não sei o que do B. E você como uma<br />

pessoa bem-feita, perfeita, se entenda com esses realizados sem<br />

cuidado ou competência de modo que cada um deles pertence a<br />

uma e somente uma entre as milhares doutrinas que se afastam da<br />

crença ou opinião geral.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (se indagando): Mas, o malfeito aqui não sou eu?<br />

Como posso ser bem-feito, perfeito?<br />

(parecendo rezar): “Guerra e Paz” de Tolstoi<br />

Dom Paulo Evaristo Arns (1921-) foi um dos defensores da<br />

camisa canarinho na disputa pelo Nobel da Paz. Ele concorreu em<br />

1990, mas teve que encarar o megacraque Dalai Lama, que ficou<br />

com o título. O sociólogo Betinho deu a sua contribuição para<br />

emplacar na categoria. E era um ateu “cristão”. Quem diria que<br />

mais tarde um brasileiro iria ...<br />

Aqueles canhões que estavam apontados pelos bêbados e<br />

viciados para o mar e para as piscinas infláveis estão perdidos<br />

atirando para todos os lados. E isso faz com que numa destas<br />

rodadas de fogo para fora e para dentro do corpo atinjam a<br />

proximidade daquele aglomerado invasor árabe que se<br />

dispersam deixando o bem dotado muito curioso e furioso com<br />

141


um negão ao longe cheio de camelos. Do ponto de vista do negão<br />

uma grande interrogação: “Por que esse barbado algemado<br />

desdentado cueiroado marcado herniado tido como [o tããão<br />

esperado ansiosamente] não atina que naquele outro lado do<br />

mundo provavelmente o que lhe espera é ser considerado ...”<br />

142


O ESTRANGEIRO<br />

Há seis anos atrás. Lá estão os dois juntos muito longe daquela<br />

guerra. O barbado algemado desdentado cueiroado marcado<br />

herniado com uma mãozinha de coçar e o bigodudo, alto e forte,<br />

com uma mãozinha de caçar qualquer otário que lhe apareça na<br />

frente. Este está muito comunicativo, quando se depara com<br />

alguém, fala a uma única palavra que conhece e, que se diga de<br />

passagem, com bastante ênfase: “Salamat!”. Ah, sim! O que ela<br />

quer dizer? “Salamat” quer dizer “Oi”.<br />

DUMAL: O estranho. O que ela está falando para aquele gringo?<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): Estranho ainda!<br />

(respondendo): Saya cinta padamu.<br />

DUMAL: Você sabe do meu caso. Traduz aí.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Eu te amo.<br />

DUMAL: Cara ela é fogo. E ele o que disse?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Berapa harganya ini? Ou seja: Quanto isto custa?<br />

DUMAL: Gringo esperto, aquele ali. Está chamando aquilo de<br />

isto para depreciar o produto. Vou dá um pau nele.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Calma! Calma. Ele está no caminho certo, está<br />

sendo sincero com o produto. No momento, acabou de afirmar:<br />

Saya mau makan. Traduzindo: Eu quero comer.<br />

DUMAL: Agora tá bom! Tá falando a linguagem certa.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Ela convidou: Silakan, masuk. Isto é: Entre, por<br />

favor.<br />

143


DUMAL: Ele está subindo a escada, está entrando ... entrou ...<br />

está dentro ... Epa! Está saindo ... descendo ... desceu ... saiu.<br />

Parece aquela piada do coelhinho: “Vamos dar uma?”. A<br />

coelhinha: “O que?!”. Coelhinho: “Vamos dar outra?”.<br />

(prestando atenção): Mas, ele está gritando com ela. Por que está<br />

tão zangado? O que ele está ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: ... Di mana dompetku? Traduzindo: “Onde está a<br />

minha carteira?”<br />

DUMAL: E ela está gritando o quê?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Saya tidak tahu. Saya tidak tahu. Ou seja: “Eu não<br />

sei. Eu não sei.”<br />

DUMAL: Puxa! Mamãe não é de levar desaforo para casa, só<br />

leva carteira.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: A situação está ficando da sua cor. É melhor você<br />

ir lá pra defender sua mãe.<br />

DUMAL: Eu não posso, não lembra! Estou irregular nessa<br />

Indonésia, sem nenhum armamento. Vai você que é o cafetão<br />

desta zona, desta CASA DE TOLERÂNCIA.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Eu! Ainda bem que você está sem arma, senão ia<br />

deixar alguma comigo, como fez lá no México, e a polícia<br />

chegando lembra e você de fininho, quando a polícia chegou ...<br />

Sirene da polícia. Um corre corre naquela área de LAZER.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Que será que está acontecendo? O que eles<br />

querem?<br />

DUMAL: Não é nada demais não. Eles estão atrás dos camelos<br />

que deixei lá nos fundos da sua casa.<br />

144


<strong>ESTRANHO</strong>: Lá! Mais uma comigo! Mas, você não disse que<br />

os tinha vendido logo que aqui chegamos?<br />

DUMAL: É que eu não posso viver sem eles, é coisa de coração,<br />

e sempre termino eu os pegando de volta.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Pelo menos foi comprado, não?<br />

DUMAL: Não, foi totalmente roubado.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (apontando): E lá estão os seus camelos levados<br />

pela polícia. Epa! Tem um leão no meio deles.<br />

DUMAL: É! Oh! Ih! Coitados!<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Você conhece os policiais?<br />

DUMAL: Não, eu conheço é o leão.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Como você conhece um leão?<br />

DUMAL (se descontrolando): Através do meu amigo, um dos<br />

raros budistas existentes na índia, que em peregrinação por esse<br />

sudoeste oriental, esse sudoeste asiático maldito, essa Indonésia<br />

desalmada ...<br />

(se desculpando e continuando): Desculpa-me por esse desabafo.<br />

Como eu estava contando. O meu amigo indiano passando perto<br />

de um circo, exatamente no momento em que cinco leões<br />

fugiram. Não ficou uma pessoa nas imediações para contar a<br />

história, inclusive o meu amigo que deu de cara com um dos<br />

leões muito raivoso. Desarmado, ele só teve uma alternativa para<br />

tentar acalmar o bicho: tocar a sua flauta. E não é que deu certo!<br />

Assim, que ouviu as primeiras notas, o leão ficou manso como<br />

um gatinho. Nisso foram chegando os outros leões, veio o<br />

segundo, o terceiro, o quarto, as pessoas foram voltando e o meu<br />

indiano amigo tocando a flauta sem parar. Os leões acalmados<br />

pela música foram sentando em redor dele relaxados, o público<br />

145


também, inclusive o domador deles, só que este muito<br />

preocupado. Quando o clima era de alto nível, chegou o quinto<br />

leão que faltava, que não quis saber daquele peregrinismo<br />

musical e estraçalha o pobre coitado com flauta e tudo. O<br />

domador dos leões testemunha ocular comentou: “Eu sabia que<br />

ele ia se dar mal com o surdinho.”<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (querendo saber a situação da progenitora de<br />

Dumal): E a sua mãe?<br />

DUMAL (ainda preso na história que está contando): Mamãe<br />

não conhece o surdinho. Ela não é muito chegada a animal não.<br />

Ela se amarra em cidade grande. Um dia ela foi visitar uma<br />

fazenda aqui, chegou no curral e sussurrou no ouvido de uma<br />

espécie de gado bovino: “Hoje, sua coisinha da mamãe, sou em<br />

quem vai tirar o seu leitinho, ouviu, graçinha?”. Aí foi a minha<br />

vez de sussurrar no ouvido dela: “Mamãe, eu também tenho uma<br />

surpresa para você. Ele, não é vaca, e pior do que possa imaginar<br />

também não é um touro, ele é um boi, corre!”.<br />

(contando com entusiasmo aquela história, começa a gritar):<br />

Corre mamãe! Corre, corre!<br />

Ela escutando aqueles gritos e nota que quem está chamando é<br />

seu filho. Tira os sapatos de salto alto dos pés, tenta sem sucesso<br />

cobrir a barriga, pernas e parte da coxa com a blusa e saia que<br />

está usando, e atendendo se põe a correr para ele.<br />

ENFERMEIRA (bufando quase enfartando): O que houve meu<br />

garoto! Ligou sem querer o chuveiro quando foi tomar banho?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Como assim?<br />

ENFERMEIRA: Ele só usa xampu para cabelos secos. Aliás,<br />

não se meta nisso, isso é coisa de mãe e filho. Você sabe muito<br />

bem que está me devendo uma seringada.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Como! Ele não toma banho?<br />

146


DUMAL: Vamos respeitar. Cada um com a sua crença religiosa.<br />

ENFERMEIRA: Evitada a crença religiosa, o fim do ser<br />

humano é o prazer. Tudo é composto ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando, embevecido): ... por átomos.<br />

“Carta sobre a felicidade” é um dos maiores discursos na história.<br />

Será que ela conhece a filosofia para produzir deuses?<br />

Vou continuar para ver se ela é uma discípula de Epícuro.<br />

(falando): Ele queria ser um médico da alma, o que ele queria<br />

curar? Nada. Porque ele queria fazer uma medicina preventiva,<br />

evitar que se ficasse doente da alma. Isso, no fundo, era Atenas<br />

ensinando filosofia versus Alexandria ensinando medicina.<br />

DUMAL: Afinal, qual é a doença?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: É a ansiedade. Epícuro vai procurar descobrir o<br />

que provoca sua ansiedade. Para ele é o convívio com a<br />

competição “provocado pelos deuses”, pelas pessoas terem medo<br />

dos deuses, inclusive após a morte, daí ter dinheiro para fazer<br />

oferendas para os deuses. Em sua física ele mostra que tudo é<br />

átomo e vazio, e os deuses existem, mas infelizmente não estão<br />

preocupados conosco, pois se eu sou um deus e tenho todos os<br />

poderes porque eu vou me preocupar com um mortal, além do<br />

mais como o corpo do mortal é físico e, portanto depois da morte<br />

não tem nada, então nós vamos se preocupar com o quê? Saiamos<br />

dessa ansiedade, dessa competição e vamos curtir a vida, ter<br />

prazer, essa é a bula.<br />

Ela continua a mesma, bate palmas sem parar, mesmo<br />

entendendo meio torto.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (no embalo do agrado): Quais são os deuses<br />

atuais? Ansiedades: bebida, comida, sexo, droga, vícios,<br />

namorado que não quer, emprego. Qual é o deus do cristianismo?<br />

Um deus ciumento cujo primeiro mandamento é que se deve<br />

amar a ele sobre todas as coisas.<br />

147


Outro é o estoicismo que não emprega o prazer que vai fazer você<br />

ser sábio, mas sim o autocontrole porque o mundo é<br />

predeterminado, logo, não é o autocontrole no prazer. É o fazer o<br />

que dá para fazer, o que está determinado, tipo: “eu não estou<br />

preocupado com a morte porque ela é o meu destino”.<br />

Já o prazer do epicurismo não é a gula, mas sim o prazer sábio.<br />

Beba água ou coma algo até o prazer, não como o vomitório<br />

romano. Também, não é o saber parar, mas sim o saber até que<br />

ponto dá prazer. Chupa jabuticaba sem pegar o amarguinho.<br />

ENFERMEIRA (fanzoca): Que lindo esse biquinho. Faz de<br />

novo. Diz: “Jabutiquabinha, ..., amarguinho”.<br />

DUMAL (pensando): Gigolô é bom de conversa. Mas, eu me<br />

lembro, mesmo estando contrariado, da conversa dele com<br />

Dumalzinha, lá no México, sobre bem e mal. Ela depois, num<br />

particular comigo, desabafou dizendo que não estava nada<br />

convicta com o que esse bom da lábia tinha argumentado. Para<br />

ela: ou Deus pode e não quer evitar o mal e, portanto, Ele não é<br />

bom; ou quer e não pode e, portanto, não é onipotente; ou nem<br />

pode e nem quer e, portanto, não é Deus. Vou dá um nó nesse<br />

vaselina.<br />

(falando): Afinal, de onde procede o mal?<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (ultra-rápido): Eu me lembro que já respondi lá no<br />

México que Deus criou o bem e o mal, ambos fazem parte do<br />

plano Dele. Agora, se não está convencido: “Por que buscá-lo em<br />

Deus e não neste nosso mundo?”.<br />

Silêncio embatucador, até que ...<br />

DUMAL (rindo): Desse cafifa ninguém escapa. Até minha mãe<br />

que é rodada tá indo nesse papo indolor. Você sabe muito bem<br />

cafetão desde lá das Américas, que eu não ... que eu não ... não ...<br />

Aproveitando que Dumal não está lembrando do que tem a dizer,<br />

mas ele não esquece do que tem de pensar.<br />

148


<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): ... não passa de um chato. Uma vez<br />

chato, sempre chato. Antes cismava que eu era um santo, agora<br />

que sou gigolô, cafifa, cafetão, todos sabem muito bem que eu<br />

não ... que eu não ...<br />

Agora é ele que esquece o que tem a pensar porque uma forte<br />

coceira o invade e ele entre os “ai e ui” rapidamente emprega a<br />

mãozinha de coçar que estava na sua mão, o que o deixa<br />

bastante amolado.<br />

ENFERMEIRA: Como você fica chateado com esse chato!<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (ainda preso no que estava pensando do filho<br />

dela): Não, eu não estou amolado com Dumal, o chato é piolho<br />

do púbis mesmo, aquele que tem muito nesta zona.<br />

O filho da enfermeira completamente por fora do que está<br />

acontecendo ali, continua procurando encontrar as palavras até<br />

que as encontra.<br />

DUMAL (completando o que ele estava dizendo): ... que eu não<br />

sei ler mais gosto de livros, de sua cor, de tê-los exibidos na<br />

estante. Adoro ouvir que se fale em ...<br />

ENFERMEIRA (para o que está com piolho do púbis): Larga<br />

essa mãozinha, vai mesmo com as mãos ... com as mãos.<br />

DUMAL (completando o que ele estava dizendo): ... Camões, é<br />

isso aí mamãe!. Se ele fosse vivo, hein! Se Camões fosse ainda<br />

vivo em nossos dias, seria levado em conta como um homem<br />

extraordinário, não?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Sem dúvida, um fenômeno!<br />

DUMAL: Qual o motivo de tanta certeza?<br />

149


<strong>ESTRANHO</strong>: Ora, ele estaria hoje com cerca de quatrocentos<br />

anos!<br />

DUMAL (continuando na dele): Que livros famosos e de<br />

famosos, com capa bonita, você recomenda para minha mãe?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Talvez “Romeu e Julieta” do maior escritor de<br />

todos os tempos: William Shakespeare.<br />

DUMAL: Diga uma frase dele que traga fé no futuro dela.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: “Os miseráveis não têm outro remédio a não ser a<br />

esperança.”<br />

Os familiares aplaudem, a mãe assobia alto e o filho soluça<br />

baixo.<br />

ENFERMEIRA: Você sabe que ele é um bebê chorão que só<br />

soluça sem dizer uma frase que retribua a frase do sheik, sheik,<br />

esse que ele acabou de ouvir e de se emocionar. Mostre ao meu<br />

filho como se faz. Procure uma frase desse sheikespirro, imagine<br />

ele como um feto acabando de sair do útero de sua mamãe sheika<br />

e vendo, em primeiro lugar, o meu filho e a mim naquele parto, o<br />

que diria?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: O sheikespirro, digo, Shakespeare, por hipótese eu<br />

destacaria essa que ele falou de fato que talvez fosse apropriada<br />

para esse seu pedido de busca, qual seja: “Choramos ao nascer<br />

porque chegamos a este imenso cenário de dementes.”<br />

Agora, ela chora e o filho assovia.<br />

DUMAL: Que outros livros famosos e de famosos, de cores<br />

lindas, você recomenda para minha mãe?<br />

150


<strong>ESTRANHO</strong>: “Direitos das mulheres e injustiças dos homens”<br />

de Mary Wollstonecraft, “Memórias de uma prostituta” de<br />

Diderot.<br />

DUMAL: Eu só não sei por que você parou de escrever esse<br />

livro, que você guarda enfiado na barriga, inspirado nesse local,<br />

já que você é bom de lábia e conhecedor das coisas?<br />

ENFERMEIRA: Que livro é esse, mostra, mostra.<br />

Arrancando de dentro das calças do algemado, deixando-o um<br />

pouco com as nádegas de fora, ela senta no chão cheia de<br />

indiscrição e começa a ler em voz alta.<br />

___________________________________________________<br />

Numa RUELA DEPLORÁVEL de tão sombria, fétida e tortuosa<br />

em todos os sentidos, caminha uma negra envelhecida numa<br />

aparente indigência estranha num autêntico percurso monótono<br />

onde apenas matos contatam o visualizar e ratos atravessam o<br />

andar. Quando aquela via é alterada subitamente pela<br />

diversidade de viciados sem pena, mas com fatos esbarram o<br />

cambalear daquela pária arremessando-a ao chão. Seu rosto<br />

sangra em face que não expressa dor, pois, sua fisionomia é de<br />

quem não tem tempo a perder. Ela se ergue prontamente e se põe<br />

a continuar. Ao avançar já se vêem mulheres expostas pelas<br />

portas e janelas vendendo sexo por dinheiro, alguns homens<br />

entram, outros apenas observam, num local comumente chamado<br />

de ZONA DE MERETRÍCIO. Ela ao se aproximar é motivo de<br />

cochichos, até que destes ruídos vem um grito e com ele o título<br />

de RAINHA DA ZONA.<br />

Entre as CAÇOADAS e GARGALHADAS, de uma daquelas<br />

aberturas uma PROSTITUTA espevitada desponta fazendo<br />

mesuras e falando para aquela recém intitulada imperatriz do<br />

prostíbulo.<br />

151


PROSTITUTA: Soberana do reino das dedicantes ao comércio<br />

carnal, qual a razão desta visita real?<br />

RISOS, sem nenhuma resposta. Ao lado daquela meretriz a<br />

CAFETINA mostra seu descontentamento.<br />

CAFETINA: Ô coisa nenhuma vai circulando, não vem<br />

atrapalhar o negócio.<br />

Além do SILÊNCIO, aquela com a face ensangüentada mantêm<br />

uma posição do corpo de modo a traduzir uma atitude não<br />

condizente com aquelas palavras proferidas.<br />

CAFETINA: Pôrra! Uma merda de uma preta, pobre e passada,<br />

cheia de postura.<br />

PROSTITUTA (brincando): É assim mesmo, quem foi rainha<br />

nunca perde a majestade.<br />

CAFETINA (intransigente com aquela calada): Ô nada, vai<br />

logo, vai procurar sua turma dos putrefatos, capina sua<br />

insignificante, sua rapina de nulidade, antes que eu te dê umas<br />

pancadas.<br />

Um freguês daquele ambiente, próximo daquela que se mantém<br />

imóvel, empurra-a de maneira que esta cai ao chão.<br />

PROSTITUTA: Que é isso cara, tá esquecendo que isso aqui é<br />

uma casa de tolerância.<br />

CAFETINA: Tolerância é o cacete! O freguês tem sempre razão.<br />

Tá pensando que eu tô brincando sua assanhada. Espera que vou<br />

chamar meu amor.<br />

PROSTITUTA (falando baixo para si): Ih! Gigolô posando de<br />

amô.<br />

152


CAFETINA (gritando): Amooor. Tem encrenca aqui embaixo.<br />

GIGOLÔ - mulato de terno e de boa aparência - desce as<br />

escadas apressadamente.<br />

GIGOLÔ: Quem é a encrenca aqui?<br />

PROSTITUTA (apontando para aquela silenciosa de cabeça<br />

baixa): É aquela ali, que alguns dizem ser sua mãe.<br />

GIGOLÔ (irado): Quem é o moribundo que está falando isso?<br />

CAFETINA (apontando para aquela prostituta): É essa mor de<br />

bunda.<br />

Quando a violência ia se consumar, algo inesperado acontece, a<br />

silenciosa olhando fixamente para aquele mulato, se debulha em<br />

lágrimas. Todos ficam pasmos, acarretando para os presentes<br />

certa calhofa do tipo “o agonizante tem razão”, o que paralisa o<br />

violento, porém deixando-o mais furioso. Refeito, vai ao encontro<br />

daquela que o olha com ternura e desfere um potente pontapé<br />

que a projeta totalmente no rasteiro.<br />

GIGOLÔ (possesso): Isto é para você aprender a não causar<br />

confusão, paralisação, nem falsa interpretação, sua maluca.<br />

(continuando): Você sabe por que dizem que galinha velha dá um<br />

bom caldo? É por causa da qualidade do molho.<br />

Abaixa o zíper da calça põe o pênis para fora. E começa a<br />

URINAR em cima daquela senhora abatida. Com isso tudo volta<br />

ao normal naquele local ... relativo ao lugar dos sem amor.<br />

Num LIXÃO, Gigolô vem arrastando aquela que ele agrediu. Ele<br />

a puxa com suas mãos num de seus braços, pois no outro braço<br />

quem vem estirando é aquela prostituta que se encontra exausta<br />

com este esforço. Ele percebendo o esgotamento.<br />

153


GIGOLÔ: Isso é para você não fazer mais brincadeirinha de mau<br />

gosto, sua vadia.<br />

(continuando): Pronto, vamos jogar esse traste nessa vala.<br />

PROSTITUTA (esbaforida): Mas, ela está viva!<br />

GIGOLÔ (irritado): O que me importa se ela está viva ou morta.<br />

Aliás, se você acha que a condição dela ser jogada é estar morta,<br />

é pra já ...<br />

Largando o braço daquela puxada, ele tira um revolver de dentro<br />

do terno. A prostituta soltando o outro braço daquela esticada o<br />

impede com um forte abraço sob o olhar corajoso e curioso de<br />

quem está no plano vulgar, observando que eles se beijam<br />

intensa e calorosamente. Até que saciados e apaixonados<br />

conversam com intimidade com a arma ameaçadora já ocultada.<br />

GIGOLÔ: Como eu te amo.<br />

PROSTITUTA: Mas, porque você continua com aquela cafetina.<br />

GIGOLÔ: Eu vou viver de quê?<br />

PROSTITUTA: Eu te sustento.<br />

Ele baixa a cabeça.<br />

GIGOLÔ (entristecido): Como! Se ela descobre, somos dois<br />

fora da zona.<br />

Por uns segundos se estabelece uma mudez. Até que incomodado<br />

com a calmaria, ele olha para ela que está vendo aquela idosa<br />

silenciosa olhando fixamente para ele com os olhos<br />

lagrimejando. A meretriz sorri para sua paixão, ele entendendo<br />

retribui.<br />

GIGOLÔ (alegre): Não ouses em dizer novamente “É aquela ali,<br />

que alguns dizem ser sua mãe.”<br />

154


Eles ficam rindo e a senhora quase que pedindo permissão deixa<br />

transparecer seus dentes.<br />

PROSTITUTA: Ih! Eu acho que sua “progenitora” sentiu<br />

alguma coisa ...<br />

GIGOLÔ (magoado): Se fosse ela, só poderia ser de<br />

arrependimento de ter me largado ainda bebê em plena rua.<br />

PROSTITUTA: Por que ela fez isso?<br />

GIGOLÔ (apontando para a no chão): Você não diz que essa<br />

velha negra miserável é minha mãe, então pergunte a ela. Desde<br />

que ela fale é claro, pois pensar eu nem acredito.<br />

PROSTITUTA: Porque a rainha o abandonou?<br />

Pela face da indagada escorrem lágrimas.<br />

GIGOLÔ (entediado): Já estou cansado desse úmido vazio dessa<br />

doida surrada que nem escuro é.<br />

PROSTITUTA: Pare de insultá-la com esse machismo.<br />

Inesperadamente.<br />

RAINHA DA ZONA (voz embargada): Perdão ... pior do que<br />

abandono é já abortar em pensamento.<br />

PROSTITUTA (olhando para o seu amado): Ih! Acho bom<br />

você ir renovando sua crença de que ela não pensa.<br />

___________________________________________________<br />

E pára, pára por não ter nada mais escrito.<br />

155


ENFERMEIRA (extasiada e curiosa): O que ela pensa? Quem é<br />

ela?<br />

DUMAL: Confessa. Você que é o gigolô? Qual das duas<br />

mulheres é a minha mãe?<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): Nesta minha viagem conheci até um<br />

ex-gay, duvido que alguém no mundo em todos os tempos tenha<br />

conhecido um ex-chato.<br />

ENFERMEIRA: Por que você não continuou ...<br />

DUMAL: ... essa nossa história.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): Adianta dizer que é por falta de<br />

tempo? Adianta falar que a mulher não é mulher, a rainha da zona<br />

é um tipo de fraco, do mesmo jeito que o cego, o escravo, a<br />

ovelha? Por isso essa velha negra doente, também por isso é que<br />

eu parei com esse escrito. Prefiro a denúncia psicológica da pena,<br />

do se tornar vítima como a maneira de destruir o outro,<br />

enfraquecer o outro. Ser vítima é a pessoa hegemônica nos<br />

tempos modernos. Condescendências com as faltas, redução de<br />

penas, criar o mundo onde os fracos podem viver, psicologia<br />

corruptora, o mundo onde para vencer tem que ser fraco, não é<br />

bom, é hipócrita.<br />

DUMAL: (pesaroso com lágrimas nos olhos)<br />

Adianta dizer que o meu amigo indiano foi uma vítima daquele<br />

leão surdinho? Adiantou ele ser budista e ter feita essa<br />

peregrinação aqui na Indonésia? Morreu, acabou tudo ou vai<br />

renascer em algum outro lugar? Aonde? O que diria o seu<br />

doutrinador Buda sobre a vida? Que discurso histórico esse<br />

pilantra faria?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Ele fez um discurso que ficou na história como<br />

um dos mais significativos que talvez sirva para você refletir<br />

156


sobre estas suas duas últimas perguntas, o nome que o discurso<br />

ficou conhecido é “Sermão sobre a injúria”.<br />

(pausa): Agora sobre as demais perguntas, eu começaria por<br />

indagar: Se houvesse um oceano poderoso diante de ti, tu o<br />

saberias?<br />

DUMAL: Claro!<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Se houvesse um fogo ardendo diante de ti, tu o<br />

saberias?<br />

DUMAL: Claro!<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Se o fogo se apagasse, saberias que ele se foi?<br />

DUMAL: Claro!<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: E se te perguntassem em que direção o fogo se<br />

foi, se para leste, oeste, norte ou sul, poderias responder? E se te<br />

perguntassem se o oceano renasce ou não renasce?<br />

Silêncio.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: “A vida não é uma pergunta a ser respondida. É<br />

um mistério a ser vivido.” Buda.<br />

Ela o agarra e beija de tanta emoção com palavras que não<br />

compreende seu sentido.<br />

ENFERMEIRA: Que outras mensagens ele nos deixou? Os seus<br />

discípulos? O que teriam dito que serviria para o meu filho?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Havia um grande doutrinador, um guia budista,<br />

Nagarjuna. Um ladrão foi ter com ele. O ladrão ficara fascinado<br />

com o guru, pois nunca tinha visto uma pessoa tão bela, com uma<br />

graça tão infinita. Ele perguntou a Nagarjuna: Existe alguma<br />

possibilidade de eu também crescer? Mas há uma coisa que tenho<br />

157


de lhe dizer: sou um ladrão. E outra coisa: não posso abandonar a<br />

profissão, pelo que, por favor, não a torne uma condição. Faço<br />

qualquer coisa que disser, mas eu não consigo deixar de ser<br />

ladrão. É que já tentei muitas vezes – nunca resulta, por isso abri<br />

o jogo. Aceitei o meu destino, que vou ser ladrão e permanecer<br />

um ladrão, pelo que não falemos disso. Que isso fique bem claro<br />

logo no princípio.” Nagarjuna retorquiu: “Por que tens medo?<br />

Quem é que vai falar sobre o fato de seres ladrão?” O ladrão<br />

disse: “Mas sempre que eu vou ter com um monge, com um<br />

padre ou com um santo, eles dizem-me ‘Primeiro, deixa de<br />

roubar’.” Nagarjuna, riu-se e perguntou: “Então deves ter ido<br />

falar com ladrões, caso contrário, por quê? Qual é o motivo do<br />

seu interesse? Eu não estou interessado!”. O ladrão ficou muito<br />

contente e disse: “Então está bem. Parece que agora posso tornarme<br />

um discípulo. Você é o mentor certo.”<br />

Nagarjuna aceitou-o e informou-o: “Agora podes ir e fazer aquilo<br />

que te apetecer. Tens de respeitar apenas uma condição: estar<br />

ciente! Vai, assalte casas, entra, tira coisas, rouba, faz aquilo que<br />

te apetecer, isso não me interessa, não sou ladrão – mas fá-lo com<br />

total consciência.” O ladrão: Então está tudo certo. Tentarei.”<br />

Três semanas depois, ele regressou e disse: “Você é matreiro,<br />

pois se eu me torno ciente não consigo roubar. Se eu roubo a<br />

consciência desaparece. Estou num dilema.”<br />

Nagarjuna respondeu: “Não quero mais conversa sobre o fato de<br />

seres ladrão e roubares. Não estou interessado, não sou ladrão.<br />

Agora, tu decides! Se queres a consciência, então decide. Se não<br />

a queres, então decide também.”<br />

O homem respondeu: Mas agora é difícil. Já experimentei um<br />

pouco e é tão bela. Ainda na outra noite, pela primeira vez<br />

consegui entrar no palácio do rei. Abri o tesouro. Poderia ter-me<br />

tornado o homem mais rico do mundo – mas você seguia-me e eu<br />

tinha de estar ciente. Quando me tornei ciente, os diamantes<br />

pareciam pedras, pedras vulgares. Quando perdi a consciência, o<br />

tesouro estava lá. E eu esperei e fiz isto muitas vezes. Ter-me-ia<br />

tornado ciente e fiquei como um Buda, sem sequer poder tocar<br />

nele, porque tudo parecia ridículo, estúpido – somente pedras, o<br />

que estou eu a fazer? Estou a perder-me por causa de pedras?<br />

158


Mas, então, eu perderei a consciência; elas tornar-se-ão de novo<br />

belas, a ilusão total. E finalmente, decidi que elas não valiam a<br />

pena.”<br />

DUMAL: Mas, como é que eu vou viver não sendo ladrão e nem<br />

traficante?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Você não gosta de livros? Saiba que Homero era<br />

um poeta cego que vagava de cidade em cidade, se sustentando<br />

com a recitação de sua poesia. Saiba que Esópo era um escravo<br />

liberto, bufão e corcunda.<br />

DUMAL: Daqui a pouco você vai citar um padre, achando que<br />

eu poderia vir a ser um deles.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Padre Vieira, o maior orador sacro português, foi<br />

uma das figuras mais lúcidas do seu tempo, na Europa. Já foi dito<br />

que Vieira vale por uma literatura.<br />

DUMAL: Todo padre prega e alguém é pregado. Eu não quero<br />

saber o que ele diz para o pregado, eu quero saber o que ele fala<br />

para o pregador?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Aprecie esse trecho do seu sermão da sexagésima:<br />

“Por isso Isaías chamou aos pregadores de nuvens. A nuvem tem<br />

relâmpago, tem trovão e tem raio: relâmpago para os olhos,<br />

trovão para os ouvidos, raio para o coração: com o relâmpago<br />

ilumina, com o trovão assombra, com o raio mata. Mas o raio fere<br />

a um, o relâmpago a muitos, o trovão a todos. Assim há de ser a<br />

voz do pregador: um trovão do céu que assombra e faça tremer o<br />

mundo.”<br />

DUMAL: Mas, em todos os países que vivi e passei, nenhum faz<br />

nada pela gente.<br />

159


<strong>ESTRANHO</strong>: Kennedy no seu discípulo de posse em 1961 disse<br />

uma frase que se tornou famosa: “Não pergunteis o que o vosso<br />

país pode fazer por vós e sim o que podeis fazer por vosso país.”<br />

DUMAL: Presidente é assim mesmo, só quer saber do lado dele.<br />

Mas, não adianta falar de presidente por que isso eu sei que não<br />

consigo chegar lá, embora tenha algumas condições ... Mas,<br />

vamos voltar para aquele padre novamente, pois padre é algo que<br />

eu posso almejar. Como ele continuou aquele sermão?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: “Eis aqui o que devemos pretender nos nossos<br />

sermões; não que os homens saiam contente de nós, senão que<br />

saiam muito descontentes de si; não que lhes pareçam bem os<br />

nossos conceitos, mas que lhes pareçam mal os seus costumes, as<br />

suas vidas, o seu passatempo, as suas ambições, e enfim todos os<br />

seus pecados. Contanto que se descontente de si, descontentem-se<br />

embora de nós.”<br />

DUMAL: Quem são os bons em literatura na sua terra?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Machado de Assis, Fernando Pessoa, Graciliano<br />

Ramos, ...<br />

DUMAL: Nenhum para o Oscar?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: O alagoano Jorge de Lima (1893-1953) foi um<br />

talento reconhecido em 1947 por um olheiro do Nobel.<br />

Impressionado com a obra do poeta, Artur Lunkvist convenceu a<br />

academia a dar o Nobel de Literatura a ele no ano de 1958, já que<br />

havia uma lista de autores para ganhar antes. Infelizmente, Jorge<br />

morreu em 1953. E o Nobel só premia vivos.<br />

DUMAL: E por falar em premiar os vivos. Lá vem aquele que<br />

bateu boca com mamãe com um salgari mortal em nossa direção.<br />

Deixa ele vir com esse punhal de lâmina ondulante e assimétrica<br />

que vou lhe dar uma coça. Ah! Se eu tivesse aquele AR15 aqui!<br />

160


<strong>ESTRANHO</strong>: Por que não pensar em uma arma nuclear que foi<br />

inventada em 1945 ou uma realidade virtual em 1988? Vamos<br />

relembrar o que Buda deixou para nós seguirmos.<br />

“Não viva no passado, não sonhe com o futuro, concentre a<br />

mente no momento presente.”<br />

“O segredo da saúde da mente e do corpo está em não lamentar o<br />

passado, em não se afligir com o futuro e em não antecipar<br />

preocupações, mas está no viver sabiamente o presente<br />

momento.”<br />

DUMAL (não escutando): Vem gringo com esse salgari<br />

enferrujado de camelo, ou melhor, de camelô.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): Esse doido chato não se dá conta de<br />

que gringo é ele, e pior, que o outro não entende o que ele está<br />

dizendo?<br />

(mais trechos de Buda para o negão com o fito dele se<br />

conscientizar): “Uma mente perturbada está sempre ativa,<br />

saltitando daqui para lá, sendo difícil de controlar, mas a mente<br />

disciplinada é tranqüila, portanto, é bom ter sempre a mente sob<br />

controle.”<br />

“Somos o que pensamos. Tudo o que somos surge com nossos<br />

pensamentos. Com nossos pensamentos, fazemos o nosso<br />

mundo.”<br />

ENFERMEIRA: Eu acho que meu filho está mais focado<br />

corretamente, pois, ficar só com conhecimento e cultura e muito<br />

menos ensinamento nessa hora é não viver por muito tempo.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (não concordando): “Viver apenas um dia ou ouvir<br />

um bom ensinamento é melhor do que viver um século sem<br />

conhecer tal ensinamento.”<br />

O salgari do indonésio está se aproximando e um milagre está<br />

ocorrendo o negão está amarelando.<br />

DUMAL: Mamãe, pensando bem, o algemado tem razão.<br />

161


ENFERMEIRA (falando firme com o filho): Eu sou a autoridade<br />

aqui, já dei até testemunho a respeito dessa situação.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: “Não creia em coisa alguma com base na<br />

autoridade de doutrinadores e sacerdotes, não creia em coisa<br />

alguma pelo fato de lhe mostrarem o testemunho escrito de algum<br />

sábio antigo. Aquilo, porém, que se enquadra na sua razão e<br />

depois de minucioso estudo for aceito pela sua inteligência,<br />

conduzindo ao seu próprio bem e ao de todas as outras coisas<br />

vivas, a isso aceite como verdade e por isto paute sua conduta.”<br />

DUMAL: O algemado tem razão: “Hasta luego”, mamãe; “hasta<br />

la vista”, gigolô; “Salamat tinggal!”, gringo.<br />

E saiu em disparada na direção do indonésio armado com<br />

punhal, só que em sentido contrário.<br />

ENFERMEIRA (gritando para o filho): E o curso que nos<br />

matriculamos, o “Aprenda chinês em dois dias”? Não esqueça do<br />

nosso plano com o chinesinho de onze meses que acabamos de<br />

adotar?<br />

Dumal, ao longe, de costas, aponta com o polegar para cima,<br />

não vendo que o indonésio de tanta raiva concentrada não viu<br />

um buracão enorme e caiu dentro.<br />

DUMAL (ainda em disparada de costas): Positivo. Volta<br />

confirmada definitivamente para o México daqui a dois meses<br />

com esse lindo chinesinho de onze meses.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (atento naquela confusão, não do indonésio): Isso<br />

é impossível, é muito pouco tempo. Por que estão com tanta<br />

pressa? Aliás, por que aprender chinês se vocês pensam em<br />

retornar definitivamente para o México daqui dois meses levando<br />

um chinesinho de onze meses? Que plano é esse?<br />

162


ENFERMEIRA (explicando): É que eu e meu filho pensamos:<br />

logo o danadinho vai se pôr a falar, aí como vamos entender o<br />

que ele está dizendo?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Nossa! Assim, só me resta lhe dizer: “Salamat<br />

jalan”<br />

ENFERMEIRA: Ô estrangeiro o que isso quer dizer?<br />

DUMAL (pensando): O quanto de estrangeiro sou se conheço a<br />

sua língua e a sua religião, bem como a língua e a religião dos<br />

indonésios.<br />

(educado, responde): É uma expressão em Indonésio, que quer<br />

dizer o mesmo que o seu filho disse para o do punhal: “tchau”. Só<br />

que o “até logo” dele é de quem parte, o meu é de quem fica.<br />

ENFERMEIRA (toda orgulhosa do filho): Meu filho é muito<br />

inteligente, aprende rapidinho. Não viu em dois meses já é a<br />

segunda palavra que ele aprendeu. Hoje, ele sabe: “Salamat” e<br />

“Salamat tinggal”. Dessa maneira, ele vai acabar ficando muito<br />

rico, juntando muito dinheiro.<br />

Do buracão já começa a aparecer o salgari e um grito<br />

ameaçador de vou te matar estrangeiro.<br />

ENFERMEIRA (falando para o barbudo): Vai enfrentar ele<br />

estrangeiro?<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): Ainda estrangeiro?<br />

(pensando em trechos de Buda): “Um amigo insincero e mau é<br />

mais temível que um animal selvagem; a fera pode ferir-lhe o<br />

corpo, mas o mau amigo pode lhe ferir a mente.”<br />

“O que somos hoje e o que seremos amanhã depende de nossos<br />

pensamentos. Se procedo mal, sofro as conseqüências, se procedo<br />

bem, eu mesmo me purifico.”<br />

“Os homens que perdem a saúde para juntar dinheiro e depois<br />

perdem o dinheiro para recuperar a saúde. Por pensarem<br />

163


ansiosamente no futuro, esquecem o presente, de tal forma que<br />

acabam por nem viver no presente nem no futuro. Vivem como se<br />

nunca fossem morrer e morrem como se nunca tivessem vivido.”<br />

(mudando): Mas, nessas horas, como sempre, deixe pensar nos<br />

meus compatriotas, no Nobel.<br />

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) não queria saber do<br />

jogo. Quando, em 1967, seu tradutor para o sueco pediu todas as<br />

suas traduções disponíveis, ele não quis colaborar. O pedido<br />

havia partido do comitê do Nobel de Literatura, mas não agradou<br />

ao mineiro. Ele dizia, em suas crônicas no Jornal do Brasil, que o<br />

merecedor era o amigo Jorge Amado.<br />

O baiano Jorge Amado (1912-2001) ofereceu perigo de gol até os<br />

últimos minutos do segundo tempo. Mas acabou partindo antes<br />

que o prêmio chegasse. O momento em que esteve mais próximo<br />

do Nobel de Literatura foi em 1967, logo após o sucesso de Dona<br />

Flor e seus Dois Maridos. Nesse ano, perdeu para o guatemalteco<br />

Miguel Angel Astúrias.<br />

E Jorge Amado era ateu real, um ateu Oxossi de Esquerda. Quem<br />

diria que mais tarde um brasileiro iria conseguir ...<br />

Do buracão se vê um arremesso do salgari, uma mão acenando<br />

com rúpias indonésias e a outra com um dedinho chamando<br />

“vem cá”. A enfermeira interessada naquele cliente ainda com<br />

dinheiro, embora sem a carteira, vai devagarzinho naquele<br />

sentido, porém com o pensamento no forasteiro desconhecido e<br />

não no nativo natural.<br />

ENFERMEIRA: Por que esse barbado algemado desdentado<br />

cueiroado marcado herniado chateado que não gosta de ser<br />

chamado de gigolô que tanto conhece sobre budismo não larga<br />

essa sucursal na Indonésia e vai para a matriz como um<br />

estrangeiro, porém conhecido e considerado ...<br />

164


O PEREGRINO<br />

Há cinco anos atrás. Debaixo de uma ÁRVORE SAGRADA, uma<br />

velha e acabada castanheira-da-Índia cheia de ouriços,<br />

descansando está ali o barbado algemado desdentado cueiroado<br />

marcado herniado chateado só que a barba está na altura do<br />

umbigo e o tremendo sacão de fora da fralda. Em sua volta está<br />

um grupo de esfarrapados fanáticos venerando seus enormes<br />

testículos por acreditarem que daquela parte do forasteiro<br />

gestante iria nascer o Grande Guru fundador da Grande<br />

RELIGIÃO. Como, no Oriente, a religião e a filosofia são algo<br />

muito próximo, e a filosofia é a desbanalização do banal, o que<br />

tem mais de comum, aí é que ela entra, enquanto ciência explica<br />

o que nós não conhecemos, já a filosofia explica o que a gente vê<br />

todo o dia e não dá importância, é conduta de vida, então o<br />

forçado beato piedoso, na santa paz, tem respondido a diversas<br />

questões do cotidiano, entre elas uma de grande preocupação<br />

profunda para com aqueles indianos: “Saber se a masturbação<br />

tem a ver com o crescimento da barba?”<br />

Hoje é um dia especial para os esfarrapados fanáticos e não<br />

tanto para o algemado que será o parturiente do Grande Guru<br />

que está por vir e por isso terá seu cabelo e barba pintado de<br />

azul e seus testículos pintado de dourado que são as cores de<br />

Shaka.<br />

O tempo passa e o ato é consumado com o algemado<br />

devidamente seguro pelos braços e pernas. Possesso de raiva<br />

começa a encher sua barba de baba, se sentindo desconfortável<br />

com aquele babado todo, pronuncia ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Sai baba, sai baba.<br />

Todos o soltam com muito êxtase por ver que aquele ritual havia<br />

alcançado a plenitude e revelado que o Grande Guru que está<br />

por chegar tem a ver com Sai Baba: o homem dos milagres. O<br />

que iria ser confirmado pelo pintado de azul-dourado ao ter sua<br />

visão de algo duplamente abençoado, afirmar “are baba ...<br />

165


atchatchatcha”, ou seja, “Ô Deus ... que bom”, o que foi<br />

entendido pelos indianos como um milagre ocorrido com aquelas<br />

duas pessoas que estão surgindo e estão aparvalhadas de tanta<br />

surpresa.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Como sava????????<br />

SENADOR SARGENTÃO: Sava bien merci!!!!!!!<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Kak Λeπa?<br />

DOUTOR P. IRADO: Λeac bcë hopmaha.<br />

(pausa): Se quiser podemos falar em português. Lembra que eu<br />

aprendi essa língua com a gostosa daquela enfermeira na Rússia<br />

que tinha um filhinho no México? E esse francês que eu encontrei<br />

aqui, por acaso, vivendo dentro de uma aeronave num pedaço de<br />

chão todo bem cuidado, que nem um Éden, a solução foi eu<br />

ensinar um pouco de português para ele, já que foi impraticável<br />

um aprender a língua do outro, e muito menos dos dois<br />

aprenderem hindi.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Ótimo! E você não morreu com aquela seringada<br />

e aquela explosão?<br />

DOUTOR P. IRADO: Foi tudo bem, só que fiquei um pouco<br />

mais estressado e também mais tarado.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: E você como se salvou dentro daquele avião<br />

abatido?<br />

SENADOR SARGENTÃO: Dei um por fora para o piloto e ele<br />

deu uns remendos na aeronave e passou por cima do Paquistão<br />

aterrisando aqui na índia. Foi um sufoco, houve um momento que<br />

cheguei a pensar que queria morrer.<br />

166


DOUTOR P. IRADO: Eu sou sincero. Eu gostaria de morrer<br />

dormindo, como o meu avô. E não gritando apavorado, como os<br />

passageiros de ônibus que ele estava guiando.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Sinceridade!<br />

SENADOR SARGENTÃO: Eu também fui muito sincero<br />

quando minha avó faleceu e deixou toda a sua fortuna para mim.<br />

Mandei imprimir centenas de santinhos e enviei para os amigos e<br />

parentes comunicando o falecimento dela, nos seguintes termos:<br />

“Nesse dia de 23 de fevereiro, às 4 horas da manhã, vó<br />

Annemarie e eu passamos desta vida para uma melhor. Louis”.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: E o professor, que fim levou?<br />

SENADOR SARGENTÃO: O professor casou com o piloto, os<br />

dois estão pensando em adotar uma criança e serem cosmonautas.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: O velho, com aquela idade, agüenta cuidar de um<br />

bebê.<br />

SENADOR SARGENTÃO: De um bebê eu tenho minhas<br />

dúvidas, mas se meter num vôo espacial eu acredito.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Quer dizer que você está morando no próprio<br />

avião que caiu? Num pedaço de chão bem cuidado?<br />

DOUTOR P. IRADO (se metendo): Ele me contou que um<br />

pastor protestante saindo em pregação, chegou ali no Éden, onde<br />

antes era um matagal. O pastor constata com satisfação a<br />

transformação, o cuidado que se teve, onde se capinou, arou,<br />

plantou, com criação. O protestante comenta entusiasmado: “Bela<br />

obra que vocês realizaram aqui!” Esse francês aí indignado disse:<br />

“Vocês?!”. O pastor: “Sim, você e Deus”. O francês: “Aaahhh,<br />

sim! Mas, o senhor precisava ver como é que estava isso aqui<br />

quando Ele cuidava sozinho.”<br />

167


<strong>ESTRANHO</strong>: E o pastor?<br />

DOUTOR P. IRADO: O que ele respondeu o francês não me<br />

contou. Agora ... agora, vocês não sabem da maior. Um dia,<br />

muito apaixonado entrei na farmácia para pedir uma camisinha e<br />

adivinhem quem era o dono? Esse pastor! Ele me olhou<br />

seriamente e perguntou o que eu ia fazer com aquilo. Eu meio<br />

sem jeito, todavia achei que tinha de ser sincero, falei: “Eu vou<br />

jantar na casa da minha namorada e já viu né? De repente, rola<br />

um clima ... preciso estar preparado.” Enquanto o farmacêutico<br />

religioso foi buscar o preservativo, mesmo achando aquilo uma<br />

pouca vergonha, eu pensei melhor e quando ele retornou com<br />

aquele um, eu: “Olha quer saber? Me vê logo duas camisinhas. É<br />

que a irmã dela é uma gata e vai jantar com a gente também. Aí,<br />

sei lá, né, vai que ela dê bola para mim também ... melhor<br />

garantir”. E, pensando mais um pouco completa: “Faz o seguinte,<br />

embrulha três. Ouvi dizer que a mãe delas é uma coroa enxutona<br />

e que gosta de médico. Nunca se sabe, né?”<br />

SENADOR SARGENTÃO: Sim e na janta, o que aconteceu?<br />

DOUTOR P. IRADO: A família toda reunida e eu o tempo todo<br />

calado. Na hora da sobremesa, a namorada me sussurra: “Pô bem!<br />

Você tá maior caladão! Não sabia que era tão tímido!”. Respondi:<br />

“E eu não sabia que seu pai era farmacêutico!”.<br />

Eles rindo, menos o que está contando.<br />

DOUTOR P. IRADO: Pior vocês não sabem, foi quando a irmã<br />

com aquele corpão e cara de safadinha, toda sedutora piscou o<br />

olho para mim. A coroa, sem necessidade de nenhum reparo,<br />

esfregava, por debaixo da mesa, a sua perna em cima da minha. E<br />

nessa hora o pai pastor farmacêutico querendo quebrar a minha<br />

timidez e talvez que escutasse uma proposta séria com a filha<br />

dele, me perguntou: “Você tem alguma dificuldade em tomar<br />

decisões?”. Eu, pensando naquele harém, só respondi: “Bem, sim<br />

e não”.<br />

168


Mais risos, menos o de quem está contando.<br />

SENADOR SARGENTÃO (olhando aquela tintura toda pelo<br />

cabelo, corpo e testículos): Por que você está a andar por essas<br />

terras distantes, todo fantasiado com essas cores ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (lembrando, fica chateado): ... nila-sunahra?<br />

SENADOR SARGENTÃO: Ô de rara qualidade, nós dois aqui<br />

não falamos nada de hindi. E você sabe, eu estou aqui só de<br />

passagem, a minha rota é o Vaticano. E se possível, levando esse<br />

médico sem ponto, ou seja, “doutor Pirado” para substituir o<br />

Professor.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Perdão. “Nila-sunahra” quer dizer “azuldourado”.<br />

Agora, já vou lhe adiantando, a outra pessoa para fazer<br />

a aparição de discípulo de Cristo não sou eu, pode tirar o cavalo<br />

da chuva.<br />

(querendo esquecer, fala para o médico): Eu só não sei é como<br />

que veio parar aqui?<br />

DOUTOR P. IRADO: Assim como esses indianos esfarrapados<br />

fanáticos acreditam que a vinda do Grande Guru chegará<br />

trazendo as últimas do mundo espiritual, lá também tem russos<br />

rotos desconexos sectários que crêem que o dia do acrônimo<br />

BRIC irá chegar e que se tornará a maior força na economia<br />

mundial. Como eu falava um pouco de português já estava bem<br />

encaminhado no B de Brasil, como russo no R de Rússia,<br />

faltavam então o I de Índia e o C de China. Como a seguir era o I,<br />

portanto fui enviado aqui para Índia, este adorável país com suas<br />

mulheres com suas veneráveis coisas todas cobertas com tinturas<br />

extravagantes ...<br />

Ele pára de falar, olhando assustado para dois indianos que de<br />

pincéis em punho, um com a cor azul e o outro com dourado vão<br />

dar uma retocada no cabelo e saco do algemado.<br />

169


<strong>ESTRANHO</strong> (ameaçando): Não vem não, eu sou um intocável,<br />

não posso ser tocado.<br />

Nada adiantou, pois, ele se debate todo com aquelas pintadinhas,<br />

não de dor, mas de cócegas na parte inferior.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (morrendo de rir de tantas cócegas): Há há há ...<br />

há há há ...<br />

Sem que ninguém percebesse um ouriço cai daquela castanheirada-ìndia<br />

e fica espetando as suas nádegas.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (morrendo de dor de tantas espetadas): Ai ai ai ...<br />

ai ai ai ...<br />

DOUTOR P. IRADO (lembrando da Rússia e diagnosticando):<br />

É um bipolar extremado. Eu acho que ele devia continuar<br />

internado no hospício.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): Tenho que me controlar senão vão<br />

achar que estou ficando louco.<br />

Só que os “há há há´” e os “ai ai ai” causam o maior frenesi nos<br />

indianos que entendem estar começando as contrações para o<br />

grande acontecimento do parto espiritual. E tome mais pincelada<br />

e com o ouriço mais espetado.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): Tenho que ter alternativa, não posso<br />

ficar dando asas a imaginação de duas correntes desparafusadas.<br />

Vou ameaçá-los com suas personalidades, conhecimento e<br />

cultura, vou gritar o nome de alguns livros significativos com<br />

seus respectivos autor.<br />

(falando alto): Buda, o grande do Oriente; Asoka, monarca mais<br />

importante da história da Índia; Vardhama, o grande herói ou<br />

Mahavira, desenvolvimento do jainismo. Os Upanishads de 700<br />

a.C. até 400 a.C., 3º livro mais antigo dos mais importantes da<br />

humanidade.<br />

170


Como eles não param, ele resolve ir para os ocidentais.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: “A divina comédia” de Dante Alighieri; “O<br />

progresso do peregrino” de John Bunyan; “Dom Quixote” de<br />

Miguel Cervantes; “Curso em filosofia positivista” de Conte.<br />

DOUTOR P. IRADO (comentando para si de sua avaliação):<br />

Bipolar legítimo!<br />

SENADOR SARGENTÃO (para o algemado): O que essa<br />

linguagem tem a ver com o mundo em sua volta?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Linguagem espelha o mundo do jeito que o<br />

mundo é, retrata o mundo sem distorcê-lo, os elementos da frase<br />

têm correspondentes na realidade.<br />

DOUTOR P. IRADO (falando para o Senador Sargentão):<br />

Quanto ele surta com alternância de humor do tipo ora é só risos<br />

e alegria, ora no outro extremo é só pranto e tristeza, não adianta<br />

que o princípio da razão não funciona. Deixe comigo.<br />

(falando para o algemado): Você tem razão: “há há há”<br />

corresponde a riso e alegria, “ai ai ai” corresponde a pranto e<br />

tristeza. Perfeito, muito bem.<br />

Pisca o olho para o Senador Sargentão como se dissesse “Vê<br />

como vai dar certo”.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Essa correspondência, para o próprio<br />

Wittgenstein, não existe mais, a linguagem contém mais<br />

elementos do que o mundo, ela é inflacionada, tem uma vida<br />

própria, não se remete ao mundo.<br />

SENADOR SARGENTÃO (pensando com certo carinho no que<br />

está ouvindo): Dizem que todo caminho leva a Roma, será que<br />

este também leva, se levar fica perto do Vaticano. Então, vamos<br />

dar trela.<br />

(para o algemado): Como esse tal de de ... de ...<br />

171


<strong>ESTRANHO</strong>: Wittgenstein, um dos cinqüenta maiores escritor<br />

com seu livro “Investigações filosóficas”.<br />

SENADOR SARGENTÃO: Esse mesmo! Como ele chegou a<br />

estas duas propostas de relacionar linguagem e mundo. Será que<br />

elas não podem ser postas em imagens visuais para facilitar a via<br />

para o Vaticano, digo para o entendimento de nós mortais?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: A primeira pode ser posta como a de uma<br />

maquete de um acidente automobilístico que serve de<br />

reconstituição. Os carrinhos de brinquedos, bonecos e pranchetas<br />

indicam o antes, o durante e o depois, assim é que a linguagem<br />

funciona. A língua é essa maquete do fato. Linguagem é a<br />

representação fidedigna do mundo.<br />

A segunda é a imagem do jogo. Não adianta se ter os elementos<br />

do jogo, o jogador e o campo, a trave, porque há algo dentro que<br />

não está lá que são as regras. Há mais linguagem do que o<br />

mundo.<br />

SENADOR SARGENTÃO (pensando): Ele tem certa razão.<br />

Peça valiosa, maçarico, serra elétrica, luva, corda, eu, o Vaticano,<br />

soldados, mas se não tiver um plano. Babau!<br />

O ouriço sai lá de trás o que faz com que ele só fique no há há<br />

há. Os indianos entendem que a dor já passou agora é a hora da<br />

felicidade, o Grande Guru se encontra nas portas daquele sacão<br />

avantajado. E tome mais pincelada.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: O homem é condenado pela ...<br />

SENADOR SARGENTÃO (complementa com o que está<br />

pensando no caso em que fosse pego): ... pela incompetência e<br />

inexperiência via direto para a prisão.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Nada disso! O homem é condenado pela pincelada<br />

... mas, também pela liberdade.<br />

172


SENADOR SARGENTÃO: Qual é a tua em trocar sofrimento<br />

por liberdade e misturá-lo com conhecimento e cultura?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Liberdade é quando decido, mesmo quando não<br />

decido estou decidindo, logo se está exercendo a liberdade<br />

continuamente. Mutação rara de transformação.<br />

Tomou a decisão implica em abrir uma trilha, uma possibilidade<br />

para todos. Toda vez que você decide, decide a seu favor e contra<br />

todos o que implica em conflito, daí, outra idéia “o inferno são os<br />

outros”.<br />

SENADOR SARGENTÃO (pensando): Esse papo está<br />

interessante. Essa trilha leva ao Vaticano? Mas, para todos! Já<br />

pensou nessa Índia cheia de gente. Ele está surtando novamente,<br />

o princípio da razão está avariado, vou ver se consigo consertar<br />

com a lógica e seu gosto por livros de modo que ele possa fazer<br />

associações e voltar a realidade.<br />

(falando para o barbudo): Vaticano, um minguar de gente, Índia,<br />

um transbordar, livro, um testar, introdução, começar, conclusão,<br />

raciocinar, logo?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Matei a charada é o livro de Malthus intitulado<br />

“Ensaio sobre o princípio da razão”.<br />

SENADOR SARGENTÃO (desapontado): Deve ser.<br />

DOUTOR P. IRADO: Deve ser é esquizofrenia. Perda de<br />

contato com a realidade, vou ajudá-lo.<br />

(conversando com o algemado): Ô saco pintado, Malthus foi um<br />

economista britânico, um musculoso, nós estamos na Índia, numa<br />

economia vegan, um vegetariano, raquítico, fraco. Compare o<br />

Malthusão com Gandi.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: “A coragem nunca foi questão de músculos. Ela é<br />

uma questão de coração. O músculo mais duro treme diante de<br />

um medo imaginário. Foi o coração que pôs o músculo a tremer”.<br />

“A liberdade é dura como diamante e delicada como a flor do<br />

173


pessegueiro”. “Um objeto, mesmo que não tenha sido adquirido<br />

por meio de roubo, deve ser, no entanto, tido como furtado se o<br />

possuímos sem dele precisarmos.” Assim, disse Gandi.<br />

De saco mais cheio por causa daquelas pinceladas resolve pôr<br />

um fim naquela tortura. Olha sério para os indianos e fala em<br />

hindi. Os fanáticos vão parando de pintar seus testículos por<br />

estarem embevecidos com o que estão ouvindo. Quando acaba de<br />

falar os pincéis já estão caídos no chão. Curioso os dois<br />

estrangeiros perguntam.<br />

SENADOR SARGENTÃO: O que você disse para eles?!<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Disse que as escrituras indianas dizem que um<br />

discípulo deve dar tudo que tem a um Guru, mas o Guru não pode<br />

aceitar nada de um discípulo, exceto sua ignorância. Então, eu,<br />

como o parturiente do Grande Guru entrego a minha ignorância<br />

sobre as cores de Shaka neste ritual e o que poderá acontecer com<br />

aqueles que insistirem em não terem humildade de esperar a<br />

resposta daquele que está por vir a respeito das cores corretas.<br />

SENADOR SARGENTÃO: Guru! Eu fiz curso com um deles<br />

durante dois dias, mas nada do que ele disse ficou comigo.<br />

Olha mais sério para os indianos e fala novamente em hindi. Os<br />

fanáticos vão encarando o Senador Sargentão que curioso com<br />

aquele mal-estar pergunta.<br />

SENADOR SARGENTÃO: O que você disse para eles?!<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Acrescentei um pouco para este momento as<br />

palavras de Swami Muktananda dizendo: “As pessoas vêm e<br />

fazem um curso de dois ou três dias, voltam para casa e esquecem<br />

tudo que aprenderam. Não praticam o que aprenderam. Então<br />

pensam: “Eu fiz este curso, estive com este Guru, mas nada ficou<br />

comigo”. A verdade é que somente se praticar diariamente,<br />

somente se combinar prática espiritual com as atividades<br />

174


mundanas é que o conhecimento do Guru trará frutos. Mesmo<br />

para atingir alguma coisa na vida diária se tem que trabalhar para<br />

isto.<br />

(pausa): Sendo assim na vida cotidiana, por que seria<br />

discriminada na vida espiritual? Por que esperais atingir a<br />

Verdade em poucos dias? Como é o caso deste que acabou de<br />

falar comigo. Ele quer me levar para longe do Grande Guru,<br />

longe de vocês, quer me seqüestrar para outra religião, para outro<br />

país: a cidade do Vaticano.”<br />

Como o mal-estar está em vias de se tornar um bom-defunto, ele<br />

vai saindo de fininho se pondo a correr grosseiramente para o<br />

leste tropeçando pelo que se encontra a sua frente.<br />

DOUTOR P. IRADO: Que cara estressado! Com a velocidade<br />

que ele está correndo vai chegar primeiro na China do que eu.<br />

(ficando estressado): Ih, já estou até sentindo quando eu lá<br />

chegar! Médico, cientista, marxista, materialista sendo obrigado a<br />

estudar taoísmo, isso tem cabimento. Já estou até suando frio.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Nossa! Estudar taoísmo que beleza! Saiba que o<br />

livro mais influente na humanidade é o “I Ching” escrito em<br />

1.500 a.C., tido como o livro das mudanças. Lao-tsé escreveu um<br />

outro que é o quarto mais valioso: “O caminho e seu poder”.<br />

(pausa): Não se estresse não, economize sua energia. Em termos<br />

contábeis, vai aprender naquele país, com o taoísmo filosófico<br />

que se deve aumentar o lucro líquido cortando custos, ou seja,<br />

reduzir o dispêndio desnecessário de energia. Já o taoísmo<br />

vitalizador quer aumentar a renda bruta.<br />

DOUTOR P. IRADO: Até que estou gostando, fale-me mais<br />

desse filosófico.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: O taoísmo filosófico? Ele está associado aos<br />

nomes de Lao-tsé e Chuang Tzu (350-275 a.C.) este produziu<br />

outro material canônico referente ao tao, tido como mais<br />

acessível do que o de Lao-tsé, e os dois juntos formam a base do<br />

175


taoísmo. O fenômeno natural que para os taoístas tinha a maior<br />

semelhança com o Tao era a água.<br />

(recitando um poema taoísta)<br />

O bem supremo é como a água,<br />

Que alimenta todas as coisas sem esforço.<br />

Ela se contenta com os lugares baixos, que as pessoas<br />

desdenham.<br />

Por isso, ela é como o Tao.<br />

DOUTOR P. IRADO: Estou gostando muito, prossiga, por<br />

favor.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Pode-se ligá-lo ao poder, lembrando que a<br />

filosofia busca o conhecimento e, como disse Bacon ao mundo,<br />

“conhecimento é poder”. Saber consertar um carro é ter poder<br />

sobre ele. Os olhos dos taoístas, é claro, não estavam nas<br />

máquinas; era a própria vida que eles queriam consertar. Ao<br />

conhecimento que potencializa a vida, dá-se o nome de sabedoria;<br />

e viver com sabedoria, argumentava os filósofos taoístas, é viver<br />

de uma maneira que conserve a vitalidade da vida, sem esgotá-la<br />

em atos inúteis e extenuantes, dos quais os principais são os atrito<br />

e conflito. Suas recomendações giram em torno do conceito de<br />

wu wei, expressão que literalmente quer dizer não-ação, ou<br />

melhor, sem artificialidade, sem excesso e sem apego, mas que<br />

no taoísmo significa a pura eficácia. A ação, no modo wu wei, é a<br />

ação na qual toda fricção – nos relacionamentos interpessoais, no<br />

conflito intrapsíquico e em relação à natureza – é reduzida ao<br />

mínimo. É a vida vivida acima da tensão.<br />

(pausa): Trata-se de uma filosofia difícil de ser entendida pelos<br />

ocidentais, pois, para os chineses, o não ser vale mais do que o<br />

ser. Exemplificando: segundo eles, o valor de um vaso está<br />

justamente no seu vazio, pois, uma vez cheio, esse objeto já não<br />

serve como vaso.<br />

DOUTOR P. IRADO: Recite mais poemas, pois por eles acho<br />

que consigo compreender melhor essa filosofia.<br />

176


<strong>ESTRANHO</strong>:<br />

Encha a tigela até a borda<br />

E ela vai derramar.<br />

Fique sempre afiando a faca<br />

E ela vai cegar.<br />

Tens a paciência de esperar<br />

Até teu lodo assentar e a água fica limpa?<br />

Consegues permanecer imóvel<br />

Até a ação correta surgir por si mesma?<br />

Quando o bom líder governa,<br />

O povo mal percebe que ele existe.<br />

O bom líder não fala, age.<br />

Quando ele termina o trabalho,<br />

O povo diz: “Fomos nós que fizemos sozinhos”.<br />

DOUTOR P. IRADO: Mas, a situação está mesmo boa na<br />

China? Como esses taoístas vêem a situação por lá?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Na perspectiva taoísta, até mesmo bem e mal não<br />

são opostos frontais. O Ocidente mostra uma tendência a<br />

dicotomizá-los, mas os taoístas são menos categóricos. Eles<br />

apóiam sua reserva com a história do camponês cujo cavalo<br />

fugiu.<br />

DOUTOR P. IRADO: Como assim?!<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: O vizinho ficou com pena dele, mas o camponês<br />

disse: “Quem há de saber o que é bom ou mau?” Era verdade,<br />

porque no dia seguinte o animal voltou para casa, trazendo<br />

consigo uma manada de cavalos selvagens com quem tinha feito<br />

amizade. O vizinho reapareceu, dessa vez para cumprimentá-lo<br />

pela sorte inesperada. E recebeu a mesma resposta: “Quem há de<br />

saber o que é bom ou mau?” Mais uma vez esta frase mostrou ser<br />

verdadeira, porque no dia seguinte o filho do camponês tentou<br />

montar um dos cavalos selvagens, caiu e quebrou a perna. Mais<br />

177


comiserações do vizinho, novamente provocando a pergunta:<br />

“Quem há de saber o que é bom ou mau?” E pela quarta vez<br />

prevaleceu a atitude do camponês, porque no dia seguinte<br />

chegaram os soldados para fazer o recrutamento forçado; o filho<br />

do camponês foi liberado por causa da perna quebrada.<br />

(pausa): O taoísmo segue seu princípio da relatividade até seu<br />

limite lógico, colocando a vida e a morte como ciclos<br />

complementares no ritmo do tao. Quando a mulher de Chuang<br />

Tzu morreu, seu amigo Hui-tzu o visitou para apresentar<br />

condolências; encontrou Chuang Tzu sentado no chão, com as<br />

pernas abertas, cantando e acompanhando a melodia com batidas<br />

no fundo de uma tigela de madeira.<br />

Afinal – disse o amigo -, ela viveu devotadamente contigo todos<br />

esses anos, cuidou do teu filho primogênito até ele se tornar<br />

homem feito e envelheceu ao teu lado. Não derramares uma<br />

lágrima sobre o corpo dela já é ruim, mas cantares e<br />

acompanhares teu canto batendo numa tigela... isso é demais!<br />

Julgas mal – respondeu Chuang Tzu. – Quando ela morreu, fiquei<br />

desesperado, como qualquer outro homem. Mas então percebi<br />

que ela, antes de nascer, não tinha corpo e então ficou claro pra<br />

mim que o mesmo processo de mudança que a fez nascer<br />

acabaria por fazê-la morrer. Quando alguém está cansado e quer<br />

se deitar, não o perseguimos com gritos e reprimendas. Aquela a<br />

quem perdi deitou-se para dormir durante algum tempo no<br />

aposento entre o céu e a terra. Gemidos e lamentações enquanto<br />

minha esposa dorme seriam o mesmo que negar a lei soberana da<br />

natureza. Por isso deles me abstenho.<br />

DOUTOR P. IRADO: Isso é assim?! Mais poemas, pode ser?<br />

<strong>ESTRANHO</strong><br />

Quem pretende guiar um líder de homens nas práticas da vida<br />

Alertá-lo-á contra o uso de armas de conquista.<br />

Mesmo as melhores armas são uns instrumentos do mal<br />

A colheita de um exército é um deserto de espinhos.<br />

178


As armas são os instrumentos da violência;<br />

Todos os homens decentes as detestam<br />

As armas são os instrumentos do medo;<br />

Todo homem decente as evita,<br />

Exceto na mais inevitável necessidade<br />

E, se a isso for compelido, ele as usará<br />

Somente com a mais absoluta moderação.<br />

A paz é o valor mais alto. (...)<br />

O homem [decente] entra gravemente na batalha,<br />

Com pesar e grande compaixão,<br />

Como se estivesse indo a um funeral.<br />

DOUTOR P. IRADO: Isso na minha terra parece coisa de<br />

catolicismo ortodoxo, Patriarca fazendo sermão.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Não causa surpresa encontrar uma visão tão<br />

avessa a violência, como a do taoísmo beirando o pacifismo. Há<br />

passagens do Tao Te King que são quase idênticas ao Sermão da<br />

Montanha.<br />

DOUTOR P. IRADO: O que eu preciso aprender com eles para<br />

estar com eles?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Segundo os taoístas? Ratifique alguns de seus<br />

ensinamentos.<br />

DOUTOR P. IRADO: Quais?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>:<br />

"Deus não recebe respostas com palavras."<br />

"Tudo o que é difícil deve tentar-se enquanto é fácil."<br />

"Percebidos distintamente na vida, os homens são semelhantes na<br />

morte."<br />

"Aprecie todo o branco que há ao seu redor, mas recorda todo o<br />

negro que existe."<br />

"O sábio não ensina com palavras, senão com atos."<br />

179


"As palavras elegantes não são sinceras; as palavras sinceras não<br />

são elegantes."<br />

“Aquele que tudo julga fácil, encontrará muitas dificuldades."<br />

"Para comandar os homens, marcha atrás deles."<br />

"O coração do homem pode estar deprimido ou excitado. Em<br />

qualquer dos dois casos o resultado será fatal."<br />

"A alma não tem segredo que o comportamento não revele."<br />

"Para ganhar conhecimento, adicione coisas todos os dias. Para<br />

ganhar sabedoria, elimine coisas todos os dias."<br />

"Aquele que sabe não fala; aquele que fala não sabe."<br />

"Uma longa viagem de mil milhas inicia-se com o movimento de<br />

um pé."<br />

"O motivo pelo qual não é fácil para as pessoas viverem em paz<br />

está no fato de saberem demais."<br />

"Se deres um peixe a um homem faminto, vais alimentá-lo por<br />

um dia. Se o ensinares a pescar, vais alimentá-lo toda a vida."<br />

DOUTOR P. IRADO: Este último eu não sabia que era deles.<br />

(intrigado): Lá também tem o confucionismo. Qual a diferença?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Circulando um em volta do outro, como os<br />

próprios yin e yang, taoísmo e confucionismo representam os dois<br />

pólos inatos do caráter Chinês. Confúcio representa o pólo<br />

clássico; Lao-tsé, o romântico. Confúcio enfatiza a<br />

responsabilidade social, Lao-tsé louva a espontaneidade e a<br />

naturalidade. O foco de Confúcio está no humano; o de Lao-tsé,<br />

naquilo que transcende o humano. Como dizem os próprios<br />

chineses, Confúcio caminha dentro da sociedade e Lao-tsé<br />

vagueia além dela. Algo na vida se estende para cada uma dessas<br />

direções, e a civilização chinesa certamente teria sido mais pobre<br />

se uma ou outra dela não tivesse surgido.<br />

DOUTOR P. IRADO: E a literatura deles?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: A literatura taoísta está cheia de diálogos com<br />

confucionistas, mostrando-os como formalistas e pomposos. Um<br />

exemplo é a história do taoísta Chuang Tzu e do confucionista<br />

180


Hui-Tzu, que passeando certa tarde chegaram a uma ponte sobre<br />

o rio Hao. “Vê como os peixinhos se atiram de um lado para<br />

outro à vontade. Esse é o prazer desfrutado pelos peixes”,<br />

comentou Chuang Tzu.<br />

Tu não és um peixe – respondeu Hui Tzu. – Como sabe o que dá<br />

prazer aos peixes?<br />

Tu não és eu – disse Chuang Tzu. – Como sabe se eu não sei o<br />

que dá prazer aos peixes?<br />

Porém, com o passar das horas nada nasce, lá vem eles de novo<br />

em passadas desiguais com aqueles pincéis ameaçadores, o que<br />

está liderando e mais próximo é aquele que está com o pincel<br />

dourado e um ramo de urtiga de modo que o faz refletir.<br />

DOUTOR P. IRADO (nervoso): Você tão especial que faz<br />

longas e exaustivas jornadas me diga: o que esse vagabundo<br />

desse rameiro quer com a gente?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: O quanto de peregrino sou se bem comum estou<br />

com esse vagabundo em vez de ser um vagamundo, com esse<br />

rameiro em vez de ser um romeiro?<br />

DOUTOR P. IRADO (nervoso): Qual frase eu teria que praticar<br />

agora?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: "Reaja inteligentemente mesmo a um tratamento<br />

não inteligente." Caso não seja possível: “Se arranca!”.<br />

(parecendo rezar): Nobel de Filosofia não existe, este filósofo<br />

Sartre rejeitou o Nobel de literatura de 1964. Um dos seus<br />

grandes livros é “O ser e o nada”. Ele era ateu existencialista.<br />

Quem diria que mais tarde um brasileiro iria conseguir ganhar ...<br />

DOUTOR P. IRADO: Acho que está na hora de eu me arrancar<br />

para a China, imagino como este peregrino aqui seria lá, talvez,<br />

considerado ...<br />

181


182


O BIZARRO<br />

Quatro anos atrás. Próximo a um palanque, o barbado algemado<br />

desdentado cueiroado marcado herniado chateado e pintado está<br />

numa praça em outro país ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): Onde estará aquele médico que veio<br />

para o Centro do Mundo? Como encontrá-lo neste país mais<br />

populoso do planeta? Principalmente neste protesto?<br />

Ele pára de pensar por escutar de cima do palanque alguns<br />

estrangeiros em dificuldades falando em mandarim com um<br />

sotaque horrível tropeçando nas palavras. Quando ele se estica<br />

nas pontas dos pés para ver os rostos dos que estão conversando,<br />

fica pasmo em ver os seguranças do COMÍCIO daquela<br />

ocorrência POLÍTICA, sendo assediados por um chinesinho<br />

vendedor de óculos. Mas, mais surpreso é ver que os exóticos que<br />

estão, a seu ver, em transação de negócio são ...<br />

CANA-DURA (gritando): WOY BÙ MINGÁ BÁI.<br />

(meio revoltado, em português): Esses chineses são todos surdos.<br />

Olha que eu estou dizendo a mais de meia hora que “Não<br />

entendo” e ele fica insistindo em me mostrar esse monte de<br />

óculos com fundo de garrafa.<br />

Cansado de estar nas pontas dos pés, abaixa-os, voltando a ficar<br />

sem ver aqueles seus conhecidos. O outro estrangeiro que só fala<br />

inglês não está entendendo esse que fala em português e muito<br />

menos o chinesinho que só fala em mandarim. Supersticioso<br />

como sempre, só que com a outra coisa ele aponta para um tubo<br />

de grude sem saber se é uma goma arábica, um epóxi, silicone,<br />

celulósica, látex, estanho, uma super bonder, uma cola de<br />

dentista ou um aglutinante mais possante.<br />

DELEGADO: Zhe yòng zen me jjavng?<br />

183


Silêncio.<br />

DELEGADO (em inglês): Don’t burry me.<br />

Penalizado por ver a dificuldade de comunicação entre os três,<br />

resolve ajudar do seu ângulo não só de visão como do que<br />

acredita que eles estão querendo.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Não adianta perguntar “Como se diz isso em<br />

inglês?” e nem dizer “não me enche” porque pelo visto ele não<br />

fala inglês. Deixa que eu fale.<br />

DELEGADO: Niy hùi jjavgn ... ma.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (em inglês): Pode deixar que eu falo e vou dizendo<br />

o que ele está dizendo.<br />

Pensando em se tratar de um negócio.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Zhe shi shen me?<br />

(pausa): Eu perguntei o que era aquilo e ele respondeu que são<br />

óculos para vender.<br />

(continuando o negócio): Zhe duo-shav gián?<br />

(pausa): “Quanto custa isto?”, disse ele que é o mesmo preço da<br />

cola-tudo, ou seja: 1,99.<br />

(continuando o negócio): Wov yào maiv ... Wov maiv.<br />

(pausa): Falei que “Eu gostaria de comprar ... ”<br />

(continuando o negócio): Ni jje-shòu xin yòng kay ma? ... Kan.<br />

(pausa): Ele aceita cartão de crédito. Fechei o negócio. Óculos e<br />

um tubo de cola-tudo por 1,99.<br />

CANA-DURA (em português): O que vocês estão confabulando?<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): Ih! Tenho que repetir em português.<br />

(repetindo): Ele aceita cartão de crédito. Fechei o negócio.<br />

Óculos e um tubo de cola-tudo por 1,99.<br />

184


CANA-DURA: Eu não estou interessado nesse seu negócio com<br />

óculos e cola-tudo, embora, pareça que o valor é mesmo lá no<br />

Brasil.<br />

Enquanto isso o delegado muito supersticioso abre o tubo e<br />

passa a cola-tudo pelo lado de dentro da armação para colar no<br />

palanque como forma de proteção. O chinesinho puxa a blusa do<br />

policial querendo saber do cartão de crédito.<br />

CANA-DURA: Fala para esse china-pau que ele pare de esticar a<br />

minha camisa, antes que eu o faça esticar, falecer, e o estique<br />

num espetinho na brasa como um tira-gosto.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Ele quer o seu cartão de crédito para efetuar a<br />

compra?<br />

CANA-DURA: Eu lá dou meu cartão para qualquer um. Para<br />

uma compra que não ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Dê para mim e diga a senha para que eu ...<br />

CANA-DURA (irritado): O quê! Cartão e senha para um rosto<br />

que nem estou vendo. Está me achando com cara de otário? Ele<br />

pode ser um china-pau, mas você é um cara-de-pau. Mostre-me<br />

essa cara para ver o que eu faço com ela.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Para você confiar em mim? Pois, não ...<br />

Quando ele fica nas pontas dos pés, o policial pega das mãos do<br />

delegado aqueles óculos de fundo de garrafa com a sua armação<br />

por dentro empastado da cola-tudo e chapa na cara de quem<br />

conversava consigo. Este fica tentando tirá-lo do rosto, mas<br />

aquela cola é instantânea. Delegado com transtorno obsessivo<br />

compulsivo para ver o efeito daquela cola puxa o barbudo pelas<br />

barbas para o palanque. Os dois estão surpresos com o que estão<br />

vendo: barbado algemado desdentado cueiroado marcado<br />

185


herniado chateado e agora engarrafado. Ele está completamente<br />

irreconhecível de selvagem e traficante de armas.<br />

DELEGADO (pensando): Que cara excêntrico!<br />

CANA-DURA (pensando): Que cara esquisito!<br />

Agora, é a vez do chinesinho indagar: Zhe yòng zen me jjavng?<br />

DELEGADO (ansioso e angustiado): Nerd.<br />

CANA-DURA (em português): Nerd! É algum humano para se<br />

comer?<br />

DELEGADO (sem entender a pergunta, explica em inglês):<br />

Nerd é um termo que descreve, de forma estereotipada, muitas<br />

vezes com conotação depreciativa, uma pessoa que exerce<br />

intensas atividades intelectuais, que são consideradas<br />

inadequadas para a sua idade, em detrimento de outras atividades<br />

mais populares. Por essa razão, um nerd é muitas vezes excluído<br />

de atividades físicas e julgado um solitário pelos seus pares. Pode<br />

descrever uma pessoa que tenha dificuldades de integração social<br />

e seja atrapalhada, mas que nutre grande fascínio por<br />

conhecimento ou tecnologia.<br />

CANA-DURA (em português): Não entendo nada do que ele está<br />

dizendo.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (em português): A expressão Nerd é utilizada<br />

desde o final da década de 1950 no Massachusetts Institute of<br />

Technology (MIT). Atribuída àqueles indivíduos que<br />

trabalhavam no laboratório de tecnologia, que eram dados a<br />

passar noites em claro nas suas pesquisas. Na década de 1960<br />

difundiu-se a sua conotação pejorativa, aplicado a pessoas com<br />

inteligência geralmente acima da média, com alguma dificuldade<br />

em se relacionar socialmente, e que não obedece aos padrões,<br />

principalmente físicos e intelectuais, da sociedade tornando-se<br />

186


uma pessoa marginalizada, tímida e solitária. Atualmente no<br />

entanto o termo nerd vem sendo usado por determinados grupos<br />

relacionados a interesses específicos como forma de se<br />

identificarem.<br />

CANA-DURA: Ah! Ele está informado de sua doença de<br />

conhecimento e cultura.<br />

DELEGADO (em inglês): Não entendo nada do que ele está<br />

dizendo.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (em inglês): Segundo uma definição de Lia<br />

Portocarrero, Nerd "é o rapaz ou moça que nutre alguma obsessão<br />

por algum assunto a ponto de a) pesquisar; b) colecionar coisas;<br />

c) fazer música; d) escrever sobre (normalmente acompanhado de<br />

pesquisa); e) não sossegar enquanto não descobrir como<br />

funciona; f) não dormir enquanto o programa não rodar."<br />

DELEGADO (ansioso e angustiado): Obsessão! Não estou<br />

gostando por onde está caminhando essas definições.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (em português): Segundo Paul Graham, "Existe<br />

uma relação entre ser esperto/inteligente e ser nerd, ou melhor, há<br />

uma correlação inversa maior ainda entre ser nerd e ser popular.<br />

Se ser esperto parece fazer a pessoa não popular" de forma<br />

analoga vem a conotação pejorativa.<br />

Os Nerds são conhecidos por um determinado estereótipo, muito<br />

divulgado em filmes ou desenhos animados, que geralmente não<br />

correspondem a realidade total. Eles não têm um padrão próprio<br />

de vestuário e são muito sociáveis quando se sentem confortáveis<br />

no ambiente.<br />

Apesar de serem uma Tribo Urbana, é difícil reconhecê-los no<br />

dia-a-dia pois, ao contrário das outras tribos, não tem um estilo<br />

facilmente reconhecível à primeira vista. Tampouco gostam dos<br />

mesmos tipos de música, e nem todos freqüentam os mesmos<br />

lugares, apesar de uma grande parte frequentar convenções de<br />

quadrinhos e ficção científica.<br />

187


CANA-DURA: Há muitos 'subgrupos' dessa geração IPOD,<br />

desses sintomáticos mongóis que se esforçam para serem<br />

discriminados da normalidade?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Geeks, aqueles cujo interesse volta-se<br />

especialmente para a tecnologia, ciência e informática;<br />

Gamers, os jogadores compulsivos de video-games;<br />

Cards Gamers, os jogadores compulsivos de Pokemon;<br />

RPGistas, os jogadores de Role playing games – RPG -,<br />

normalmente sobre temas medievais;<br />

Fanbase ou Fandom, um grupo caracterizado por ser fã de uma<br />

obra, ou conjunto de obras específicas como: Lord of the Rings<br />

Fans, do universo de O Senhor dos Anéis; Otakus, aficionados<br />

por animes, mangás e cultura japonesa.<br />

DELEGADO (ansioso e angustiado): Eles têm sindrome de quê?<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (em inglês): Atualmente é incorreto afirmar que<br />

"nerds" sofrem de Síndrome de Asperger, pois a maioria deles<br />

vive misturada na sociedade. A maioria deles, inclusive, é dotada<br />

de grande capacidade de socializar-se com pessoas com os<br />

mesmos interesses que os seus.<br />

CANA-DURA: No Brasil, chama-se CDF o indivíduo inteligente<br />

que se dedica muito aos estudos. Usa-se a sigla ou acrônimo<br />

"CDF" significando "Cabeça-de-ferro" ou ainda "Crânio-de-<br />

Ferro", vulgarmente chamado pelos que não tem essa qualidade<br />

de "Ccu-de-Ferro" devido aos extensos períodos que fica sentado<br />

estudando.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (em português): É comum confundi-los com os<br />

nerds. Entretanto, existe uma diferença entre nerds e "CDF"s:<br />

enquanto no primeiro grupo encaixam-se os naturalmente<br />

interessados em algum assunto cultural como jogos, livros e<br />

filmes, podendo não ir bem na escola; o segundo costuma referirse<br />

a jovens em idade ginasial que nem sempre têm a escola como<br />

ponto central de suas vidas, mas despendem um bom tempo aos<br />

188


estudos, resultando em algumas características como obtenção de<br />

notas altas, questionamento sobre veracidade da informação<br />

passada, mas ainda podem manter-se comunicativos e sociáveis.<br />

Outra diferença entre ...<br />

De repente, o de óculos de fundo de garrafa pára de falar e<br />

observa que os dois estão olhando para duas boazudas que<br />

surgem andando quase que juntas, eles comentam ...<br />

CANA-DURA (em português): Lá vêm minha mulher e minha<br />

amante juntas.<br />

DELEGADO (em inglês): Lá vêm minha mulher e minha<br />

amante juntas.<br />

O engarrafado notando a confusão a vista, muda de assunto<br />

rapidamente , cutuca o inglês.<br />

DELEGADO (ansioso e angustiado): Não me toque.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: O que vocês estão fazendo aqui?<br />

DELEGADO: Somos segurança do líder do protesto da Praça da<br />

Paz Celestial que vão reviver o massacre ocorrido em 1989.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Como foram escolhidos?<br />

DELEGADO: Pelo nosso know how, o policial por ter integrado<br />

a repressão no tempo da ditadura no Brasil, eu por ter estado na<br />

base de Guantánamo onde os prisioneiros das guerras do<br />

Afeganistão e Iraque ... você sabe ... mas eu não fui e nunca serei<br />

um ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: ... torturador.<br />

DELEGADO: Eu não admito que me chamem ...<br />

189


<strong>ESTRANHO</strong>: Claro que não! Sobre isso não temos dúvidas<br />

nenhuma.<br />

(muda quase que instantaneamente a prosa): Mas, cadê o líder<br />

do protesto?<br />

DELEGADO: Ele está atrasado e essa multidão que há cinco<br />

horas está fazendo meditação taoísta, tai chi chuan, exercícios de<br />

chi kung, acupuntura, cerimônia do chá, está a ponto de explodir<br />

de tanto relaxamento.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: E se ele esqueceu?<br />

DELEGADO: A gente não se aperta não. Como chinês é tudo<br />

parecido a gente arruma qualquer um e põe aqui em cima como<br />

se fosse ele. Quer saber como isso é fácil? Até você serve. Do<br />

jeito que você está bagunçado parece de qualquer continente.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (preocupado pensa): A China está ou não<br />

preocupada com a revolução social? Marx Influenciou um terço<br />

da população mundial no século XX. Embora não seja um<br />

profeta, para ele proletário só tem uma saída que é a revolução, o<br />

comunismo. Ele escreveu “O capital” e juntamente com Engels:<br />

“O manifesto comunista”.<br />

A massa começa a se mostrar impaciente deixando os seguranças<br />

em alerta.<br />

CANA-DURA (em português): Cadê o cara responsável por este<br />

comício pela “Grande Queixa”.<br />

O engarrafado notando a confusão a vista, muda de assunto<br />

rapidamente , cutuca o inglês.<br />

DELEGADO (ansioso e angustiado): Olha, respeita o toc!<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: O que aqueles japoneses todos sorridentes estão<br />

fazendo aqui?<br />

190


CANA-DURA: Eles estão pensando que é uma mulheraça de<br />

uma queixa japonesa, e não uma censura chinesa, uma querela,<br />

uma tamanha de uma reclamação.<br />

Não dá mais para segurar a massa que começa a gritar palavras<br />

de ordem e de desordem.<br />

CANA-DURA (em português): Cadê o china-líder? O que eu<br />

estou fazendo nesse país de irresponsável. Mas, que ...<br />

Desesperado pega o aparelho inventado por Hughes e destinado<br />

a aumentar a intensidade do som e ...<br />

CANA-DURA (gritando em português): PORRA.<br />

A massa não entendendo nada se cala educadamente e o<br />

Delegado toma o microfone das mãos do policial e empurra o de<br />

óculos para frente e lhe entrega o dispositivo que, no posto<br />

transmissor, capta o som que vai ser levado aos receptores<br />

através das ondas hertzianas. E como havia avaliado acha que<br />

acerta: o povo enganado vibra com o líder aguardado. Este<br />

como havia pressentido tem que decidir se a China ainda é<br />

marxista.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (em chinês): Marx em seu discurso histórico disse:<br />

“O domínio do homem sobre a natureza é cada vez maior; mas,<br />

ao mesmo tempo, o homem se transforma em escravo de outros<br />

homens ou de sua própria infâmia”.<br />

Palmas intensas dos numerosos presentes, inclusive do<br />

chinesinho, só que eles gritam algo que traduzido quer dizer<br />

“Salve o candidato a novo líder”, o que demonstra com clareza<br />

de não haver ilusão de que ele seja uma réplica do líder<br />

aguardado.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (aproveitando a situação): A teoria da ilusão é<br />

conferir vida ao que é morto, e morto ao que é vivo.<br />

191


Reificação é algo que se torna coisa versus fetichismo da<br />

mercadoria que é uma coisa que se torna algo vivo. Por exemplo:<br />

você vai numa loja de calça jean, você - que é o vivo -<br />

experimenta a calça - que é o morto -, ali a situação se inverte, ela<br />

passa a ser o vivo e você o morto. A calça quando não serve para<br />

você, ela diz emagreça para me levar. A mesma coisa com o<br />

carro, ele diz quando tiver o dinheiro vem me pegar. Logo, você<br />

acha que é o sujeito de suas ações, quando na verdade você é o<br />

objeto das ações do objeto que você criou. Experimente fazer um<br />

livro, um pintura, casa, queira vendê-los e depois comprá-los de<br />

novo.<br />

(tomando fôlego)<br />

Isso é ideologia, quando você vai a um shoping, as mercadorias<br />

começam a dar ordens a você, sua cabeça vem estourando,<br />

organizando-se para voltar.<br />

O que não funciona mais é criar uma sociedade para eliminar este<br />

engano você tem que eliminar o mercado. Porém, quando<br />

eliminamos o mercado também eliminamos a liberdade, porque<br />

as liberdades políticas e econômicas estão ligadas, daí as<br />

ditaduras. Não conseguimos equacionar um socialismo<br />

democrático. Todo Estado tem que tomar conta da economia, o<br />

que não significa a estatização de todos os meios de produção.<br />

A massa está confusa, não está entendendo nada, não sabe se<br />

aplaude ou se vaia.<br />

DELEGADO (em inglês, para o orador): Eu não estou<br />

entendendo nada, mas pressinto que você não está agradando a<br />

todos, como supersticioso acho bom você meter o pau na religião,<br />

aqui todo mundo é materialista.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (acatando, se dirige a platéia): Ah a religião! Ela<br />

mesma é que promove uma ilusão dos deuses mandarem em<br />

vocês. Deus não manda nada, o que manda é o talão de cheque.<br />

Ainda bem, que aqui não somos tão religiosos assim.<br />

192


A massa continua amorfa, não sabe se aplaude ou se vaia.<br />

DELEGADO (em inglês, para o orador): Eu ouvi dizer que aqui<br />

tem muito confucionista, provavelmente eles devem gostar muito<br />

de confusão. Aborde temas como o oculto visível, o comprovado<br />

suposto ou ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: ... a realidade aparente de Kant.<br />

DELEGADO: Isso! Isso!<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (acatando, se dirige a platéia, em chinês): Kant<br />

com sua “Crítica da razão pura” é que abre de fato a<br />

modernidade. Agora se estuda filosofia e não apenas se lê. Agora<br />

é o conhecimento do conhecimento, filosofia da filosofia, mapa<br />

do funcionamento mental, da razão. Ele tira a filosofia da vida<br />

cotidiana. Ele tira a ética cujo objetivo é a felicidade, e passa para<br />

uma ética cujo objetivo é o do dever mesmo se muitas vezes se é<br />

infeliz. Acompanhar seu povo para ser feliz. Ajam segundo o que<br />

poderia tomar como máxima universal.<br />

Alguns aplausos.<br />

DELEGADO (em inglês, para o orador): Já houve alguma<br />

coisinha, continue falando desse Kant confucionista que está<br />

dando certo.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): Mas, eu estava ... Ah! Quer saber de<br />

uma coisa vamos falar de Confúcio.<br />

(acatando, se dirige a platéia): Shih Huang Ti promoveu a união<br />

da China que se mantém desde então, no entanto a 5ª<br />

personalidade da história foi Confúcio que desenvolveu um<br />

sistema de crenças sintetizando as idéias fundamentais do povo<br />

chinês, principalmente no seu livro “Anacletos” no século IV a.C.<br />

O que produziu essa influência? Uma influência tão grande que,<br />

até a tomada do poder pelos comunistas, o confucionismo ainda<br />

era visto como “a maior força intelectual” influenciando um<br />

193


quarto da população do mundo. Dificilmente teria sido a sua<br />

personalidade. Exemplar, sim, mas sem dramaticidade suficiente<br />

que justificasse seu impacto histórico. Se se volta para seus<br />

ensinamentos, perplexidade aumenta. Enquanto histórias<br />

edificantes e máximas morais são absolutamente louváveis. Mas<br />

como pôde uma coleção de provérbios — tão claramente<br />

didáticos, tão prosaicos que muitas vezes parecem mero senso<br />

comum — moldar toda uma civilização? À primeira vista se tem<br />

no confucionismo um dos enigmas da História. Eis aqui algumas<br />

amostras de seus ensinamentos:<br />

O público está absorto para ouví-los.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Verdadeiro filósofo não será aquele que, mesmo<br />

não sendo reconhecido, jamais guarda ressentimento?<br />

Não me entristece que os outros não me conheçam. Entristece-me<br />

não conhecer os outros.<br />

Não faças aos outros o que não queres que te façam. A melhor<br />

maneira de ser feliz é contribuir para a felicidade do outro.<br />

Não esperes resultados rápidos nem procures pequenas<br />

vantagens. Se buscares resultados rápidos, não alcançarás a meta<br />

final. Se te deixares desviar por pequenas vantagens, nunca<br />

realizarás grandes feitos.<br />

As pessoas mais nobres primeiro praticam o que pregam e depois<br />

pregam de acordo com sua prática. Se quando olhas dentro do teu<br />

coração nada vês de errado, por que te preocupas? O que há para<br />

temeres?<br />

Quando conheces uma coisa, reconhecer que tu a conheces; e<br />

quando não a conheces, saber que tu não sabes isso é<br />

conhecimento.<br />

Ir longe demais é tão mau quanto ficar aquém.<br />

Quando vês um homem desprezível, examina o teu próprio<br />

caráter.<br />

Riqueza e posição, eis o que as pessoas desejam; mas se não as<br />

conseguirem da maneira correta, nunca as possuirão.<br />

Sê bondoso com todos, mas íntimo apenas dos virtuosos.<br />

194


Escolha o trabalho de que gostas e não terás de trabalhar um<br />

único dia em tua vida.<br />

Até que o Sol não brilhe, acendamos uma vela na escuridão.<br />

A arte de liderar, seguir na frente da multidão e ensiná-la a<br />

trabalhar.<br />

Algum dinheiro evita preocupações, muito, as atrai.<br />

Trabalha em impedir delitos para não precisar castigos.<br />

Perguntas-me por que compro arroz e flores? Compro arroz para<br />

viver e flores para ter algo pelo que viver.<br />

Melhor do que o homem que sabe o que é justo é o homem que<br />

ama o justo.<br />

Aprenda a viver e saberás morrer.<br />

Eu não tento conhecer as perguntas, tento conhecer as respostas.<br />

Ouvir ou ler sem refletir é uma ocupação inútil.<br />

Com toda certeza, não há nada de errado com essas observações.<br />

Mas, onde está o poder delas?<br />

Invocado por não estar entendendo nada.<br />

CANA-DURA (gritando em português): PORRA.<br />

A multidão se assusta pela segunda vez e aguarda apreensivo o<br />

que ele quer, pois, ele está invocando a “Grande Queixa”.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: E agora, o que você quer?<br />

CANA-DURA: O seu discurso está muito frouxo, eu quero um<br />

que deixe as pessoas com frio na espinha.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Que tal este de Maquiavel:<br />

“Cada um entende que é muito louvável para um Príncipe manter<br />

sua fé e viver integralmente, não com ardis e enganos. Contudo<br />

vêem-se por experiência do nosso tempo que estes Príncipes se<br />

tornaram grandes porque não levou em grande conta sua fé e<br />

souberam, por ardil, enganar o espírito dos homens e, por fim,<br />

sobrepujaram os que se fundaram na lealdade.<br />

195


Não é, pois, necessário a um Príncipe ter todas as qualidades<br />

supracitadas, mas é preciso que pareça tê-las. E até ousaria dizer<br />

que, se as tem e as observam sempre, elas lhe trazem danos; mas<br />

fazendo de conta que as tem, então são proveitosas; como parecer<br />

ser piedoso, fiel, humano, íntegro, religioso e sê-lo, mas detendo<br />

então seu espírito de modo que, se for preciso não sê-lo, possa e<br />

saiba usar o contrário. E é preciso também notar que um Príncipe,<br />

principalmente quando é novo, não pode bem observar todas as<br />

condições pelas quais se é estimado como homem de bem;<br />

porque ele é frequentemente obrigado, para manter seus Estados,<br />

a agir contra a sua palavra, contra a caridade, contra a<br />

humanidade, contra a religião. É por isso que é preciso que ele<br />

tenha o entendimento pronto para mudar, segundo os ventos da<br />

fortuna e as variações das coisas lhe pedem e, como já disse, não<br />

se afastar do bem, se puder, mas saber entrar no mal, se há<br />

necessidade.”<br />

Observando que o policial continua atento.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (continuando): O Príncipe deve, pois,<br />

cuidadosamente, tomar cuidado de que nunca lhe saia da boca<br />

propósito que não esteja pleno das cinco qualidades que acabei de<br />

citei e parecer, a quem o ouve e vê, misericordioso, fiel, íntegro,<br />

religioso. E não há coisa mais necessária que a de parecer possuir<br />

esta última qualidade. Os homens em geral julgam antes pelos<br />

olhos que pelas mãos, porque cada um pode ver facilmente, mas<br />

sentir, poucos. Todo mundo vê bem o que você parece, mas bem<br />

poucos têm o sentimento do que você é; e estes poucos não<br />

ousam contradizer a opinião do grande número, que tem do seu<br />

lado a majestade do Estado que os sustenta; e pelas ações de<br />

todos os homens e especialmente dos príncipes, porque aí não se<br />

pode apelar a outro juiz, vê-se qual foi o sucesso.<br />

(concluindo): Que um príncipe se proponha, pois, como seu<br />

objetivo, vencer e manter o Estado: os meios serão sempre<br />

qualificados honrosos e louváveis por cada um; porque o vulgo só<br />

julga a partir do que vê e do que advém; ora, neste mundo, só há<br />

o vulgo; e o pequeno número não conta, quando o grande número<br />

196


tem em quem se apoiar. Um príncipe de nosso tempo, que não é<br />

bom nomear, não canta outra coisa senão paz e fé; e é grande<br />

inimigo de uma e da outra; e de uma e de outra, se o tivesse<br />

observado bem, ele frequentemente tirou ou seu prestígio ou seus<br />

Estados.”<br />

Silêncio.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Que tal?<br />

CANA-DURA: Cara que manda os outros não ter opinião firme,<br />

não sei não. Não me parece muito macho e muito menos um<br />

honesto. Isso me deixa até com dificuldade na fala.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Demóstenes, 300 a.C estimado o maior orador<br />

ateniense, era gago. Para superar essa deficiência falava com<br />

pedrinhas na boca, discursando para o mar e, para ganhar fôlego,<br />

subia ladeiras correndo, enquanto declamava poesia. Pois bem,<br />

num seu discurso histórico ele mostra que é próprio do homem de<br />

gênio mudar sua opinião na medida em que mudou as<br />

conseqüências. Ao perceber que a resistência não mais adiantaria<br />

propõe a aceitação do resultado. Que tal?<br />

CANA-DURA: Nenhum desses discorre sobre cemitério, almapenada,<br />

profecia, canibalismo, escassez, opressão, acidente de<br />

avião, eleição, pichação, desonestidade, corrupção, egocentrismo,<br />

manipulação, covardia, aumento de população, então como é que<br />

vai aterrorizar as pessoas?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Você tem razão ...<br />

(acatando, se dirige a platéia): A escassez é algo terrível.<br />

Uma vez o Presidente do meu país, o Brasil, encomendou ao<br />

Ibope uma pesquisa para saber o que está pensando o povo<br />

brasileiro. Já com o resultado em mãos, um funcionário do<br />

Instituto lhe comunica: “Olha Presidente, segundo as nossas<br />

pesquisas, metade da população se mostrou otimista. E a outra<br />

metade se revelou pessimista.”. E o que dizem os otimistas,<br />

197


perguntou ele. “Bem eles estão achando que se tudo continuar<br />

como está, com esses juros altos, desemprego, desleixo com a<br />

saúde, a educação e a segurança, logo, logo, o povo brasileiro<br />

estará comendo merda”. Meu filho, você se equivocou, eu lhe<br />

perguntei o que pensam os otimistas, disse o Presidente. “Pois é,<br />

são eles mesmo que pensam assim, Senhor Presidente. Já os<br />

pessimistas, acham que a merda não vai dar para todo mundo.”<br />

O público gosta e ri muito.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Um avião, transportando o presidente, seus<br />

assessores, ministros, deputados, senadores, juízes, explode e caí.<br />

Quem se salva? Quem? Quem? O povo brasileiro.<br />

Mais risos. Diante do sucesso, lá vai ele contando uma atrás da<br />

hora com pausas.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Vocês sabem o que é um candidato-aeromoça? É<br />

aquele que está sempre sorrindo, fala vários idiomas, sinaliza<br />

para a direita, para a esquerda e para o centro, e quando decola ...<br />

manda todo mundo apertar o cinto!<br />

(pausa): Pichado no muro da câmara de vereadores, numa<br />

pequena cidade do interior: “Proibido amarrar burros aqui de<br />

fora, para não incomodar os de dentro”.<br />

(pausa): E lá está aquele político se gabando com seus<br />

correligionários: “eu sim, sou um homem íntegro. Por este bolso<br />

nunca passou dinheiro desonesto!”. De terno novo, hein doutor?<br />

(pausa): Aí finalmente o político confessa: “Honestamente, sou<br />

corrupto”.<br />

(pausa): O governador preocupado com a reforma penitenciária<br />

convoca seus auxiliares na área de segurança e manda que seja<br />

feita uma reforma completa no presídio: limpeza, pintura,<br />

encanamento, etc. Além disso, manda instalar televisão,<br />

videocassete, frigobar, colchão de molas e uma porção de outras<br />

mordomias em cada cela. E diz para contratarem um cozinheiro<br />

francês para ser o chefe da cozinha. Todos na reunião ficam<br />

pasmos. Um dos assessores se atreve a perguntar: Mas, senhor,<br />

198


para que todo esse luxo? O que ele respondeu: Ah, meu caro! A<br />

gente nunca sabe o dia de amanhã.<br />

(pausa): Senador encontra filho do senador Junqueira e vai logo<br />

derramando amabilidades. “Como vai seu pai, meu nobre colega<br />

Junqueira?”. “Mas, senador, meu pai morreu há um ano atrás!”<br />

Vendo a fria em que estava se metendo, não perdendo a pose,<br />

falou recriminando: “Morreu para você, filho ingrato. Para mim<br />

ele sempre estará vivo no meu coração”.<br />

(pausa): Camarada estaciona o carro em local proibido e o guarda<br />

vem multar dando uma dura. O cara desce do carro e, sem<br />

vaselina, dispara para o guarda: “Ora, vá tomar banho”. O<br />

meganha indignado resolve prendê-lo por desacato à autoridade.<br />

No distrito, o delegado dá a maior bronca: “Quer dizer que o<br />

senhor manda um policial tomar banho?!”. “É. E você vá tomar<br />

no ...”. Aí foi a conta. Ele é levado imediatamente para certo<br />

porão e, após alguns choques e hematomas, é posto no pau-dearara.<br />

É quando cai do bolso da calça a sua credencial. O mesmo<br />

guarda que o multara leva a carteirinha do homem pro delegado e<br />

diz, já quase sem voz: “Delegado!!! O homem é comandante do<br />

II Exército!!! E a gente arrebentou com ele!!!”. “Deus do céu! E<br />

agora o que a gente faz?”. E o guarda, recuperando a calma:<br />

“Bom, eu vou tomar o meu banho, que foi o que ele mandou ...”<br />

(pausa): Por falar em nascimentos, tem aquela cidade que nunca<br />

aumenta a sua população, pois, cada vez que nasce um bebê, um<br />

rapaz foge da cidade.<br />

Quando o público estava no auge de tanto rir, um bando de<br />

quatro pessoas toma de assalto o palanque todos com um livro<br />

vermelho de Mao Tse-Tung, o seu líder eterno, ameaçando o que<br />

estava contando piadas a ter que ler aqueles pensamentos<br />

contidos no livro.<br />

DELEGADO: Ô estranho. Acho que os liderados pelo Mao Tse-<br />

Tung o estão achando por demais bizarro. Que tal pular esse<br />

palanque e se mandar?<br />

199


<strong>ESTRANHO</strong> (sorrindo): O quanto de estranho bizarro sou se o<br />

líder deles não gostava de tomar banho o que ocasionou pouca<br />

presença espontânea por perto, não escovava os dentes alegando<br />

que o tigre não precisava escová-los o que lhe causou a perda de<br />

todos na velhice, mas acreditava que fazer sexo prolongava a vida<br />

tendo com isso cerca de três mil mulheres, contraiu herpes<br />

genital, triconíase e aos sessenta anos ficou completamente<br />

estéril, e eu comumente tomo banho, banalmente escovo os<br />

dentes e normalmente faço sexo sem chegar ao um por cento do<br />

número de mulheres alcançado por ele e sem deixar de ser<br />

criativo, dotado e eficaz.<br />

(pensando): O Prêmio Nobel Alternativo ("Prémio da<br />

Sustentabilidade") foi criado em 1980 pelo filatelista Jakob Von<br />

Uexkull, e celebra-se anualmente no Parlamento Sueco, para<br />

homenagear e apoiar pessoas que "trabalham na busca e aplicação<br />

de soluções para as mudanças mais urgentes e necessárias no<br />

mundo atual". Um júri internacional decide o prémio em âmbitos<br />

como Proteção Ambiental, Direitos Humanos, Desenvolvimento<br />

Sustentável, Saúde, Educação, Paz, etc.<br />

Quantos se dedicaram a moral. Já na Antiguidade, Moisés ao<br />

conduzir o seu povo, após o cativeiro no Egito, à terra prometida,<br />

recebeu de Deus os Dez Mandamentos que ainda forma a base da<br />

moralidade do mundo ocidental. Na Idade Moderna, Lutero deu<br />

início à Reforma Protestante, preparou o documento chmado “95<br />

Teses” e escreveu “Do cativeiro babilônico da Igreja”, Calvino<br />

foi o famoso teólogo moralista. Outros na Idade Contemporânea,<br />

Max Weber tem escrito livros como: “A ética protestante e o<br />

espírito do capitalismo”.<br />

E ficou um ateu? Quem diria que mais tarde um brasileiro iria<br />

conseguir ganhar Nobel ...<br />

Diante do importuno insistente interminável tenaz e birrento<br />

chamamento a decorar o livro vermelho, o bizarro aceita a<br />

sugestão do americano e pula do palanque se pondo a sair o<br />

mais rápido possível daquele local.<br />

200


CANA-DURA (pensando): Por que esse candidato nerd em vez<br />

de abandonar este comício por causa desse grupo dos livros<br />

vermelho não insuflou a massa contra esse bando fazendo um<br />

ensopadinho com esses quatro?<br />

DELEGADO (pensando): Sei lá para onde ele vai, mas, para<br />

onde for o engarrafado, certamente lá será considerado ...<br />

201


202


DO LADO ESPACIAL<br />

203


204


O LUNÁTICO<br />

Três anos atrás. Barbado algemado desdentado cueiroado<br />

marcado herniado chateado pintado engarrafado e agora<br />

acorrentado nos pés com aquelas bolas de ferro pretas dentro de<br />

uma NAVE ESPACIAL em uma viagem espacial, há 315<br />

quilômetros de altitude, discutindo IDEOLOGIA com mais dois<br />

conhecidos. Nesse momento ele interrompe a discussão e começa<br />

a lembrar como foi tão inesperado o que aconteceu um pouco<br />

antes de entrarem naquela nave.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (recordando): Estava eu lá no deserto de Gobi<br />

exatamente no Centro de Lançamentos de Satélite de Jinquan.<br />

Exatamente este Centro que já havia realizado com êxito a<br />

Shenzhou 5, nome da primeira missão tripulada chinesa no<br />

espaço, que já havia também realizado o primeiro passeio<br />

espacial de um taikonauta chinês, e que hoje iria enviar essa nave<br />

espacial para realizar pela primeira vez uma alunissagem com<br />

três tripulantes sendo eu um deles.<br />

Fiquei pensando no Vôo espacial em 1957, satélites de<br />

comunicação em 1962, mas não pude deixar de recordar que estes<br />

feitos só foram possíveis graças à invenção e ao aperfeiçoamento<br />

do foguete, que impulsiona a nave em direção ao espaço. A<br />

“patente” da invenção que séculos mais tarde se converteria na<br />

chave para enviar o primeiro homem ao espaço coube aos<br />

chineses. Entre os séculos IX e X, eram realizados festivais<br />

religiosos na China, nos quais tubos de bambu preenchidos com<br />

pólvora eram utilizados para provocar explosões, cujo barulho,<br />

segundo a crença, afugentaria espíritos malignos. Ali estava a<br />

chave para futuros foguetes.<br />

(pausa): Apesar disso tudo, contudo, confesso que estava muito<br />

invocado porque depois dos russos e americanos experimentarem<br />

sem consentimento de moscas frutíferas, o macaco Albert, a<br />

cachorra Laika, agora estava sendo a vez desses chineses<br />

resolverem me levar para esta aventura espacial sem minha<br />

205


permissão. E pelo que sei ainda vão entrar mais dois nessa coisa<br />

ultra apertada.<br />

Ao longe, dirigindo-se para esta nave, vêm dois sorridentes ...<br />

conhecidos!!! Quando eles se aproximam.<br />

PROFESSOR: Mon amour!<br />

Dá três picotas.<br />

PROFESSOR (em francês): Hum! Que saco bonito que você<br />

arrumou, todo pintado de dourado. E esses óculos de fundo de<br />

garrafa, tão charmoso, intelectual. Você só parece um pouco malhumorado,<br />

deixe ver se eu adivinho, ... por acaso, ... será que, ... é<br />

por causa dessas correntes que não estão combinando com essa<br />

fralda?<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (invocado, fala em francês): Nada disso! Vocês já<br />

viram o tamanho dessa cabeça de porco abafada e comprimida?<br />

Vocês já viram o tamanho dos seus corpos para ficarem aí<br />

dentro? E eu aí dentro com esse seu corpo atlético e com a<br />

gordura do outro.<br />

ESCRIVÃO (em francês): Gordo não, hein! Eu sou só um pouco<br />

magro.<br />

PROFESSOR: Um porco magro?<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (surpreso, fala para o cegueta): Aprendeu francês<br />

em braile?<br />

ESCRIVÃO: Não, aprendi num hospício em que fui jogado por<br />

aquele delegado com transtorno obsessivo compulsivo e<br />

supersticioso. Lá tinha um louco que achava que era Napoleão e,<br />

como francês, foi ele o meu instrutor.<br />

206


<strong>ESTRANHO</strong> (para o Professor): Eu soube com o Senador<br />

Sargentão que havia casado com o piloto, estavam pensando em<br />

adotar uma criança e serem cosmonautas.<br />

PROFESSOR: Eu soltei a franga, larguei o piloto que era ruim<br />

de decolagem e parti para realizar esse meu sonho de ser<br />

cosmonauta.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (perguntando para o cegueta): E você por que está<br />

aqui?<br />

ESCRIVÃO: Eu quero ter a sensação do que é enxergar quase<br />

nada na Lua e desenvolver de lá o meu lado visionário, utopista.<br />

Sirenes começam a tocar de maneira tão ameaçadora que não<br />

resta nenhuma alternativa a não ser entrar naquele<br />

compartimento de um cômodo só. O pé de um está no rosto do<br />

outro, enquanto a barriga de alguém está nas costas de algum. E<br />

é nesse contexto que aquela máquina se desloca expelindo atrás<br />

de si um fluxo de gás a alta velocidade. A pressão é muito grande<br />

para gente tão mal preparada.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (com medo, pensa): “Geração X” de Couplland,<br />

“A utopia” de Thomas More, “Nova Atlântida”, Francis Bacon,<br />

“A cidade do sol”, Tommaso Campanella, “A máquina do<br />

tempo”, Orson Wells, “Admirável mundo novo”, Aldous Huxley,<br />

“1984”, “Cibernética”, Norbert Wiener, George Orwell,<br />

“Solaris”, Satanislaw Lem, “Neuromancer”, William Gibson.<br />

Mas enfim, eles conseguem chegar a um estágio em que tudo<br />

flutua dentro da nave, exceto os seus corpos que continuam<br />

embolados.<br />

PROFESSOR: Como é gostoso isso aqui, tudo é relativo!<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (ainda com aquele desconforto): Tudo é tortura.<br />

207


ESCRIVÃO: Nós já tivemos uma longa conversa sobre esse<br />

assunto com aquele delegado torturador, lembra? Eu só não sei<br />

nada sobre esse relativo para esse instrutor velho de barba branca,<br />

confuso e atlético será que é tipo não sei se masculino ou<br />

feminino, sexo é circunstancial? O que você conhece sobre o<br />

relacionismo?<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): Nessa hora de tamanho desconforto<br />

tecer considerações filosóficas sobre um tema desta envergadura?<br />

Porém, acho que a gente pode gastar um tempo sem pensar no<br />

que estamos vivendo.<br />

Leva a mão na boca, provoca uma pequena tosse para limpar a<br />

garganta a fim da voz ficar no ponto.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (falando): Pois bem, meus amigos. A grande<br />

dificuldade da filosofia é encontrar equação de moralidade que<br />

permita colocar as pessoas em relação, em grupo, na sociedade.<br />

Isso é difícil porque inúmeras pessoas querem viver de acordo<br />

com a própria potencia o que pode implicar em passar por cima<br />

do outro como um trator. Um trator ...<br />

Vendo aquelas banhas nos seus olhos e sentindo o chulé do outro<br />

no seu nariz, associa e se perde na sua exposição.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (parênteses): ... Um trator. Aliás, diga-se de<br />

passagem, nessa passagem que não existe aqui, nas circunstâncias<br />

que estamos submetidos nessa nave espacial neste momento, falar<br />

em trator implica em imaginar que um trator esteja a passar por<br />

cima de um e do outro.<br />

Após o pequeno desabafo, retoma a exposição.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (continuando): A concepção moral na ética nas<br />

relações pode compreender dois pontos de vista: 1ª) o valor moral<br />

não varia em qualquer situação, tempo, lugar, circunstancia<br />

208


particular; 2ª) o valor moral pode variar com o contexto, a<br />

subjetividade.<br />

Imaginem uma situação numero um. Uma jovem faz a corte a um<br />

rapaz, e os dois dão inicio ao idílio afetivo. Neste um faz crer ao<br />

outro que o outro é o objeto único, monopólio absoluto das suas<br />

manifestações de libido, ou seja, do gênero “você é tudo pra<br />

mim”. Alguns são tão radicais, que diz: “eu quando vejo outras<br />

mulheres até passo mal”. Pois muito bem, este casal segue<br />

viagem, a relação continua e eles falam de nome de criança,<br />

bairro em que querem morar, e tudo, um faz crer ao outro que a<br />

coisa é por ai mesmo e eis que a jovem surpreende o rapaz em<br />

adultério, beijando outra mulher. O valor moral variou para o<br />

homem? E para a mulher?<br />

Imaginem uma situação numero dois. Para não ser acusado de<br />

machismo inverte-se. Um jovem faz a corte a uma jovem e a<br />

jovem contempla o rapaz, e diz: “eu ficaria bem com você, mas<br />

eu sou fiel à pluralidade de parceiros, de maneira que se você<br />

quiser fazer parte do rol dos rapazes que entretenho, fica a<br />

vontade”. E o cara que está apegado na menina, topa, topa porque<br />

o coitado não tem outro jeito. E eis que na outra semana, atrás do<br />

mesmo poste, ele se surpreende com a menina objeto de seu<br />

desejo, beijando outro cara, com beijo muito semelhante ao que<br />

ela lhe havia dado. Se ainda fosse outro tipo de beijo, talvez o<br />

coitado ainda desse para tolerar, mas do mesmo tipo era<br />

inaceitável. O valor moral continuou variando para o homem? E<br />

para a mulher?<br />

(pausa): Para entender a ética nessas duas situações, é necessário<br />

reconhecer que a atividade do espírito não tem simplesmente por<br />

objeto a ação “beijar”, mas, sim, a ação “beijar” na relação, logo,<br />

para melhorar a reflexão é preciso explicitar e aprofundar o<br />

conceito de relação.<br />

PROFESSOR: Relação é algo sublime, algo de tirar o fôlego,<br />

algo ...<br />

ESCRIVÃO: ... dá um tempo aí, meu irmão. Por favor, prossiga<br />

o acorrentado.<br />

209


<strong>ESTRANHO</strong>: Relação é a interação entre comportamento e<br />

expectativa de comportamento.<br />

Inicialmente, se fala sobre comportamento. “Quando você me<br />

contempla, contempla o meu comportamento, e ai você constrói<br />

de mim uma representação, uma imagem, eu quero dizer que algo<br />

me representa em você. Por isso, é que você chega em casa, e<br />

sem que eu esteja lá, você pode falar a meu respeito. Caso alguém<br />

de sua família também tenha uma outra representação de mim<br />

nela, mais vou ser tema de conversa”.<br />

Agora, se fala sobre expectativa de comportamento. “A partir da<br />

representação, que você tem de minha pessoa, você pode inserir<br />

um comportamento meu que você ainda não comprovou, você<br />

então supõe, e isto, é expectativa, ou seja, uma inferência de um<br />

comportamento não observado a partir de uma representação já<br />

construída. Como, por exemplo, você me vê aqui, você me<br />

contempla e você constrói de mim uma imagem, uma idéia, uma<br />

representação, ai você liga para mim e diz: “no final da palestra<br />

vamos comer um churrasco?”. Eu digo: “Vamos!”. Eu lhe<br />

pergunto: “Você já me viu comer um churrasco?”.<br />

PROFESSOR: Você também já provou do salsichão? Que<br />

maravilha!<br />

ESCRIVÃO: ... Ô meu irmão, sossega o facho aí. Continua.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Eu lhe pergunto: “Você já me viu comer um<br />

churrasco?”. Certamente que não. Mas você se sentiu motivado a<br />

me convidar, você supôs o meu comportamento na churrascaria,<br />

isso é uma expectativa, é uma transferência que você faz, é uma<br />

suposição que você faz do meu comportamento a partir de uma<br />

representação que você tem com base naquilo que você já viu. Se<br />

você me vê dando palestra você pode criar uma expectativa<br />

errada, a de que eu sou uma pessoa comunicativa, falante, que<br />

fala o tempo inteiro, e suponhamos que eu falo muito pouco,<br />

então se você me convida para ir a uma churrascaria depois da<br />

palestra, corre o risco de você achar que eu não gosto de você.<br />

“Mas não é possível aconteceu alguma coisa com ele”, podem ser<br />

210


suas próximas palavras. “Sim, aconteceu”, diria eu. O<br />

personagem palestrante ficou dentro da sala de palestras, quem<br />

saiu foi outro personagem”.<br />

Todo o comportamento gera uma expectativa de comportamento<br />

futuro de tal maneira que as pessoas classificam os<br />

comportamentos a partir das perspectivas. O comportamento<br />

adequado às expectativas é chamado de consonante, e o<br />

comportamento não adequado às expectativas é chamado de<br />

dissonante. É óbvio que não se está dizendo que consonante é<br />

bom e dissonante é ruim.<br />

Fica fácil perceber que na ética das relações o critério da<br />

moralidade não é mais dado por Deus, nem pelo cosmos, nem<br />

pela sociedade sem classe, nem pela qualidade de vida, nem por<br />

nenhum gabarito, mas é dado pelos próprios agentes em relação.<br />

PROFESSOR (para o gordão): Ô maninho, eu só não entendo<br />

onde está o fundamento dessa moral?<br />

ESCRIVÃO (enfezado): Eu lá tenho irmão assim, saiba que lá<br />

em casa todo mundo é ...<br />

PROFESSOR: Você não tem o direito de me julgar ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (prosseguindo com o que estava expondo): Você<br />

tem direto de me julgar a partir da expectativa que você construiu<br />

de mim. E de onde veio a matéria prima desta expectativa? De<br />

mim mesmo, de minha existência. Em outras palavras, agindo a<br />

cada momento eu estou oferecendo aos meus interlocutores<br />

critérios de moralidade, agindo eu estou dando ao outro a<br />

possibilidade de esperar algo de mim, agindo eu estou permitindo<br />

ao outro que pense algo a meu respeito. Portanto, é na minha<br />

própria ação o fundamento da moral.<br />

Não é cada um faz o que quer não, porque a minha conduta ela é<br />

um poderoso divisor de água na moralidade, a partir do momento<br />

que eu ajo e você me contempla, eu estou implícito ou<br />

explicitamente estabelecendo com você um trato, um pacto, um<br />

contrato que eu estou admitindo respeitar, não precisa assinar este<br />

211


trato. Mas cada conduta minha, te autoriza mais pra frente cobrar<br />

de mim alguma consonância, porque afinal de contas você não<br />

tem outra maneira para me julgar senão a partir das coisas que<br />

você vê, e o que você vê, você me vê agindo, é a minha ação<br />

como matéria prima de sua representação de mim, então é a<br />

minha ação a matéria prima da moralidade.<br />

E os dois recomeçam.<br />

PROFESSOR (para o gordão): Ouviu! Prestou atenção no que<br />

foi dito? Você não tem o direito de me julgar.<br />

ESCRIVÃO: Está bom, ô meu ... ô meu ... E o que é o<br />

fundamento da moral no momento zero?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: O momento zero está fora da vida, por isso ele é<br />

zero, não tem nada no momento zero, no momento zero não há<br />

relação, a moral só surge na vida, é um agindo e o outro<br />

observando, e com isso vão se costurando e se renovando<br />

critérios de moralidade, e uma pessoa é livre para agir e, portanto<br />

é livre para definir critérios de moralidade e a outra pessoa é livre<br />

para dar seqüência à relação ou abortá-la a ponto de dizer: “nestas<br />

condições eu não quero mais”.<br />

ESCRIVÃO: É isso aí, nestas condições eu não quero mais nada<br />

com esse aí.<br />

PROFESSOR: Então, quer dizer que antes você estava<br />

querendo?<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (prosseguindo com o que estava expondo): Esta<br />

teoria, ela tem um problema. Na dúvida, se escuta: “o problema é<br />

que nós somos uns fluxos, portanto nunca permanecemos os<br />

mesmos, o mundo vai transformando-nos, nossos desejos vão<br />

sempre redirecionando, e você que tem uma representação de<br />

mim, não pode ter uma representação de uma vez por todas, a<br />

idéia que você tem de mim tem que ir também sendo<br />

212


transformada. Se você pensa uma coisa de mim e isso fica parado<br />

lá e eu vou me transformando, chega uma hora que o que você<br />

pensa de mim e aquilo que eu me transformei, não tem mais nada<br />

haver. Desta maneira, a qualquer momento você dá ao outro a<br />

chance de decidir se vale à pena continuar a relação ou não, sem<br />

que haja qualquer problema ético. Em resumo, os pactos vão se<br />

redefinindo a cada instante, cada instante de relação é um pacto<br />

de continuidade desta relação com base sempre em novos agentes<br />

e novas premissas”.<br />

PROFESSOR: Por acaso existiria uma chance de reconciliação<br />

entre eu e o porco magro?<br />

ESCRIVÃO (para o acorrentado): Você não tem um exemplo<br />

para ilustrar a fim desse bofe poder fixar melhor e não ter<br />

esperança quanto ao nosso rompimento?<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (prosseguindo com o que estava expondo): Um<br />

exemplo desta situação: “um professor foi dar aula num colégio<br />

particular, numa classe só de mulheres. Certo dia, elas lhe<br />

disseram: “Professor temos um presente para o senhor”. Era uma<br />

camiseta e na camiseta estava escrito “eu sou pop”. Como todo<br />

professor pop que se preze ele colocou a camiseta sobre a camisa<br />

e continuou a dar aula. Terminada a aula, foi para o<br />

estacionamento pegou o carro e foi para casa. Entrou na casa,<br />

beijou a esposa, sentou-se na mesa, começou a almoçar, e ela não<br />

tirava o olho da camiseta, até o maxilar dela arrefeceu, e ela num<br />

rompante disse: - “Mas, o que é isso!”. - “Isso, o quê!”. - “Não<br />

disfarce, eu estou falando dessa sua camiseta”. - “Ah! Isso foi um<br />

presente, querida”. - “Mas, quem deu?”. - “Um grupo de<br />

alunas!”. – “Mais quem?”. - “Não sei, foi um grupo de moças lá<br />

do fundo!”. Foram três minutos de tempestade no deserto, ele<br />

ouviu de tudo, até um discurso contra a sala ter fundos. Depois<br />

disso tudo, ela se acalmou, porque a energia acaba”.<br />

Como todo bom professor, depois que recebe uma bronca da<br />

esposa, resolveu fazer uma profunda reflexão aristotélica:<br />

“Porque eu tive que aceitar esta bosta!”. E aí ele continuou sua<br />

213


eflexão: “Se eu sumir com a camiseta, estaria protegendo a<br />

representação que minha esposa tem de mim? Mas, então, o que<br />

ela ama é uma representação incompatível com aquela conduta,<br />

então ela detesta aquela conduta que desmente a representação<br />

que é o objeto do seu amor. Não tem problema, vamos começar<br />

tudo de novo, eu saio jogo a camiseta fora e entro. Aí, reside o<br />

perigo. Se for para manter a representação que ela tem mim, eu<br />

posso mentir para ela todos os dias, mas eu acho que seria mais<br />

interessante se eu contasse para ela todos os dias em quem o<br />

mundo vai me transformando, porque eu não permanecerei<br />

aquele que se casou com ela, nem eu e nem ninguém, nem o<br />

padre, nada permanecerá”.<br />

Dois anos depois, ele foi dar um curso e contou esta historia da<br />

camiseta, terminou a aula, um grupo de moças veio e lhe disse:<br />

“Professor, nós temos um presente”. Era uma camiseta, ele abriu,<br />

e lá estava escrito: “cada vez mais pop”. Que fez ele? Vestiu a<br />

camiseta, pegou o avião, foi aplaudido pelas aeromoças, ganhou<br />

brinde do boticário, anunciaram no mega fone: “Professor pop<br />

venha receber”. Chegou à porta do avião, sua esposa que nunca ia<br />

recebê-lo, viu ele de longe bater no peito, ela de longe sorriu!<br />

(pausa): Esta é a essência da Ética nas Relações, porque a<br />

primeira camiseta teve um efeito didático espetacular, a camiseta<br />

corrigiu o mundo que lhe afeta, ela corrigiu a idéia que sua<br />

esposa pode ter a seu respeito, ela redirecionou as expectativas de<br />

tal maneira que depois desta historia, sem brincadeira, ele já<br />

ganhou 34 camisetas, e todas elas lhe servem de pijama, quando<br />

maiorzinha, para ele, quando menores, para sua esposa.<br />

PROFESSOR: Vamos falar sobre as mulheres, eu adoro!<br />

ESCRIVÃO (falando para si do outro): Esse cara é confuso,<br />

afinal qual é a dele? (falando para o outro daquele outro, ou<br />

melhor, daquela outra) O que você falaria sobre as mulheres?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Até a segunda metade do século XX, a história<br />

escrita das sociedades ocidentais foi totalmente dominada pelas<br />

conquistas dos homens. Embora muitas cientistas fossem<br />

214


econhecidas e respeitadas em sua época, tempo depois,<br />

historiadores com freqüência tiraram o crédito de suas<br />

contribuições.<br />

ESCRIVÃO (provocando o professor, ou melhor, a professora):<br />

Não tem nenhuma francesa?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Foi assim o que aconteceu com Marie Lavoisier<br />

(1758-1836), cujos 25 anos de colaboração com o marido<br />

lançaram a base da química moderna.<br />

(pausa): No Brasil, Chiquinha Gonzaga (1847-1935), apesar de<br />

viver numa época em que a sociedade não aceitava mulheres em<br />

rodas musicais, tornou-se uma das maiores compositoras de<br />

música popular brasileira.<br />

Bartha Luz (1894-1976) ajudou a fundar a Liga para a<br />

Emancipação Intelectual da Mulher e se dedicou à luta pelo voto<br />

feminino, que só foi decretado em 1932.<br />

ESCRIVÃO: Antes de falar das brasileiras, elas na história como<br />

seria? Como seriam as fran ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Uma das mais antigas foi a rainha do Egito<br />

chamada Maatkare Hatshepsut, outra foi a Cleópatra (69-30 a.C).<br />

Maria, mãe de Jesus Cristo, teologia e idolatria cristã.<br />

ESCRIVÃO: Não tem nenhuma francesa?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Joana D’Arc (1412-1431). Tem também Anita<br />

Garibaldi (1821-1849), heroína brasileira que lutou aqui e na<br />

Itália.<br />

ESCRIVÃO: Antes das brasileiras. Não tem nenhuma fran ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Lakshmi Bai Rani de Thamsi (1830-1858) tornouse<br />

heroína nacional da Índia quando morreu defendendo a justiça<br />

ao liderar suas tropas durante O Grande Motim Indiano. Annie<br />

215


Besant (1847-1933), inglesa, lutadora por causas socialistas e<br />

presidente da Sociedade Teosófica.<br />

ESCRIVÃO: E a francesa?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Marie Curie (1867-1934), física francesa de<br />

origem polaca que ajudou a fundar e criar a base da física nuclear<br />

moderna, que em 1903 obteve o Prêmio Nobel de Física. Rosa<br />

Luxemburgo (1870-1919) uma das mulheres mais importante da<br />

história do socialismo internacional. Maria Montessori (1870-<br />

1952) criou um método pedagógico. Karen Horney (1885-1952)<br />

psicanalista infantil. Anita Mafaldi (1889-1964) artista precursora<br />

do modernismo no Brasil. Cecília Meireles (1901-1962) poetisa.<br />

ESCRIVÃO: Vamos voltar para o mundo, talvez uma fran ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Margaret Mead (1901-1978) antropóloga. Evita<br />

Perón (1919-1952) líder espiritual da nação argentina. Olga<br />

Benário (1908-1942) revolucionária comunista que esteve aqui<br />

no Brasil e que teve envolvimento amoroso com Luiz Carlos<br />

Preste. Pagu (1910-1962), comunista escritora e jornalista,<br />

também brasileira.<br />

Neste ponto, exatamente neste ponto é que o acorrentado parou<br />

de recordar porque neste momento, neste tão presente, ele escuta<br />

um pavoroso ...<br />

PROFESSOR (levando um susto): Nossa! Esse aqui passou<br />

raspando.<br />

ESCRIVÃO: O visionário aqui sou eu, ouviu sua bicha francesa?<br />

PROFESSOR: Até acredito sua porca magra enrustida, mas só<br />

que você não está olhando aqui para fora.<br />

ESCRIVÃO: Eu não preciso olhar para fora, aliás cegueta como<br />

eu sou não adianta nada olhar para dentro ou para fora, para saber<br />

216


o que está acontecendo basta eu me concentrar para ter a resposta.<br />

Eu tenho vidência.<br />

PROFESSOR (lembrando): Estou me lembrando daquela<br />

vidente que eu fui. Quando bati na sua porta, ela perguntou quem<br />

era. E eu nem entrei, voltei decepcionado.<br />

ESCRIVÃO (concentrado): Quem era? Quem era que passou<br />

raspando lá fora?<br />

PROFESSOR (levando outro susto): Nossa! Esse outro pelo<br />

jeito foi um milagre.<br />

ESCRIVÃO (concentrado): Viu como você estava desatento, eu<br />

tive de alertá-lo para o fininho, de leve.<br />

PROFESSOR: Que fininho, de leve, coisa nenhuma, é tudo<br />

pesado, trata-se de toneladas de pedaços de satélites, naves,<br />

estágios de foguetes e outras coisas que as missões espaciais<br />

americanas e russas deixaram no espaço, são quase seis mil<br />

artefatos que sobrevoam o planeta. É um problema para as<br />

comunicações, pois esses destroços podem destruir satélites,<br />

interromper as comunicações ali na terra.<br />

(muito assustado): Nosssaaaaaa!<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Que cheiro é esse?<br />

PROFESSOR: É aquele li comendo o “pró-colesterol”, “o amigo<br />

do infarto”.<br />

ESCRIVÃO: Para de implicar com o meu big sanduíche de ovos<br />

com manteiga e lingüiça fritada na banha de porco.<br />

PROFESSOR: Esse lixo representa um perigo para as estações<br />

espaciais e para o ônibus espacial e seus tripulantes, como esse<br />

frigobar cheio de vodka que ...<br />

217


PAFTI. Todos são deslocados internamente. Saindo rápido da<br />

concentração, todo branco.<br />

ESCRIVÃO: O que aconteceu?!<br />

PROFESSOR: Não sei por que, mas, nessas horas, você me<br />

lembra muito a minha vidente que eu fui.<br />

ESCRIVÃO: Como era ela?<br />

PROFESSOR: Adivinha?<br />

ESCRIVÃO: Ela era parecida com você.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (tendo vista o que havia chocado com a nave): Um<br />

arranhão.<br />

PROFESSOR (enfurecida e deprimida): Eu parecido com um<br />

arranhão? Um rasgo? Que indelicadeza. Não esperava isso do<br />

acorrentado.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (continuando a descrever o que viu): Foi uma<br />

garrafa de vodka que se espatifou na janela<br />

PROFESSOR (quase chorando): Vê lá se eu me comparo a uma<br />

garrafa de vodka, eu sou uma Champagne Francesa Laurent-<br />

Perrier Gran Siècle 1l, dá para pagar em cinqüenta vezes sem<br />

juro.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Nossa!!!<br />

ESCRIVÃO: Nossa!!!!!!<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Nossa!!!!!!!!!!!!<br />

ESCRIVÃO: Nossa !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!<br />

218


PROFESSOR (continuando na dele sem ver o perigo): Quem<br />

duvida, tem que provar ...<br />

Ele é puxado.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Olha! Eu que não enxergo quase nada, estou<br />

vendo o que está vindo na nossa direção. Imagina você?<br />

PROFESSOR: Nossa!!!!!!!!!!!!! O que é aquilo?!?!?!?!?!?!?!!?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Aquilo é o guarda-roupa daquela astronauta que<br />

passou um tempo aqui no espaço.<br />

PROFESSOR: Não é aquilo desse lado, é aquilo do outro lado.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Caramba!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Não se apavorem,<br />

aquilo são os sapatos dela.<br />

ESCRIVÃO: Como você pode manter a calma numa hora<br />

dessas?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Porque eu tenho lido bastante livro de auto-ajuda.<br />

PROFESSOR: Quais? Quais?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: No momento estou me lembrando: “Não faça<br />

tempestade em copo d’água” de Richard Carlson. “O homem é<br />

aquilo que pensa”, James Allen. “Você pode curar a sua vida”,<br />

Louise Hay. “O poder do pensamento positivo”, Norman Vincent<br />

Peale. “Aprenda a ser otimista”, Martin Seligman. “Desperte o<br />

gigante interior”, Anthony Robbins.<br />

PROFESSOR (para o escrivão): Leia este último para ver se<br />

você consegue despertar alguma coisa nesse corpo.<br />

ESCRIVÃO: Ô acorrentado não adianta citar esses livros não,<br />

ele adora é “O alquimista” do Paulo Coelho; “Homens são de<br />

219


Marte, mulheres são de Vênus”, John Gray; “Descobrindo a sua<br />

estrela-guia”, Martha Beck.<br />

PROFESSOR: “Como fazer amigos e influenciar pessoas”,<br />

Carnegia.<br />

ESCRIVÃO: Como fazer amigos e influenciar pessoas? Isso é<br />

falta de sinceridade, “conquistar” um amigo e influenciá-lo para<br />

seu benefício pessoal. Truques mentais para um mundo altamente<br />

competitivo.<br />

PROFESSOR: Nesse momento a gente tem que apelar para<br />

tudo. O cequeta concentra aí, vê se vê alguma coisa nessa sua<br />

bola de cristal porque a massa que está quase em cima da gente<br />

não é nada fácil, muito pior do que a sua massa corporal.<br />

ESCRIVÃO (concentrado): Vejo que não corremos nenhum<br />

perigo. Vestuário feminino não fica se destruindo por aí, ele<br />

mesmo vai desviar para não ser avariado.<br />

PROFESSOR: Nesse ponto eu tendo a concordar com o que o<br />

isso está dizendo. Isso é verdade, se fosse um cuecão já teria dado<br />

tanta porrada nesta nave que já teríamos desintegrado.<br />

E a visão se cumpre o vestuário se desvia.<br />

PROFESSOR: Qual deve ser a nossa preocupação nesse<br />

momento com o planeta azul que vemos?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Se levarmos em conta a atual média do consumo<br />

dos habitantes da Terra seria necessário um planeta e meio.<br />

Imaginem se a China quiser aumentar o seu consumo para igual<br />

ao do americano?<br />

ESCRIVÃO: Pega mais leve.<br />

220


<strong>ESTRANHO</strong>: As preocupações com o meio ambiente estão cada<br />

vez mais adquirindo uma importância suprema porque a todo o<br />

momento se está defrontando com toda uma série de problemas<br />

globais que estão danificando a biosfera e a vida humana de uma<br />

maneira alarmante, e que pode logo isso se tornar irreversível.<br />

Quanto mais se estuda os principais problemas da época, mais se<br />

é levado a perceber que eles são interligados e interdependentes.<br />

Por exemplo, a extinção de espécies animais e vegetais numa<br />

escala massiva continuarão enquanto o Hemisfério Sul estiver sob<br />

o fardo de enormes dívidas.<br />

Há soluções para os principais problemas do tempo atual,<br />

algumas delas até mesmo simples. Mas requerem uma mudança<br />

radical nos pensamentos e valores, pois, se está agora no<br />

princípio de uma mudança de paradigma tão radical como foi a<br />

revolução copérnicoiana. Porém essa compreensão ainda não<br />

despontou entre a maioria dos líderes políticos. O<br />

reconhecimento de que é necessária uma profunda mudança de<br />

percepção para garantir a sobrevivência ainda não atingiu nem os<br />

educadores.<br />

O paradigma que está agora retrocedendo dominou a cultura atual<br />

por várias centenas de anos, durante as quais modelou a moderna<br />

sociedade ocidental e influenciou significativamente o restante do<br />

mundo. Esse paradigma consiste em várias idéias e valores<br />

entrincheirados, entre os quais na visão do universo como um<br />

sistema mecânico, a visão do corpo humano como uma máquina,<br />

a concepção da vida em sociedade como uma luta competitiva<br />

pela existência, a crença no progresso material ilimitado a ser<br />

obtido por intermédio de crescimento econômico e tecnológico.<br />

Todas essas suposições têm sido decisivamente desafiadas por<br />

eventos recentes. E, na verdade, está ocorrendo, na atualidade,<br />

uma revisão radical dessas suposições.<br />

O que é lamentável é que os governantes e professores não só<br />

deixam de reconhecer como distintos problemas estão interrelacionados,<br />

como eles também se recusam a reconhecer como<br />

as suas assim chamadas soluções afetam as gerações futuras. A<br />

partir do ponto de vista sistêmico, as únicas soluções viáveis são<br />

as soluções “sustentáveis”. Por exemplo, uma sociedade é<br />

221


sustentável quando satisfaz suas necessidades sem diminuir as<br />

perspectivas das gerações futuras.<br />

ESCRIVÃO: Qual é a nova visão?<br />

PROFESSOR: Para você o melhor seria a nova audição.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: O novo paradigma pode ser chamado de uma<br />

visão de mundo holística, que concebe o mundo como um todo<br />

integrado, e não como uma coleção de partes dissociadas. Pode<br />

também ser denominado de visão ecológica, desde que o termo<br />

“ecológico” for empregado num sentido muito mais amplo que o<br />

usual. A percepção ecológica profunda reconhece a<br />

interdependência fundamental de todos os fenômenos, e o fato de<br />

que enquanto indivíduos e sociedades os seres humanos estão<br />

todos encaixados nos processos cíclicos da natureza, e, em última<br />

análise, eles são dependentes desses processos.<br />

Os dois termos, “holístico” e “ecológico”, diferem ligeiramente<br />

em seus significados, e parece que "holístico" é um pouco menos<br />

apropriado para descrever o novo paradigma. Uma visão holística<br />

de uma bicicleta significa ver a bicicleta como um todo funcional<br />

e compreender, em conformidade com isso, as interdependências<br />

das suas partes. Uma visão ecológica da bicicleta inclui isso, mas<br />

acrescenta-lhe a percepção de como a bicicleta está encaixada no<br />

seu ambiente natural e social, de onde vêm às matérias-primas<br />

que entram nela, como foi fabricada, como seu uso afeta o meio<br />

ambiente natural e a comunidade pela qual ela é usada, e assim<br />

por diante. Essa distinção entre “holístico” e “ecológico” é ainda<br />

mais importante quando se fala sobre sistemas vivos, para os<br />

quais as conexões com o meio ambiente são muito mais vitais.<br />

A ecologia rasa é antropocêntrica, ou seja, é centralizada no ser<br />

humano. Ela vê os seres humanos como situados acima ou fora da<br />

natureza, como a fonte de todos os valores, e atribui apenas um<br />

valor instrumental ou de “uso” à natureza.<br />

Já a ecologia profunda não separa seres humanos ou qualquer<br />

outra coisa, do meio ambiente natural. Ela vê o mundo não como<br />

uma coleção de objetos isolados, mas como uma rede de<br />

222


fenômenos que estão fundamentalmente interconectados e são<br />

interdependentes. A ecologia profunda reconhece o valor<br />

intrínseco de todos os seres vivos e concebe os seres humanos<br />

apenas como um fio particular na teia da vida.<br />

Em última análise, a percepção da ecologia profunda é percepção<br />

espiritual ou religiosa. Pois, ela é consistente com a chamada<br />

filosofia perene das tradições espirituais, quer se fale a respeito<br />

da espiritualidade dos místicos cristãos, dos budistas, ou da<br />

filosofia e cosmologia subjacente às tradições nativas norteamericanas<br />

como essa inspirada no Chefe Seattle:<br />

“Isto sabemos.<br />

Todas as coisas estão ligadas<br />

como o sangue<br />

que une uma família ...<br />

Tudo o que acontece com a Terra,<br />

acontece com os filhos e filhas da Terra.<br />

O homem não tece a teia da vida;<br />

ele é apenas um fio.<br />

Tudo o que faz à teia,<br />

ele faz a si mesmo”.<br />

PROFESSOR: Esse chefe é cheio de sabedoria.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: A essência da ecologia profunda precisa estar<br />

preparada para questionar cada aspecto isolado do velho<br />

paradigma. Eventualmente, não é preciso desfazer de tudo, mas<br />

antes de saber isso, se deve estar disposto a questionar tudo.<br />

Portanto, a ecologia profunda faz perguntas profundas a respeito<br />

dos próprios fundamentos da visão de mundo e do modo de vida<br />

modernos, científicos e industriais orientados para o crescimento<br />

materialistas. Ela questiona esse paradigma numa perspectiva<br />

ecológica: a partir dos relacionamentos uns com os outros, com<br />

as gerações futuras e com a teia da vida da qual se é parte.<br />

A mudança de paradigmas requer uma expansão não apenas das<br />

percepções e maneiras de pensar, mas também de valores. É<br />

interessante notar aqui a notável conexão nas mudanças entre<br />

pensamento e valores. Ambas podem ser vistas como mudanças<br />

223


da auto-afirmação para a integração. Essas duas tendências - a<br />

auto-afirmativa e a integrativa - são, ambas, aspectos essenciais<br />

de todos os sistemas vivos. Nenhuma delas é, intrinsecamente,<br />

boa ou má. O que é bom, ou saudável, é um equilíbrio dinâmico;<br />

o que é mau, ou insalubre, é o desequilíbrio - a ênfase excessiva<br />

em uma das tendências em detrimento da outra. Agora, olhando<br />

para a cultura industrial ocidental, vê-se que enfatiza em excesso<br />

as tendências auto-afirmativas e negligencia as integrativas. Isso<br />

é evidente tanto no pensamento como nos valores, e é muito<br />

instrutivo colocar essas tendências opostas lado a lado.<br />

(pausa): Escrivão procure imaginar o que vou dizer numa tabela<br />

de dupla entrada:<br />

Pensamento Valores<br />

Autoafirmativo<br />

racional<br />

análise<br />

reducionista<br />

linear<br />

Integrativo<br />

intuitivo<br />

síntese<br />

holístico<br />

não-linear<br />

Autoafirmativo<br />

expansão<br />

competição<br />

quantidade<br />

dominação<br />

Integrativo<br />

conservação<br />

cooperação<br />

qualidade<br />

parceria<br />

(continuando): O poder, no sentido de dominação sobre outros, é<br />

auto-afirmação excessiva. A estrutura social na qual é exercida de<br />

maneira mais efetiva é a hierarquia. De fato, as estruturas<br />

políticas, militares e corporativas são hierarquicamente<br />

ordenadas. No entanto, há um outro tipo de poder que é mais<br />

apropriado para o novo paradigma: o poder como influência de<br />

outros. A estrutura ideal para exercer esse tipo de poder não é a<br />

hierarquia, mas a rede, que é a metáfora central da ecologia. A<br />

mudança de paradigma inclui, dessa maneira, uma mudança na<br />

organização social, uma mudança de hierarquias para redes.<br />

Toda a questão dos valores é fundamental para a ecologia<br />

profunda; é, de fato, sua característica definidora central.<br />

Enquanto que o velho paradigma está baseado em valores<br />

224


antropocêntricos, centralizados no ser humano, a ecologia<br />

profunda está alicerçada em valores egocêntricos, centralizados<br />

na Terra. E uma visão de mundo que reconhece o valor inerente<br />

da vida não-humana. Todos os seres vivos são membros de<br />

comunidades ecológicas ligadas umas às outras numa rede de<br />

interdependências. Quando essa percepção ecológica profunda<br />

torna-se parte da consciência cotidiana, emerge um sistema de<br />

ética radicalmente nova.<br />

Essa ética ecológica profunda é urgentemente necessária nos dias<br />

de hoje, e especialmente na ciência, uma vez que a maior parte<br />

daquilo que os cientistas fazem não atua no sentido de promover<br />

a vida nem de preservar a vida, mas sim no sentido de destruir a<br />

vida. Com os físicos projetando sistemas de armamentos que<br />

ameaçam eliminar a vida do planeta, com os químicos<br />

contaminando o meio ambiente global, com os biólogos pondo à<br />

solta tipos novos e desconhecidos de microorganismos sem saber<br />

as conseqüências, com psicólogos e outros cientistas torturando<br />

animais em nome do progresso científico - com todas essas<br />

atividades em andamento, parece da máxima urgência introduzir<br />

padrões “ecoéticos” na ciência. Os cientistas são responsáveis<br />

pelas suas pesquisas não apenas intelectual, mas também<br />

moralmente. Dentro do contexto da ecologia profunda, a visão<br />

segundo a qual esses valores são inerentes a toda a natureza viva<br />

está alicerçada na experiência profunda, ecológica ou espiritual,<br />

de que a natureza e o eu são um só.<br />

O que tudo isto implica é o fato de que o vínculo entre uma<br />

percepção ecológica do mundo e o comportamento<br />

correspondente não é uma conexão lógica, mas psicológica. A<br />

lógica não persuade de que se deveria viver respeitando certas<br />

normas, uma vez que se é parte integral da teia da vida. No<br />

entanto, se tendo a percepção ou a experiência ecológica<br />

profunda de se ser parte da teia da vida, então se estará (em<br />

oposição a se deveria estar) inclinado a cuidar de toda a natureza<br />

viva.<br />

Quase mortos de tanto escutar irrompe em aplausos dentro da<br />

cabeça de porco abafada e comprimida que a deixa mais quente<br />

225


ainda só que agora com calor amoroso. A única dúvida que ficou<br />

foi por ele ter agradado ou acabado com aquele papo.<br />

ESCRIVÃO: Puxa, ficou tudo visível.<br />

PROFESSOR: Milagre! Êpa, isso é grave!!<br />

ESCRIVÃO: Nossa a gravidade de novo!!! O que está<br />

acontecendo?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Estamos voltando para a Terra, parece que não é<br />

dessa vez que a China manda alguém na Lua. Diga-se de<br />

passagem que estavam mandando dois voluntários, um americano<br />

e outro francês, e um coagido brasileiro.<br />

E a nave começa a reentrar na atmosfera seguida por uma<br />

quantidade razoável de detritos espaciais assassinos.<br />

PROFESSOR (para o quem acabara de falar): Você continua<br />

um sujeito estranho, alguém que vive fora da realidade. Por acaso<br />

você tem algum vínculo empregatício com o governo chinês?<br />

Então, você também é um voluntário, não tem nada aqui de<br />

obrigado e forçado.<br />

ESCRIVÃO: Não liga para esse estranho não, ele é influenciado<br />

pela Lua<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (pensando): Que lunático sou eu se fui mandado<br />

para o espaço com dois desequilibrados - um maníaco<br />

homossexual e um visionário sem sonho - que não chega a Lua,<br />

mas quando chegar na Terra se eu não correr corro o risco de ser<br />

reconhecido como um equilibrado.<br />

Quem diria que mais tarde um brasileiro iria conseguir ganhar<br />

Nobel em todas as categorias ...<br />

226


ESCRIVÃO: O que fica quando a morte nos ronda? Adianta<br />

tanto conhecimento e cultura como o acorrentado possui? Para<br />

onde ele irá lá será considerado ...<br />

227


228


Neste sonho se atinge o estágio dois do quarto e último período e<br />

a sua forma já surge com uma história integrada dentro de<br />

espaços e datas mais precisa e fatos mais verídicos. Neste<br />

período de sono alguém é considerado ...<br />

229


230


DO LADO ESPIRITUAL<br />

231


232


O DESCONHECIDO<br />

Num LOCAL SAGRADO exposto a ULTRA-RELIGIÃO estava o<br />

barbado algemado desdentado cueiroado marcado herniado<br />

chateado pintado engarrafado acorrentado e espetado<br />

conversando consigo mesmo ou quem sabe com uma voz interior<br />

ou uma voz sem corpo ou ainda uma vooozzz dooo aaallééémmm.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Está bem, está bem, eu já ouvi que fui eu que<br />

armei a estratégia de quando chegasse na Terra iria sair correndo<br />

para não correr o risco de ser reconhecido como um equilibrado,<br />

um atentado, só que tudo se deu ao contrário fiquei parado,<br />

aloucado, ao ser espetado por um detrito espacial feminino. Eu lá<br />

ia saber que aquele assassino catucador de cutículas ia vir atrás de<br />

mim do espaço, já basta quando minha esposa o usava contra<br />

mim nas suas investidas pelos meus pés e mãos. Dessa vez não<br />

consigo nem mais sentar, com esse encravado ...<br />

(paralisa, na melhor das hipóteses, por estar escutando a voz): O<br />

Messias, meu Mestre, quer que eu pare de reclamar e ver o que eu<br />

tenho em comum consigo? Está beeem. Muito bem, vamos ver o<br />

que eu me lembro.<br />

E começa a pensar, se mexe para um lado, agora é para o outro,<br />

senta, agora levanta, até que ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (recordando): - Uma das características da minha<br />

personalidade, desde criança, é um sentir emocionante em ter<br />

uma missão a cumprir neste universo que, não explicitada, me<br />

impulsionava a buscá-la. Começou com a Umbanda em desejar<br />

fazer o bem e combater o mal por meio dos orixás; em seguida<br />

veio a fase Católica e Espírita em querer o reino de Deus segundo<br />

o amor e a caridade de Cristo; depois passei pela fase Comunista<br />

em lutar em prol de um mundo sem classes sociais estabelecido<br />

pelo princípio de cada um segundo as suas capacidades a cada um<br />

segundo as suas necessidades; por último, aos 47 anos de idade, a<br />

233


Messiânica na construção do Paraíso na Terra orientado pela<br />

Filosofia Religiosa do Messias.<br />

- A individualidade do Mestre também indicou este aspecto<br />

assinalado por sua esposa que escreveu: “Foi em 1928, com 48<br />

anos de idade que ele percebeu sua missão espiritual e encerrando<br />

as atividades comerciais iniciou nova vida. Eu diria que sua<br />

missão não foi determinada nesse momento, mas antes, antes<br />

mesmo do seu nascimento.”<br />

- Outra característica é a de ser um apreciador de música, ópera e<br />

literatura, desde pequeno, com meu avô poliglota e escritor<br />

possuidor de um grande acervo de discos ou com meu primo<br />

lixeiro aonde ia ao Teatro Municipal através de convites<br />

proporcionados por um tenor deste teatro, nosso vizinho no<br />

subúrbio e que era mecânico de automóveis para poder<br />

sobreviver. Por essa época, eu freqüentava a biblioteca do bairro<br />

e também fazia poemas e crônicas anonimamente sob o título de<br />

“Joãozinho que vive e escreve”. Mais tarde, em 2001, iria compor<br />

Waka para seus participantes de seu grupo numa festa de<br />

confraternização de fim de ano.<br />

- O perfil do Mestre também apresentou esta particularidade que<br />

foi descrito por sua esposa: “Ouvia com freqüência música<br />

ocidental dos grandes clássicos, mas não apreciava as de fundo<br />

triste, nostálgico e pesado. Deliciava-se em ouvir o "Messias"<br />

(Handel); "Carmem" (Bizet), "Aida" (Verdi), "Guilherme Tell"<br />

(Rossini). Apreciava também célebres valsas, e uma variedade de<br />

marchas e composições dos grandes compositores. Fiquei<br />

surpresa a primeira vez em que o vi com um sobrinho, marcando<br />

alegremente com as mãos e os pés, o ritmo das músicas.”<br />

“Quando, durante as refeições, ele ouvia uma música de sua<br />

preferência, como por exemplo, o "Danúbio Azul" de Johan<br />

Strauss, acompanhava o seu ritmo, batendo Com o "hashi". O seu<br />

semblante, nessas horas, era realmente, de muita satisfação difícil<br />

de descrever. Mesmo que entrássemos no recinto com fisionomia<br />

séria, ao vermos aquele rosto bem-humorado, sentíamos vontade<br />

de rir. Na época em que dedicava na residência do meu<br />

doutrinador, suas filhas ainda eram solteiras. Assim, quando<br />

234


tocava música no rádio, como a Opera "Carmem", toda a família<br />

reunida acompanhava o ritmo. A hora das refeições era realmente<br />

alegre.” “Quando havia programação de concertos, ou quando as<br />

Companhias de ópera ou Grupos de ballet faziam temporada no<br />

Japão, ele era um dos primeiros a comprar os ingressos. Não<br />

apreciava somente a música e os espetáculos artísticos, mas<br />

também a atmosfera geral que sentia num teatro.” “Tinha muitas<br />

inspirações artísticas. Quando iniciava a composição de algum<br />

poema, dedicava-se inteiramente a esta realização, com zelo<br />

extraordinário. Por exemplo: quando começou a compor "Waka"<br />

(poema com 31 sílabas), por não estar ainda habituado, absorviase<br />

tanto no trabalho, que ficava até duas ou três horas da<br />

madrugada.” “Próximo à sua residência, alugou uma casa para<br />

moradia dos missionários que faziam seus próprios trabalhos<br />

caseiros e dedicavam-se diariamente à venda e expansão do nosso<br />

periódico, na cidade de Tóquio e arredores. O público naquele<br />

tempo, ainda com pouco entendimento do real significado da<br />

nossa atividade, não aceitava facilmente os nossos jornais e a<br />

nossa presença.”<br />

- Uma outra característica é estar sempre alegre, gostar de rir,<br />

quando adolescente fazia um jornal de humor no bairro, adulto<br />

redigi um livrinho intitulado “Humor brasileiro”.<br />

- “O Mestre detestava terminantemente a melancolia - esse era o<br />

seu caráter. Sempre que eu ou os demais dedicantes, sem<br />

percebermos, ficávamos pensativos e com a fisionomia<br />

deprimida, Ele dizia: "Por que estão com essa cara? O nosso lar é<br />

paradisíaco, portanto, devem manter uma fisionomia alegre".<br />

“Certa vez, tendo ouvido um "rakugo" muito divertido na Sede do<br />

bairro de Sakimi-tyo, quis contá-lo, pensando em distrai-lo num<br />

momento monótono, indaguei-lhe: "Mestre, o senhor quer ouvir<br />

um ‘rakugo'? Se já tiver ouvido, não contarei". Citei o título, e ele<br />

confirmou não conhecê-lo. Contei-lhe, então, e ele riu tanto que<br />

as lágrimas escorriam pelo rosto.” “Dedicava-se ainda à prosa<br />

humorística, incluindo aforismos e paródias. Com isso mostrava a<br />

necessidade do riso na vida humana. Tinha talento especial, fora<br />

do comum mesmo, para irradiar alegria em sua volta. Se um<br />

235


indivíduo quer fazer outros rirem, precisa ter jeito e uma<br />

habilidade natural inata, e esta qualidade especial ele possuía<br />

indiscutivelmente.” “Para encorajar e confortar esse povo, o<br />

Mestre formou a “Sociedade do Riso Feliz”. Inspirava-os a<br />

trabalhar mais e melhor pela causa de Deus, num ambiente de<br />

constante alegria e solidariedade.”<br />

- Uma quarta característica é ser um permanente freqüentador de<br />

cinema a ponto de geralmente saber o encadeamento e final do<br />

filme, bem como um criador e atuante no roteiro, produção,<br />

direção, ator, fotografia, som, arte e edição de vídeos, leituras<br />

dramatizadas e peças de teatro.<br />

- “Nos dias ímpares, após o jantar, exibiam-se filmes para<br />

recreação dos servidores, em Sakemi, e o Mestre também<br />

comparecia, acompanhado de esposa. Ele gostava muito de<br />

cinema, e costumava dizer: "Indo ao cinema, ficamos mais<br />

inteligentes". Caso algum servidor não assistisse ao filme devido<br />

aos seus afazeres, ele até o repreendia: "Devia ter ido e deixado o<br />

serviço da cozinha para depois. Não se devem perder filmes<br />

como esses". “[a esposa do Mestre disse:] Nós víamos muitos<br />

filmes ocidentais. Eu sempre me esquecia do que via, mas ele<br />

lembrava-se de todas as particularidades, não somente dos<br />

enredos, mas também dos atores, atrizes e diretores. Durante a<br />

sessão, ele às vezes cochilava, mas apesar disso, podia contar<br />

tudo sobre os filmes. Alguma parte de sua mente devia ficar<br />

desperta enquanto dormia. Quando os filmes eram interessantes,<br />

ele os assistia atentamente.” ”“ Perguntei-lhe o que significava<br />

"sob seus pés". Disse-me: "significa que a Imperial Cidade de<br />

Tóquio um dia será um mar de chamas. Vocês; devem procurar<br />

ser mais perspicazes para entender todo o assunto por uma<br />

simples palavra. Caso contrário, não poderão ser eficientes<br />

instrumentos de Deus, na obra Divina".”<br />

- Quinta é ser habitualmente franco e sincero.<br />

- “Ele tinha uma atitude franca e sincera com todos, mesmo com<br />

aqueles que encontrava pela primeira vez, porque ele acreditava<br />

mesmo que todos os homens são filhos de Deus.”<br />

236


- Sexta é constantemente estar atento o que acontece no mundo,<br />

na época da ditadura militar sintonizando de madrugada estações<br />

de rádios no exterior, adquirir revistas estrangeiras, procurar<br />

viajar, aprender a ler nas entrelinhas e orelhas de livros para saber<br />

selecionar que livros comprar, escutar noticiário na TV ao tomar<br />

banho e fazer oferendas, assistir programas, ler jornal<br />

diariamente. Ao ir fazer análise com a preocupação de não<br />

misturar seus problemas com sua atividade política, deixou sua<br />

psicóloga preocupada com a intensidade de seu pensar e agir, e de<br />

não gostar de desatenção. Por essa época, já tinha feito cursos<br />

sobre vários assuntos, como Teilhard Chardin, Cibernética,<br />

Parapsicologia, História, Economia, Filosofia, etc. Desde que<br />

entrou para Universidade foi escolhido para ser o professor do<br />

Pré-Vestibular desta, além disso, deu também várias aulas<br />

particulares, o que lhe valeu a obter uma extensa biblioteca sobre<br />

assuntos diversos. Quando ia para as férias, um lugar aleatório,<br />

levava uma mala cheia de livros a fim de ficar se inteirando de<br />

diversas coisas.<br />

- “Mestre acreditava que era imperativo acompanhar os<br />

acontecimentos do mundo. Nas suas conversas, no uso de meios<br />

modernos de comunicação, como a televisão e o rádio, ele<br />

absorvia os conhecimentos atuais. Seu programa era<br />

especialmente organizado para coincidir com os horários do<br />

rádio. Ele planejava seu tempo de modo que pudesse ouvir os<br />

noticiários enquanto tomava banho, fazia a barba, comia etc.,<br />

horas em que ele não podia ser interrompido.” “É curioso o fato<br />

dele ouvir rádio até mesmo durante o banho, mas ele o fazia<br />

ainda, que estivesse extremamente atarefado; ouvia, sobretudo, os<br />

noticiários. Isso mostra seu grande interesse, como fundador de<br />

uma religião, em estar sempre a par das mudanças ocorridas no<br />

mundo. Tomando conhecimento dessas mudanças, vinham-lhe à<br />

mente, com toda a clareza, as soluções adequadas a cada caso. Ao<br />

ouvir, por exemplo, o programa "Doutor Rádio", demonstrava um<br />

interesse extraordinário e ás vezes até fazia anotações.” “O<br />

Mestre conservava sua mente alerta durante um passeio, tomando<br />

chá ou conversando com outras pessoas. Nunca permitia, sua<br />

mente ficar exausta ou adormecida. Eis uma das razões de poder<br />

237


agir tanto durante sua vida.” “Na hora da saudação, ele<br />

observava-os rapidamente. Quando percebia que algum deles<br />

tinha o olhar distraído, determinava-lhe alguma tarefa. Dizia-lhe,<br />

por exemplo: "Traga-me o fósforo" ou "Deixei um livro ali: vá<br />

buscá-lo". O olhar distraído significava que havia um desvio no<br />

pensamento do servidor, de modo que, se nesse momento ele era<br />

incumbido de alguma tarefa, geralmente cometia uma falha. Aí o<br />

Mestre lhe fazia uma severa advertência e ele despertava,<br />

recuperando a atenção. Assim usava freqüentemente esse método<br />

de advertência. Por isso os servidores esforçavam-se para serem<br />

sempre cuidadosos e atentos.”<br />

- Sétima é não perder tempo, certa vez cheguei a ser descortês<br />

numa conversa inútil com um vizinho que armava uma teia de<br />

casos na medida em que ia conversando, dei-lhe as costas e fui<br />

embora sem dar explicação no meio de uma fala com um<br />

conectivo pendente.<br />

- “No que Mestre mais se devotou, foi no sentido de como<br />

expandir a obra Divina para a salvação do mundo e por esse<br />

motivo ele não perdia um só minuto. Foi um homem que se<br />

dedicou de corpo e alma à sua missão.” “Ele planejava as horas<br />

do seu dia, e dava-lhes o melhor uso. Talvez pensasse que de<br />

outra maneira não conseguisse realizar sua grande tarefa. Ele não<br />

permitia conversas inúteis com os que encontrava, mas sempre os<br />

ouvia com boa vontade e seriedade.” “Quando sobrava tempo,<br />

conversava sobre várias coisas comigo. Certo dia, ele me disse.<br />

"O homem deve sempre fazer coisas úteis", e prosseguiu: "Eu sou<br />

um corpo importante que trabalha para Deus. Por isso, mesmo<br />

nas horas de folga, jamais me divirto com coisas improdutivas".”<br />

Ele pára, para dialogar com aquela voz.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (interrupção): Devo parar Mestre? Acha que não,<br />

mas será que isso não vai parecer que estou procurando mostrar a<br />

todos os meus próprios méritos e daí estar revelando mesquinhez<br />

de espírito? O quê! “Deixe de apego. Não importa o que os outros<br />

238


pensem, eles deveriam estar fazendo algo semelhante”. É isso<br />

mesmo o que eu ouvi? Está bem, está bem, vou continuar.<br />

(continuando): - Oitava é ter a pontualidade como algo natural.<br />

Ultimamente tenho dedicado sob intenso cansaço a fim de<br />

cumprir a meta estabelecida. Isso ocorre dormir em torno de<br />

meia-noite e acordar cerca de quatro horas da manhã.<br />

- “Por longo tempo eu julgava que a pontualidade do Mestre era<br />

um hábito natural; mas, mais tarde percebi que ele tinha se<br />

esforçado muito para se disciplinar.” “Era extremamente rigoroso<br />

em relação a horário. Não só por ter inúmeras ocupações, mas<br />

porque ensinava aos fiéis que também o cumprissem à risca,<br />

como Caminho a ser respeitado pelo homem. Assim, seus<br />

trabalhos diários eram divididos com a perfeição dos ponteiros de<br />

um relógio.”<br />

- Nona é ordinariamente ser rápido e enérgico, pondo as coisas<br />

logo em prática sem hesitação. Isso valeu a me tornar líder<br />

estudantil, abrir campo de pesquisa, diretor de Instituto, paraninfo<br />

e patrono de turma, etc.<br />

- “O Mestre trabalhava rápido e energicamente. Estas qualidades<br />

eram características especiais dos edokos, os nascidos e criados<br />

em Tokyo, e assim sendo, era habitual para ele terminar num ano<br />

o que outras pessoas levariam dez para fazer.” “Essa maravilhosa<br />

habilidade era uma das características que o faziam destacar-se.<br />

Enquanto não estávamos ainda na era do espaço, ele fazia as<br />

coisas na velocidade dessa era. Logo que uma idéia lhe ocorria,<br />

imediatamente a punha em prática.” “Aprendi em breve que se<br />

quisesse alguma coisa, tinha que me decidir rapidamente. Quando<br />

o fazia, o Mestre, meu pai, comprava-o para mim. Com isso eu<br />

estava sendo treinada para ter decisões rápidas.”<br />

Décima é de ser bom ouvinte para obter conhecimento e saber<br />

conversar com qualquer pessoa.<br />

- “O Mestre era realmente um bom ouvinte. Quando convidava<br />

alguém, ficava sempre atento para deixar que aquela pessoa<br />

falasse, dando-lhe prioridade no diálogo. Conversava de forma<br />

239


agradável e sorridente, colhendo novos conhecimentos. Em se<br />

tratando de um assunto que ele não conhecia, ficava realmente<br />

muito interessado. Fazia perguntas com seriedade, adotando um<br />

comportamento de quem falava com um mestre. Se ele era assim<br />

nos seus últimos anos de vida, acredito que quando jovem fazia<br />

muito mais do que podemos imaginar.” Messias dizia: “Vocês<br />

precisam aprender a conversar com qualquer pessoa, pois do<br />

contrário não poderão ser chamados de homens modernos; afinal,<br />

o ser humano que não sabe falar, não é ativo e nem progride.”<br />

- Décima primeira regularidade é a criatividade e procurar estar<br />

sempre um passo a frente. Por exemplo, inovar na didática, e a se<br />

envolver em várias situações complicadas, uma delas foi realizar<br />

uma tese que só foi aceita dez anos mais tarde.<br />

- “Desse modo, deste jovem, ele foi um ardoroso inovador, tendo<br />

feito projetos de coisas originais e surpreendentes.”<br />

- Décima segunda é horror a ter que voltar.<br />

- “Para construir as ruas, por exemplo, ele não gostava daquelas<br />

que tinham retorno; mesmo as passagens para pedestres eram<br />

projetadas de tal forma que aquele era omitido.” “Era um andar<br />

muito rápido e, esquecendo-nos até de dobrar a esquina,<br />

seguimos em frente. Como o Mestre não gostava de voltar para<br />

trás, demos uma volta maior e, por fim, chegamos ao cinema e<br />

assistimos ao filme.”<br />

- Décima terceira é não deixar nada pela metade e não perder a<br />

coragem e o poder de adaptação o que me levou a fazer uma<br />

viagem pelo Brasil e alguns países da América do Sul sem<br />

dinheiro nenhum, apenas de carona.<br />

- “Mestre era uma pessoa que se concentrava excessivamente em<br />

qualquer coisa. Não só ele, mas todos os seus familiares eram<br />

habilidosos. Ele dizia freqüentemente: "Não sou muito habilidoso<br />

e isso não é bom". Dessa forma, era uma pessoa que não<br />

abandonava as coisas pela metade, e enquanto não concluía o que<br />

havia iniciado, não se sentia satisfeito.” “Quando algum trabalho<br />

começado não ia bem, Messias mudava imediatamente seu curso.<br />

240


Nessas ocasiões nunca perdia a coragem, seguia sempre um<br />

melhor curso de ação e passo a passo, atingia sua meta. Eu tinha<br />

grande admiração por sua facilidade de adaptação”.<br />

- Décima quarta é ser organizado e irritado ao não encontrar a<br />

coisa no lugar.<br />

- “Numa ocasião, ele nos ensinou calmamente: "As pessoas<br />

devem estar sempre atentas em deixar os seus objetos em ordem<br />

para tê-los à mão quando necessário, de tal modo que possa<br />

apanhá-los livremente, mesmo na escuridão. Não se importar em<br />

deixar as coisas em desordem embota a mente".<br />

Pára novamente.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (interrupção): Estou sem coragem de continuar.<br />

Ah! “Os outros que ...”. Está bem, está bem, não se fala mais<br />

nisso, vou continuar.<br />

(continuando)<br />

- Décima quinta é seguir o programa que acredita, como escrever<br />

um livro, fazer ginástica, principalmente caminhar diariamente<br />

por uma hora.<br />

- “Uma vez ele disse: "Como qualquer outra pessoa, eu me sinto<br />

cansado às vezes e gostaria de descansar em vez de trabalhar.<br />

Mas sempre sigo meu programa. De outro modo eu não estaria<br />

fazendo o que mando meus membros fazer". Assim aprendi que<br />

quando ele dava um Ensinamento aos outros, é que ele sempre o<br />

seguia. Isso tomou-me muito feliz e aumentou o meu respeito<br />

pelo Mestre.” “Por exemplo, se ele achava que as caminhadas<br />

eram boas para regular as condições do corpo e determinara fazêlas<br />

por duas horas diárias, realmente assim praticava.”<br />

- Décima sexta é a de que gosto de comer quero comer todo dia,<br />

vide sorvete de coco, vitamina de banana. Não gostar de maça.<br />

Não comer fora dos horários das refeições.<br />

- “Cadê, o tempura? - Como servi este prato ontem, hoje não<br />

posso repetir o cardápio. - Só porque comi ontem será que não<br />

posso comer hoje também? Tenho vontade de comer todos os<br />

241


dias aquilo de que gosto. Escreva “O Mestre gosta de tempura, e<br />

cole no seu quarto”. Quando eu mandar continue fazendo até que<br />

eu recuse.”. “Tinha uma preferência especial por batata doce<br />

cozida a vapor, que lhe serviam infalivelmente todas as manhãs.”<br />

“Quanto a maçã, ele dizia: ‘A aparência é boa, mas o seu<br />

conteúdo não é bom’”. “Este corpo é meu e ao mesmo tempo não<br />

é. Assim, eu não como nada fora dos horários, pois tenho de zelar<br />

pela minha saúde”.<br />

- Décima sétima é não ter casado mesmo quando os interesses<br />

financeiros, status e poder eram proeminentes.<br />

- “Certo senhor possuidor de considerável fortuna em negócios de<br />

moinho e desejando preservá-la aos seus descendentes, pediu a<br />

ele que ficasse noivo de sua filha e se tornasse seu filho adotivo.<br />

A sua resposta foi categórica: "Eu nunca mudarei o meu<br />

sobrenome e estou determinado a sozinho, ter meu próprio.””<br />

- Décima oitava criar os filhos sem descuido, sem preferência por<br />

nenhum, porém com liberdade deles escolherem sua carreira,<br />

religião, time de futebol, etc. O mesmo quando foi chefe em<br />

relação aos seus subordinados.<br />

- “O Mestre deixava seus filhos à vontade. Em assuntos de crença<br />

religiosa, ele nunca pressionava para aceitarem suas convicções.<br />

Ele nos permitia fazer o que mais gostássemos. Ele nos dizia:<br />

"Cada um deve fazer aquilo que mais deseja: mas, atos errados<br />

nunca devem ser cometidos"”.“Naquela época, o Mestre dava<br />

muita liberdade aos servidores; entretanto, uma vez atribuída<br />

determinada tarefa, sempre verificava o que fora feito, não<br />

permitindo nenhum descuido.” “Ele não praticava a parcialidade<br />

nem deixava passar desleixos, não importando quem estivesse<br />

envolvido, família ou servidores.”<br />

- Décima nona quando tive oportunidade criei plantação e<br />

desenvolvi jardim.<br />

- - “Enquanto o Mestre viveu no Hozan-so em Tamagawa,<br />

converteu as terras espaçosas em jardins de flores, campos para<br />

plantações de chá e legumes, e campos de arroz. Ele encorajava<br />

242


os jovens trabalhadores, tomando parte no trabalho. Ao mesmo<br />

tempo estudava a consistência e a natureza química do solo.”<br />

- Vigésima quando chegava do trabalho ia até a favela juntamente<br />

com os meus filhos pegar os garotos de lá para correrem comigo,<br />

era um momento muito aguardado numa algazarra de<br />

contentamento deles e seus familiares, onde se escutava várias<br />

atenções como a de pôr a camisa para não pegar resfriado,<br />

cuidado ao atravessar a rua. O mesmo acontecia nos banhos de<br />

cachoeira e pedaladas em bicicletas plenas de aventura. Até hoje<br />

meus filhos e essas crianças, hoje adultos, recordam muito feliz<br />

daqueles momentos.<br />

- “Durante seu passeio, nós crianças o seguíamos pulando e<br />

rolando no chão alegremente, às vezes correndo atrás de libélulas<br />

que apareciam perto da tarde com suas asas transparentes,<br />

adejando o ar graciosamente. Eu ainda me lembro da felicidade<br />

que sentia durante esses passeios com ele.”<br />

- Vigésima primeira foi que me dediquei à formação de<br />

missionários a ponto de iniciar escrito intitulado “Dicionário<br />

Epistemológico do Mestre”.<br />

- “Depois da interrupção de sua prática “terapêutica” o Mestre<br />

dedicou-se à formação de missionários que o auxiliariam no<br />

futuro da grande missão.”<br />

Agora é a voz que se pronuncia.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (interrupção): Devo parar, por quê?<br />

Silêncio.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (interrupção): Confessa Mestre, nem o senhor está<br />

agüentando, não é isso?<br />

(recebendo outra incumbência): Dizer tudo que já fiz na minha<br />

vida? Aí é que vão dizer ... Ah sim! “Pare de se preocupar. Eles<br />

sempre vão dizer alguma coisa, se você não disser vão falar que é<br />

teórico sem prática, se disser vão falar que é um prático sem<br />

243


teoria, ou se ficar esperando o que eles querem ouvir ...”. Nossa!<br />

É isso que vai acontecer? Pois bem, então eu gostaria de me ater<br />

apenas a última, ou seja, a formação de missionários, para não ...<br />

“Quando é que vai parar com esse apego de preocupação e<br />

covardia? Os que prestarão atenção com alegria são muitos<br />

poucos, a massa fechará os ouvidos e os olhos de tanto tédio.<br />

Você tem que falar e escrever para poucos, contente-se, aceite e<br />

obedeça.”<br />

(expondo)<br />

Eu gostaria de me ater apenas a formação de missionários, no<br />

entanto para dar uma visão mais abrangente vou registrar os<br />

oferecimentos de entregas de tempo, talento e trabalho, como nos<br />

devotamentos aos serviços religiosos em unidades e solos<br />

sagrados, os cuidados com as orações e cultos, os relatos de<br />

experiências de fé, os estudos e práticas dos ensinamentos, as<br />

ofertas de donativos, os darem assistências religiosas e as<br />

realizações de orientações e encaminhamentos.<br />

No que se refere aos serviços religiosos em unidades e solos<br />

sagrados, em torno de trinta. Como me tornei messiânico no<br />

segundo semestre eu fui nesse período ledor, vigia e jornalista do<br />

Jornal Rio de Luz. No ano seguinte me tornei missionário na<br />

função de assistente de grupo numa unidade de nível um, onde<br />

comecei cuidando de três famílias, depois de moradores de<br />

algumas ruas, bem como dediquei na limpeza dos banheiros desta<br />

unidade e da regional. Próximo ano, a unidade passou para um<br />

nível mais elevado, minha missão aumentou e passei a ser<br />

encarregado de assistentes, bem como no fim de semana onde ia<br />

veranear me tornei responsável pela unidade local. Outro ano, a<br />

unidade atingiu um nível ainda mais alto, e eu coordenador de<br />

encarregados. Mais um ano, sou indicado a ministro, dedico na<br />

construção do solo sagrado brasileiro por uns três anos e vou<br />

peregrinar no solo sagrado no Japão, bem como repito dois anos<br />

depois. Anos posteriores, me torno ministro sendo responsáveis<br />

por diversas áreas, bem como pelos setores da regional. Mais<br />

tarde, fui responsável pela juventude, atividades culturais e<br />

244


artísticas e finalmente pelo que hoje chamamos de Centro<br />

Cultural Paraíso Terrestre no setor de ensino.<br />

No que diz respeito os cuidados com orações e cultos foram para<br />

mais de vinte mil, entre pedidos de graça, agradecimentos,<br />

diários, especiais, cemitérios, levando-se em conta que entronizei<br />

altar de Deus e dos meus antepassados quatro anos depois de me<br />

tornar messiânico.<br />

No que tange aos relatos de experiências de fé. Em sete anos de<br />

membro já havia relatado dezoito experiências entre unidades<br />

religiosas, regional e solo sagrado em cultos de gratidão mensal e<br />

outros. Quando fiz dois anos de membro escrevi “Meus dois<br />

primeiros anos com Deus e Messias”, uma apostila de 92 páginas,<br />

onde relato 70 experiências de fé que vivenciei nestes dois anos.<br />

Eis o que escrevi na introdução desta apostila:<br />

(pausa)<br />

“Através delas compreendi que benefícios inesperados não são<br />

coincidências, mas sim acontecimentos permitidos por Deus e<br />

Messias como comprovei que todas as coisas têm espírito e que<br />

devemos ter muito zelo com o que é sagrado.<br />

Estes dois anos, de 25 de agosto de 1991 a 25 de agosto de 1993,<br />

também foram plenos de experiências pessoais da atuação do<br />

Mundo Espiritual. Uma dessas foi no papel preponderante que<br />

meus antepassados tiveram na minha conversão. Outras em<br />

avisos de falecimentos e riscos de vida que iriam ocorrer e de<br />

aflições que estavam acontecendo. Algumas outras em<br />

informações a respeito da situação de falecidos e de interações<br />

entre linhagens. As demais em orientações e parabenizações por<br />

meio de intuições, fatos e sonhos.<br />

Minhas atividades fundamentais foram em Oração e Culto,<br />

Johrei, Ensinamento e Oferta de Gratidão.<br />

Entendendo qualquer comunicação a Deus e Messias como<br />

oração, diria ter realizado mais de mil orações; em termos de<br />

culto devo ter participado de 300, uns 40 como oficiantes, 30<br />

como ledores e 60 como solicitadores. Realizando estas orações e<br />

participando destes cultos pude observar: abandono de apego,<br />

resposta de como distribuir donativo entre os cultos, superação de<br />

245


estado de coma, eliminação de infecção hospitalar, obtenção de<br />

emprego e casa para alugar, estimulação a conversão,<br />

minimização de perda com acidente, aprovação em exame tida<br />

como impossível, paralisação de som inoportuno, abrandamento<br />

de agonia, encerramento de relação amorosa complicada e<br />

surgimento de mais tempo para dedicar.<br />

O recebimento de mil Johrei, além de ter me afastado da idéia de<br />

loucura e suicídio, proporcionou-me entre outras coisas:<br />

aproximação de meus antepassados e da crença do Mundo<br />

Espiritual. Já a ministração de mais de dois mil Johrei fez-me ver:<br />

cura de câncer, insônia e abscesso de dente, eliminação de crise<br />

de asma, sinusite, psoríase e arteriosclerose, reabilitação física,<br />

reconciliação de casal, liberação aos remédios, aceleração de<br />

purificação, facilitação de parto, desvelamento de tristeza,<br />

expulsão de veneno ingerido secretamente, afastamento de gás<br />

nocivo, encosto, briga e da causa do não funcionamento de carro.<br />

O estudo e prática de ensinamento levaram-me a: encontrar<br />

Messias como salvador; caminhos para a superação de<br />

problemas, atração de pessoas à Obra Divina e aceitação de<br />

doença, conflito, roubo e acidente como purificação; permissão<br />

de limpar imagens do altar e de ultrapassar fobias e mal-estar;<br />

vencer pelo perder e ceder.<br />

Oferta de Gratidão com respeito a donativo culminou no<br />

oferecimento de um terço do salário, com relação à dedicação por<br />

trabalhos em Solo Sagrado Brasileiro e em quatro unidades<br />

religiosas.<br />

O oferecimento de donativo fez-me vencer a pobreza espiritual da<br />

avareza, concretizar materialmente o amor, acabar com a solidão,<br />

preocupação financeira, pressão alta, tensões e dificuldades de<br />

moradia e alimentação, colaborar na construção do Paraíso<br />

Terrestre, salvação de pessoas e até de ganho de mais dinheiro.<br />

Dedicando em Guarapiranga, além de plantar, cavar e transportar,<br />

aprendi que o amor faz crescer e recuperar, bem como senti a<br />

força do local onde será o Templo e a morada dos antepassados.<br />

Dedicando em unidades religiosas, além de pintar, limpar e<br />

entregar jornais messiânicos: prestei duzentas assistências<br />

religiosas; lecionei em 10 cursos entre os de Formação e os de<br />

246


Aprimoramento; colaborei em eventos messiânicos; fiz dois<br />

relatos de experiência de fé - um na minha difusão de origem<br />

sobre minha conversão, e outro na sede da regional sobre<br />

donativo de gratidão -; integrei os congressos nacional e<br />

internacional de jovens; compareci a mais de dez reuniões do lar;<br />

inteirei reuniões missionárias; orientei com êxito pessoas em<br />

relação a donativo, viver com alegria, ter esperança de cura e de<br />

realizar desejos; encaminhei mais de dez, sendo que de sete fui<br />

padrinho de outorga.<br />

Já fiz curso de auto-aprimoramento e de aperfeiçoamento, fora<br />

diversos aprimoramentos. Elaborei duas ikebanas e vivenciei<br />

alimentos da Agricultura Natural.<br />

Estes passos do meu caminho, nestes dois anos de serviço à Deus<br />

e Messias, estão registradas nas 70 estórias de minha fé que se<br />

segue.”<br />

Pronto. Acabei.<br />

Silêncio. Até que ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: O quê! Relatar aquelas duas de experiências de fé<br />

– na difusão de origem e na sede da regional. O senhor não acha<br />

melhor relatar o dobro não, hein?! “Aí vão dizer que você é muito<br />

prático e mais ...”. Ah sim, é isso que vai acontecer. Está bem<br />

então, vou começar com a minha primeira experiência de fé<br />

intitulada “Conversão” que foi relatada na unidade em que me<br />

outorguei membro.<br />

(relatando)<br />

Em 1991 eu era comunista, seguia a doutrina marxista-leninista:<br />

uma concepção materialista acerca do universo, criatura e coisas;<br />

uma visão que nega a existência de Deus, mensageiros divinos,<br />

religiões e vida após a morte.<br />

Deus era para mim, algo criado pela matéria cérebro humano em<br />

decorrência da submissão do homem à natureza e à classe social<br />

dominante; mensageiros divinos e religiões era o ópio ideológico<br />

do povo, criadores da dependência consentida pelos trabalhadores<br />

247


a seus exploradores; vida após a morte seria outra fantasia<br />

cerebral proveniente da perda da razão frente ao inevitável.<br />

Eu não só pensava assim, mas também me expressava por<br />

palavras e agia contra os teístas, líderes religiosos e<br />

espiritualistas, julgando-os supersticiosos e reacionários.<br />

Tudo isto eu fazia com a intenção de colaborar na edificação de<br />

um mundo melhor para todos, o que me fazia sentir altruísta. As<br />

manifestações positivas que recebia de meus companheiros de<br />

luta, bem como de meus colegas de profissão, alunos, familiares e<br />

amigos, confirmavam este meu sentimento de ajudar o próximo.<br />

Na verdade eu não sabia que era egoísta.<br />

Divorciado, com três filhos, prestes a fazer 47 anos de idade e<br />

imaginando em só contar para viver com meu salário de professor<br />

universitário já muito diminuído pelas pensões alimentícias,<br />

receava me casar de novo e ter filhos. Por outro lado, muito<br />

apegado as meus familiares sujeitava-me a quaisquer condições<br />

para vê-los bem.<br />

Minhas frustrações, medos e apegos, me levaram a viver, desde<br />

1983, com uma jovem solteira e sem filhos, em um quarto e<br />

banheiro nos fundos da casa de meus pais.<br />

Tudo me parecia harmonioso na família; todos me pareciam<br />

felizes. Insensível, eu não percebia o que se passava à minha<br />

volta.<br />

Em maio de 1991, dia das mães, minha companheira escreveu<br />

uma carta para minha progenitora dizendo de sua necessidade de<br />

ser mãe e de morarmos sozinhos.<br />

Consciente do seu desejo conversamos a respeito não foi possível<br />

o entendimento. Foi-se a paz aparente e veio o conflito.<br />

Em 4 de junho de 1991, minha companheira sentindo-se<br />

totalmente incompreendida, decidiu arrumar as malas, e ir<br />

embora para a casa de seus pais. Surpreso, diante daquele gesto,<br />

só consegui falar duas coisas: dizer para ajeitar suas roupas com<br />

calma e perguntar se queria que a levasse.<br />

Ela me deu um beijo e partiu, deixando-me com a mão estendida<br />

e o coração desorientado, mas ao mesmo tempo, sem que eu<br />

soubesse, no começo de meu caminho para Deus. A partir desse<br />

momento se iniciaria minha transformação.<br />

248


Passei aquela noite em claro, revendo minha vida com ela.<br />

Observei o quanto tinha sido amado e o quão lamuriento,<br />

covarde, egoísta e apegado as meus pais e filhos tinha sido. Sentime<br />

sozinho e cheguei a conclusão de que esta mulher era a paixão<br />

de minha vida.<br />

Em 7 de junho de 1991 enviei-lhe uma carta, onde dizia: que<br />

seria capaz de violentar minha própria inteligência e até implorar<br />

a um Deus que não acreditava para que ela voltasse.<br />

Uma semana após a separação, comecei a despertar minha<br />

espiritualidade através da religião.<br />

Minha razão até então toda poderosa, estava revelando-se<br />

impotente diante da emoção da perda. Corroído pela ansiedade da<br />

solidão, resolvi considerar a sugestão de minha mãe e procurar<br />

orientação psicológica. A ajuda de uma ciência materialista era,<br />

percebida pela minha consciência, com algo necessário no<br />

momento.<br />

Na Casa de Difusão de Olaria da Igreja Messiânica Mundial do<br />

Brasil, onde minha mãe é membro, havia uma dedicante<br />

psicóloga. Proposto um encontro com esta pessoa, concordei,<br />

desde que fosse com o seu lado profissional e com o seu lado<br />

religioso.<br />

Em 11 de junho de 1991, a psicóloga que iria me atender não<br />

chegou. Cada segundo de ausência era vivido por mim com muita<br />

intranqüilidade, como anos retardados na recuperação da paz<br />

perdida. Nesta agonia fui convidado para assistir o culto que iria<br />

começar. Para passar o tempo, aceitei. Durante o entoar da<br />

Oração Zenguen-Sandji, fui envolvido por uma profunda<br />

sensação de calma. Registrei esse benefício inesperado, apenas,<br />

como uma feliz coincidência.<br />

A psicóloga messiânica chegou e marcamos a consulta. Fiz<br />

questão de não ser na Difusão, por não querer qualquer<br />

orientação religiosa.<br />

No dia de meu aniversário, 12 de junho, encontrei minha amada<br />

pela primeira vez, após a separação. O que me deu esperanças de<br />

uma reconciliação. Mas tudo não passou de um engano. Voltei a<br />

mergulhar nas trevas da solidão.<br />

249


Escrevia cartas, telefonava, dizendo-lhe de meu sofrimento e de<br />

minha transformação, mas de nada adiantava. Ela se mantinha<br />

intransigente pedindo-me um tempo para pensar. E eu, sofria por<br />

querer desesperadamente que ela voltasse para mim.<br />

Duas semanas após a separação, numa sala escura e fria, com as<br />

janelas fechadas, estava eu lá, prostrado no sofá com o rosto<br />

imóvel pensando em loucura e suicídio.<br />

Foi, nesse contexto desolador, que súbita, misteriosamente, fui<br />

me sentindo bem. E como um girassol em busca de luz, fui me<br />

virando como se procurasse a causa daquele milagroso bem estar.<br />

E o que encontrei? Surpreendentemente, minha mãe, sentada<br />

numa poltrona distante do sofá, com a mão levantada estendida<br />

em minha direção. Respeitosamente, aceitei e com entusiasmo<br />

absorvi seus efeitos benéficos.<br />

Rendido à eficácia do poder do Johrei, passei a recebê-lo<br />

diariamente em casa. Assim, finalmente, me curvei diante da<br />

existência do mundo invisível aceitando a vida após a morte,<br />

fortalecendo assim os elos com os meus antepassados.<br />

Uma das poucas coisas anteriores à separação que continuei<br />

fazendo no decorrer dessa depressão, era a caminhada matinal. Só<br />

que após eu ter conhecido a Luz Divina, passei a caminhar sob a<br />

recordação saudosa, trocando o choro da perda amorosa pelas<br />

lágrimas do reencontro com meus antepassados. Durante esta<br />

caminhada me vinha a mente momentos felizes com meus avós,<br />

tios e primos já falecidos.<br />

O interessante é que eu embora já aceitasse a espiritualidade, a<br />

religião messiânica com suas orações e cultos, pedidos de prece,<br />

Johrei e antepassados, não dava a mínima importância ao seu<br />

fundador. Até que me foi entregue por minha mãe, o ensinamento<br />

do Messias intitulado: “Aguarde o Tempo Certo”.<br />

A partir daí compreendi que devia recuar e aguardar respeitando<br />

assim os sentimentos de minha amada. O que desconhecia,<br />

porém, é que também estava sendo elaborado um tempo certo<br />

para mim, para meu encontro como Messias.<br />

Em 10 de julho de 1991, a psicóloga, pretendendo ser honesta<br />

comigo, conta-me que estava deixando de ser messiânica. Eu que<br />

estava ingressando nessa religião como simples freqüentador,<br />

250


pouco inteirado do fundador desta Igreja, ainda dependente desta<br />

analista devido à minha fragilidade emocional, senti-me na<br />

obrigação de ter que tomar uma decisão.<br />

O interessante é que, eu que havia optado inicialmente por uma<br />

analista não religiosa, e, acreditei ter com o passar do tempo<br />

tolerado a psicóloga messiânica, havia sem perceber assumido<br />

uma messiânica psicóloga.<br />

Assim, veio a decisão, foi-se minha psicóloga e ficou a Igreja<br />

Messiânica, seu fundador, e meu mestre.<br />

Mas a decisão fundamental, essencial do ser humano, ainda não<br />

havia tomado. Ou seja, não reconhecia Deus como criador do<br />

universo, criatura e coisas, com seu plano de construir o Paraíso<br />

terrestre. Meu tempo certo para tomar tal decisão estava em<br />

preparação.<br />

Em 17 de julho de 1991, inexplicavelmente me vi percorrendo<br />

um trajeto inteiramente distinto do habitual durante a caminhada<br />

matutina em plena escuridão do inverno. Num dos trechos deste<br />

caminho desconhecido, duas senhoras tentavam cortar, com uma<br />

tesoura, um fio caído de um poste elétrico. Mas, não conseguiam.<br />

Sensibilizado pela frustração das senhoras diante das fracassadas<br />

tentativas, parei para ajudá-las. Alegre engano, naquele momento<br />

eu iria me ajudar como nunca imaginara no caminho da<br />

felicidade.<br />

E tudo isto ocorreria quando após conseguir cortar os fios, elas do<br />

fundo de seus corações e da superfície de seus lábios agradecidos<br />

disseram: “Fique com Deus”. E eu fiquei com Ele até hoje, ou<br />

melhor, para sempre.<br />

Chegando em casa, eufórico com aquele ocorrido, murmurei com<br />

muita emoção: “Encontrei Deus”. Meu pai nada disse, minha mãe<br />

não entendendo direito o que eu falara, perguntou a ele:<br />

“encontrou o quê?”. Sem tirar os olhos do jornal, como se não<br />

houvesse dado muita importância ao fato, respondeu: “Disse ter<br />

encontrado Deus”.<br />

Mais tarde na Difusão, perguntava ao ministro sobre o Ser<br />

Supremo. Ele e meu filho que me acompanhava, respondiam, e<br />

eu só dizia: “Ah! É assim”. Naquela noite, percebi a Era do Dia<br />

iluminar minha alma e consciência. A prova da existência de<br />

251


Deus me atingira. O conflito se despediu de meu espírito, e este<br />

foi invadido pela paz de Deus.<br />

Minha vida sofreu profunda e significativa transformação.<br />

Eu e ela nos reencontramos, e, em 25 de agosto de 1991, ambos<br />

fomos outorgados messiânicos.<br />

Em 13 de outubro do mesmo ano, nos casamos na Igreja<br />

Itabaiana sob a forte comoção de quem teve de sofrer para<br />

merecer abraçar e amar à Deus e Messias.<br />

(pausa)<br />

Agora vou relatar uma segunda, uma que não foi apresentada em<br />

nenhuma unidade religiosa, regional ou solo sagrado em cultos de<br />

gratidão mensal e outros, ficou apenas registrado para mim, como<br />

uma das setenta que mencionei anteriormente. Intitulei-a<br />

“Agradecimento Eterno”.<br />

(relatando)<br />

Uma semana antes do casamento, em outubro de 1991, minha<br />

noiva começou a sentir dores insuportáveis em seu ventre. Após<br />

os exames clínicos de rotina, recomendaram-lhe uma intervenção<br />

cirúrgica para retirada de um cisto ovariano.<br />

Casamos, e, depois, ela foi operada, isso no final de 1991, após o<br />

que, pediu-me para apanhar o resultado da biópsia, fazendo-me<br />

prometer-lhe que não lhe ocultaria, de forma alguma, aquele<br />

diagnóstico.<br />

Sentado no consultório, do qual não passei da ante-sala,<br />

aguardava impaciente, quando senti uma pressão estranha na<br />

cabeça, e, ao fechar os olhos, sentir o local onde o médico s<br />

encontrava e o que me seria dito.<br />

E, infelizmente, o que foi retirado de minha mulher indicava o<br />

pior possível.<br />

Lembrando-me do ensinamento “Honestidade e Mentira”, ao<br />

reencontrá-la guardei segredo, e, foi sob forte emoção que<br />

acompanhei seus outros exames como os de sangue e o da<br />

tomografia, mas confiante no poder infinito do Johrei, ministravao<br />

diariamente em minha esposa.<br />

252


Certo dia, ela descobriu o que tivera, e, descontrolou-se me<br />

chamando de traidor, mas vendo o estado depressivo em que<br />

mergulhei, ergueu suas mãos ministrando-me Johrei.<br />

Após um ano e meio, tempo em que todos os exames de<br />

acompanhamento deram resultados negativos, atestando sua cura,<br />

eu e minha mulher agradecemos e agradeceremos eternamente à<br />

Deus, ao Messias, aos nossos antepassados, a benção de ambos<br />

estarmos no Programa da Luz Divina.<br />

(pausa)<br />

Uma terceira apresentada no solo sagrado, intitulada “Donativo<br />

de Gratidão”.<br />

(relatando)<br />

Antes de ser messiânico, há quatro anos atrás, dedicação<br />

monetária como forma de expressar e desenvolver sentimento de<br />

gratidão, significava doar dinheiro para o partido comunista. Agia<br />

assim porque pensava que tudo, como alimento, roupa, casa,<br />

emprego, sonho, a vida enfim, decorria simplesmente da mãe<br />

natureza e do trabalho de seu filho homem, cuja felicidade<br />

dependia da construção do socialismo terrestre.<br />

Na época, morava com minha atual esposa, num quarto com<br />

banheiro, nos fundos da casa de meus pais, sob preocupação<br />

financeira, pressão alta, distúrbio neuro-vegetativo, pensamento<br />

de que a qualquer momento iria enfartar, ter derrame cerebral,<br />

sofrer intervenção cirúrgica, perder emprego, ser roubado,<br />

acidentado, enfim o fim. Na minha bolsa para que me sentisse<br />

seguro tinha desde seguros propriamente ditos, como o de carro,<br />

até os emergenciais, como registro de tipo sangüíneo, remédios<br />

Izordil, Noam e Adalat.<br />

Em junho de 1991, passei por grande transformação ao receber a<br />

graça da reconciliação com minha companheira e, por esta<br />

benção, outorguei-me messiânico, juntamente com ela, em<br />

agosto, para dois meses depois nos casarmos na Igreja Itabaiana.<br />

Naquela ocasião, o donativo oferecido por mim e por minha<br />

esposa tinha como parâmetro a quantia doada ao partido<br />

comunista. No caso do donativo de outorga, estimamos o valor de<br />

253


sermos messiânicos como o dobro do valor de sermos<br />

comunistas. Como o donativo ao partido era de meio por cento,<br />

depositamos um por cento no envelope do donativo de outorga.<br />

Hoje, refletindo sobre aquele oferecimento, nós o entendemos<br />

mais como um donativo de ingratidão do que de gratidão. Se<br />

nossa vida, que foi salva, pelo menos daquele infernal conflito,<br />

valesse 100%, esta oferta de 1% nos levaria a contrair uma dívida<br />

de 99%.<br />

No caso do donativo mensal, já mais conscientes, estipulamos<br />

que deveríamos doar cinco vezes mais à Deus do que à causa<br />

operária. Doaríamos assim, 25% à Obra Divina. Passaríamos a<br />

dispor de 67.5% do salário, já que 30% estavam comprometidos<br />

com o pagamento da pensão alimentícia para os meus três filhos.<br />

Em vez de dificuldades, pelo contrário, meu sogro cedeu uma de<br />

suas casas no Méier para que nós fôssemos morar, meus pais nos<br />

deram o apartamento de veraneio que possuíam, em Teresópolis,<br />

e, foi-se a tensão, pressão alta, distúrbios neuro-vegetativo e<br />

pensamentos negativos.<br />

A partir de março de 1992, iniciando missão de Assistente na<br />

Igreja, começamos a perder dinheiro de várias maneiras: prejuízo<br />

com batida no carro (que quase me custou a vida), furto no<br />

apartamento (único a ser furtado entre os 25 apartamentos<br />

existentes no prédio), sumiço misterioso de dinheiro ao ir fazer<br />

feira (com certeza não esqueci este em casa e nem fui roubado),<br />

etc.<br />

Alertado pela ministra sobre a possibilidade de insuficiência de<br />

dedicação monetária em relação às bênçãos obtidas, dobraríamos<br />

a oferta de gratidão, ou seja, começamos a oferecer 5%.<br />

Conseqüentemente, passamos a viver com 65% dos vencimentos.<br />

Um mês após, em abril, dois de meus filhos, uma prima e seu<br />

marido, minha cunhada e dois amigos se tornariam messiânicos.<br />

Encaminhamos mais quatro pessoas das quais fomos seus<br />

padrinhos de outorga.<br />

No final do ano de 92, acatando a diretriz para os missionários da<br />

Igreja Itabaiana de dobrar o esforço em prol da construção do<br />

Solo Sagrado de Guarapiranga, aumentamos o donativo para<br />

10%, ficando com 60% para o nosso sustento.<br />

254


Maior oferta, menor percentual de salário para nós. Poderíamos<br />

pensar em enfrentar dificuldades financeiras. Mas pelo contrário,<br />

nunca nos alimentamos, vestimos, moramos, trabalhamos e<br />

sonhamos tão bem. Chegamos a poder contribuir com ajudas<br />

econômicas significativas, como: construção do Altar da Luz<br />

Divina da Casa de Johrei, onde éramos missionários e na viagem<br />

à Europa de um de meus filhos, em razão de sua preparação<br />

profissional.<br />

A partir de 1993, passo a Encarregado e minha esposa assume<br />

missão de Assistente. Aumentando missão, o desenvolvimento da<br />

nossa gratidão progrediria ainda mais. Ao colocarmos em prática<br />

a orientação do Messias de oferecermos de maneira que<br />

poderíamos vir a passar por dificuldades e comprovarmos, em<br />

vez de aperto, o retorno de dez vezes mais dinheiro, dobramos o<br />

donativo. Assim, passamos a doar 20% e ficar apenas com 50%, a<br />

metade do vencimento, para viver.<br />

No mês de março de 1993, dedicando com as próprias mãos em<br />

Guarapiranga, no aprimoramento que tivemos relatei as<br />

experiências pelas quais eu e minha esposa estávamos passando<br />

em relação à dedicação monetária. No dia seguinte, fomos<br />

convidados a escrever nossa experiência de fé para ser<br />

apresentada na Igreja Itabaiana.<br />

Voltando ao Rio de Janeiro, antes de escrever a experiência, a<br />

quantia esperada de um resíduo salarial para não passarmos<br />

dificuldades naquele mês, chegou. E junto, a surpresa: veio dez<br />

vezes mais do que aguardávamos, o que proporcionou a alegria<br />

de oferecermos 20% desta quantia inesperada à Obra Divina.<br />

Praticando donativo de 20%, nossa massa salarial cresceu acima<br />

da inflação. Com esse crescimento meus filhos ficaram mais<br />

contentes, pois o valor do que lhes cabia de pensão alimentícia<br />

também foi aumentado.<br />

Sonhando alto em ter Altar no Lar e Mitamaya em Teresópolis,<br />

reformamos nosso apartamento. Nessa ocasião, ajudamos meu<br />

filho e minha filha que ia se casar a montar casa.<br />

Além disso, encaminhamos mais quatro pessoas, sendo uma delas<br />

minha futura nora. Redigi “Meus Dois Primeiros Anos Com Deus<br />

e Messias”, onde registrei 70 sabores de fé vivenciados por nós.<br />

255


Em 1994, meu filho já formado e empregado, deixa de receber<br />

pensão alimentícia de 10%, o que aumenta nossa receita em 10%.<br />

Nessa ocasião, inicia-se o processo de instauração da Casa de<br />

Reunião Méier. Conseguimos, novamente, permissão de poder<br />

contribuir significativamente em termos financeiros na<br />

construção de um novo Altar da Luz Divina, o desta nova<br />

unidade messiânica. Nesta Casa de Reunião que vai começar<br />

recebemos missão maior: eu passo à Coordenador de Área e<br />

minha esposa, à Encarregada.<br />

Considerando a doação como um investimento na “Empresa<br />

Construtora do Novo Mundo”, seguimos o Mestre e oferecemos<br />

um terço dos nossos vencimentos, isto é, 33.3%. Como dávamos<br />

agora 20% de pensão alimentícia, viveríamos com menos da<br />

metade, ou seja, com 46.7%.<br />

Em outubro, com a outorga de meu terceiro e último filho, a<br />

família <strong>Guimarães</strong> torna-se messiânica.<br />

Pedindo permissão à Deus e ao Messias para dedicar na Obra<br />

Divina mais tempo, em novembro já estava aposentado.<br />

No final de 94, fomos orientados de que deveríamos fazer o<br />

pedido de permissão para recebermos, em nosso lar, o Altar de<br />

Deus e o Mitamaya. E para a nossa surpresa, o que pensávamos<br />

que seria em Teresópolis aconteceria em nossa casa do Méier.<br />

Compreendemos então, que a obra que fizemos em nosso<br />

apartamento de veraneio tinha sido mais um presente de Deus e<br />

do Messias para nós. A partir daí, fizemos melhorias na outra<br />

casa que receberia, ficando então, com duas belas casas.<br />

Em 1995, o outro filho já formado e empregado, deixa de receber<br />

pensão, o que aumenta novamente nossa receita em 10%.<br />

Passamos, então, a ofertar 36% à Obra Divina e criamos meta<br />

para, ainda em 95, chegarmos ao percentual de 51%.<br />

Em agosto, tivemos permissão de entronizarmos o Altar no Lar e<br />

o Mitamaya, integrar a 67a. Caravana ao Solo Sagrado do Japão e<br />

de participarmos da campanha do donativo especial para<br />

Guarapiranga, fazendo um esforço extra de 15%, o que nos levou<br />

a ofertar 51% dos nossos vencimentos.<br />

Assim, finalmente, alcançamos a nossa meta de oferecer<br />

mensalmente 51% de donativo, e como ainda ajudamos a minha<br />

256


filha com um percentual de 8%, estamos vivendo bem com 41%.<br />

E pasmem, tudo isso, mesmo sendo professores! O que prova<br />

mais uma vez que tudo é permissão de Deus.<br />

Hoje, nas vésperas da inauguração do Solo Sagrado de<br />

Guarapiranga, donativo para mim e para minha esposa é o nosso<br />

milagre mensal, é uma prova de expressarmos e desenvolvermos<br />

o sentimento de gratidão à Deus e ao Messias pela permissão que<br />

nos foi dada em servir, juntamente com nossos antepassados, em<br />

prol do avanço da natureza e da humanidade no caminho da<br />

construção do Paraíso Terrestre.<br />

Muito obrigado.<br />

(pausa)<br />

Uma quarta apresentada na regional, intitulada “Atuação de<br />

Antepassados”.<br />

(relatando)<br />

Em quase seis anos de messiânico tenho vivenciado intensamente<br />

a atuação de antepassados. Na minha vida missionária, em<br />

coordenação de área ou setor de orientação, constantemente vejo<br />

a presença dos antepassados das pessoas ao encaminhá-las para<br />

se tornarem membro da nossa Igreja, protege-las de situações e<br />

solucionar seus problemas. Na minha vida pessoal também tem<br />

sido freqüente a atuação de meus antepassados e pediria<br />

permissão aos senhores para relatar algumas experiências.<br />

No meu processo de conversão.<br />

Em junho de 1991 fui salvo por Deus e o Messias, em agosto era<br />

outorgado e em outubro relatava num culto mensal de gratidão<br />

meu processo de conversão. Num trecho desta experiência de fé,<br />

falei:<br />

“Uma das poucas coisas anteriores à separação que continuei<br />

fazendo no decorrer dessa depressão, era a caminhada matinal. Só<br />

que após eu ter conhecido a Luz Divina, passei a caminhar sob a<br />

recordação saudosa, trocando o choro da perda amorosa pelas<br />

lágrimas do reencontro com meus antepassados. Durante esta<br />

caminhada me vinha a mente momentos felizes com meus avós,<br />

tios e primos já falecidos.”<br />

257


Fui avisado de que meu pai iria falecer.<br />

Às dez horas da noite, em 16 de agosto de 1992, inesperadamente<br />

comecei a tremer sem motivo. Minha esposa, ao mesmo tempo<br />

em que me ministrava Johrei, aquecia-me, envolvendo-me com<br />

cobertores, gorros e meias de lã, e dava-me água quente para<br />

beber.<br />

Depois de umas duas horas, parei de tremer de repente, e,<br />

assaltou-me o pressentimento de que meu pai iria falecer. De<br />

pronto afastei esse pensamento.<br />

Passado dois dias, visitei meu pai, e, nos divertimos muito, tendo<br />

eu a certeza de estarmos nos despedindo.<br />

No dia seguinte aconteceu o que eu pressentira, ou o que me fora<br />

avisado!<br />

As respostas que encontrei na peregrinação ao Solo Sagrado do<br />

Japão.<br />

Em toda minha vida só psicografei duas vezes. Uma foi na noite<br />

de 30 de setembro de 1995, em Atami, onde recebi a seguinte<br />

mensagem:<br />

“É o início da vida que se inicia, em todo lugar há sinal, não<br />

perca tempo nem esperança, há lua e sol para todo mundo se<br />

esquentar no peito enorme do mestre Korim.”<br />

“Quem sou eu?”, me pergunto.<br />

“Você está sozinho para descobrir isso. Procure aquela primeira<br />

caravanista que você se aproximou, ela tem a resposta.”<br />

Através dela pude entender: minha afinidade com o Messias em<br />

outras reencarnações, minha missão futura e meu tronco familiar<br />

desde o final do século passado. Por entender tive, entre outras<br />

coisas, de pedir perdão no Altar de Atami pelo o que meu tronco<br />

fez a um de seus membros: deixou-o bastardo. Este filho de mãe<br />

solteira veio da Europa, construiu a vila onde moro e ele nada<br />

mais é do que o falecido avô paterno de minha esposa. Só para<br />

ficar claro adiante, registro que ele e seu filho, que é meu sogro,<br />

tem o mesmo nome, qual seja: Orlando.<br />

Meu pai foi outorgado no Mundo Espiritual.<br />

Em um culto do Paraíso Terrestre de 15 de junho de 1993 fui as<br />

lágrimas, ao sonhar acordado com meu pai falecido acariciado<br />

258


pelo Messias. Senti que ele havia se tornado messiânico no<br />

Mundo Espiritual.<br />

Um por um de meus antepassados, um a um de meus familiares<br />

vivos, entrava naquele acontecimento para reverenciar o<br />

Fundador e parabenizar meu pai.<br />

No mês de agosto, quando iria fazer um ano de falecido, ele daria<br />

seu donativo de outorga. Na sua conta bancária havia um<br />

montante significativo desde dezembro do ano passado, só que<br />

seu cartão magnético além de danificado estava desaparecido.<br />

Minha mãe, que há muito já tinha prometido essa quantia para a<br />

Igreja, iria se deparar com este cartão num lugar ultra-visível.<br />

Minha esposa chega dizendo que vai, aonde raramente ia, ao<br />

banco onde estava aquela conta bancária de meu pai.<br />

O que há poucos momentos atrás estava desaparecido, também<br />

não estava sequer danificado. E o donativo é feito.<br />

No sonho de minha mãe, num caminhão de operários construtores<br />

do Solo Sagrado do Brasil, ia meu pai abraçado a um amigo<br />

acenando muito feliz.<br />

Esta experiência de Fé foi relatada por minha mãe no Culto<br />

Mensal de Gratidão na Sede Central.<br />

Obrigado pai, por esse presente tão bonito.<br />

Estranho! O rádio do carro que nunca funcionava bem, parecia<br />

novo e tão perfeito. Estaciono-o frente à casa de minha mãe e<br />

lembro-me de que meu pai estava fazendo um ano de falecido.<br />

Nesse momento, daquele rádio vai saindo uma música tão bela<br />

cujas notas tocam profundamente em minha alma. Elas vão<br />

entrando, me incendiando por dentro, e quanto mais eu choro<br />

mais sou levado a um estado de alegria intensa.<br />

Na mente só vem este pensamento: “Obrigado pai, por esse<br />

presente tão bonito.”<br />

Mensagens de meu pai na Cerimônia de Entronização do Altar no<br />

Lar.<br />

Após significativa reforma em nosso apartamento de fim de<br />

semana em Teresópolis para receber a Luz Divina, a Ministra de<br />

minha difusão orientou-nos que este deveria ser entronizado<br />

aonde residimos. Para isso começamos a reforma da casa do<br />

Méier, que vim a descobrir no Solo Sagrado do Japão ter sido<br />

259


construída por aquele bastardo do meu tronco familiar que é o<br />

falecido avô paterno de minha esposa.<br />

Após várias tentativas de entronizarmos o Altar, este só ocorreria<br />

no dia em que meu pai fazia três anos de falecido.<br />

Na véspera tive um sonho onde todos, exceto eu, pensavam que a<br />

Ministra de minha difusão havia se afogado. Acordei, luz se<br />

acendeu, apaguei-a. Na escuridão, impulsionado a escrever,<br />

peguei de forma rara a caneta e, sem enxergar, psicografei pela<br />

primeira vez.<br />

Nas palavras do chefe da família disse:<br />

“Para finalizarmos deixaremos duas mensagens de meu pai<br />

recebidas por mim: uma, por meio de um registro escrito recebida<br />

ontem de madrugada e outra, através de uma música, recebida<br />

quando estava completando um ano de seu falecimento.<br />

Primeiramente, o escrito:<br />

“Hoje aqui reunidos estamos tão contentes por termos recebido<br />

esta oportunidade maravilhosa de olharmos no fundo a Imagem<br />

da Luz Divina. Vocês estão fazendo um trabalho magnífico. Dá<br />

lembrança ao meu filho salvador e seu Orlando.<br />

Trabalhem bastante pela Causa de Deus. Essa é a época, parece<br />

mistério, mas é tão simples. Vocês merecem ser felizes. As<br />

pessoas aqui presentes todas têm afinidades. Tornem-se logo<br />

messiânicos e levantem a mão para o mundo. Não se preocupe<br />

com o afogamento que você presenciou no sonho. Isso não lhe diz<br />

respeito; fique calmo e tranqüilo. Isso quer dizer que o engolido<br />

é o mal.”<br />

E agora ouviremos a música ...<br />

Esperando a voz se manifestar, até que ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (dialogando): Sim, apresentei quatro em vez de<br />

duas. Sim, em termos de encaminhamento, até hoje, foram mais<br />

de cem. Agora posso falar sobre a formação de missionários?<br />

Posso? Ótimo, então vamos lá.<br />

(expondo)<br />

260


Três anos de me tornar messiânico senti a necessidade de ter no<br />

meu computador todos os ensinamentos do Messias e dos demais<br />

líderes espirituais da Messiânica, isso me levou a três anos de<br />

digitação por estar ainda trabalhando como professor e<br />

pesquisador, bem como estar dedicando na Igreja. Depois disso,<br />

desenvolvi cerca de 200 atividades em 10 tópicos em relação à<br />

formação de missionários, quais sejam: oito apresentações e<br />

programações; cinco coleções (num total de 69 livros); oito<br />

cursos; 19 DVD’s; três sobre lei orgânica ideal; seis leituras<br />

dramatizadas; 79 livros; 24 palestras; nove viagens nas paisagens,<br />

46 entre artigos, escritos e messiânica. Em resumo foi o que foi<br />

realizado.<br />

Silêncio, até que ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (expondo): Diante da ausência de som desconfio<br />

que não estejam querendo apenas o resumo. Então, agüentem.<br />

- 8 apresentações e programações: Manual da Casa de Difusão<br />

Méier, 1996; Manual da Área Interna Atendimento da Igreja<br />

Itabaiana, 1997; Manual da Área Externa Grajaú-Andaraí, 1999;<br />

Manual do Johrei Center Vila Isabel, 2001; Relatório de 2001 do<br />

Atividades Culturais e Artísticas do MMO, 2001; Apresentação e<br />

Programação de 2002 do ACA do Movimento Mokiti Okada,<br />

2002; Apresentação e Programação de 2005 do Grupo de Estudos<br />

Cultura da Nova Era, 2005; Apresentação e Programação do<br />

Centro do Paraíso Terrestre, 2009.<br />

- 5 coleções num total de 69 livros.<br />

Em Busca de Crescimento (nove livros, todos publicados em<br />

1998): Evolução e Religião; Religiões no Brasil; Igreja<br />

Messiânica Mundial; Doença; Pobreza; Conflito; Antepassado;<br />

Messias; Deus.<br />

Áreas de Conhecimento - Cultura da Nova Era (18 livros,<br />

publicados entre 2000 e 2001): Teologia; Geografia;<br />

Antropologia; Mokiti Okada; Religião; Cultura; Ciência;<br />

Agronomia; Arte; Política; Direito; Administração; Economia;<br />

Filosofia; Medicina; Pedagogia; Sociologia; Psicologia.<br />

261


Leituras Dramatizadas – Cultura da Nova Era (12, entre 2005 e<br />

2006): 1°, 2º, 3º e 4º Ato. Um Ponto na Medicina; Ato I, II, III e<br />

IV. O Messias; Ato 1, 2, 3 e 4. A(s) Religião(ões).<br />

Vol. I - A(as) Religião(ões) – Iniciação à Cultura da Nova Era<br />

(12 entre 2004 e 2005): Fundamentos; Áreas de Estudos;<br />

Primitivismo; Mediterranismo; Judaísmo; Hinduísmo; Budismo;<br />

Jainismo, Siquismo, Taoísmo e Confucionismo; Cristianismo;<br />

Islamismo; Xintoísmo; Modernismo.<br />

Filosofia Religiosa do Messias: Deus ao Reino dos Céus na Terra<br />

(18 em 2008): Deus; Mundo Espiritual; Homem; Messias;<br />

Religião; Cultura; Johrei; Agricultura Natural; Belo; Governo;<br />

Economia; Ideologia; Saúde; Prosperidade; Paz; Felicidade;<br />

Cidade da Nova Era; Reino dos Céus na Terra.<br />

- 8 cursos: Em Busca de Crescimento, 2000; Cultura da Nova<br />

Era, 2001; Encontro de Profissionais por um Mundo Melhor,<br />

2002; Evolução do Universo, Sistemas e Reinos, 2003/2-2004/1;<br />

Iniciação a Cidadão da Nova Era, 2004/2; Temas em Reflexão,<br />

2005; Religião (ões), 2006-2007; Filosofia Religiosa do Messias:<br />

Deus ao Reino dos Céus na Terra, 2008-2010/1.<br />

19 DVD’s: Uma Peregrinação ao País da Luz do Oriente, 1997;<br />

02) Direções para 1998 (Filosofia da Salvação, etc.), 1998; Uma<br />

Iniciação às Belas-Artes, Dez/1999; Empresa: Passado, Presente<br />

e Futuro, Jun./2000; Viajando com a Música pelo Mundo,<br />

Set/2000; Viajando com a Música nestes Três Mil Anos (em<br />

forma apenas de roteiro); Melhores Momentos do Ciclo de<br />

Palestra CNE, Dez/2002; Cidade da Nova Era, Set/2003;<br />

Evolução, Out./2003; Viajando nas Paisagens do Estado do Rio<br />

de Janeiro (1ª fita), Abr./2005; Viajando nas Paisagens do Estado<br />

do RJ, 2005; Como Viveremos nesta Última Etapa da Transição,<br />

Ago./2005; Verdades Religiosas de P, M e J, Set/2005;<br />

Antepassados, Out./2005; Por um Mundo com Cidades rumo ao P<br />

Terrestre (apenas roteiro), Nov./2005; Verdades Religiosas dos<br />

demais (apenas roteiro), Abr./2006; Viajando nas Paisagens pelas<br />

Regiões Terra, Água e Fogo do RJ, 2006/2; Felicidade (mero<br />

início), Maio/2006; Uma Introdução às Artes e Artistas ,<br />

2006/2.<br />

262


3 sobre lei orgânica ideal: Projeto da Cidade da Nova Era,<br />

2003/1; Ciclo de Palestras sobre a Cidade, 2003/1; Curso de<br />

Iniciação à Cidadão da Nova Era, 2003/2.<br />

6 leituras dramatizadas:Produção de Um Ponto na Medicina,<br />

2003/2; Produção de O Messias, 2004/1; Produção de Filme A(s)<br />

Religião(ões), 2006/1; Produção de A Ultra-Religião e as<br />

Colunas de Salvação, 2006/1; Produção de Filme Um Grande<br />

Bem e os Poderes, 2006/2; Programa de Um Ponto na Medicina,<br />

2003/2; Programa de O Messias, 2004/1; Programa de A(s)<br />

Religião(ões), 2006/1.<br />

10 livros: Uma Iniciação às Belas-Artes, 1999; Iniciação a<br />

Cidadão da Nova Era , 2004; Evolução, Out./2003; Verdades<br />

Religiosas de P, M e J, Set/2005; Temas em Reflexão, 2006; O<br />

Respeito, 2007; Jovita, 2007; Procura-se o Oposto Parecido,<br />

2007; Espírito de Busca num Pai de Santo, 2008; O estranho,<br />

2009.<br />

24 palestras: 18 sobre Cidade da Nova Era (Agricultura; Arte;<br />

Ciência e Tecnologia; Comunicação e Som; Educação; Energia;<br />

Filosofia; Indústria-Serviço; Lazer; Meio Ambiente; Poder<br />

Legislativo; Preâmbulo; Saúde; Segurança; Trabalho; Transporte;<br />

Turismo; Urbanismo) e 6 sobre Cultura e Arte (A Missão da<br />

Arte; Culto do Paraíso Terrestre; Cultura 12092001; Mokiti<br />

Okada e o Humor Brasileiro; Nova Cultura para a Cidade da<br />

Nova Era; Paradigmas da Cultura Atual.<br />

9 Viagens nas Paisagens: Viajando ao País da Luz do Oriente,<br />

1997; Viajando com a Música pelo Mundo, 1998; Viajando com<br />

a Música nestes Três Mil Anos (CD), 2004; Viajando com a<br />

Música nestes Três Mil Anos (apenas roteiro), 2004; Viajando<br />

nas Paisagens do Estado do Rio de Janeiro – Introdução, 2005;<br />

Viajando nas Paisagens do Estado do Rio de Janeiro, 2005;<br />

Viajando nas Paisagens das Regiões da Terra, Água e Fogo do<br />

RJ, 2006; Uma Peregrinação ao País da Luz do Oriente (apenas<br />

roteiro), 2006; Por um Mundo com Cidades rumo ao Paraíso<br />

Terrestre (apenas roteiro), 2007.<br />

46 diversos: 9 artigos - Cara Jenny, 1991; Tempo Já, 2004;<br />

Corrupção e Inflação, 2005; Educação na Democracia, 2005; Por<br />

um Povo Brasileiro Evoluído, 2005; Vem Dançar Comigo, 2006;<br />

263


Obrigado pelo que ainda a de fazer, 2006; Motivacional, 2007;<br />

Relacionamento, 2008 -; 28 escritos - Aos 50 anos de idade,<br />

1994; Cerimônias de Entronizações do Altar no Lar e Mitamaya,<br />

1995; Diário de uma Peregrinação ao Solo Sagrado do Japão,<br />

25/10/1995; Dia dos Pais em 05081999, 1999; Cidade da Nova<br />

Era (publicação – Jornal Rio de Luz), Abr./2000; Juventude<br />

(publicação – Jornal Rio de Luz), Maio/2000; O Belo (publicação<br />

– Jornal Rio de Luz), Jun./2000; A Arte (publicação – Jornal Rio<br />

de Luz), Jul./2000; Pré-História até a Última Era do Dia (pub. –<br />

Jornal Rio de Luz), Ago./2000; Juventude na Fé, Família e<br />

Trabalho (pub. – Jornal Rio de Luz), Out./2000; JC Vila Isabel –<br />

Cultos Mensais de Out. 2000 até Maio de 2001; JC Vila Isabel –<br />

Diferenças do casal em 13042001; JC Vila Isabel – Recebendo<br />

Recém-Outorgados, 2001; Palestra – Cultura 12092001; Cultura<br />

(publicação – Jornal Rio de Luz), Jul./2001; Palestra sobre<br />

Cultura (publicação – Jornal Rio de Luz), Ago./2001; Atividades<br />

Culturais e Artísticas (publicação – Jornal Rio de Luz), Set/2001;<br />

Mokiti Okada e o Humor, 17/09/2001; Palestra – A Missão da<br />

Arte 19/10/2001; Cultura Atual (publicação – Jornal Rio de Luz),<br />

Out./2001; O Setor de expansão é Arte (publicação – Jornal Rio<br />

de Luz), Dez/2001; Relacionamento Amoroso de um Casal, 2001;<br />

Ciclo de Palestras sobre a Nova Cultura para a Cidade da Nova<br />

Era, 2002/2; CEMES - 19/07/1999; Palestras 2° Ciclo – Cultura<br />

da Nova Era, 2003/2; GECNE – Análise de um fato em<br />

05042005; Palestra – Arte e Artistas no Juízo Final, 2005;<br />

Palestra – Culto do Paraíso Terrestre -; 9 Messiânica - Atividades<br />

e Obras, 2009; Cerimônias de Entronizações do Altar no Lar e<br />

Mitamaya, 1995; Currículo para Faculdade Messiânica; Cursos<br />

para a Faculdade Messiânica; Dias dos Pais em 05081999; Diário<br />

Viagem Japão; Homenagem aos Antepassados – Aniversários;<br />

Meus Anos de 1994 até 1999; Meus Anos de JVCI de 2000-2001.<br />

(interrupção): Devo parar, já sei senão ninguém agüenta ... Não!<br />

Ah, sim, mas não é pelo que estou pensando, então por quê?<br />

“Eles não têm uma razão fundamental de porque devem viver”.<br />

Não acredito?! “Então por que não procura pesquisar?”. Mas, isso<br />

demanda algum tempo. Acha que não? “Basta fazer umas cem<br />

264


entrevistas sem levar em conta o povão senão o que vem de ...”.<br />

Ah, sim! “Apenas os fervorosos dedicados, os familiares mais<br />

próximos e alguns vizinhos”. Assim, eu acho razoável. Está bem,<br />

está bem, aguarde só algumas horas, que eu vou dar uns<br />

telefonemas.<br />

Meio dia se passa e ele traz o resultado da pesquisa.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (comunicando): Realmente a grande maioria não<br />

tem pensado seriamente nesta questão. Alguns chegam a dizer:<br />

“que pergunta, sei lá”, “porque Deus quer, eu acho”, “a fim de<br />

agradecer a vida”, “ter por que existir”, “por gostar de viver” e<br />

“para passar o tempo”. Boa parte dos demais não tem<br />

comprometimento com o como e a prática. Por exemplo, os que<br />

egocentricamente afirmam: “fazer a diferença para a<br />

humanidade”, “deixar marca”, “efetuar maravilhas”, “lutar pelos<br />

meus objetivos” e “buscar a felicidade, harmonia e amor”. Os que<br />

apenas validam o que fazem: “dedicar na fé”, “trabalhar muito”,<br />

“estar junto na família” e “aumentar amizades”. Os que querem<br />

colaborar ou transformar: “auxiliar as pessoas”, “mudar a<br />

sociedade” e “ajudar o planeta”. Os que desejam cumprir missão:<br />

“resgatar dívidas de outras vidas”, “criar e educar filhos”,<br />

“edificar nova cultura”, “construir paraíso terrestre” e “evoluir<br />

espiritualmente”. Ou seja, qualquer indagação do tipo “como<br />

você busca a felicidade?” ou “está praticando em prol disso?” é<br />

motivo de silêncio ou simplesmente ter como resposta um “não<br />

sei”.<br />

O apego de preocupação e covardia volta a se manifestar.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (procurando dialogar com a voz): Qual a imagem<br />

que estou perante os fora deste sonho neste momento?<br />

Praticamente nenhuma! Por quê? A maioria nem sabe que este<br />

sonho existe, os que tiveram acesso quase todos não tiveram<br />

tempo para ... você sabe, a vida está ... quem sabe algum dia ...<br />

quando os filhos tiverem criado, se aposentar ... a maior parte dos<br />

que começaram a se inteirar se desinteressaram ou cochilaram, os<br />

265


que realmente só não conseguiram totalmente por causa daquela<br />

fatalidade. Enfim, quem sabe aquele que lhe deve um favor não ...<br />

(jogando a última cartada): Mas, digamos, que num passe de<br />

mágico, todos tivessem cônscio da existência desse sonho, o que<br />

esses de sonen positivo, sonolentos, acordados, despertos,<br />

percebem de minha imagem?<br />

O QUÊ!!!!!!!!!! UM <strong>ESTRANHO</strong> DESCONHECIDO!!!!!!!!!!<br />

(por conta): Ah é!!!!! Sabe de uma coisa eu já fui ameaçado por<br />

tanta coisa, mas igual a dessa voz do além não tem comparação.<br />

Então, já que a proximidade com a realidade não vale nada, já<br />

que sou um destinado sem poder de reverter o pré-conceito,<br />

vamos para o último estágio desse último período deste sonho,<br />

onde vale tudo que é imaginação, onde alguém é considerado ...<br />

266


DO LADO FINAL<br />

267


268


O DIFERENTE<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Essa foi a história de um brasileiro poliglota que<br />

não fala espanhol, uma história de dez anos atrás que contei para<br />

saberem quem sou eu de fato.<br />

VOZ EM ESPERANTO: De fato, a sua história teve dez<br />

personagens secundários que vivenciaram por várias partes do<br />

mundo em países populosos e/ou cujos idiomas estão entre os<br />

mais falados, eles foram contados de maneira humorada em<br />

diversos aspectos desde a economia no mato, a justiça na favela,<br />

a segurança na delegacia, a saúde no hospício, a educação na<br />

sarjeta, a guerra no campo de batalha, o lazer na casa de<br />

tolerância, a religião na árvore sagrada, a política no comício, a<br />

ideologia na nave numa viagem espacial, a ultra-religião num<br />

local sagrado e finalmente da premiação alternativa neste<br />

parlamento suéco. Então, esse finalmente é o que está<br />

acontecendo nesse momento, agora?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Sim.<br />

VOZ EM INGLÊS: De fato, o personagem principal ganhou<br />

vários papéis dos personagens secundários como: selvagem,<br />

santo, traficante, maluco, mendigo, tããão esperado ansiosamente,<br />

gigolô, parturiente, candidato nerd, espião, convertido e seguidor.<br />

Então, o que se pode concluir que o seu papel nesse instante é o<br />

de seguidor, provavelmente daquele Mestre.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Sim.<br />

VOZ EM PORTUGUÊS: De fato, foi ameaçado por algema,<br />

AR15, soco inglês, seringa, cassetete, punhal, pincel, livrinho<br />

vermelho de Mao Tse-tung, lixo espacial e voz do além. Mas,<br />

também, foi ameaçador com inteligência, conhecimento,<br />

experiência e exposição de filosofias ocidental e oriental,<br />

chegando até a abalar os alicerces dos que adotam a cultura<br />

269


vigente. Por um lado, foi um real embaraçado na fisionomia por<br />

se ver barbado, algemado, desdentado, cueiroado, marcado,<br />

herniado, chateado, pintado, engarrafado, acorrentado, espetado e<br />

destinado. Por outro lado, também, foi um potencial colaborador<br />

na destruição e construção em prol da civilização.<br />

Os personagens secundários apresentaram deficiências físicas e<br />

psicológicas e tiveram papéis pertinentes aos aspectos<br />

mencionados como: auditor fiscal da receita federal, policial,<br />

gerente de tóxico, ajudante de ordem, delegado, escrivão, doutor,<br />

enfermeira, professor, senador, comandante de tropa, ladrão,<br />

mulher da vida, segurança e astronauta.<br />

(pausa): Agora, é impressão minha ou eles ficaram se implicando<br />

o tempo todo? Agora, é impressão minha ou se quisesse poderia<br />

ter sido ameaçador com mais cultura, como a arte?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Sim.<br />

VOZ EM INDIANO: Não seria bom acrescentar citando<br />

também os figurantes, como a gente aqui neste parlamento suéco<br />

com as nossas vozes, a onça, os favelados, os policiais militares,<br />

o caminhoneiro, o anão, o fugitivo, o rapaz de roupas<br />

espalhafatosas, os malucos, os soldados com canhões e espadas<br />

sarracenas, o camelo real, o frequentador da zona com salgari, os<br />

fanáticos, o chinesinho, os componentes do bando dos quatro,<br />

fora os que foram citados desde o filho do judeu coletor, os<br />

diversos filósofos, cientistas, escritores, líderes espirituais e até<br />

mesmo o Mestre?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Sim.<br />

VOZ EM FRANCÊS: De fato, a essência estranha foi até<br />

profetizada em termos de isento, desligado, suspeito, arredio,<br />

destituído, malfeito, estrangeiro, peregrino, bizarro, desconhecido<br />

e hoje um ponto de interrogação que seria explicitado por<br />

diferente. Confirma que agora será o diferente?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Sim.<br />

270


VOZ EM ÁRABE: Está tudo muito bem, cheio de sim, de fato,<br />

mas, você declarou que sua história começou a vinte anos<br />

passados e não dez como você narrou. Afinal, como tudo<br />

começou para saberem quem é você de fato<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Ah! Há vinte anos atrás, eu saia pelas portas desse<br />

parlamento suéco com corpo todo flácido, com uma cor de cera<br />

bem branca e postura para lá de fora do prumo, entretanto, por<br />

outro lado, muito bem barbeado, vestido com roupas novas, caras<br />

e elegantes, sendo cumprimentado sem parar, aplaudido, dando<br />

autógrafo, tudo isso com um sorriso preso numa sem gracisse<br />

devidamente incomodado.<br />

Lembro perfeitamente de quando consigo me desvencilar daquela<br />

multidão entrando num automóvel de fazer inveja a qualquer<br />

milionário, com chofer e tudo, sou recebido no seu interior,<br />

inesperadamente, por ela ... ela, a minha amante. Finjo alegria<br />

com aquela surpresa. Só que o carro anda e ela corre com muito<br />

mais velocidade na sua fala. O tempo passa e a minha outrora<br />

paixão não pára nem por um segundo. Nesse instante confesso de<br />

ter tido saudades de minha esposa atual e talvez até de minhas exesposas.<br />

Porém, por incrível que pareça, naquele dia, um grande<br />

congestionamento de automóveis se faz presente naquele país<br />

com tanta intensidade a ponto de me lembrar das stresses e<br />

amolações com as prisões constantes pelas vias da minha pátria.<br />

Era a gota d’água que faltava, não suportava voltar para aquelas<br />

ruas engarrafadas, daquela esposa limitada, nem ficar nesta nação<br />

com essa concubina a tagarelar. Como tudo estava bloqueado<br />

mesmo, então, como um gentleman, pedi educadamente<br />

permissão aquela ao meu lado que cederia aos meus impulsos e<br />

iria comprar um ramalhete de flores e um anel de brilhantes para<br />

ela. Avisei apenas pró forma ao motorista que me aguardasse, o<br />

que era algo inevitável diante daquela retenção.<br />

Sorrindo fui, fui andando, fui me distanciando, fui desaparecendo<br />

e nunca mais apareci, para aquela amante, para aquele carro, para<br />

aquele motorista, para aquele país, todavia, contudo, no entanto,<br />

... retornei ao ...<br />

271


VOZ EM MANDARIM: Retornou para que país, para que<br />

esposa?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Brasil, para nenhuma.<br />

VOZ EM MANDARIM: Então, está só?<br />

VOZ EM ESPANHOL: Que pasa?<br />

Todos riem.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: No! Mi novia es una hermosa estudiante de<br />

español.<br />

Mais risos. No entaaannntttoooooo ...<br />

VOZ EM ESPERANTO: Pessoal, se foi há vinte anos atrás, ele<br />

é aquele fabuloso ...<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Quem diria que mais tarde um brasileiro iria<br />

conseguir ganhar Nobel em todas as categorias, e esse fui eu, um<br />

progressista e revolucionário.<br />

TODOS: NÃO É POSSÍVEL!!!!!!!!!! O QUE IRÁ<br />

ACONTECER??????<br />

VOZ EM ESPERANTO (arrependido): E eu que disse “se o<br />

estranho que julgamos ser um ET”.<br />

VOZ EM INGLÊS (mais arrependido): Pior fui eu que falei:<br />

“prepare-se ô etezinho canarinho para ser sabatinado<br />

culturalmente”.<br />

VOZ EM MANDARINO (muito mais arrependido): Caramba e<br />

eu exigindo: “o que continuou sendo?”<br />

272


<strong>ESTRANHO</strong> (respondendo): Eu continuei sendo o que sempre<br />

fui desde criança - um estranho -, agora, por último, considerado<br />

o diferente, e é sobre isso que gostaria de comentar. Permitamme?<br />

Posso?<br />

A platéia já não tanto fofoqueira, mais com espírito de busca,<br />

balança a cabeça em sinal de concordância.<br />

<strong>ESTRANHO</strong> (contando): Por que eu sou diferente?<br />

Sou diferente porque eu não desejo ser igual nem semelhante a<br />

nenhum canibal, mesmo que honesto, bem-mandado e mãoaberta,<br />

nem a nenhum vegetariano, que seja corrupto,<br />

desobediente e pão-duro.<br />

Sou diferente porque eu não pretendo ser distinguido por ser<br />

mulher ou homem, preto ou branco, baixo ou alto, fraco ou forte,<br />

magro ou gordo, bigodudo ou raspado, novo ou velho, instrutor<br />

ou senador, cegueta e estrábico ou padrão normal dos olhos na<br />

visão e direção correta, atlético confuso ou sedentário<br />

trambiqueiro, culto ajudante de ordem de marginal ou místico<br />

bandido fixado em livros sem abri-los, chorão ou insensível,<br />

ciumento ou bruto, chato ou discreto, ex-heterossexual ou ex-gay,<br />

transtorno obsessivo compulsivo ou satisfação desinteressante<br />

liberalizante, estressado ou descansado, supersticioso ou<br />

visionário, mancha moral da tara ou primor indecente do não<br />

desejo, metade comum, capaz, conservada, moderada elegância,<br />

democrática e fria ou meia anormal, burra, acabada, perua,<br />

autoritária e melosa.<br />

Sou diferente porque eu não tenho intuito de ter raros momentos<br />

na minha vida em que conhecimento e cultura sejam apreciados<br />

por intelectuais do establishment, ou seja, da ordem política,<br />

econômica e ideológica que constitui uma sociedade ou Estado.<br />

Pois é interessante notar que o aparecimento de algumas teorias<br />

um pouco acima do nível da época tendo por base os conceitos da<br />

cultura atual são sempre bem aceitas, aplaudidas e elogiadas, a<br />

ponto dos autores de tais princípios recebem, muitas vezes, até o<br />

prêmio Nobel, como foi o meu caso por diversas vezes. Enquanto<br />

os que se propõem preceitos altamente inovadores sugerindo<br />

273


mudanças nas posturas preestabelecidas, seus autores são vítimas<br />

de perseguições e ataques cruéis, chegando, muitas vezes, a<br />

fatalidades irreversíveis, vide Jesus, Sócrates e Galileu, além de<br />

outros.<br />

VOZ DO MESTRE: Você ainda quer continuar diferente?<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Sim, quero continuar diferente porque eu vou<br />

receber esse Prêmio Nobel Alternativo de Ciência Espiritualista<br />

em seu nome, meu Mestre, que escreveu há quase um século: “A<br />

propósito, comecei a escrever, há cerca de seis meses, um livro<br />

intitulado “A criação da Civilização”. Meu objetivo é esclarecer<br />

que a civilização atual não é a verdadeira civilização e que, nesta<br />

a Medicina, a Política, a Educação, a Arte, etc. serão bem<br />

diferentes. Quando o livro estiver concluindo, pretendo traduzi-lo<br />

para o inglês e tomar providências para que ele seja lido por<br />

professores, universitários, cientistas, enfim, por intelectuais do<br />

mundo inteiro. Vou enviá-lo, também, à Comissão Examinadora<br />

do Prêmio Nobel que, no início, não o receberão bem, pois a<br />

Comissão é integrada por eminentes personalidades da cultura<br />

material. Todavia, como se trata de um livro que aborda<br />

justamente aquilo que as pessoas eminentes estão buscando,<br />

acredito que os integrantes da Comissão não deixarão de entendêlo<br />

e exclamar: “É isto!” Assim, poderiam conceder-me dez ou<br />

vinte prêmios Nobel. Quando esse livro for publicado, eu gostaria<br />

que todos os povos o lessem”.<br />

VOZ EM INGLÊS: Prestei muita atenção no que você disse:<br />

“Eu continuei sendo o que sempre fui desde criança - um<br />

estranho” e no que confirmou que o seu papel nesse instante é o<br />

de seguidor desse Mestre e que iria receber seu prêmio Nobel<br />

Alternativo em nome dele. Daí, a minha curiosidade, querer saber<br />

o que o seu Mestre acha estranho.<br />

<strong>ESTRANHO</strong>: Ih! Tem muitos ensinamentos ...<br />

274


VOZ DO MESTRE (interrompendo, chamando a atenção): ...<br />

já vai começar, é?!<br />

O <strong>ESTRANHO</strong> (rapidamente): Vou sim, vou sim. Eu começo<br />

por ele achar estranho que: “Apesar de haver uma estreita relação<br />

entre Religião e Política, é estranho que isso não tenha despertado<br />

muito interesse”. Por ele achar que: “Não deixa de ser estranho<br />

falar, agora, que Deus é Justiça. Mas se deve insistir nesse ponto<br />

porque não só o povo, mas também os fiéis e os ministros<br />

geralmente tendem a esquecê-lo”. Por ele achar que: “O estranho<br />

é as pessoas serem acometidas de doenças com tanta facilidade,<br />

ou seja, ficarem em estado anormal, [pois] a condição<br />

fundamental para a execução dessa obra grandiosa é a saúde.<br />

Deus atribuiu uma missão a cada pessoa, concedendo-lhe,<br />

logicamente, a saúde necessária para cumpri-la. Com efeito, se o<br />

homem estiver doente, significa que o sagrado objetivo de Deus<br />

não será alcançado. Tomando este princípio por base, conclui-se<br />

que a saúde é inerente ao homem, devendo ser o seu estado<br />

normal”. Por ele: “Conhecendo as causas, não é nada estranho o<br />

aparecimento de crianças-prodígio. Entretanto, nem todas elas se<br />

tornarão grandes músicos, grandes pintores, etc. Algumas o serão<br />

até certa idade, depois se tornarão pessoas normais. É o que<br />

acontece no caso de encosto de espírito, porque ele só tem<br />

permissão de encostar até certa época, devido à missão dada por<br />

Deus ou ao desejo de seus ancestrais”. Ele: “O natural é haver<br />

milagres; se não houver é que se pode achar estranho”.<br />

“Costuma-se falar em doenças causadas pelo encosto do espírito<br />

de um ancestral, porém é estranho que um ancestral faça o seu<br />

descendente adoecer e sofrer, encostando nele”. “Quando achar<br />

que está um pouco estranho, deve-se analisar se está ou não em<br />

concordância [...] com seu rendimento, sua condição [inclusive<br />

física, um médico gordo incentivando alguém a perder peso] e<br />

sua posição social”.<br />

(pausa): “Na história do Japão, existe um episódio muito famoso<br />

ocorrido com um indivíduo chamado Nassu-no-Yoiti. Ao mirar a<br />

alvo um leque e invocar a divindade Nassu Gonguen segurando a<br />

flecha pelo arco com todas as suas forças, ele viu surgir uma<br />

275


criança que correu no espaço empunhando uma flecha e acertou o<br />

leque. Obviamente, Yoiti viu em espírito. Aí soltou a flecha e<br />

acertou alvo. Como foi uma grande evidência espiritual, erigiu-se<br />

um novo nicho de Nassu Gonguen, e, pelo resto da vida ele<br />

adorou fervorosamente essa divindade. O fato consta nos<br />

registros de Nassu Gonguen. E não é nada estranho. No Mundo<br />

Espiritual as coisas acontecem antes.”<br />

“Desde épocas remotas fala-se em pessoas que ocasionalmente<br />

vêem fantasmas, mas na maioria dos casos trata-se de espíritos<br />

com poucos dias de desencarnados. O grau de densidade das<br />

células espirituais dos recém falecidos é elevado, razão pela quais<br />

esses espíritos podem ser vistos por algumas pessoas. Nada há de<br />

estranho, portanto, no fato de muitos terem visto a Ressurreição e<br />

Ascensão de Cristo. Porém, como o espírito de Cristo era<br />

elevado, Divino, ascendeu ao Céu. Com o passar do tempo, o<br />

espírito é purificado, ficando menos denso, e, assim, mais difícil<br />

de ser visto.”<br />

(pausa): Estranhas são “pessoas de aura fina [que] emitem, ao<br />

redor de si, um estado de tristeza, insatisfação, frieza, fazendo<br />

com que todos percam a vontade de permanecer por muito tempo,<br />

num ambiente tão estranho”.<br />

Silêncio.<br />

VOZ DO MESTRE: Não vai começar, aliás, parar, não é?!<br />

O <strong>ESTRANHO</strong> (rapidamente): Não, Não. Eu continuo com<br />

alguém comentando com o Mestre ter ouvido dizer que há<br />

espíritos que se encostam às pessoas para poderem se entrevistar<br />

com ele, e indagando se isso é verdade. Ele respondeu: “É<br />

Verdade, sim. Isso acontece o ano todo. A razão é que, sem<br />

encostar em alguém, os espíritos não podem vir aqui. É estranho,<br />

mas eles não podem vir sem permissão. As pessoas vivas podem<br />

fazê-lo quando quiserem. No Mundo Espiritual existem regras. Se<br />

não houver motivo para encostarem não podem fazer isso sem<br />

licença, a bel-prazer.”<br />

276


Outros ensinamentos do Mestre: “Após a radiação da Luz do<br />

Johrei, a dor e os demais sintomas da doença desaparecem, mas<br />

ainda permanecem os resíduos das impurezas queimadas. Como,<br />

porém, são elementos mortos, não têm poder de ação.<br />

Assemelham-se a cadáveres. Não mais conseguem irritar,<br />

provocar dores, ou coceiras. Apesar disso, o corpo humano vai ter<br />

que expelir esses elementos estranhos. Para tanto, possui, em si<br />

mesmo, um poder ativo capaz de expulsar do seu interior tudo o<br />

que não lhe for compatível”.<br />

“Sempre atingem os resultados previstos quando praticados<br />

segundo a lógica divina da serenidade. É por isso que, ao planejar<br />

algo, nunca se apressava. Estudava o projeto sob todos os ângulos<br />

e submetia-o à contínua e rigorosa reflexão. Quando ele se<br />

convencia de que se trata de um plano justo em todos os<br />

pormenores e útil à humanidade inteira, executava os<br />

preparativos e esperava chegar o tempo. Essa sua atitude já levou<br />

algumas pessoas a se irritarem e outras a julgarem-lhe bastante<br />

estranho, pois, de fato, nunca entenderam por que ele tardava a<br />

executar planos que lhe eram propostos, embora os tivesse<br />

acatado e prometido utilizá-los”.<br />

“Tendo em vista tantos fatos aparentemente estranhos, fica claro<br />

que prodígios acontecem porque a causa que os determina se<br />

encontra no Mundo Espiritual”.<br />

“Parece-me estranho que aqueles grandes religiosos - Cristo,<br />

Maomé e Sakyamuni - nada tenham falado de si mesmos. É como<br />

se estivessem trajados com magníficas vestes e não quisessem<br />

tirá-las; desse modo, não podemos conhecer suas impressões e<br />

confissões. Talvez eles não nos tenham revelado seu íntimo por<br />

não terem vontade de fazê-lo, mas acho isso realmente<br />

lamentável. Quanto a mim, acontece o contrário. Desejo escrever<br />

tudo a meu respeito, com todos os detalhes. Provavelmente<br />

encontrarão pontos incompreensíveis em minhas explanações,<br />

fatos que lhes parecerão inverossímeis, grandes ou pequenos,<br />

claros ou obscuros, finitos ou infinitos, etc. Saboreando minhas<br />

palavras, conseguirão a sabedoria da vida e tornar-se-ão<br />

possuidores de espírito inabalável.”<br />

277


“Naquela época, quando criança me via frente a qualquer pessoa,<br />

sempre tinha a impressão de que ela era mais inteligente e<br />

importante que eu. Todavia, comparando o que eu era com que<br />

sou atualmente, eu mesmo estranho a enorme diferença”.<br />

“No dia seguinte, respondeu ao interrogatório caracterizado pela<br />

parcialidade e brutalidade. Caso as respostas não<br />

correspondessem aos desejos dos investigadores, eles apelavam<br />

para a agressão, puxando seus cabelos ou ameaçando-o com uma<br />

espada de bambu. Na ocasião, ocorreram fatos estranhos, como<br />

por exemplo, a repentina dor de cabeça sentida pelo policial que o<br />

agredira, dor tão forte que o obrigou a sair da sala”.<br />

“Sempre digo que a pessoa que consegue fazer exatamente como<br />

falo, é um herói. É um grande homem. Porém, a maioria age<br />

quase sempre de forma diferente. Isso não acontece apenas na fé.<br />

Na obra do jardim, também, é a mesma coisa. Não há sequer um<br />

jardineiro que faça o trabalhe como eu peço. Se digo para pôr<br />

determinada coisa em determinado lugar, não há uma pessoa que<br />

coloque no lugar indicado: ou coloca mais para cá ou para lá. Se<br />

digo para pôr mais para cá, ela acaba colocando mais para lá. Por<br />

isso, não sei o que fazer com esses jardineiros profissionais. Mas<br />

é muito mais fácil fazer de acordo com o que eu falo. É estranho,<br />

pois as pessoas não gostam de fazer as coisas do modo mais<br />

fácil”.<br />

“Quando estava preso na penitenciária, começou a sentir dor de<br />

barriga, a qual foi se intensificando e, à tarde, tornou-se<br />

insuportável. Ministrou Johrei em si mesmo e a dor amenizou um<br />

pouco. Mas na manhã do dia 14, achando estranho, perguntou a<br />

Deus o que aquilo significava e recebeu a seguinte resposta: ‘Isso<br />

se deve à grande providência e não pode ser evitado, portanto<br />

agüente um pouco.’ Naquele momento, se deu conta de que o dia<br />

seguinte seria a data em que recebera a Revelação sobre a<br />

Transição e falou: “Não há dúvidas de que meu ventre está sendo<br />

purificado para providenciar o progresso da Obra Divina.”<br />

(pausa): Ufa! Sobre o próprio Mestre tem muita coisa.<br />

VOZ DO MESTRE: E daí?!<br />

278


O <strong>ESTRANHO</strong> (rapidamente): Daí que a sua esposa conta a<br />

respeito da estadia dele no Templo Muroji: “- Nosso Líder<br />

Espiritual deseja visitar o templo, seria recebido no salão nobre? -<br />

Para os senhores ele pode ser um Líder Espiritual muito<br />

importante, mas nós só poderemos deixá-lo entrar no salão se o<br />

reconhecermos digno dessa honraria. - [No dia combinado,<br />

quando Mestre chegou ao templo, o Bonzo Responsável foi<br />

recepcioná-lo vestido cerimoniosamente e, além de encaminhá-lo<br />

ao salão nobre, tratou-o com a maior gentileza possível. Achando<br />

isso estranho, perguntaram a razão e obtiveram a seguinte<br />

explicação:] Naquela noite, Mestre revelou uma parte do mistério<br />

que ocorrera: “Eu estive muito contente o dia todo e talvez<br />

ninguém entenda minha alegria. A chuva que hoje caiu foi<br />

mandada pelos dragões. Eles querem ajudar a Deus na construção<br />

do Mundo de Miroku, entretanto, na condição de dragão, não o<br />

conseguem. Para tanto, precisam voltar à sua qualificação divina<br />

original, o que só conseguirão banhando-se de Luz. Assim, hoje,<br />

aproveitando minha vinda a este lugar, milhares de dragões<br />

expressaram sua gratidão com a chuva que caía à frente do meu<br />

carro. Essa gratidão é transmitida a mim, e por isso me sinto tão<br />

feliz que não consigo conter as lágrimas.”<br />

Daí que No dia 11 de novembro de 1954, assim que foi concluído<br />

o Palácio de Cristal, disse: “Finalmente entramos no verdadeiro<br />

eixo da Obra Divina. Daqui para frente acontecerão muitos fatos<br />

estranhos, por isso não vacilem.” Naquele mesmo dia um fiel,<br />

que se tornou dirigente da Messiânica, descreveu: “Terminada a<br />

recepção, eu ia seguindo em direção ao Palácio de Cristal, pelo<br />

caminho íngreme situado do lado leste da Colina das Azaléias.<br />

Por causa das plantas, não conseguia enxergá-lo do lugar onde<br />

estava, mas, subitamente, ouvi gritarem: ‘Olhem! É Luz! ...”<br />

Olhando para cima, vi, no centro do telhado do Palácio de Cristal<br />

e um pouco para a esquerda (lado do Templo Messiânico), uma<br />

Luz bem forte cujos raios, formando como que uma coluna,<br />

alcançavam o céu, brilhando ofuscadamente. Fiquei realmente<br />

impressionado. Os fiéis que me acompanhavam também puderam<br />

ver o fenômeno, o qual durou apenas alguns instantes, talvez dois<br />

minutos. Foi um breve espaço de tempo, mas ainda me lembro<br />

279


como se fosse hoje. O aspecto majestoso daquela Coluna de Luz<br />

era algo não só emocionante, mas irresistível, que fez com que eu<br />

me curvasse. Na ocasião, eu estava sofrendo muito, devido a um<br />

problema de relacionamento humano, mas, com o grande milagre<br />

ocorrido nesse dia, meu sofrimento voou para longe. E não foi só,<br />

essa experiência é, até hoje, o sustentáculo de minha fé.”<br />

Daí quando ele viu o futuro disse: “Achando estranho, olhei bem<br />

e notei que a rua parecia estar forrada com cortiço. Observando<br />

melhor, percebi tratar-se de um material elástico e bastante<br />

macio, que parecia ter sido preparado com a mistura de borracha<br />

e pó de serra. O silêncio era tão grande que não parecia estar-se<br />

numa metrópole. Que passeio agradável!”<br />

“Vou dar isto a você?” E entregou entre os objetos que lhe<br />

haviam sido oferecidos, um deles a um dos discípulos. Este achou<br />

estranho, não entendendo essa atitude. Ao abrir o pacote<br />

encontrou um cartão junto ao objeto, constatando que se tratava<br />

de um presente ganho pelo ofertante. Compreendeu que o<br />

Fundador sem abrir pacote, sabia seu conteúdo.<br />

“- Nunca vi Líder Espiritual como o senhor. Já me encontrei com<br />

vários Líderes Espirituais de outras religiões, mas alguns, assim<br />

que me viam, faziam ameaças, e outros oravam “Nam-myo-horen-gue-kyo”.<br />

- Detesto terminantemente esse tipo estranho de líder espiritual<br />

ou fundador de religião. É muito mais cômodo manter-me como<br />

uma pessoa comum, e acredito que essa é a maneira correta.<br />

Embora nos digamos religiosos, também somos homens, não é<br />

verdade?”<br />

“Não sei se devo chamar de costume estranho, mas quando corria<br />

algum boato injurioso a seu respeito, ao invés de se zangar, como<br />

normalmente aconteceria, Mestre ria a ponto de verter lágrimas.”<br />

“Alguns, talvez, achem estranhos os meus pontos de vista, mas<br />

não há razão para isso. Tudo que estou dizendo tem muita lógica.<br />

Minhas idéias só parecerão estranhas a quem não estiver voltado<br />

para a Verdade. Quanto mais absurdas elas parecerem, mais<br />

evidente se tornará a distância do mundo em relação à Verdade.”<br />

(pausa): Ufa! Sobre o próprio Mestre tem muita coisa.<br />

280


VOZ DO MESTRE: E fora dele?!<br />

O <strong>ESTRANHO</strong>: “Não há sentido uma religião apresentar-se com<br />

o nome de nova e seu conteúdo não corresponder a essa<br />

designação. Se a religião apenas mudar ou acrescentar, de acordo<br />

com o entendimento do seu fundador, algumas interpretações ou<br />

sentidos às palavras que há muito tempo vêm sendo ditas em<br />

livros ou ensinamentos muito conhecidos, revelados pelo<br />

fundador de uma religião antiga, não se poderá dizer que ela é<br />

uma religião nova. Aliás, conservando as mesmas formas e<br />

construções e chegando ao ponto de aconselhar a volta aos<br />

ensinamentos desse fundador, ela se distancia cada vez mais da<br />

época atual. É impressionante haver quem não ache estranho esse<br />

procedimento. Ora, devendo-se voltar à origem, é porque se saiu<br />

do caminho certo; caso o fato se repita várias vezes, não se<br />

progride nada, ficando em total desacordo com a cultura. Se tiver<br />

de lidar com pessoas inteligentes, de nível cultural elevado,<br />

principalmente entre a camada jovem, certamente elas não<br />

aceitarão uma doutrina cheirando a mofo. Assim, pode-se dizer<br />

que, atualmente, a maioria dos seguidores das religiões<br />

tradicionais é arrastada apenas pelas tradições e costume”.<br />

“Por outro lado, nem toda fé que busca obter graças imediatas é<br />

de nível inferior, pois se alguém se queixa de dores físicas é<br />

estranho retrucar que o homem deve superar a vida e a morte,<br />

pensar que se conseguiu tal coisa é enganar a si próprio”.<br />

Um caso:<br />

“- Você está lendo o “Alicerce do Paraíso”?<br />

- Sim estou lendo.<br />

- Estranho, acho que você não está lendo.<br />

Como eu lia com afinco, achei esquisito e retruquei:<br />

- Li várias vezes.<br />

Então, ele me perguntou:<br />

- Com que parte do corpo você lê?<br />

Ante uma pergunta tão estranha, pois só podia ser com os olhos,<br />

por um momento não entendi o significado da pergunta e, sem<br />

jeito, respondi:<br />

- Leio com os olhos.<br />

281


- Então está lendo com isto - apontou o olho - não é?<br />

- Sim, senhor.<br />

- Assim não adianta. Você diz que está lendo, mas não vejo isso<br />

se manifestar na prática. Se você não aplica o que lê, é como se<br />

não estivesse lendo. Portanto, não adianta ler só com a cabeça.<br />

Leia com o coração, avidamente”.<br />

Outro caso:<br />

“- Uma estudante de 17 anos, jogadora de voleibol, teve,<br />

repentinamente, uma contração no corpo e o diagnóstico dado<br />

pela Faculdade de Medicina de Nagoya foi Doença de São Vito,<br />

apresentando caroços desde o ombro direito até a medula. Ela<br />

tem a Imagem da Luz Divina entronizada; a mãe e essa filha são<br />

membros, mas o pai ainda não. Devido às circunstâncias, estão<br />

falando em interná-la, e a mãe dela está pedindo assistência de<br />

Johrei no hospital.<br />

- De maneira alguma. É esquisito você me perguntar esse tipo de<br />

coisa. É estranho que até hoje não esteja sabendo disso. O fato de<br />

ir ao hospital está errado, uma vez que a moça foi entregue à<br />

responsabilidade do médico”.<br />

Um outro caso:<br />

“- Ingressei na Fé, por isso, cure-me.<br />

- É algo estranho. Desse modo está menosprezando à Deus.”<br />

“É bem estranho que a cultura espiritual não tenha evoluído na<br />

mesma proporção da cultura científica; e não obstante esta<br />

realidade, cultiva-se cada vez mais a civilização materialista”.<br />

Respirando fundo.<br />

VOZ DO MESTRE: E fora dele?!<br />

O <strong>ESTRANHO</strong>: “Nos casos em que não estiver ocorrendo um<br />

efeito positivo, como resultado da prática do Johrei, é preciso<br />

verificar cuidadosamente se não está sendo empregada a força<br />

física na canalização da Luz. Eu mesmo sempre presto muita<br />

atenção a esse ponto. Quando o problema não se resolve com<br />

relativa facilidade, acho estranho. Verificando a causa, descubro<br />

que estava colocando esforço físico.”<br />

282


“- Por que há pessoas que, ao receberem Johrei, não bocejam;<br />

mas, quando ministram em alguém, começam a bocejar?<br />

- É estranho. Normalmente quem recebe é que boceja. Acho que<br />

a pergunta não está bem formulada”.<br />

“Conforme já disse muitas vezes, o solo é, por si mesmo,<br />

formado pela aglomeração de elementos os quais constituem o<br />

próprio adubo. Então, quando se acrescenta a ele algum outro<br />

organismo estranho, a sua capacidade vital fica diminuída, porque<br />

esse acréscimo significa um obstáculo ao desenvolvimento<br />

natural das plantas. Incidência de quebra dos caules é mínima, e<br />

não ocorre queda das flores nem apodrecimento dos caules após a<br />

irrigação. Mesmo quando as outras áreas de plantio são afetadas<br />

consideravelmente, as da Agricultura Natural sofrem danos<br />

irrisórios, o que as pessoas acham muito estranho”.<br />

“Agora também todas as mulheres usam batom, pois acham que<br />

os lábios estão sem cor ou, outras vezes, muito escuros. Na face,<br />

usam um creme para deixá-la rosada. Tudo isso, porém, a mim<br />

me parece muito estranho, pois, a pessoa saudável e com bastante<br />

vitalidade tem uma face rosada por natureza”.<br />

“Parece que ninguém achou estranho que eu não tivesse<br />

comprado nenhuma obra de arte falsa, entre tantas que consegui<br />

colecionar. Apesar de gostar muito de arte desde jovem, isso não<br />

foi o suficiente para eu entender todas as obras. Depois que<br />

construí o Museu de Hakone, decidi colecionar obras de arte, e é<br />

até estranho eu dizer, mas aprendi muito. Essa aprendizagem<br />

estendeu-se a todos os tipos de arte; aprendi teoricamente, e<br />

também com os próprios objetos; e quando surgia oportunidade,<br />

com humildade, pedia a orientação dos chamados “experts” de<br />

cada área. Estudei avidamente, dia e noite, nas horas vagas do<br />

servir à Obra Divina. Foi através desse esforço, que acredito que<br />

eu, talvez vocês não consigam entender, pude cultivar a<br />

sensibilidade artística.”<br />

(pausa): Vou passar para a estranheza na medicina.<br />

VOZ DO MESTRE: Ótimo.<br />

283


O <strong>ESTRANHO</strong>: “Há dois ou três dias, o jornal publicou um<br />

artigo comentando sobre a ineficácia curativa da penicilina,<br />

dizendo que ela já não tem tanto poder quanto antigamente. No<br />

começo, era um remédio de efeito extraordinário e, por isso, se<br />

tornou muito popular. Em outras palavras, significa que tinha<br />

uma poderosa força solidificadora o que, para a medicina,<br />

corresponde à cura.<br />

Vejo, porém, nessa situação algo estranho. Há vinte anos, era<br />

uma medicação eficaz; hoje não mais. Pelo que consta, não houve<br />

transformações genéticas no ser humano. Por que então um<br />

mesmo remédio, depois de algum tempo, não surte mais efeito?<br />

Na opinião médica, foram os micróbios que ficaram mais<br />

resistentes. Segundo meu pensamento, entretanto, o que ocorreu<br />

foi que a penicilina enfraqueceu o organismo humano e os<br />

micróbios, por sua vez, ganharam um campo mais amplo para<br />

manifestar a sua força venenosa.<br />

A verdade profunda a respeito desse assunto, contudo, é que<br />

nenhum especialista conhece o porquê da ação tão forte desses<br />

microorganismos. Há muitos casos de pessoas que tomam, pela<br />

primeira vez, a penicilina e também não conseguem resultados<br />

satisfatórios.<br />

Todos esses argumentos apresentados pelas autoridades médicas<br />

servem apenas para que elas não percam a notoriedade. Então,<br />

sem muita lógica, procuram justificar a ineficácia dos<br />

medicamentos e não fazem esforço algum para perceber as falhas<br />

que já estão ficando muito claras. Com isso, o povo vive<br />

continuamente sendo enganado.<br />

Até agora tinha sido a penicilina que não estava mais<br />

conseguindo ser eficaz. Já tenho ouvido, porém, que a<br />

Streptomicina também não é tão eficiente quanto se supunha.<br />

Logo mais, certamente o mesmo comentário surgirá a respeito da<br />

Aureomicina e Terramicina.”<br />

“Suponhamos que alguém da família de um médico adoeça. É<br />

interessante observar que, na maioria das vezes, o médico não<br />

trata do doente, passando a tarefa a um colega. Até mesmo pelo<br />

senso comum, é estranho que a vida de um familiar, tão<br />

importante para ele, não fique sob seus cuidados e, sim, ao<br />

284


encargo de outra pessoa. Certamente o médico age dessa maneira<br />

por não confiar nas suas habilidades. Por experiência, ele sabe<br />

que os resultados são melhores quando se coloca o doente sob<br />

cuidado de mãos alheias. Os médicos certamente não conseguirão<br />

dar explicações a esse respeito, mas eu penso da seguinte<br />

maneira: A Medicina é um método de impedir a purificação;<br />

assim quanto mais tratamentos se aplicam, mais a doença se<br />

agrava. Uma vez que o doente é pessoa de sua família, o médico<br />

quer para ele o melhor tratamento possível e, naturalmente, iria<br />

escolher os remédios da mais alta qualidade. Como esses<br />

remédios são os mais tóxicos, os resultados são ruins. Sendo um<br />

médico estranho, irá fazer um tratamento comum, e por isso a<br />

pessoa não piora tanto. Por conseguinte, ele se sai melhor.<br />

Também é muito freqüente o doente custar a melhorar quando o<br />

médico se empenha demais em curá-lo; ao contrário, aqueles com<br />

quem o médico não se preocupa muito, melhoram rápido.<br />

Provavelmente isso acontece pelos motivos já expostos.”<br />

“Ultimamente, em relação à compreensão da doença, têm usado<br />

com freqüência a expressão “luta contra a doença”, mas, visto por<br />

nós, não há coisa mais equivocada que isso. Realmente, é devido<br />

ao desconhecimento da causa fundamental da doença, mas<br />

baseado no nosso ponto de vista, gostaríamos de dizer que<br />

“amamos a doença”, ou seja, o correto é ter o pensamento de que<br />

a doença é algo que devemos amar, é algo gratificante, é algo que<br />

devemos agradecer. No entanto, quando a pessoa contrai doença,<br />

logo a Medicina interpreta de forma negativa e fica preocupado<br />

como se o demônio estivesse penetrado no interior do corpo.<br />

Acredito que nesse sentido usam-se freqüentemente a expressão<br />

“o diabo da doença”. Também creio que a expressão, “luta contra<br />

a doença” é usada no sentido de que, devido à penetração do<br />

inimigo no corpo, devemos lutar o máximo aliado ao corpo<br />

físico; e isso é algo realmente estranho.”<br />

“A saúde é inerente ao homem, devendo ser o seu estado normal.<br />

O estranho é as pessoas serem acometidas de doenças com tanta<br />

facilidade, ou seja, ficarem em estado anormal. Sendo assim,<br />

apreender claramente os princípios da saúde e fazer o homem<br />

retornar ao estado normal está coerente com o objetivo de Deus.”<br />

285


“Mas por que o sangue se suja? A causa é bastante surpreendente:<br />

são os remédios, que paradoxalmente ocupam a posição de maior<br />

destaque nos tratamentos médicos. Como todo remédio é veneno,<br />

só de ingeri-lo o sangue já se suja e os fatos são a maior prova do<br />

que estamos dizendo. Portanto, não há nada de estranho em que,<br />

estando a pessoa sob tratamento médico, a doença se prolongue<br />

ou piore, ou que até surjam outras doenças.”<br />

“A propósito de os medicamentos se tornarem a causa de<br />

doenças, existe um ponto que as pessoas em geral não percebem.<br />

É o aparecimento de complicações, apesar de o doente estar se<br />

submetendo aos tratamentos médicos. Casos estes fossem<br />

realmente eficazes, a pessoa, com o decorrer do tratamento,<br />

deveria melhorar progressivamente, não havendo motivos para<br />

surgirem complicações. Se alguém, por exemplo, tem três<br />

doenças, deveria ficar com duas, depois com uma e sarar<br />

completamente. A seqüência dos fatos, no entanto, é justamente o<br />

contrário: uma doença acarreta duas, três doenças, em total<br />

desacordo com a lógica. E é estranho que nem os médicos nem os<br />

doentes tenham a menor desconfiança. Isso nos faz ver o quanto<br />

as pessoas confiam na Medicina, já chegando a ser uma espécie<br />

de superstição, o que eu não posso deixar de lamentar um instante<br />

sequer. Se a humanidade conseguir eliminar os medicamentos,<br />

não há dúvida de que as doenças irão desaparecendo<br />

gradativamente.”<br />

“Talvez achem estranho falar em depressão a propósito de bebês<br />

e crianças pequenas; trata-se, no entanto, de um fato real, pois,<br />

assim que o enrijecimento dos ombros é eliminado, a criança fica<br />

bem-humorada e volta à normalidade.”<br />

“Costuma-se dizer que, se a febre é alta, a pulsação também é, e<br />

isso porque, para absorver o elemento fogo, ou seja, o calor, o<br />

coração trabalha intensamente. Contudo, dependendo da doença,<br />

há casos em que a pulsação é baixa, nem sempre acompanhando a<br />

febre alta. Numa pessoa debilitada, se a pulsação é fraca e rápida,<br />

está sendo absorvido o elemento fogo, mas a força é insuficiente.<br />

Por isso, a melhor forma de se saber a intensidade da debilitação<br />

é através da pulsação. Quando esta é muito leve, a pessoa está<br />

bem debilitada. Isso pode ser percebido através dos sentidos. Às<br />

286


vezes a pessoa está fraca e o seu pulso bate lentamente. Ao invés<br />

de uma batida, parecem duas. É uma montanha, mas parecem<br />

duas. À primeira vista, parece normal, mas, observando melhor,<br />

há pontos estranhos. Isso acontece porque o coração está fraco,<br />

sendo mais freqüente em pessoas que sofrem de bronquite<br />

crônica.”<br />

“Por outro lado, por mais estranho que pareça, quem tem<br />

problemas nos braços ou nas pernas, ao receber Johrei<br />

direcionado aos gânglios linfáticos do pescoço, apresenta uma<br />

melhora fantástica. Realmente, isso é algo bem misterioso e<br />

interessante!”<br />

(pausa): Ufa! Também sobre medicina se tem muita coisa.<br />

VOZ DO MESTRE: Também, e daí?<br />

O <strong>ESTRANHO</strong>: “Embora se fale que ultimamente a medicina<br />

progrediu e que o avanço da cirurgia, em especial, é motivo de<br />

grande orgulho, pelo meu ponto de vista, não há engano maior.<br />

Não é necessária maior reflexão para se ver que o progresso da<br />

cirurgia significa, na realidade, a derrocada da medicina. Poderão<br />

achar isso estranho, mas, obviamente, a cirurgia é um método de<br />

extrair o órgão afetado pela doença, e não um método de extrair a<br />

doença em si.”<br />

“Acredito que as pessoas que lerem o título acima [A Medicina<br />

que se opõe ao Criador] vão achar um tanto estranho. Porém, não<br />

há o que fazer uma vez que se trata de uma realidade implacável.<br />

Atualmente, a medicina está falando de forma exagerada sobre o<br />

progresso da cirurgia, mas não existe algo tão equivocado como<br />

este. Por exemplo, suponhamos que alguém venha a sofrer de<br />

apendicite. Nesse caso, a medicina extrai o órgão imediatamente.<br />

“A razão disto - dizem os médicos - é que o apêndice é um órgão<br />

inútil para a saúde do corpo, e como existe tal órgão ocorre a<br />

apendicite, por isso é melhor extraí-lo.” Mas isso, na realidade é<br />

um fato pavoroso. A razão da sua existência está em Deus,<br />

Criador de todas as coisas. Acho que Ele não deve ter criado<br />

sequer uma única coisa inútil, na sua obra de criação de maior<br />

importância, que é o corpo humano. Mesmo que seja uma única<br />

287


unha ou um fio de cabelo, não há nada que seja inútil, cada qual<br />

está cumprindo suas funções. No entanto, o fato de simplesmente<br />

determinar como algo inútil, é porque a medicina não entende o<br />

fundamento dos órgãos do corpo humano. Assim sendo, a<br />

medicina cirúrgica atual se resume no termo “selvagem”. Neste<br />

sentido, a verdadeira medicina é aquela que não causa nenhum<br />

dano aos órgãos, e na forma original, consegue eliminar por<br />

completo o pus e o sangue tóxico que são as causas das<br />

enfermidades. Acho que a verdadeira medicina é aquela que se<br />

desenvolve passo a passo com esse objetivo. Por isso, a medicina<br />

cirúrgica atual é apenas um meio de aliviar temporariamente o<br />

sofrimento, não sendo uma medicina. Falando rigorosamente, não<br />

passa de um método cômodo de aliviar temporariamente o<br />

sofrimento. Não se limitando a isso, a conseqüência do alivio<br />

temporário faz com que todo o corpo fique debilitado e<br />

naturalmente acaba encurtando a vida. Realmente, isso significa<br />

ferir a obra do Criador, portanto, acho que isso é uma ação de<br />

traição ao Criador. Mesmo nesse sentido, o Johrei da nossa Igreja<br />

está de acordo com a Vontade do Criador e não é nenhum<br />

exagero dizer que ele é a Verdadeira Medicina.”<br />

“É tão estranho<br />

o mundo acreditar na medicina!<br />

Não debela definitivamente os males.<br />

Querendo curar,<br />

a droga do remédio fez aparecer,<br />

na verdade, um mundo repleto de doenças.”<br />

(pausa): Ufa!<br />

VOZ DO MESTRE: Vamos.<br />

O <strong>ESTRANHO</strong>: “Se pensarmos um pouco mais, vamos verificar<br />

que o processo de fabricação de remédios não mudou muito.<br />

Estão, sendo elaborados, mais ou menos, como antigamente.<br />

Acho que esse fato deveria proporcionar aos médicos algum<br />

motivo de dúvida; contudo, só acha muito estranho que o efeito<br />

não seja tão compensador quanto em outros tempos. É certo,<br />

porém, que, mesmo surgindo dúvida, nunca vão descobrir a<br />

288


verdade. Muitas vezes até constatam que doentes considerados<br />

definitivamente incuráveis pela medicina, são recuperados com<br />

facilidade pelo Johrei. Entretanto, só acham estranhas tais<br />

ocorrências. Nada mais, além disso. Contudo, do meu ponto de<br />

vista, considero realmente absurdo esse comportamento<br />

incrédulo. É mesmo difícil entender o pensamento da medicina”.<br />

“Comparada aos remédios, a guerra e a fome são insignificantes.<br />

Estas palavras podem parecer exageradas, mas eu asseguro que<br />

estou expondo apenas a verdade, claramente, tal qual tomei<br />

conhecimento, sem o mínimo exagero. E o que acho mais<br />

estranho é que os países considerados altamente civilizados ainda<br />

não a tenham percebido. Apesar de terem descoberto o principio<br />

da bomba atômica, não conseguiram descobrir os erros da<br />

Medicina”.<br />

“Por outro lado, observando-se a história humana, percebe-se que<br />

o enfraquecimento do corpo começou com a chegada da<br />

civilização materialista. Mesmo assim, em todas as partes do<br />

mundo, há um acentuado incentivo ao uso de medicamentos. Não<br />

lhes parece um fato estranho? É interessante observar também<br />

que são encontradas muitas pessoas com saúde perfeita e<br />

extraordinária vitalidade porque nunca tomaram espécie alguma<br />

de remédios.”<br />

“Se tudo que ocorre no Universo está fundamentado na<br />

precedência do espírito sobre a matéria, não há nada de estranho<br />

nos inúmeros milagres que acontecem. Para entender esses<br />

milagres, precisamos conhecer a relação entre o Mundo Espiritual<br />

e o Mundo Material.”<br />

“Também é importante entender que o corpo humano não mudou<br />

de vinte ou trinta anos para cá. Continua funcionamento dentro da<br />

mesma lógica com que foi criado há milhares de anos. Então não<br />

lhes parece estranho que o efeito das medicações não seja igual<br />

ao de alguns anos atrás? Até entre os médicos ouve-se dizer que<br />

antigamente os remédios curavam muito mais. Será que ocorreu<br />

alguma mudança no organismo do ser humano? Ou existe agora<br />

outra causa para não estar havendo curas como antes?”<br />

(pausa): Ufa!<br />

289


VOZ DO MESTRE: Vamos.<br />

O <strong>ESTRANHO</strong>: “Eu mesmo sempre presto muito atenção a esse<br />

ponto. Quando o problema não se resolve com relativa facilidade,<br />

acho estranho. Verificando a causa, descubro que estava<br />

colocando esforço físico. Portanto, cura-se muito bem e com<br />

rapidez, quando o Johrei for canalizado sem apego, sem o uso de<br />

força, com o ministrante num estado de concentração,<br />

permanecendo apenas como instrumento da Vontade de Deus.”<br />

“As pessoas ministram o Johrei na parte da frente uma vez que o<br />

paciente reclama de dor no estômago, mas esse procedimento é<br />

de certa forma fora do alvo. Por isso, mesmo que ocorra a<br />

redução da dor esta não desaparece por completo. Isto ocorre<br />

porque a verdadeira causa está na parte posterior, ou seja, nas<br />

costas. Se ministrar Johrei nas costas, exatamente atrás do<br />

estômago, a dor passará por completo. Pode achar isso um tanto<br />

estranho, mas na realidade há uma razão justa para isso, que vem<br />

a ser a seguinte: O homem, quando sente algum mal-estar no<br />

estômago logo procura tomar remédio. Toma o remédio e deita-se<br />

de costas, por isso, o remédio que ingeriu passa pela parede do<br />

estômago e dirige-se na parte posterior onde fica sedimentado”.<br />

“Qual o motivo desse atrofiamento? Conforme foi dito<br />

anteriormente, quando os rins procedem à separação das<br />

substâncias úteis e não úteis, há casos em que a elas se mistura<br />

um corpo muito estranho. Nem é preciso dizer que esse corpo<br />

estranho é a toxina dos remédios.”<br />

“Uma moça de mais ou menos 20 anos sentia muita dor num<br />

dente do lado direito e, ao lhe ministrar Johrei, logo passou. No<br />

dia seguinte, ela veio dizendo que doía novamente. Se fosse uma<br />

dor de dente comum, sararia com uma única ministração de<br />

Johrei. Entretanto, como ainda não havia sarado, pensei que<br />

deveria haver algum motivo. Então fui apalpado na região<br />

inferior do dente, cada vez mais para baixo até que, na região do<br />

peito, encontrei uma solidificação. Ela disse que sentia dor nesse<br />

local; assim que dissolvi essa solidificação ela sarou<br />

imediatamente. Entretanto, no dia seguinte ela veio novamente<br />

com dores. Achei estranho e novamente fui apalpando mais para<br />

290


aixo até que ela disse que a região do apêndice doía muito. Ao<br />

lhe ministrar Johrei nesse local, ela sarou completamente; como<br />

eu perguntasse, ela me disse que, anteriormente, havia feito<br />

operação do apêndice. Com isso, entendi que a dor era causada<br />

pelo desinfetante usado nessa ocasião. Ele se solidificara e, com a<br />

purificação passara pelo peito, até ser expelido pela gengiva.<br />

Como foi visto, era realmente inimaginável que a causa da dor de<br />

dentes estivesse na região do apêndice."<br />

“Sobre a tuberculose, o que relativamente não incita muito<br />

interesse é sua parte psicológica, que, no entanto, é uma das<br />

coisas mais importantes. Como todos sabem, quando uma pessoa<br />

recebe o comunicado de que ela é portadora de tuberculose, quem<br />

quer que seja, psicologicamente, recebe um grande choque; perde<br />

as esperanças no futuro e para ela o mundo se transforma numa<br />

escuridão total. É exatamente como se tivessem recebido uma<br />

pena de morte sem a definição do dia da execução. O estranho é<br />

que, talvez na tentativa de evitar isso, atualmente, as autoridades<br />

competentes e os médicos divulgam ativamente a teoria de que da<br />

cura da tuberculose depende da dieta e dos tratamentos; creio que<br />

a maioria das pessoas não leva isso a sério.”<br />

“O fato mais estranho é que segundo os resultados das estatísticas<br />

realizadas pela medicina, entre cem pessoas, cerca de noventa<br />

pessoas mostram vestígios de terem contraído tuberculose e estão<br />

curadas. Diz-se que descobriram isso através das autópsias. Por<br />

isso, a medicina deve estar a par daquilo que mencionei acima.<br />

Sendo assim, sempre penso como diminuiria o número de<br />

tuberculosos caso não se fizessem exames médicos. Entretanto,<br />

os médicos dirão: se a tuberculose não fosse transmissível, não<br />

haveria necessidade, mas como ela é uma doença contagiosa,<br />

uma vez possuindo a semente do vírus é muito perigoso. Para<br />

evitar o perigo, é preciso descobri-lo logo, pois descobrindo a<br />

doença na fase inicial, os tratamentos são mais eficazes.”<br />

"Um rapaz de vinte e poucos anos estava com tuberculose de<br />

terceiro grau e lhe saía muita tosse e catarro. Como sempre, lhe<br />

ministrei Johrei na cabeça, pescoço, ombros, etc., mas não surtia<br />

efeito. Examinando melhor, inesperadamente vi que ele tinha<br />

solidificações nas duas axilas e nas virilhas e havia bastante febre<br />

291


nesses locais. Apertando a região, ele sentia muita dor. "Ah, então<br />

é aqui"- pensei, e ministrei Johrei nesse local. Com um mês ele<br />

melhorou por completo. Naquele momento lhe disse brincando:<br />

"Seu pulmão tinha ido para os dois lados das axilas." Entretanto,<br />

houve uma coisa engraçada a esse respeito. Falei sobre esse caso<br />

com um médico famoso e ele duvidou. Então lhes falei: "Para<br />

experimentar, deixe-me ver as suas axilas." Ele se deitou e ao<br />

apertar o local, havia uma solidificação e também um pouco de<br />

febre. Assim que passei a ministrar Johrei ele começou a tossir e<br />

a expelir catarro, e ficou espantado, dizendo apenas que era muito<br />

estranho. Esse médico ainda hoje trabalha como professor de uma<br />

universidade."<br />

(pausa): Caramba! Também sobre medicina se tem muita coisa.<br />

VOZ DO MESTRE: E fora dela?!<br />

O <strong>ESTRANHO</strong>: “Pela teoria dietética acima, se ingerimos<br />

sangue, vitaminas, etc., qual será o resultado? Na realidade,<br />

haverá um enfraquecimento do corpo. Quem ler isto, achará<br />

estranho, mas, analisando mais profundamente, conseguirá<br />

entender. Se os órgãos digestivos produzem vitaminas a partir de<br />

alimentos que não as contém e nós comermos vitaminas, não<br />

haverá espaço para a atividade da função digestiva e,<br />

consequentemente, o aparelho digestivo enfraquecerá. Com o<br />

enfraquecimento de uma atividade tão importante como essa, é<br />

óbvio que a atividade dos outros órgãos que têm funções<br />

conjuntas, também enfraquecerá. Por conseguinte, praticando<br />

fielmente a teoria dietética da atualidade, obteremos resultados<br />

contrários.”<br />

“Parece estranho que se goste de comer arroz puro, mas há uma<br />

explicação para isso. O organismo do ser humano está constituído<br />

de modo a se adaptar ao ambiente; se a pessoa tiver<br />

continuamente uma alimentação simples, seu paladar sofrerá uma<br />

mudança - fato que não é muito conhecido - e a comida lhe<br />

parecerá saborosa. Ao contrário, quando a pessoa se habitua a<br />

uma alimentação requintada, acha esse tipo de alimentação cada<br />

vez mais saboroso e, por isso, procura pratos ainda mais<br />

292


equintados. É o que se vê com freqüência entre aqueles que<br />

levem uma vida luxuosa.”<br />

“Há um outro exemplo ainda. Os médicos recomendam às mães<br />

que tem pouco leite tomem leite de vaca, mas isso também é algo<br />

estranho, pensam que o leite que a mulher toma vai direto para o<br />

seio, mas isso é um absurdo”.<br />

(pausa): Puxa! Daqui a pouco se chega a cem ensinamentos.<br />

VOZ DO MESTRE: Tem razão, complemente com mais alguns.<br />

O <strong>ESTRANHO</strong>: “Mas por que motivo os espíritos de raposa<br />

encostam no homem? Encostam porque sentem prazer em<br />

enganá-lo e, ao mesmo tempo, porque quanto maior for sua<br />

habilidade nesse sentido, mais prestígios terão entre os<br />

companheiros. O assunto é por demais estranho, e os leitores<br />

poderão não acreditar, mas trata-se de uma realidade evidente,<br />

sem a menor parcela de erro ou falsidade.”<br />

“Nem seria necessário dizer, de tão óbvio, que o objetivo da<br />

religião é construir um mundo de paz, um mundo sem conflitos.<br />

Sendo assim, acho muito estranho o absoluto silêncio que, talvez<br />

por não saberem o que fazer, os religiosos mantêm atualmente,<br />

ante o perigo da Terceira guerra Mundial. Naturalmente, sem o<br />

apoio do Governo e por não poderem pegar em armas, devido à<br />

idade, eles deveriam, através de métodos pacíficos, compatíveis<br />

com a sua condição de religiosos, trabalhar para que a guerra seja<br />

evitada”.<br />

“Dizendo isso, começou a lhe apertar a garganta, e, nessa agonia,<br />

ela acabou acordando. Se fosse apenas isso, seria um sonho<br />

comum, porém houve um fato surpreendente: o aperto de<br />

garganta deixara-lhe marcas bem nítidas de unhas na pele, a qual<br />

ficara avermelhada, inchada e dolorida. O fato de o sonho, um<br />

processo espiritual, provocar um ferimento material, é algo<br />

estranho e inimaginável.”<br />

“Entretanto, quando observamos a realidade, notamos que são<br />

mais numerosos os exemplos de infelicidade do que de felicidade<br />

pelo amor. As brigas entre os homens, sofrimentos sem solução,<br />

destruição do destino, suicídio por amor, homicídios e outros<br />

293


fatos, desagradáveis, quase sem exceção, têm a causa no amor.<br />

Podemos dizer que se trata de algo realmente terrível. Sendo<br />

assim, escreverei, pelo ponto de vista religioso, a maneira correta<br />

de se lidar com o amor. Esse problema não é tão difícil assim. É<br />

muito fácil. Podem achar isso estranho, mas, em suma, o amor, na<br />

realidade, deve ser inteligente, corajoso e verdadeiro.”<br />

“O que é pior? Submeter-se a tratamento médico ou causar<br />

problema? Causar problema é bem pior. Deixar que a pessoa se<br />

submeta ao tratamento médico é melhor. Não causar problema é<br />

primordial. Se achar um pouco estranho, deve mostrar primeiro<br />

ao médico. Uma ou duas injeções não é nada grave; não tem<br />

problema. Mesmo que se diga que a injeção não é boa, ela é<br />

temporária, portanto, procedendo assim, no mais, deve-se pensar<br />

de forma adequada.”<br />

“A verdadeira religião deve fundamentar-se no universalismo.<br />

Não será verdadeira se for limitada a um país, povo ou classe,<br />

porque tal limitação provoca disputa de poderes, o que contraria a<br />

própria essência das religiões, cuja missão é eliminar conflitos e<br />

promover a paz. Qualquer hostilidade significa afastar-se do<br />

objetivo da Religião. Por isso, é estranho que a História registre<br />

tantas lutas religiosas.”<br />

“Por isso, para que possamos construir um mundo isento de<br />

doentes, basta que o número de ‘médicos messiânicos’ cresça e<br />

que ensinemos como não ficar doente. De que forma faremos<br />

isto? Fazendo com que as pessoas leiam os nossos livros. Neles<br />

apresentaremos os equívocos cometidos por todos os métodos de<br />

tratamento de saúde como também, os dos métodos de higiene e<br />

sanitarismo e ensinaremos o verdadeiro método. Basta que as<br />

pessoas o compreendam e o pratiquem conforme ensinamos.<br />

Futuramente escreveremos esses livros e faremos com que sejam<br />

lidos por toda a sociedade e quanto mais aumentar o número de<br />

‘médicos messiânicos’, melhor. Isto não é nada complicado e tão<br />

pouco estranho.”<br />

Ele se joga ao chão, todo suado, nada descansado, esperando<br />

apenas pela finalização.<br />

294


VOZ DO MESTRE: Depois disso tudo, você ainda quer<br />

continuar ...<br />

O deitado interrompe quem fala por este vê-lo aquele exausto se<br />

pondo de pé e abrindo um sorriso e assinalando positivamente.<br />

O <strong>ESTRANHO</strong>: Sim, quero continuar sendo diferente,<br />

simplesmente, porque eu aspiro a ser idêntico a todos os<br />

estranhos que algum dia irá se reunir e nenhum deles será mais<br />

considerado ...<br />

O <strong>ESTRANHO</strong><br />

FIM<br />

295


296


ÍNDICE<br />

DO LADO INICIAL 005<br />

O ET 007<br />

DO LADO OCIDENTAL 017<br />

O ISENTO 019<br />

O DESLIGADO 042<br />

O SUSPEITO 065<br />

O ARREDIO 085<br />

O DESTITUÍDO 105<br />

DO LADO ORIENTAL 121<br />

O MALFEITO 123<br />

O ESTRANGEIRO 143<br />

O PEREGRINO 165<br />

O BIZARRO 183<br />

DO LADO ESPACIAL 203<br />

O LUNÁTICO 205<br />

DO LADO ESPIRITUAL 231<br />

O DESCONHECIDO 233<br />

DO LADO FINAL 267<br />

O DIFERENTE 269<br />

297


298

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