Cristãos pretos no mundo colonial: irmandades de escravos e 77
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REVISTA ELETRÔNICA DE HISTÓRIA DO BRASIL<br />
http://www.rehb.ufjf.br<br />
ISSN 1519 - 5759<br />
cmqchaves_rehb@yahoo.com.br<br />
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Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora<br />
Departamento <strong>de</strong> História<br />
Arquivo Histórico da UFJF<br />
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Juiz <strong>de</strong> Fora - MG - Brasil<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil<br />
Volume 7 - Número 2 - Jul.- Dez. 2005<br />
1. História do Brasil 2.Periódicos Eletrônicos: História<br />
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Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil. Juiz <strong>de</strong> Fora: Departamento <strong>de</strong><br />
História e Arquivo Histórico da UFJF, 2005, volume 7, número 2, jul<strong>de</strong>z,<br />
2005, 134 p., http:// www.rehb.ufjf.br.<br />
ISSN 1519-5759<br />
1. História do Brasil 2. Periódicos Eletrônicos: História<br />
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Bolsista<br />
Aparecida Tavares
SUMÁRIO<br />
Apresentação 05<br />
DOSSIÊ: PODER E ADMINISTRAÇÃO NA AMÉRICA PORTUGUESA<br />
A justiça nas freguesias da comarca <strong>de</strong> Vila Rica <strong>no</strong> século XVIII: 06<br />
<strong>no</strong>rmatização e costumes<br />
Maria do Carmo Pires<br />
De volta às “condições da governabilida<strong>de</strong>”, na busca <strong>de</strong> um 20<br />
equilíbrio: <strong>no</strong>tas acerca da socieda<strong>de</strong> mineira na primeira<br />
meta<strong>de</strong> do século XVIII<br />
Carlos Leonardo Kelmer Mathias<br />
Organização militar <strong>no</strong> império português: uma análise das bases 37<br />
organizacionais e legislativas dos corpos <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nanças<br />
Ana Paula Pereira Costa<br />
Aspectos da administração portuguesa na América: um estudo <strong>de</strong> 61<br />
caso sobre as funções do provedor-mor da Bahia <strong>no</strong> século XVIII<br />
Charles Nascimento <strong>de</strong> Sá<br />
<strong>Cristãos</strong> <strong>pretos</strong> <strong>no</strong> <strong>mundo</strong> <strong>colonial</strong>: <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>escravos</strong> e <strong>77</strong><br />
forros em Minas Gerais – Século XVIII<br />
Ana Paula dos Santos Rangel<br />
“A forma <strong>de</strong> fazer testamento”: apontamentos acerca <strong>de</strong> um 93<br />
opúsculo setecentista<br />
Álvaro <strong>de</strong> Araújo Antunes<br />
JOVENS PESQUISADORES<br />
Os homens ricos das minas nas malhas do império português 102<br />
Carla Maria Carvalho <strong>de</strong> Almeida<br />
Ana Paula dos Santos Rangel<br />
Julia<strong>no</strong> Custódio Sobrinho<br />
Lívia Nascimento Monteiro<br />
Câmaras municipais e po<strong>de</strong>r local: O “avesso do <strong>de</strong>sejo” metropolita<strong>no</strong> 113<br />
Michelle Cardoso Brandão<br />
A irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nossa Senhora do Rosário dos Pretos do Alto da 122<br />
Cruz e os enterros <strong>de</strong> <strong>escravos</strong>: Vila Rica, século XVIII<br />
Juliana Aparecida Lemos Lacet
APRESENTAÇÃO<br />
Este número da <strong>no</strong>ssa série temática traz estudos referentes ao tema: Po<strong>de</strong>r e Administração<br />
na América Portuguesa. Trata-se <strong>de</strong> um assunto que tem merecido gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque <strong>no</strong>s estudos<br />
sobre América <strong>colonial</strong> <strong>no</strong>s últimos a<strong>no</strong>s e tem contado com um profícuo diálogo com a historiografia<br />
portuguesa recente. As relações entre a América portuguesa e Portugal tem sido re-avaliadas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />
<strong>no</strong>vas abordagens que <strong>de</strong>stacam intrincadas re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ntro do espaço imperial Luso-brasileiro e<br />
que <strong>no</strong>s apontam para as diversas formas <strong>de</strong> conflito, negociação, privilégios e mercês. A partir <strong>de</strong>stas<br />
<strong>no</strong>vas abordagens, <strong>de</strong>stacamos os trabalhos que enfatizam a organização do po<strong>de</strong>r administrativo na<br />
América portuguesa inserida <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma política imperial mais ampla.<br />
Assim, po<strong>de</strong>mos ver neste número questões sobre as esferas do po<strong>de</strong>r a da administração <strong>no</strong><br />
âmbito do Estado como a organização do po<strong>de</strong>r judiciário local e periférico, as formas e condições da<br />
governabilida<strong>de</strong>, o or<strong>de</strong>namento militar, a elaboração <strong>de</strong> testamentos como forma <strong>de</strong> transmissão <strong>de</strong><br />
po<strong>de</strong>r e riquezas, a estrutura administrativa e o provimentos <strong>de</strong> cargos. Bem como observar as formas<br />
constituídas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ntro da socieda<strong>de</strong> <strong>colonial</strong> como a inserção <strong>de</strong> <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> cativos e forros.<br />
Todos esses elementos abordados <strong>no</strong>s artigos que aqui apresentamos colocam-<strong>no</strong>s em contato com as<br />
mais recentes discussões historiográficas sobre as importantes esferas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, suas formas <strong>de</strong><br />
representação e seus mecanismos <strong>de</strong> reprodução. Po<strong>de</strong>mos observar que as formas do or<strong>de</strong>namento<br />
jurídico do estado e da socieda<strong>de</strong> <strong>colonial</strong>, como as aqui apresentadas, convergem para a sua<br />
compreensão <strong>de</strong>ntro dos estatutos e or<strong>de</strong>namentos jurídicos dos estados e socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Antigo<br />
Regime. Outro aspecto importante a se observar é a concentração <strong>de</strong> estudos relativos à Minas Gerais<br />
que, embora não tenham sido o <strong>no</strong>sso propósito, <strong>no</strong>s permite acompanhar as diversas faces do po<strong>de</strong>r<br />
constituído em um mesmo território.<br />
Por fim, acompanhando a mesma temática, apresentamos o resultado dos trabalhos<br />
mo<strong>no</strong>gráficos realizados por duas jovens pesquisadoras e que <strong>no</strong>s fazem atestar a qualida<strong>de</strong> das<br />
investigações que se tem produzido <strong>no</strong> âmbito do bacharelado em História em <strong>no</strong>sso país.<br />
Cláudia Maria das Graças Chaves<br />
Carla Maria Carvalho <strong>de</strong> Almeida
A JUSTIÇA NAS FREGUESIAS DA COMARCA DE VILA RICA NO<br />
SÉCULO XVIII: NORMATIZAÇÃO E COSTUMES<br />
Resumo:<br />
Este artigo está centrado na atuação dos oficiais<br />
<strong>de</strong> vintena da comarca <strong>de</strong> Vila Rica <strong>no</strong> século<br />
XVIII. Consi<strong>de</strong>rados oficiais me<strong>no</strong>res por<br />
ocuparem cargos me<strong>no</strong>s importantes da estrutura<br />
judiciária periférica do Império Português, eles<br />
eram responsáveis pela aplicação da justiça em<br />
mais baixa instância, ou seja, na esfera das<br />
freguesias.<br />
Palavras-chave:<br />
História do Brasil Colônia; Justiça; Câmara<br />
Municipal; Oficiais <strong>de</strong> Vintena.<br />
Maria do Carmo Pires<br />
Abstract:<br />
This article is centered on the activities of the<br />
officials of “vintena” of the District of Vila Rica in<br />
the centurie XVIII. Consi<strong>de</strong>red mi<strong>no</strong>r officials<br />
because they occupied positions less important in<br />
the judicial structure on the periphery of the<br />
Portuguese Empire, they were responsable for the<br />
application of justice at the lowest level, that is,<br />
the sphere of the regions outsi<strong>de</strong> the urban area.<br />
Key words:<br />
History of Colonial Brazil; Justice; “Câmara<br />
Municipal”; officials of “vintena”.<br />
A organização da justiça na comarca <strong>de</strong> Vila Rica subdividia-se em ouvidoria, termos e<br />
vintenas. Como representante da instância superior, o ouvidor – também conhecido como<br />
<strong>de</strong>sembargador e corregedor por acumular esses cargos – recebia apelações e agravos do juiz<br />
ordinário e do juiz <strong>de</strong> fora e, algumas vezes, também atuava como juiz <strong>de</strong> primeira instância 1 .<br />
Essa, por sua vez, era representada, <strong>no</strong> termo <strong>de</strong> Vila Rica, pelo juiz ordinário – eleito entre os<br />
"homens bons" para presidir a Câmara – que possuía variada gama <strong>de</strong> atribuições jurídico-<br />
administrativas, regidas pelas Or<strong>de</strong>nações Manuelinas e Filipinas, <strong>de</strong>ntre elas, participar da<br />
escolha do juiz <strong>de</strong> vintena 2 .<br />
No termo <strong>de</strong> Vila do Carmo/Mariana atuava o juiz <strong>de</strong> fora, magistrado <strong>de</strong> carreira <strong>no</strong>meado<br />
pela Coroa e presente na região <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1732. Em sua ausência, o vereador mais velho atuava<br />
como "juiz pela or<strong>de</strong>nação" 3 . O Rei se recusou a enviar um juiz <strong>de</strong> fora para Vila Rica, apesar das<br />
solicitações feitas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o a<strong>no</strong> <strong>de</strong> 1726 por D. Lourenço <strong>de</strong> Almeida. Esse governador insistia na<br />
necessida<strong>de</strong> da criação <strong>de</strong>sse cargo tanto para Vila Rica como para Vila do Carmo, alegando que<br />
os juízes ordinários eram "leigos, faziam gran<strong>de</strong>s abusos e mal sabiam ler" 4 . Marco Antônio<br />
Silveira <strong>de</strong>monstra que somente a partir <strong>de</strong> 1754 apareceram juízes letrados compondo a Câmara<br />
1 AGUIAR, Marcos Magalhães. Negras. Negras Minas Gerais: uma história da diáspora africana <strong>no</strong> Brasil <strong>colonial</strong>. 1999.<br />
Tese (Doutorado em História) – Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, São<br />
Paulo, p. 49.<br />
2 ALMEIDA, Cândido Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong>. Título 65 - Dos juízes ordinários e <strong>de</strong> fora, p.144, § 73,74. Código Filipi<strong>no</strong> ou<br />
Or<strong>de</strong>nações e Leis do Rei<strong>no</strong> <strong>de</strong> Portugal. 14 ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Instituto Philomathico, 1870.<br />
3 I<strong>de</strong>m.<br />
4 CARVALHO, Theophilo Feu <strong>de</strong>. Comarcas e Termos. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1922. Apud. LEMOS, Carmem<br />
S. A Justiça Local: Os juízes ordinários e as <strong>de</strong>vassas da comarca <strong>de</strong> Vila Rica (1750-1808). 2003. Dissertação<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
6
<strong>de</strong> Vila Rica, "após um longo período <strong>de</strong> total hegemonia <strong>de</strong> militares 5 . Em 1730 o governador<br />
<strong>no</strong>vamente insistiu na criação do cargo <strong>de</strong> juiz <strong>de</strong> fora para Vila Rica, mas esse oficial foi indicado<br />
apenas para Vila do Carmo 6 . Os camaristas <strong>de</strong> Vila Rica, à princípio, preocuparam-se com o<br />
<strong>de</strong>staque que a Vila do Carmo recebia com tal indicação, po<strong>de</strong>ndo, assim, firmar uma posição <strong>de</strong><br />
supremacia. De acordo com Russell-Wood, essa preocupação mostrou-se infundada, visto que o<br />
juiz <strong>de</strong> fora raramente interferiu <strong>no</strong>s negócios municipais <strong>de</strong> Vila Rica, mesmo quando presidia as<br />
reuniões do Senado 7 . Divergências surgiram somente <strong>no</strong>s momentos em que assumia o posto <strong>de</strong><br />
ouvidor interi<strong>no</strong>, po<strong>de</strong>ndo suspen<strong>de</strong>r providências tomadas pelos oficiais da Câmara e, por várias<br />
vezes, entrou em conflito com o ouvidor <strong>de</strong> Vila Rica 8 .<br />
As vintenas faziam parte da primeira instância, eram representadas pelas povoações <strong>de</strong> <strong>no</strong><br />
mínimo vinte vizinhos, possuindo um juiz <strong>de</strong><strong>no</strong>minado <strong>de</strong> vintena e seu escrivão. Esses oficiais,<br />
<strong>no</strong>meados anualmente pela Câmara, atuavam como auxiliares na aplicação da justiça e na<br />
administração do termo. Na Comarca <strong>de</strong> Vila Rica as vintenas eram representadas pelas<br />
freguesias e seus povoados subjacentes possuindo, algumas <strong>de</strong>las, um número bem expressivo<br />
<strong>de</strong> habitantes, o que significa que o juiz possuía sob sua jurisdição um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong><br />
pessoas, não somente 20 casas como a historiografia tem <strong>de</strong>monstrado. Preten<strong>de</strong>mos aqui<br />
i<strong>de</strong>ntificar os procedimentos e esfera <strong>de</strong> atuação dos vintenários <strong>no</strong> âmbito judiciário.<br />
Eram da responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses oficiais impor leis, fazer diligências <strong>no</strong>s arraiais e<br />
freguesias para as quais foram <strong>no</strong>meados, fazer todas as diligências por or<strong>de</strong>m do juiz ordinário,<br />
dar fé <strong>de</strong> todos os casos ocorridos <strong>no</strong> seu distrito e enviar à ca<strong>de</strong>ia os presos em flagrante ou<br />
con<strong>de</strong>nados pela justiça ordinária. As Or<strong>de</strong>nações estipulavam que o juiz <strong>de</strong> vintena <strong>de</strong>via<br />
resolver os casos conflituosos até a quantia <strong>de</strong> quatrocentos réis em locais com mais <strong>de</strong> 100<br />
vizinhos, todos sem apelação e sem processo, <strong>de</strong>vendo ser resolvidos verbalmente 9 . Não podia<br />
(mestrado em História) – Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia e Ciências Humanas da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais, Belo<br />
Horizonte, p.58.<br />
5<br />
SILVEIRA. O Universo do Indistinto: Estado e socieda<strong>de</strong> nas Minas Gerais setecentistas (1735-1808). São Paulo:<br />
Hucitec, 1997, pp.151-52. Esse autor <strong>de</strong>monstra que até a década <strong>de</strong> 1750, os juízes ordinários eleitos eram <strong>de</strong>tentores<br />
<strong>de</strong> postos militares. Sobre o perfil social dos juízes ordinários <strong>de</strong> Vila Rica após 1750, ver LEMOS. Op. Cit.<br />
6<br />
Arquivo Histórico Ultramari<strong>no</strong> (AHU) – Minas Gerais, cx. 16, docs, 49, 51 e 56.<br />
7<br />
Para esse <strong>no</strong>sso estudo, lemos os acórdãos da Câmara <strong>de</strong> Vila Rica para o século XVIII e percebemos que era o juiz<br />
ordinário quem presidia as reuniões.<br />
8<br />
RUSSEL-WOOD, A J. O Gover<strong>no</strong> Local na América Portuguesa: um estudo <strong>de</strong> divergência cultural. In: Revista<br />
Brasileira <strong>de</strong> História. São Paulo: ANPUH/Humanitas, v. 18, n.36, 1998, pp. 50-51. Sobre as divergências entre o juiz <strong>de</strong><br />
fora <strong>de</strong> Vila do Carmo/Mariana e o ouvidor <strong>de</strong> Vila Rica conferir. AHU, Minas Gerais, cx. 19, doc. 45; cx. 22, docs. 16 e<br />
19. Nesse último documento, o Dr. Antônio Freire da Fonseca Osório, juiz <strong>de</strong> fora <strong>de</strong> Vila do Carmo em 1732, informou<br />
a D. João V sobre os “excessos e injustiças” praticados por Sebastião <strong>de</strong> Souza Machado, ouvidor geral da comarca <strong>de</strong><br />
Vila Rica efetuando prisões <strong>de</strong> oficiais da justiça <strong>de</strong> Vila do Carmo. O juiz <strong>de</strong> fora soltou os oficiais que haviam sido<br />
con<strong>de</strong>nados pelo ouvidor: o carcereiro Sebastião <strong>de</strong> Souza Machado, o meirinho do campo Damião Francisco da Costa;<br />
o escrivão do meirinho das execuções Pedro da Costa Pereira e o escrivão do alcai<strong>de</strong> Luiz da Silva e Souza.<br />
9<br />
Quatrocentos réis formavam o montante máximo permitido pelas Or<strong>de</strong>nações nas causas em que os juízes ordinários<br />
podiam sentenciar verbalmente. Geralmente eram dívidas, ou "causas d'alma". O valor variava <strong>de</strong> acordo com o número<br />
<strong>de</strong> vizinhos: <strong>de</strong> 20 a 50 a alçada era <strong>de</strong> cem réis; <strong>de</strong> 50 a 100 era <strong>de</strong> duzentos réis; <strong>de</strong> 100 a 150, trezentos réis e daí<br />
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esolver contenda sobre bens <strong>de</strong> raiz e crimes, mas tinha permissão para pren<strong>de</strong>r os malfeitores<br />
em flagrante ou por requerimento <strong>de</strong> uma das partes da contenda 10 .<br />
No dia 21 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1736, um regimento dos juízes e escrivães <strong>de</strong> vintena foi registrado<br />
<strong>no</strong>s livros <strong>de</strong> provisões da Câmara <strong>de</strong> Vila Rica. Além das atribuições contidas nas Or<strong>de</strong>nações,<br />
recomendava que os oficiais <strong>de</strong>viam observar<br />
na alçada que na dita lei se lhe é até quatrocentos réis se <strong>de</strong>ve praticar o que se acha <strong>de</strong>terminado<br />
por resoluções régias para estas Minas que é o quádruplo do Rei<strong>no</strong>, pelo que po<strong>de</strong>rão julgar sem<br />
apelação nem agravo e executar até a quantia <strong>de</strong> <strong>de</strong>zesseis tostões sem apelação, nem agravo 11 .<br />
Temos aqui um exemplo <strong>de</strong> ampliação das atribuições e da jurisdição do ofício vintenário<br />
que, nas Minas, era quatro vezes maior que as <strong>de</strong>terminadas pelas Or<strong>de</strong>nações. Se na legislação<br />
do Rei<strong>no</strong> a quantia dos casos que podiam ser executados não ultrapassava o valor <strong>de</strong><br />
quatrocentos réis, nas Minas era <strong>de</strong> <strong>de</strong>zesseis tostões, ou seja, mil e seiscentos réis.<br />
Cabia ao <strong>de</strong>tentor do cargo <strong>de</strong> escrivão da vintena servir <strong>de</strong> juiz ou escrivão <strong>de</strong><br />
testamentos que <strong>de</strong>viam ser feitos a todos os moradores doentes do arraial. Para isso, teriam um<br />
livro rubricado pelo juiz <strong>de</strong> fora ou juiz ordinário para registrá-los, além <strong>de</strong> lançar as contas e as<br />
correições feitas pelo corregedor da Câmara.<br />
No dia 20 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1735, o Rei enviou uma carta aos oficiais da Câmara <strong>de</strong> Vila<br />
Rica alegando que<br />
[...] sendo ouvido o meu procurador da coroa e lhe parece [?] <strong>no</strong>meeis todos os a<strong>no</strong>s juízes da<br />
vintena com seus escrivães na forma da or<strong>de</strong>nação os quais po<strong>de</strong>m aprovar testamentos na falta<br />
dos tabeliões como <strong>no</strong> Rei<strong>no</strong> se pratica 12 .<br />
Os camaristas também acordaram que o seu escrivão enviasse or<strong>de</strong>ns aos juízes da<br />
vintena para que <strong>no</strong>tificassem seus escrivães que não tivessem livros para as "coimas e<br />
testamentos na forma que <strong>de</strong>ixou em correição o Dr. Provedor lhes apresentem <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> oito<br />
dias e não fazendo os hajam e conheçam suspensos e pagarão as certidões que remeteram a<br />
este senado <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> oito dias sob pena <strong>de</strong> suspensão" 13 .<br />
Todas as provisões dos escrivães da vintena continham a permissão para aprovar os<br />
testamentos. Na comarca <strong>de</strong> Vila Rica, inicialmente, eram chamados <strong>de</strong> escrivães da vintena e<br />
julgado dos testamentos e, ao prestarem juramento, <strong>de</strong>ixavam registrados seus sinais em um livro<br />
até 200 ou mais, a quantia era <strong>de</strong> quatrocentos réis. ALMEIDA, Cândido Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong>. Op. Cit., Título 65 - Dos juízes<br />
ordinários e <strong>de</strong> fora, pp.144, § 73,74.<br />
10 I<strong>de</strong>m. Saint Hilaire, em passagem pela região das Minas, <strong>no</strong> inicio do século XIX, afirmou que esse magistrado, que<br />
era assistido por seu escrivão, presidia aos inquéritos das causas crimes cometidas na zona <strong>de</strong> sua jurisdição, e<br />
enviava os autos a seu superior. Esse viajante <strong>de</strong>ve ter se enganado, pois os vintenários não possuíam permissão para<br />
sentenciar em causas crimes. SAINT-HILAIRE, Auguste <strong>de</strong>. Viagem pelas províncias do Rio <strong>de</strong> Janeiro e Minas Gerais.<br />
Belo Horizonte/São Paulo: Ed. Itatiaia/EDUSP, 1975, p. 158.<br />
11 Arquivo Público Mineiro (APM)-Câmara Municipal <strong>de</strong> Ouro Preto (CMOP), Livro <strong>de</strong> provisões. Cód. 32, fls.47-47v.<br />
12 APM – Câmara Municipal <strong>de</strong> Mariana (CMM) - Cód. 12, fls. 74-74v - 20/12/1735.<br />
13 APM – CMOP – Cód 42, fol. 47 – 13/09/1741.<br />
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do escrivão da Câmara com os quais "dariam fé pública". Em várias petições que moradores das<br />
freguesias dos termos <strong>de</strong> Vila Rica e Vila do Carmo/Mariana enviavam às Câmaras para<br />
<strong>no</strong>mearem oficiais vintenários, alegavam a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um oficial para aprovarem os<br />
testamentos 14 . Essa atribuição era regulada pelo regimento dos tabeliães <strong>de</strong> <strong>no</strong>tas e escrivães do<br />
judicial e do crime que or<strong>de</strong>nava:<br />
Em cada al<strong>de</strong>ia, que tiver vinte vizinhos, e estiver afastada da Cida<strong>de</strong>, ou Vila uma légua, haja uma<br />
pessoa apta para fazer os testamentos aos moradores da dita al<strong>de</strong>ia, que estiverem doentes em<br />
cama. E sendo feitas segundo a forma <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssas Or<strong>de</strong>nações, ser-lhes-ia dada fé, e autorida<strong>de</strong><br />
como que foram feitas por tabelião das <strong>no</strong>tas. E os oficiais da Câmara po<strong>de</strong>rão escolher a tal<br />
pessoa, morador na dita al<strong>de</strong>ia, e servirá o dito ofício em sua vida e dar-lhe-ão juramento escrito <strong>no</strong><br />
livro da Câmara, ao pé do qual <strong>de</strong>ixará feito seu sinal público. E será obrigado a ter um ca<strong>de</strong>r<strong>no</strong><br />
bem cozido, em que escreverá os ditos testamentos, quando lhes mandarem fazer nas <strong>no</strong>tas [...] e<br />
não tolhemos que os moradores <strong>de</strong>ssa al<strong>de</strong>ia possam fazer os testamentos, posto que doentes<br />
estejam, com os tabeliães das cida<strong>de</strong>s ou vila, ou como quiserem, segundo forma <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssas<br />
Or<strong>de</strong>nações 15 .<br />
Esse parágrafo do regimento dos tabeliães <strong>de</strong> <strong>no</strong>tas é o mesmo que está expresso em<br />
todas as provisões dos escrivães da vintena <strong>no</strong> que se refere à aprovação e escrita dos<br />
testamentos, e esses oficiais <strong>de</strong>viam receber também a mesma quantia que os tabeliães.<br />
A tabela I contém os registros <strong>de</strong> testamentaria do termo <strong>de</strong> Vila Rica para os a<strong>no</strong>s <strong>de</strong><br />
1757-1762 e 1786-93. Do total, 82,45% das aprovações ficaram a cargo dos escrivães da vintena<br />
e 17,55% foram feitos pelos tabeliães <strong>de</strong> Vila Rica, <strong>de</strong>vido a algum impedimento dos escrivães ou<br />
por que o testador foi até a se<strong>de</strong> do termo para aprovar seu testamento.<br />
TABELA I<br />
N o <strong>de</strong> aprovações <strong>de</strong> testamentos das freguesias do termo <strong>de</strong> Vila Rica<br />
(1757-62 e 1786-93)<br />
Oficiais N o %<br />
Escrivão da Vintena<br />
Tabelião<br />
Total<br />
47 82,45%<br />
10 17,54%<br />
57 100%<br />
Fonte: AHMI – Livros <strong>de</strong> Registros <strong>de</strong> Testamentos n os 1,2,3,4 e 20<br />
A execução dos testamentos era consi<strong>de</strong>rada <strong>de</strong> foro misto, pertencendo tanto à esfera<br />
eclesiástica quanto à secular. Para evitar confusões ou dúvidas nas duas instâncias, o Papa<br />
Gregório XV aprovou que houvesse uma alternância nas execuções. Assim, “os testamentos das<br />
pessoas que faleceram <strong>no</strong>s meses <strong>de</strong> janeiro, março, maio, julho, setembro e <strong>no</strong>vembro”<br />
pertenciam aos prelados e seus ministros e os testamentos dos meses restantes ficavam sob a<br />
14 AHU – Minas Gerais - Cód. 58, doc. 29, 1751.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
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esponsabilida<strong>de</strong> dos “provedores <strong>de</strong> S. Majesta<strong>de</strong>”. 16 Nas freguesias, os doentes ditavam a<br />
alguma pessoa as suas últimas vonta<strong>de</strong>s, seguindo um mo<strong>de</strong>lo existente para os testamentos e<br />
chamavam o escrivão da vintena para fazer a aprovação, tanto <strong>no</strong>s testamentos da alçada<br />
eclesiástica como da secular. Todas as aprovações seguiam um mo<strong>de</strong>lo como esse feito pelo<br />
escrivão da vintena <strong>de</strong> Itabira:<br />
Saibam quantos este público instrumento <strong>de</strong> aprovação <strong>de</strong> testamento última e <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira vonta<strong>de</strong><br />
ou como em direito mais válido for virem que <strong>no</strong> a<strong>no</strong> <strong>de</strong> nascimento <strong>de</strong> Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
<strong>de</strong> mil setecentos e sessenta e dois a<strong>no</strong>s aos treze dias do mês <strong>de</strong> julho do dito a<strong>no</strong> em esta<br />
freguesia da Nossa Senhora da Boa Viagem <strong>de</strong> Itabira distrito <strong>de</strong> Vila Rica <strong>de</strong> Nossa Senhora do<br />
Pilar <strong>de</strong> Ouro Preto em casas <strong>de</strong> morada da testadora <strong>de</strong>itada em cama em forma da enfermida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> que lhe sobreveio mas estando em todo o seu perfeito juízo e entendimento que Deus Nosso<br />
Senhor foi servido dar-lhe segundo o parecer <strong>de</strong> mim escrivão, testemunhas adiante assinadas na<br />
presença das quais logo por ela testadora das suas mãos às minhas me foram dadas três folhas <strong>de</strong><br />
papel como seu solene testamento escrito nelas e a todas as perguntas que eu escrivão lhe fiz me<br />
respon<strong>de</strong>u que sim a saber que este era o seu solene testamento o qual mandara escrever por<br />
Domingos Lopes da Costa ditando-lhe ela dita testadora por sua própria boca e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> escrito<br />
sendo lido por estar tudo a seu gosto <strong>de</strong> forma que o tinha or<strong>de</strong>nado o assinara o dito Domingos<br />
Lopes da Costa o que por este recebo ela por revogado outro qualquer testamento que antes <strong>de</strong>ste<br />
havia feito esse o presente que a ela como um solene testamento o qual em direito melhor se acha<br />
chamar por quanto tudo nele disposto é sua última vonta<strong>de</strong> por isso roga as justiças <strong>de</strong> Sua<br />
Majesta<strong>de</strong> lhe cumpram e guar<strong>de</strong>m e façam inteiramente cumprir e guardar na forma da maneira<br />
que nele se contém e <strong>de</strong>clara a mim escrivão me pediu lhe aprovasse para inteira valida<strong>de</strong> por<br />
quanto ela testadora o tinha aprovado e <strong>de</strong> <strong>no</strong>vo ratificava sua aprovação e seu testamento eu<br />
escrivão lhe aceitei e se acha escrito em três meias folhas <strong>de</strong> papel que ocupam quatro laudas e<br />
vinte e oito reiras da outra on<strong>de</strong> <strong>de</strong>i princípio a esta aprovação e o vi e examinei rubriquei a folhas<br />
com a minha rubrica que diz Pimenta e por estar sem vício em trezenhas borraduras nem cousa<br />
dúvida possa lhe aprovei e <strong>de</strong>i por aprovado tanto quanto em direito, <strong>de</strong>ver e posse inteiro<br />
instrumento <strong>de</strong> aprovação estando presentes [...] por mim escrivão Antônio José Pimenta em<br />
público e raso [...]<br />
Como as pequenas localida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>pendiam da vila e sua Câmara para organizá-las e<br />
controlá-las, a maior parte dos casos conflituosos <strong>de</strong>viam ser resolvidos neste âmbito, <strong>de</strong>vido à<br />
dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> aplicação da justiça nas áreas remotas e aos altos custos. No dia 8 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong><br />
1751, o ouvidor da comarca <strong>de</strong> Sabará, João <strong>de</strong> Souza <strong>de</strong> Mendonça Lobo escreveu ao Conselho<br />
Ultramari<strong>no</strong> <strong>no</strong>tificando a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>no</strong>mearem oficiais <strong>de</strong> vintena.<br />
Nesta comarca há arraiais distantes <strong>de</strong>sta vila quatro, seis, oito, <strong>de</strong>z, doze e mais léguas e o mesmo<br />
acontece <strong>no</strong> termo da Vila <strong>de</strong> Caeté. Os ditos arraiais, sendo populosos não têm vintenários <strong>de</strong> que<br />
muito necessitam, tanto para acudirem às rixas, portarem-se das feridas e mortes <strong>de</strong> sorte que<br />
pelos não haver, quase todos os corpos <strong>de</strong> <strong>de</strong>lito se fazem por testadas por não caber <strong>no</strong> possível<br />
po<strong>de</strong>r vir <strong>no</strong>tícia a esta vila para lá se mandar tabelião a tempo <strong>de</strong> se achar o corpo por enterrar,<br />
como também são precisos vintenários para fazerem principalmente em causas módicas, citações e<br />
mais diligências, pois muitas pessoas por temerem as custas das mesmas diligências, e importarem<br />
estas em mais do seu principal, não <strong>de</strong>mandam os seus <strong>de</strong>vedores. São outrossim precisos os<br />
15 Regimento que os tabeliães das <strong>no</strong>tas e escrivães do judicial e do crime <strong>de</strong> todo o Rei<strong>no</strong> hão <strong>de</strong> ter, conforme a <strong>no</strong>va<br />
reformação das Or<strong>de</strong>nações do Rei<strong>no</strong>, mandando observar por Sua Magesta<strong>de</strong>. In: Systema, ou Collecção dos<br />
Regimentos Reaes. Lisboa: Na Officina Patriarcal <strong>de</strong> Francisco Luiz Ame<strong>no</strong>, 1789, livro 9, p.99.<br />
16 VIDE, Dom Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). Coimbra: s.n., 1720,<br />
Livro 4, tit.43, § 803.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
10
vintenários <strong>no</strong>s ditos arraiais, principalmente o escrivão <strong>de</strong> vintena para aprovar testamentos como<br />
o fazem em Pernambuco 17 .<br />
Em 26 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1<strong>77</strong>8 os oficiais da Câmara <strong>de</strong> Vila Nova da Rainha também<br />
escreveram ao Conselho Ultramari<strong>no</strong> pedindo autorização para que todas as diligências das<br />
freguesias fossem realizadas por oficiais vintenários 18 .<br />
Todas as provisões <strong>de</strong> juiz e escrivão da vintena contêm a atribuição <strong>de</strong> cobrar as coimas<br />
que eram con<strong>de</strong>nações pecuniárias.<br />
O regimento e "prática que há <strong>de</strong> usar por estilo <strong>no</strong> seu ofício <strong>de</strong> escrivão da vintena da<br />
freguesia <strong>de</strong> São Bartolomeu, Domingos da Costa Portela", por provimento dado em correição <strong>no</strong><br />
a<strong>no</strong> <strong>de</strong> 1741, contém o salário que o escrivão <strong>de</strong>veria receber<br />
e estas con<strong>de</strong>nações que fizerem nas formas das posturas será obrigado o escrivão da vintena a<br />
assentar em livro e será a terça parte <strong>de</strong>les para as rendas da Câmara <strong>de</strong>ste distrito que se<br />
carregarão em receita <strong>no</strong>s livros da mesma Câmara e levarão os salários pelos testamentos o<br />
mesmo que levam os tabeliães. E pelas coimas o que leva o escrivão da almotaçaria pela sua<br />
escrita 19 .<br />
Além da cobrança das penas pecuniárias, os oficiais vintenários eram responsáveis por<br />
enviar à prisão as pessoas envolvidas em conflitos tendo sido presas em flagrante ou por or<strong>de</strong>m<br />
do juiz ordinário ou <strong>de</strong> fora e a maior parte dos casos diz respeito a bens penhorados que as<br />
pessoas se negavam a entregar à justiça para "colocá-los em praça", além das coimas que não<br />
eram pagas 20 .<br />
Po<strong>de</strong>mos também acompanhar os procedimentos judiciais dos vintenários nas <strong>de</strong>vassas,<br />
processos crimes e cíveis, querelas e ações <strong>de</strong> juramento d’alma. As diligências e os mandados<br />
que eram enviados às vilas ficavam sob a responsabilida<strong>de</strong> dos vintenários.<br />
As ações d’alma eram referentes a créditos com valores módicos. Eram processos cíveis<br />
sumários que, por meio <strong>de</strong> juramento, a justiça buscava solucionar conflitos referentes a créditos.<br />
Mesmo quando o acordo entre as partes não era selado com papéis escritos e sinais, o credor<br />
requeria ao juiz a citação do <strong>de</strong>vedor para “jurar em sua alma”, ou seja, para confirmar ou negar a<br />
dívida. 21 A palavra dada era a solução para os conflitos e se tornava questão <strong>de</strong> honra, além da<br />
salvação da alma. As Or<strong>de</strong>nações regulavam os procedimentos jurídicos <strong>de</strong>ssas ações:<br />
17<br />
AHU - Minas Gerais - cx. 58, doc.29. Esse documento reforça a atribuição do escrivão da vintena para aprovar<br />
testamentos.<br />
18<br />
AHU - Minas Gerais - cx. 113, doc.18.<br />
19<br />
APM- CMOP, Cód. 22, fls. 72v, 27-05-1741.<br />
20<br />
APM – CMOP, Cód. 50, fls, 24v, 12.01.1743.<br />
21<br />
Para o termo <strong>de</strong> Vila Rica há 421 ações <strong>de</strong> alma e 610 ações <strong>de</strong> crédito referentes aos a<strong>no</strong>s <strong>de</strong> 1751-1808. Esses<br />
dados me foram passados por Álvaro Antunes a quem agra<strong>de</strong>ço. As ações <strong>de</strong> crédito são muito parecidas com as <strong>de</strong><br />
juramento d’alma. Para Mariana não <strong>de</strong>tectamos o número <strong>de</strong> ações, mas, como é muito elevado para toda a comarca<br />
<strong>de</strong> Vila Rica, optamos apenas por pesquisar o códice 2<strong>77</strong> do Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência (AHMI),<br />
somente para oferecer exemplos dos procedimentos dos vintenários nesses casos. Esse códice também foi sugerido<br />
por Antunes por conter várias citações realizadas pelos vintenários. Essas ações d’ama e <strong>de</strong> créditos são encontradas<br />
tanto na justiça secular como na eclesiástica, mas nessa última os valores eram mais elevados que na secular,<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
11
[...] mandá-lo-ia o juiz citar por carta, ou porteiro, ou por outra maneira, para vir perante ele. E se<br />
esta parte citada por juramento dos Evangelhos negar o que lhe o autor <strong>de</strong>manda, absolva-o logo o<br />
juiz <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>manda, e con<strong>de</strong>ne o autor nas custas, que lhe por causa <strong>de</strong>sta citação fez citar. E se o<br />
citado não quiser jurar, e recusar o juramento, e o autor jurar que o réu lhe é obrigado em aquilo que<br />
lhe <strong>de</strong>manda, o juiz con<strong>de</strong>ne o réu por sentença em que o autor jurar, que o réu lhe é obrigado<br />
pagar, pois o réu, em cujo juramento o autor o <strong>de</strong>ixava, não quis jurar 22 .<br />
A instabilida<strong>de</strong> do mercado mineiro era visualizada pela insuficiência dos meios <strong>de</strong><br />
circulação do ouro e a expansão do sistema <strong>de</strong> crédito foi resultado da carência e inconstância do<br />
ouro em pó como moeda. A própria socieda<strong>de</strong> forjou, <strong>no</strong> cotidia<strong>no</strong>, uma solução efetivando “a<br />
palavra escrita ou falada” como <strong>no</strong>va moeda <strong>no</strong> conjunto das transações diárias. “O fiado e a<br />
dívida eram generalizados” e acordos estipulados ou papéis assinados representando<br />
empréstimos ou vendas a prazo eram muito comuns nas transações cotidianas. As Minas<br />
oscilavam entre duas posturas opostas – o juramento da verda<strong>de</strong> e manutenção da palavra ―, o<br />
que reforçava todo um mo<strong>de</strong>lo comportamental e valorativo. O rompimento dos acordos colocava<br />
em xeque a eficácia da lei e a sociabilida<strong>de</strong> 23 .<br />
Nas freguesias as citações dos acusados eram feitas pelos vintenários. O juiz da vintena<br />
<strong>de</strong> Itabira, Ma<strong>no</strong>el da Silva Sampaio, foi à paragem <strong>de</strong><strong>no</strong>minada Mota para citar Ma<strong>no</strong>el Ferreira<br />
<strong>de</strong> Azevedo, <strong>de</strong>vedor da quantia <strong>de</strong> mil e duzentos réis ao padre Sebastião Rodrigues <strong>de</strong><br />
Carvalho. 24 Ma<strong>no</strong>el Francisco da Silva, juiz <strong>de</strong> São Bartolomeu, citou ao sapateiro Serafim<br />
Francisco Maia e sua mulher, <strong>de</strong>vedores <strong>de</strong> duas oitavas, um quarto e quatro vinténs. 25 Em 1799,<br />
o juiz ordinário <strong>de</strong> Vila Rica, Dr. Diogo Pereira Ribeiro <strong>de</strong> Vasconcelos enviou um carta precatória<br />
citatória à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mariana, a favor do sargento mor Diogo José da Silva Saldanha, para serem<br />
citados João Gonçalves Vieira e sua mulher Maria <strong>de</strong> Almeida que<br />
[...] lhe compraram várias fazendas secas e das quais lhe ficaram <strong>de</strong>vendo <strong>de</strong> resto trinta e<br />
cinco oitavas e <strong>de</strong> caução lhe <strong>de</strong>ram um cordão <strong>de</strong> ouro com o peso <strong>de</strong> sete oitavas e três quartos e<br />
comprando uma fazenda <strong>no</strong> termo <strong>de</strong> Mariana para as partes do Rio Peixe e Pomba, na capela <strong>de</strong><br />
Nossa Senhora das Mercês para a qual <strong>de</strong>sta se mudaram [...]<br />
José Pereira Malta, escrivão da vintena <strong>de</strong> Guarapiranga esteve na freguesia <strong>de</strong> São<br />
Ma<strong>no</strong>el do Rio Pomba e citou os <strong>de</strong>vedores a comparecerem na primeira audiência que seria<br />
realizada em Vila Rica. Dois a<strong>no</strong>s <strong>de</strong>pois esse caso ainda se arrastava e o juiz da vintena Ma<strong>no</strong>el<br />
<strong>de</strong> Oliveira Couto também reiterou a citação 26 .<br />
ultrapassando 50 mil réis. Necessitamos <strong>de</strong> pesquisas que <strong>de</strong>sven<strong>de</strong>m a atuação <strong>de</strong>ssas duas instâncias, bem como os<br />
procedimentos para os casos mixti-fori. Sobre a justiça eclesiástica ver: PIRES, Maria do Carmo. Juízes e Infratores: o<br />
Tribunal Eclesiástico do Bispado <strong>de</strong> Mariana (1748-1808). 1997. Dissertação (Mestrado em História) – Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Direito e Serviço Social da Universida<strong>de</strong> Estadual Paulista, Franca.<br />
22<br />
ALMEIDA, Cândido Men<strong>de</strong>s. Op. Cit. Livro 3, tít. LIX, § 5.<br />
23<br />
SILVEIRA. Op. Cit., p. 99-100.<br />
24 o<br />
AHMI – Ação d’Alma – cód. 2<strong>77</strong>, auto 5741, 1781, 1 of., fl. 3.<br />
25 o<br />
AHMI – Ação d’Alma – cód. 2<strong>77</strong>, auto 5746, 1796, 1 of., fl. 3.<br />
26 o<br />
AHMI – Ação d’Alma – cód. 2<strong>77</strong>, auto 5<strong>77</strong>1 – 1 of., fls. 3v, 6 e 15v.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
12
Em algumas das sentenças <strong>de</strong> juramento d’alma, os vintenários também tiveram a<br />
incumbência <strong>de</strong> fazer as procurações e petições dos autores e <strong>de</strong>verores. Ma<strong>no</strong>el da Silva<br />
Sampaio, juiz da vintena da freguesia <strong>de</strong> Itabira, esteve na paragem <strong>de</strong><strong>no</strong>minada Paraopeba da<br />
Moeda, na casa <strong>de</strong> Domingos Gonçalves Barroso para fazer uma procuração:<br />
[...] que reconheço pelo próprio <strong>de</strong> que trato faço menção e disso dou fé e por ele me foi dito que<br />
fazia e constataria seus procuradores em Vila Rica aos doutores Joaquim Antônio Velho, João<br />
Anastácio Rodrigues <strong>de</strong> Souza e aos solicitadores <strong>de</strong> causas o alferes Guilherme Teixeira e José<br />
Antônio Neves para que todos juntos e cada um <strong>de</strong> per si possam em seu <strong>no</strong>me como se presente<br />
fosse procurar, requerer, alegar, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r e mostrar todo o seu direito a justiça na causa <strong>de</strong> ação <strong>de</strong><br />
juramento d’alma que quer mover a José Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Souza [...] 27<br />
Nessa mesma ação o escrivão da vintena Antônio José Pimenta, <strong>no</strong> dia 24 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong><br />
1782, em sua “casa <strong>de</strong> morada”, fez a citação e a procuração do acusado que reconheceu a<br />
dívida, mas estava impossibilitado <strong>de</strong> comparecer na audiência em Vila Rica 28 .<br />
As <strong>de</strong>vassas <strong>de</strong>finidas como "uma informação do <strong>de</strong>lito, feita por autorida<strong>de</strong> do juiz ex-<br />
oficio [...] or<strong>de</strong>nadas para que não havendo acusador não ficassem os <strong>de</strong>litos impunidos",<br />
correspondiam a um procedimento jurídico sumário <strong>de</strong> inquirição <strong>de</strong> testemunhas feito pelo juiz<br />
para apurar <strong>de</strong>litos que afetavam a tranqüilida<strong>de</strong> pública 29 . As <strong>de</strong>vassas gerais eram tiradas<br />
quando não havia um conhecimento prévio dos <strong>de</strong>litos ocorridos <strong>no</strong> termo. Como exemplo temos<br />
as diamantinas e as janeirinhas, realizadas todo mês <strong>de</strong> janeiro com o objetivo <strong>de</strong> controlar os<br />
casos envolvendo a população e fiscalizar os procedimentos dos oficiais <strong>de</strong> justiça. As específicas<br />
eram tiradas para apurar <strong>de</strong>litos variados que se tornaram públicos, especificados nas<br />
Or<strong>de</strong>nações 30 .<br />
A inquirição <strong>de</strong> testemunhas ocorria por clamor do povo, remontando ao Direito<br />
Consuetudinário baseado na oralida<strong>de</strong> e <strong>no</strong> costume e o rito processual era simples e sumário.<br />
Carmem Lemos <strong>de</strong>staca a natureza provisória do inquérito evi<strong>de</strong>nciada pela expressão latina si et<br />
in quantum, contida em mais <strong>de</strong> 90% da abertura dos autos, indicando o caráter confi<strong>de</strong>ncial da<br />
prova, aceita até que outros motivos cessassem a ação. A isso se somava a exigência <strong>de</strong><br />
apuração rápida prevista para 30 dias. Também<br />
somar-se-ia às constatações <strong>de</strong> ações preliminares sumárias, o registro <strong>de</strong> que apenas o corpo <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>lito e a prova testemunhal eram suficientes para sustentar a <strong>de</strong>cisão do juiz ordinário na <strong>de</strong>vassa,<br />
que findava com a indicação do réu, sua prisão e subseqüente indicação para que tivesse início um<br />
<strong>no</strong>vo processo, os autos <strong>de</strong> livramento ― cíveis e crimes ―, <strong>no</strong>s quais suce<strong>de</strong>riam a investigação<br />
plena, com base argumentativa sustentada pelos fundamentos do Direito, em que a <strong>de</strong>fesa e outros<br />
tipos <strong>de</strong> provas e instrumentos jurídicos legais po<strong>de</strong>riam ser acionados 31 .<br />
27 o<br />
AHMI – Ação d’Alma – cód. 2<strong>77</strong>, auto 5<strong>77</strong>8 – 1 of., fls.5-5v.<br />
28 o<br />
AHMI – Ação d’Alma – cód. 2<strong>77</strong>, auto 5<strong>77</strong>8 – 1 of., fl. 6.<br />
29<br />
Para uma comparação entre o universo das <strong>de</strong>vassas eclesiásticas e as <strong>de</strong>vassas da justiça secular, ver: PIRES. Op.<br />
Cit., e LEMOS. Op. Cit.<br />
30<br />
ALMEIDA, Cândido Men<strong>de</strong>s. Op. Cit. Livro I, tit. 65. Não é <strong>no</strong>sso objetivo aqui analisar o universo dos <strong>de</strong>litos das<br />
<strong>de</strong>vassas. Para uma maior compreensão das <strong>de</strong>vassas, ver: LEMOS. Op. Cit.<br />
31<br />
LEMOS. Op. Cit., p. 93.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
13
Os casos <strong>de</strong> <strong>de</strong>vassas do termo <strong>de</strong> Vila Rica são divididos em 50% ferimentos, 33%<br />
mortes, 5% furtos e 12% subdivididos em fuga da ca<strong>de</strong>ia, incêndio, extravio <strong>de</strong> diamantes,<br />
feitiçaria e <strong>de</strong>vassas janeirinhas 32 .<br />
Percebemos, nesse universo <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncias por "ouvir dizer", que o corpo <strong>de</strong> <strong>de</strong>lito<br />
compreendia um elemento indispensável por atestar a existência da ocorrência. Era a base<br />
essencial <strong>de</strong> todo o procedimento criminal, tratando quase que exclusivamente <strong>de</strong> crimes <strong>de</strong><br />
agressão e <strong>de</strong> homicídio. Segundo Marcos Aguiar, as taxas <strong>de</strong> crimes sobre violência e vida na<br />
comarca <strong>de</strong> Vila Rica <strong>no</strong> século XVIII eram elevadas. Em Mariana variavam <strong>de</strong> 51% a 60% na<br />
primeira meta<strong>de</strong> do século contra 42% <strong>de</strong> Vila Rica, para se estabilizar em tor<strong>no</strong> <strong>de</strong> 40% em<br />
meados do século, convergindo com a periodização proposta acerca do processo <strong>de</strong><br />
implementação do Estado na capitania. Segundo ele, esses dados representam sintomas do<br />
crescimento <strong>de</strong>mográfico e da urbanização. Além disso, o elevado número <strong>de</strong> crimes <strong>de</strong> violência<br />
e <strong>de</strong> honra na primeira meta<strong>de</strong> do setecentos e a intensificação <strong>de</strong> ações criminais eram<br />
respostas do Estado a essa situação crítica 33 .<br />
Nos casos <strong>de</strong> violência, o juiz da vintena e seu escrivão faziam o papel do atual perito<br />
criminal, <strong>de</strong>frontando-se com situações extremamente <strong>de</strong>sagradáveis que impressionam pelo grau<br />
<strong>de</strong> violência e mutilação dos feridos. Em Ouro Branco, o escrivão Francisco Coelho Simões foi<br />
chamado à casa <strong>de</strong> Ma<strong>no</strong>el Pacheco que estava "já sem fala" chegando a falecer por causa <strong>de</strong><br />
uma porretada "que lhe <strong>de</strong>ram na cabeça por reta da sobrancelha direita [com] uma ferida contusa<br />
feita com um pau que principiava da raiz do cabelo e chegava até o alto da cabeça que tinha<br />
carne do couro cortado com perda <strong>de</strong> substância" 34 . Na paragem chamada Água ver<strong>de</strong>,<br />
pertencente à freguesia <strong>de</strong> Congonhas do Campo, o escrivão Alexandre Moura, juntamente com o<br />
juiz Antônio Rodrigues Guimarães, encontraram um corpo sendo comido por porcos 35 .<br />
Os vintenários <strong>de</strong>ssa mesma freguesia, <strong>no</strong> a<strong>no</strong> <strong>de</strong> 1753, encontraram Leandro Francisco<br />
da Costa, morto em sua casa, com uma ferida <strong>no</strong> "ventre com couro e carne cortada e penetrante<br />
da parte esquerda com a largura <strong>de</strong> quatro <strong>de</strong>dos [...] que mostrava ser feita com instrumento<br />
perfurante”. O interessante nesse caso é que o cirurgião havia sido chamado para curar as feridas<br />
e, ao examiná-lo, disse que não havia nenhum membro inter<strong>no</strong> gravemente ferido que pu<strong>de</strong>sse<br />
levá-lo à morte. Porém, Leandro da Costa faleceu meia hora após o exame. Dessa vez o cirurgião<br />
alegou que a causa da morte foi "por logo se lhe não acudir e passar quase que uma hora <strong>de</strong>pois<br />
32 I<strong>de</strong>m, p.105.<br />
33 AGUIAR. Op. Cit., p.79-83.<br />
34 AHMI - Cód. 450, auto 9496, 1 o ofício, fl. 2.<br />
35 AHMI - Cód. 180, auto 33140,1 o of., fl.2, 1749.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
14
que recebeu a dita ferida e se ter escoado muito sangue como também estar algum tanto turvado<br />
<strong>de</strong> bebidas, causa para mais <strong>de</strong>pressa se lhe exalar os espíritos" 36 .<br />
José do Couto, escrivão da freguesia <strong>de</strong> Itatiaia encontrou um<br />
cadáver que já se achava sem carne alguma, ossos já separados uns dos outros e ao pé dos ditos<br />
ossos, achei uns sapatos com fivelas <strong>de</strong> metal, chumbo e a camisa <strong>de</strong> riscado e a caveira na parte<br />
direita com uma amassadura que parece ser <strong>de</strong> pancada com que foi morto e na nuca lhe achei<br />
outra amassadura e com falta <strong>de</strong> uns <strong>de</strong>ntes na boca 37 .<br />
TABELA II<br />
N o <strong>de</strong> oficiais responsáveis pelos autos das Devassas das Freguesias<br />
do Termo <strong>de</strong> Vila Rica (1736-1808)<br />
Oficiais N o %<br />
Escrivão e Juiz da Vintena<br />
Escrivão da Vintena<br />
Tabelião<br />
47<br />
9<br />
7<br />
74,60<br />
14,29<br />
11,11<br />
Total 63 100%<br />
FONTE: AHMI – Série Devassas.<br />
A tabela II dimensiona os procedimentos dos vintenários nas <strong>de</strong>vassas, mostrando que os<br />
autos <strong>de</strong> corpo <strong>de</strong> <strong>de</strong>lito das freguesias eram realizados por esses oficiais. Destacamos mais uma<br />
vez a importância <strong>de</strong>sse procedimento e, em conseqüência, a relevância também da participação<br />
do juiz e do escrivão da vintena na estrutura judiciária <strong>colonial</strong> 38 .<br />
A violência constituía elemento estrutural <strong>de</strong> sistemas escravistas, assumindo a forma <strong>de</strong><br />
linguagem para acomodação ou ruptura das relações <strong>de</strong>siguais. Foi interiorizada <strong>no</strong> <strong>mundo</strong><br />
<strong>colonial</strong> e utilizada tanto pelo po<strong>de</strong>r instituído quanto pelos focos <strong>de</strong> resistência ao sistema 39 . Em<br />
Minas <strong>no</strong> a<strong>no</strong> <strong>de</strong> 1<strong>77</strong>6, a população era constituída <strong>de</strong> 70769 brancos (22,13%), 82000 pardos<br />
(25,64%) e 167000 <strong>pretos</strong> (52,23%). Essa flagrante superiorida<strong>de</strong> numérica da população negra<br />
seria característica da região durante todo o século XVIII, po<strong>de</strong>ndo ser percebida ainda nas<br />
36 AHMI - Cód. 446 - auto 93<strong>77</strong>, 1 o of., fl 2.<br />
37 AHMI - Cód.450, auto 9491, 1 o of., fl. 2v, 1755.<br />
38 O número <strong>de</strong> autos <strong>de</strong> <strong>de</strong>vassas pesquisado não condiz com o número <strong>de</strong> <strong>de</strong>vassas tiradas <strong>no</strong> Termo <strong>de</strong> Vila Rica<br />
durante o período estudado. Po<strong>de</strong>mos ter uma dimensão <strong>de</strong>sses números <strong>no</strong> livro <strong>de</strong> distribuição <strong>de</strong> <strong>de</strong>vassas contido<br />
<strong>no</strong> APM para os a<strong>no</strong>s <strong>de</strong> 1741-1809, correspon<strong>de</strong>ndo a um total <strong>de</strong> 1427 autos. Carmem Lemos, também pesquisou<br />
esse livro e já <strong>de</strong>monstrou que mais <strong>de</strong> 90% <strong>de</strong>sse total se per<strong>de</strong>u.<br />
39 Ver. LARA, Sílvia H. Campos da Violência: <strong>escravos</strong> e senhores na capitania do Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1750-1808. Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro: Paz e Terra, 1988.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
15
primeiras décadas dos setecentos 40 . Assim, a mestiçagem era vista como um dos principais<br />
elementos causadores dos <strong>de</strong>feitos da população mineira. Esse elevado número <strong>de</strong> negros e<br />
mestiços justifica o alto índice <strong>de</strong> violência envolvendo <strong>escravos</strong> e forros, tanto como vítimas ou<br />
agressores.<br />
Segundo Marcos Aguiar, embora ocorresse em me<strong>no</strong>r número que os crimes individuais, a<br />
incidência <strong>de</strong> crimes coletivos em Mariana era mais elevada que em Vila Rica. Tal averiguação<br />
situa Mariana próximo aos parâmetros estabelecidos para o termo <strong>de</strong> Sabará <strong>de</strong>vido,<br />
principalmente, à configuração socio-econômica e cultural complexa do seu extenso termo, on<strong>de</strong><br />
algumas freguesias estavam associadas à realida<strong>de</strong> dos sertões 41 .<br />
Alguns autos <strong>de</strong> <strong>de</strong>vassas foram abertos para apurar <strong>de</strong>litos coletivos como assuadas e<br />
motins. A agressivida<strong>de</strong> dos ataques ficou <strong>de</strong>monstrada em relatos <strong>de</strong> testemunhas e em autos <strong>de</strong><br />
corpo <strong>de</strong> <strong>de</strong>lito, como os que se seguem:<br />
[...] achamos a um crioulo escravo do capitão José da Mota Araújo, morto, por <strong>no</strong>me Manuel <strong>de</strong><br />
Souza com uma ferida <strong>no</strong> peito da parte do coração, penetrante, da qual botou gran<strong>de</strong> cópia <strong>de</strong><br />
sangue e com uma orelha cortada, e também mais outro comprimento <strong>de</strong> três <strong>de</strong>dos e meio [...] e<br />
mais um negro por <strong>no</strong>me Caeta<strong>no</strong>, escravo <strong>de</strong> Francisco Luiz <strong>de</strong> Souza, com um braço passado <strong>de</strong><br />
uma zagaia <strong>de</strong> que dizem ficara aleijado e outra zagaia nas costas e um filho <strong>de</strong> [...] Silvério Diniz<br />
também ferido na cabeça com três feridas [...] e mais a mulher <strong>de</strong> Manuel Diniz que vinha para a<br />
missa, também lhe <strong>de</strong>ra uma porretada na cabeça e a roubaram <strong>de</strong> todos os seus vestidos que<br />
trazia vestida e <strong>de</strong> toda a família que trazia consigo, tudo <strong>de</strong>spiram até as próprias crianças e lhe<br />
meteram freios na boca, até as crianças e as amarraram [...] 42<br />
Em Cachoeira do Campo dois homens "rebuçados" apareceram na porta da casa <strong>de</strong> Maria<br />
Tereza com a <strong>de</strong>sculpa <strong>de</strong> lhe pedir informações e a agrediram com várias facadas. O juiz<br />
Joaquim Gonçalves Simões e seu escrivão Ma<strong>no</strong>el da Silva Pereira foram chamados para<br />
lavrarem o auto <strong>de</strong> corpo <strong>de</strong> <strong>de</strong>lito que assim <strong>de</strong>screve o fato:<br />
[...] logo acudiram os povos <strong>de</strong>ste arraial com os soldados pagos, para evitarem o gran<strong>de</strong> distúrbio<br />
que houve com os mais que po<strong>de</strong>ria chegar e logo os ditos rebuçados partiram a resistir com uma<br />
pistola carregada quase até a boca e a bater a pedra umas e muitas vezes que fora Deus se servido<br />
não pegou fogo e outro com uma espada e a faca com que fizeram o <strong>de</strong>lito achou-se quebrada que<br />
julga-se ser quebrada <strong>no</strong> osso da cara da ofendida do que partindo o povo em seguimento <strong>de</strong>les<br />
junto com os mesmos soldados, em distância <strong>de</strong> um quarto <strong>de</strong> légua pouco mais ou me<strong>no</strong>s<br />
pren<strong>de</strong>u-se um com or<strong>de</strong>m do Ilustríssimo Excelentíssimo Senhor General do que o tenente Ma<strong>no</strong>el<br />
José Dias comandante do quartel tomou-os conta <strong>de</strong>les para os remeter a presença do mesmo<br />
senhor e logo pôs os soldados a estrada que vai <strong>de</strong>ste arraial a Vila Rica atrás <strong>de</strong> um dos vultos que<br />
tinha fugido em que o pren<strong>de</strong>ram a certa altura do dito caminho, a or<strong>de</strong>m do mesmo senhor em que<br />
ambos são remetidos a sala <strong>de</strong>ste gover<strong>no</strong>, on<strong>de</strong> um dos vultos dizem ser soldado pago, que dizem<br />
ser um fula<strong>no</strong>, o Pimentel, e o outro um homem bastardo que dizem vive <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r toucinho nessa<br />
vila do que vão remetidos com os cavalos em que vieram e as mais que trouxeram e tudo vai a<br />
presença <strong>de</strong> sua Excelentíssima do que <strong>de</strong> tudo portamos por fé dos <strong>no</strong>ssos ofícios e logo o dito juiz<br />
40 Cf. SOUZA. Os Desclassificados do Ouro, p. 141.<br />
41 AGUIAR. Op. Cit. Esse autor teve como objeto <strong>de</strong> estudos os <strong>de</strong>litos julgados pela ouvidoria da comarca, mas<br />
pesquisou também a primeira instância, ou seja, a justiça ordinária, representada <strong>no</strong>s processos crimes e <strong>de</strong>vassas.<br />
42 AHMI - Cód. 1<strong>77</strong>, auto 3178, 2 o of., 1796, fl.2.<br />
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em obrigação e cargo e <strong>no</strong>s ser requerido <strong>de</strong> parte <strong>de</strong> sua Alteza Real que Deus guar<strong>de</strong> fizemos<br />
este auto <strong>de</strong> que assi<strong>no</strong>u o cirurgião mor Antônio Paes Varela [...]<br />
É elevado o número <strong>de</strong> mortes e ferimentos em negros, forros e <strong>escravos</strong>. Em 1741, Ana<br />
Angola, escrava <strong>de</strong> João Correia, foi morta <strong>no</strong> arraial <strong>de</strong><strong>no</strong>minado Soleda<strong>de</strong>, pertencente à<br />
freguesia <strong>de</strong> Congonhas, <strong>de</strong>vido a pancadas que recebeu <strong>de</strong> Francisco Gonçalves 43 . O escrivão<br />
da vintena <strong>de</strong> São Bartolomeu, Antônio da Costa Peixoto, juntamente com o juiz Gregório Dias <strong>de</strong><br />
Carvalho e o licenciado Baltazar Pereira encontraram <strong>no</strong> caminho que ligava Casa Branca a serra<br />
<strong>de</strong> São Bartolomeu "o corpo <strong>de</strong> um preto, escravo <strong>de</strong> João Rufo, <strong>de</strong>funto <strong>de</strong> estatura grossa, com<br />
uma camisa vestida, um rosário <strong>no</strong> pescoço" e muitas feridas pelo corpo 44 . Esse escravo havia<br />
fugido da ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Vila Rica alguns dias antes e, segundo os vintenários, morreu “<strong>de</strong> fraqueza” 45 .<br />
O escrivão <strong>de</strong> Itatiaia foi chamado à casa do capitão Simão Soares Braga, morador <strong>no</strong> arraial <strong>de</strong><br />
Lavras Novas, para fazer o corpo <strong>de</strong> <strong>de</strong>lito dos ferimentos <strong>de</strong> sua escrava Margarida 46 . Em Itabira,<br />
Joana, escrava <strong>de</strong> Estevão Antônio Ferreira, foi encontrada pelos oficiais da vintena, enforcada<br />
com uma cinta amarrada em um galho <strong>de</strong> laranjeiras 47 .<br />
É elevada também a utilização <strong>de</strong> armas <strong>de</strong> fogo <strong>no</strong>s atos <strong>de</strong> violência, seja ela coletiva ou<br />
não. No arraial da Soleda<strong>de</strong>, freguesia <strong>de</strong> Congonhas do Campo, o juiz da vintena Ma<strong>no</strong>el<br />
Rodrigues Lages e seu escrivão Francisco Simões analisaram a natureza dos ferimentos <strong>de</strong> José<br />
Pereira atestando que foram feitos por armas <strong>de</strong> fogo 48 . O auto <strong>de</strong> corpo <strong>de</strong> <strong>de</strong>lito realizado para<br />
averiguar os motivos da morte <strong>de</strong> José da Costa <strong>de</strong> Oliveira, morador na freguesia <strong>de</strong> Itatiaia teve<br />
um procedimento curioso. José da Costa foi enterrado antes <strong>de</strong> fazerem o exame. A princípio, a<br />
população do local achou que o motivo da morte teria sido um raio, mas <strong>de</strong>pois perceberam que<br />
os calções usados por ele estavam furados por tiros. O exame foi realizado pelo tabelião Antônio<br />
José Rodrigues <strong>de</strong> Azevedo, então, <strong>no</strong>s tais calções. Apesar do juiz da vintena não ter sido<br />
responsável por esse auto, realizou as citações das testemunhas Antônio Martins <strong>de</strong> Souza e<br />
Ma<strong>no</strong>el Ferreira, mas não <strong>no</strong>tificou a Ma<strong>no</strong>el Álvares "pelo não achar em sua casa e constar pelos<br />
vizinhos fez viagem longa e <strong>de</strong>morada", recebendo 800 réis pelas citações 49 . No arraial <strong>de</strong> São<br />
José do Rio Gran<strong>de</strong> da Paraopeba, os oficiais vintenários foram enviados à casa <strong>de</strong> João<br />
Claudi<strong>no</strong> Mo<strong>de</strong>sto para realizarem o "auto <strong>de</strong> corpo <strong>de</strong> <strong>de</strong>lito em sua porta on<strong>de</strong> haviam dado um<br />
43 o<br />
AHMI - Cód. 450, auto 9482, 1 of.<br />
44 o<br />
AHMI - Cód. 444, auto 9324, 1 of, 1739.<br />
45<br />
I<strong>de</strong>m.<br />
46 o<br />
AHMI - Cód 447, auto 9410, 1 of., 1749.<br />
47 o<br />
AHMI - Cód. 179, auto 3280, 2 of.,1800.<br />
48 o<br />
AHMI - Cód. 446, auto 9364, 1 of., 1747.<br />
49 o<br />
AHMI - Cód. 446- auto 9364, 1 of., 1796.<br />
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tiro a fim <strong>de</strong> lhe matar” e encontraram “por cima da verga ao pé do telhado um círculo <strong>de</strong> chumbo<br />
com vinte e sete chagas" 50 .<br />
Mo<strong>de</strong>los elucidativos do procedimento judicial dos oficiais vintenários nas <strong>de</strong>vassas, além<br />
dos autos <strong>de</strong> corpo <strong>de</strong> <strong>de</strong>lito, as <strong>no</strong>tificações das testemunhas eram realizadas ou pelo alcai<strong>de</strong> ou<br />
pelo juiz da vintena com seu escrivão. Na <strong>de</strong>vassa tirada para apurar o incêndio ocorrido na casa<br />
da parda forra Josefa Maria, na freguesia <strong>de</strong> Itabira, além do corpo <strong>de</strong> <strong>de</strong>lito, o juiz ordinário <strong>de</strong><br />
Vila Rica or<strong>de</strong><strong>no</strong>u que o juiz da vintena <strong>no</strong>tificasse a "Antônio <strong>de</strong> tal", feitor <strong>de</strong> Antônio <strong>de</strong> Almeida,<br />
para comparecer em sua presença para certa "averiguação da justiça". O juiz da vintena<br />
Alexandre Moreira certificou que esteve on<strong>de</strong> "vive e mora Antônio Nunes para o <strong>no</strong>tificar" para ir<br />
a Vila Rica dar seu juramento, mas ele estava morando <strong>no</strong>s "Penteados comarca[sic] <strong>de</strong> Itabira", e<br />
não foi encontrado 51 .<br />
O escrivão da vintena da freguesia <strong>de</strong> Itatiaia, José do Couto, cobrou do juiz ordinário <strong>de</strong><br />
Vila Rica o pagamento pelas <strong>no</strong>tificações feitas na <strong>de</strong>vassa para apurar a morte <strong>de</strong> Domingo<br />
Duarte, alegando ter ido várias vezes ao mato <strong>de</strong> Antônio Teixeira para <strong>no</strong>tificar testemunhas, cuja<br />
distância era <strong>de</strong> cinco léguas. Também <strong>no</strong>tificou várias testemunhas em paragens do arraial <strong>de</strong><br />
Lavras Novas. O juiz ordinário mestre <strong>de</strong> campo Pedro da Fonseca Neves or<strong>de</strong><strong>no</strong>u que o pedido<br />
do escrivão fosse atendido, para que nas contas que se fizessem das custas da <strong>de</strong>vassa fosse<br />
pago o seu salário, correspon<strong>de</strong>nte a 660 réis. Nessa <strong>de</strong>vassa, o escrivão da vintena aparece<br />
várias vezes, lavrando o corpo <strong>de</strong> <strong>de</strong>lito, como testemunha, <strong>no</strong>tificando as testemunhas e<br />
realizando o seqüestro dos bens do acusado João Martins da Costa, juntamente com o alcai<strong>de</strong><br />
Alexandre Rodrigues, <strong>no</strong> sítio chamado Ribeirão São Miguel: <strong>no</strong>ve <strong>escravos</strong>, um cavalo, um sítio<br />
com casas cobertas <strong>de</strong> telhas, senzalas e uma lavra. Além dos bens, o escrivão também realizou<br />
a cobrança <strong>de</strong> vários créditos a cinco pessoas que juraram não saber que <strong>de</strong>viam ao acusado 52 .<br />
Em várias outras <strong>de</strong>vassas encontramos a presença dos vintenários como testemunhas.<br />
Os oficiais da freguesia <strong>de</strong> Itabira do Campo lavraram o auto <strong>de</strong> incêndio ocorrido na casa <strong>de</strong> Ana<br />
Esteves, chamados pela preta forra que gritava "que da parte d'el Rei lhe acudissem". O juiz<br />
Quintilia<strong>no</strong> Ferrer <strong>de</strong> Faria testemunhou nesse caso indicando inicialmente um "preto por <strong>no</strong>me<br />
André" como autor do <strong>de</strong>lito, mas <strong>de</strong>pois recuou da acusação, alegando que<br />
era verda<strong>de</strong> o ter dito a Francisco Xavier da Costa assim como mais pessoas ter sido o preto André<br />
o que incendiara a casa [...] porém que lhe dissera por ter ouvido dizer publicamente ser este o<br />
agressor do <strong>de</strong>lito, assim como ouviu dizer ao <strong>de</strong>pois que não era o dito preto André o<br />
agressor [...] 53<br />
50 AHMI - Cód. 445 - auto 9341, 1 o of. 1805.<br />
51 AHMI - Cód. 446, auto 9367, 1 o of., f. 24.<br />
52 AHMI - Cód.450, auto,9491,1 o of., 1755.<br />
53 AHMI - Cód. 450, auto 9490, 1 o of., fl.13. Carmem Lemos também discutiu esse documento. LEMOS. Op. Cit., p. 112-<br />
113.<br />
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Francisco Xavier da Costa havia dito que ouviu o juiz da vintena acusando o preto André,<br />
porém "que <strong>no</strong> conceito <strong>de</strong>le testemunha julga não ter sido o fogo causado pelo dito preto por ser<br />
aleijado dos pés e pouco antes do incêndio o vira passar pela sua porta, lugar do Tombadouro<br />
que fica distante da paragem em que foi o incêndio". Nesse caso o juiz da vintena colocou na<br />
balança os prós e contras dos rumores ten<strong>de</strong>ndo pela nulida<strong>de</strong> da suspeita, mas o juiz ordinário<br />
optou pela acusação 54 .<br />
Nosso intuito aqui foi analisar os procedimentos judiciários dos vintenários, mostrando que<br />
participavam ativamente do <strong>mundo</strong> da justiça e, mesmo sem possuir o conhecimento das leis,<br />
seguiam as or<strong>de</strong>ns e os mo<strong>de</strong>los criados. Esses procedimentos <strong>de</strong>monstram o cotidia<strong>no</strong> das<br />
populações mineiras e são ricos testemunhos da base da justiça na comarca <strong>de</strong> Vila Rica.<br />
Maria do Carmo Pires é Professora Adjunta do curso <strong>de</strong> História da Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Viçosa.<br />
54 I<strong>de</strong>m.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
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DE VOLTA ÀS “CONDIÇÕES DA GOVERNABILIDADE”, NA BUSCA DE<br />
UM EQUILÍBRIO: NOTAS ACERCA DA SOCIEDADE MINEIRA NA<br />
PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII<br />
Resumo:<br />
Esse artigo busca avançar na discussão acerca<br />
das condições da governabilida<strong>de</strong> as quais<br />
estavam sujeitos tanto governadores <strong>de</strong><br />
capitanias, como po<strong>de</strong>rosos locais. Preten<strong>de</strong>-se<br />
<strong>de</strong>monstrar a necessida<strong>de</strong>, por parte <strong>de</strong>sses<br />
po<strong>de</strong>rosos, <strong>de</strong> rever suas estratégias <strong>de</strong> ação<br />
frente à mudança <strong>de</strong> um dado governador<br />
ressaltando, <strong>de</strong>ssa forma, um certo limite ao<br />
po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>sses homens <strong>de</strong>fronte a tais<br />
representantes régios.<br />
Palavras-chave: Governabilida<strong>de</strong>, Estratégia,<br />
Negociação.<br />
AS BASES DAS “CONDIÇÕES DA GOVERNABILIDADE” 1<br />
Carlos Leonardo Kelmer Mathias<br />
Abstract:<br />
This study tries to make progress in the discussion<br />
about the conditions of governance, which were<br />
related to both the gover<strong>no</strong>rs in charge of the<br />
province and the local “powerful men”. It intends to<br />
<strong>de</strong>monstrate the necessity of reviewing the<br />
strategies of action of these “powerful men”<br />
regarding the change of a gover<strong>no</strong>r. Thereby, this<br />
study emphasizes some limit concerning the power<br />
of these men with regard to royal representatives.<br />
Key words: Governance, Strategy, Negotiation.<br />
“O po<strong>de</strong>r não se exerce <strong>no</strong> vazio. E também não se exerce por magia. A acção política requer a<br />
disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> meios. Des<strong>de</strong> logo, <strong>de</strong> meios financeiros. Mas também <strong>de</strong> meios huma<strong>no</strong>s.<br />
Em termos tais que o impacto <strong>de</strong> um projecto <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r se po<strong>de</strong> medir <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> da<br />
disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estruturas humanas que o levem a cabo” 2 .<br />
Do acima exposto, <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>-se a indispensabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>, ao me<strong>no</strong>s, dois pontos <strong>no</strong><br />
exercício do po<strong>de</strong>r, quais sejam, “meios financeiros” e “meios huma<strong>no</strong>s”, sendo que para um<br />
“projecto <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r” ser levado ao fim e ao cabo fazia-se primordiais almas humanas<br />
empreen<strong>de</strong>doras. Em outras palavras, um governador não teria como adquirir e manter sua<br />
governabilida<strong>de</strong> sem sustentação financeira e sem corpos huma<strong>no</strong>s sobre os quais apoiar-se.<br />
Creio ter sido o elemento huma<strong>no</strong> ainda mais imprescindível do que o financeiro, pois<br />
recorrentemente os vassalos <strong>de</strong> Sua Majesta<strong>de</strong> colocavam a seu serviço suas fazendas, cabedais<br />
e negros armados. Sem esses homens, que por sinal constituíam-se, efetivamente, em súditos do<br />
Rei – ou seja, era <strong>de</strong>ver <strong>de</strong>les disponibilizar seus recursos a serviço <strong>de</strong> El-Rei – a Coroa não teria<br />
como se sustentar enquanto Coroa. Decorre daí a negociação então estabelecida entre ambas às<br />
partes.<br />
1 O presente artigo é uma versão modificada <strong>de</strong> um texto por mim apresentado <strong>no</strong> congresso internacional O espaço<br />
Atlântico <strong>de</strong> Antigo Regime: po<strong>de</strong>res e socieda<strong>de</strong>s, ocorrido em <strong>no</strong>vembro <strong>de</strong> 2005 na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa, Portugal.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
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Vários autores já pintaram com as cores <strong>de</strong>sse quadro. Segundo Anthony J. R. Russell-<br />
Wood, “a Coroa também reconheceu que seja <strong>no</strong> interior do Brasil ou <strong>de</strong> Angola, seja em regiões<br />
da Ásia portuguesa, distantes da intervenção da Coroa ou da autorida<strong>de</strong> do vice-rei, havia<br />
indivíduos dos quais ela era <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte se quisesse manter qualquer aparência <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong><br />
portuguesa” 3 . João Luis R. Fragoso <strong>de</strong>u conta <strong>de</strong> que a “montagem da socieda<strong>de</strong> <strong>colonial</strong><br />
fluminense e <strong>de</strong> sua elite” evi<strong>de</strong>nciou o fato <strong>de</strong> a Coroa ter dito o apoio <strong>de</strong>cisivo da elite<br />
proveniente <strong>de</strong> outras áreas americanas, disponibilizando amplamente seus <strong>escravos</strong>, suas<br />
fazendas e parentelas ao serviço régio. Por seus serviços, esses homens recebiam mercês –<br />
sesmaria e ofícios régios – conferindo-lhes status e reafirmando a hierarquia estamental<br />
exclu<strong>de</strong>nte 4 .<br />
Outro autor que <strong>de</strong>stacou a importância da relação entre Coroa e principais <strong>de</strong> suas<br />
localida<strong>de</strong>s foi Sanjay Subrahmanyam. Nos termos do autor, a forma como os indivíduos<br />
principais exerciam seu po<strong>de</strong>r em Negapatão passava pela negociação entre eles e as<br />
autorida<strong>de</strong>s régias. Em troca <strong>de</strong> favores a eles concedidos – autorização especial para realizar<br />
viagens comerciais a Macau, com escala em Malaca, por exemplo –, esses indivíduos atendiam<br />
aos chamados régios em ocasiões <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s. Essa ca<strong>de</strong>ia se estendia até Goa, on<strong>de</strong><br />
residia o vice-rei 5 . Formava-se o chamado “sistema <strong>de</strong> concessão” <strong>no</strong> qual, “em troca <strong>de</strong> serviços<br />
prestados à Coroa, em substituição do pagamento <strong>de</strong> um salário (...), a Cora fazia a concessão <strong>de</strong><br />
uma viagem entre duas partes do Índico, ou reconhecia este direito”. Por intermédio <strong>de</strong>sse<br />
princípio, introduziu-se <strong>no</strong> Golfo <strong>de</strong> Bengala “um sistema <strong>de</strong> mo<strong>no</strong>pólio”, com evi<strong>de</strong>ntes vantagens<br />
para os capitães agraciados. Tal “sistema <strong>de</strong> concessão” surgiu em parte para “acalmar os<br />
ânimos” daqueles os quais “prestaram serviços na Ásia, e exigiam recompensas”, e em parte para<br />
lidar com a diminuição <strong>de</strong> recursos e <strong>de</strong> navios <strong>no</strong> terceiro quartel do século XVI 6 . Conforme<br />
apontado na epígrafe <strong>de</strong>sse texto, sem “meios financeiros” e sem “meios huma<strong>no</strong>s” não havia<br />
muito como se exercer o po<strong>de</strong>r. As mercês e concessões régias obtêm, aqui, <strong>de</strong>stacada<br />
importância.<br />
Disso <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>-se, em boa medida, práticas e costumes próprios do Antigo Regime. As<br />
concessões <strong>de</strong> mercês régias, doações, direitos mo<strong>no</strong>polistas, privilégios a indivíduos ou a grupos<br />
corporativos, isenções, sesmarias, ofícios régios e patentes militares contribuíam para aumentar<br />
2<br />
HESPANHA, Antônio M. As vésperas do Leviathan: instituições e po<strong>de</strong>r político. Portugal – século XVII. Coimbra:<br />
Almedina, 1994, p. 160.<br />
3<br />
RUSSELL-WOOD, Anthony John R. “I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, etnia e autorida<strong>de</strong> nas Minas Gerais do século XVIII: leituras do<br />
Códice Costa Matoso”. Vária História. Belo Horizonte, n. 21, 1999, pp. 114-115.<br />
4<br />
FRAGOSO, João Luis Ribeiro. “Afogando em <strong>no</strong>mes: temas e experiências em história econômica”. In: Topoi: Revista<br />
<strong>de</strong> História. Rio <strong>de</strong> Janeiro, vol. 5, 2002, p. 44-45.<br />
5<br />
SUBRAHMANYAM, Sanjay. Comércio e conflito: a presença portuguesa <strong>no</strong> golfo <strong>de</strong> Bengala, 1500-1700. Lisboa:<br />
Edições 70, 2002, p. 99.<br />
6 I<strong>de</strong>m, pp. 49-56.<br />
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21
“o status quo através do reforço da gran<strong>de</strong>za e da <strong>no</strong>breza”. Afora isso, confluíam para a<br />
“reprodução <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> altamente hierarquizada”. Igualmente, eram utilizadas “como<br />
instrumento <strong>de</strong> representação e disputa entre diferentes grupos” 7 . Por ora, ressalvo que essas<br />
concessões eram dadas por recompensa em função <strong>de</strong> um valoroso serviço prestado a, ou em<br />
<strong>no</strong>me <strong>de</strong>, El-Rei. Forma-se, nesse ponto, a base daquilo a que <strong>de</strong><strong>no</strong>mi<strong>no</strong> “condições da<br />
governabilida<strong>de</strong>”, ou seja, não po<strong>de</strong>ndo prescindir do apoio dos principais homens <strong>de</strong> suas<br />
respectivas localida<strong>de</strong>s <strong>no</strong> exercício <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r, a Coroa – quer na figura do vice-rei, quer dos<br />
governadores <strong>de</strong> capitanias –, por vezes <strong>de</strong>parava-se com situações nas quais a inevitabilida<strong>de</strong>,<br />
por um lado, e/ou a estratégia, por outro, convergiam para uma refinada negociação entre ela e<br />
esses principais homens mesmo sendo, afirmo, obrigação <strong>de</strong> tais súditos realizar valorosos<br />
serviços a seu Rei. Essa prática <strong>de</strong> concessão foi percebida, inclusive, como forma constitutiva do<br />
próprio Estado Mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong> português.<br />
Assim o <strong>de</strong>finiu António Camões Gouveia: “forma multiparticipada <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
disponibilida<strong>de</strong>s econômicas e sociais, <strong>de</strong> mercês, <strong>de</strong> serviços, <strong>de</strong> graças, <strong>de</strong> comendas, <strong>de</strong><br />
valimentos, enfim, <strong>de</strong> constelações clientelares variadas, <strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong> e conseqüências<br />
concorrentes para a configuração <strong>de</strong> práticas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r” 8 . A aplicação <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>finição, a qual, por<br />
excelência, concerne ao país Portugal – não po<strong>de</strong>ndo, creio, ser estendida aos <strong>de</strong>mais domínios<br />
<strong>de</strong>sse rei<strong>no</strong> sem um estudo aprofundado das “práticas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r” ultramarinas–, <strong>de</strong>ve ser matizada<br />
<strong>no</strong> que respeita ao além-mar português.<br />
Ao me<strong>no</strong>s na América lusa, configurava-se, em verda<strong>de</strong>, um espaço <strong>de</strong> atuação efetiva do<br />
po<strong>de</strong>r <strong>no</strong> qual as concessões giravam ao redor <strong>de</strong> “re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> interesses”, porém, não clientelares,<br />
na forma proposta por seus atores, Ângela Barreto Xavier e António Manuel Hespanha. Conforme<br />
os autores, em linhas bem gerais, o dom, <strong>no</strong> Antigo Regime, integrava um universo <strong>no</strong>rmativo<br />
caracterizado por atos beneficiais estruturantes das relações políticas, formando a chamada<br />
“eco<strong>no</strong>mia moral do dom”, resi<strong>de</strong>nte na base <strong>de</strong> práticas informais <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, como por exemplo,<br />
as re<strong>de</strong>s clientelares geridas por valores como a “amiza<strong>de</strong>” – a qual “conceptualiza os laços<br />
políticos entre pessoas” –, a “liberda<strong>de</strong>” e a “carida<strong>de</strong>” – que “<strong>de</strong>signam as atitu<strong>de</strong>s esperadas do<br />
pólo dominante da relação” –, a “magnificência” – amplificadora das “virtu<strong>de</strong>s anteriores, <strong>no</strong> caso<br />
<strong>de</strong> pessoas que <strong>de</strong>sempenham funções sociais que exigem uma especial gran<strong>de</strong>za (v. g., os<br />
príncipes e os po<strong>de</strong>rosos)” –, a “gratidão” – referente “aos sentimentos próprios do pólo inferio” – e<br />
o “serviço” – “exteriorização <strong>de</strong>sses sentimentos”. O funcionamento <strong>de</strong>ssa “eco<strong>no</strong>mia do dom”,<br />
7 RUSSELL-WOOD, Anthony John R. “Prefácio”. In: FRAGOSO, João, BICALHO, Maria F. & GOUVÊA, Maria <strong>de</strong> F.<br />
(orgs.). O Antigo Regime <strong>no</strong>s trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI – XVIII). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização<br />
Brasileira, 2001, pp. 16-17.<br />
8 GOUVEIA, António Camões. In: OLIVAL, Fernanda. As or<strong>de</strong>ns militares e o estado mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>: honra, mercê e<br />
venalida<strong>de</strong> em Porgugal, 1641-1789. Lisboa: ESTAR Ed., 2001, pp. IX-X.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
22
“cimentada sobre actos <strong>de</strong> dar e retribuir compreendidos pela vastidão do conceito <strong>de</strong> ‘amiza<strong>de</strong>’”,<br />
assentava-se em três valores básicos: dar, receber e restituir – tría<strong>de</strong> regente da natureza das<br />
relações sociais e, por conseguinte, das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r 9 .<br />
Segundo os autores, “esta amiza<strong>de</strong> abrangia níveis tão diferentes quanto são a relação<br />
entre o rei e o vassalo, o pai e o filho, o amigo e o amigo, constituindo uma relação social<br />
fortemente estruturante”.Corroborando o entendimento dado por Aristóteles à <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> “amiza<strong>de</strong>”,<br />
os autores assim <strong>de</strong>finem tal entendimento:<br />
“... para quem [Aristóteles] esta [a amiza<strong>de</strong>] claramente constituía o suporte <strong>de</strong> laços políticos mais<br />
permanentes, como fonte <strong>de</strong> <strong>de</strong>veres duráveis. Distingue as amiza<strong>de</strong>s fundadas sobre a ‘virtu<strong>de</strong>’<br />
das que visam a utilida<strong>de</strong> e o prazer. Do mesmo modo, distingue a amiza<strong>de</strong> entre iguais daquela<br />
entre <strong>de</strong>siguais (como seria, por exemplo, a estabelecida entre o governante e os governados, entre<br />
o pai e o filho, entre o patrão e o cliente).<br />
Acerca da amiza<strong>de</strong> entre <strong>de</strong>siguais, afirmam os autores:<br />
“... a amiza<strong>de</strong> <strong>de</strong>sigual é, formalmente, aquela que legitima as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r entre homens<br />
livres. Sob este ponto <strong>de</strong> vista, a regra será a da proporção entre a posição social dos dois ‘amigos’,<br />
quer <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> das prestações (em que o inferior é obrigado a prestações me<strong>no</strong>s importantes), quer<br />
também, mas <strong>de</strong> modo inverso, <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> do amor (em que o inferior é obrigado a dar mais do que o<br />
superior). O mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> troca é o mesmo – prestações materiais em troca <strong>de</strong> submissão política,<br />
effectus em troca <strong>de</strong> affectus. Sistema que funciona particularmente bem como processo <strong>de</strong><br />
conversão <strong>de</strong> riqueza em po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> auto-reprodução <strong>de</strong>ste po<strong>de</strong>r. Do mesmo modo, a<strong>de</strong>qua-se<br />
perfeitamente às estratégias <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s clientelares auto-sustentadas” 10 .<br />
Contudo, ressalvam os autores que “a referência ao termo ‘amiza<strong>de</strong>’, na documentação do<br />
século XVII, nem sempre quer necessariamente refletir uma relação <strong>de</strong>sigual e logo <strong>de</strong><br />
clientela” 11 . Se a “amiza<strong>de</strong>” “constituía o suporte <strong>de</strong> laços políticos mais permanentes”, os<br />
interesses pessoais eram o principal fator <strong>de</strong>sarticulador <strong>de</strong> tais laços, na medida em que as<br />
relações estabelecidas entre os homens eram pautadas, <strong>de</strong> uma forma ou <strong>de</strong> outra, por vonta<strong>de</strong>s<br />
particulares. Há <strong>de</strong> se <strong>de</strong>stacar que as ações humanas não são necessariamente regidas por<br />
mo<strong>de</strong>los explicativos <strong>de</strong> diferentes “lógicas” <strong>de</strong> funcionamento das socieda<strong>de</strong>s nas quais esses<br />
homens estão inseridos. Resulta daí a importância <strong>de</strong> <strong>no</strong>ções como estratégia e racionalida<strong>de</strong> na<br />
tentativa <strong>de</strong> dar conta das relações sociais estabelecidas pelos indivíduos.<br />
Nesse sentido, a amiza<strong>de</strong> <strong>de</strong>sigual não <strong>de</strong>ve ser unicamente compreendida em termos <strong>de</strong><br />
posições sociais. Faz-se necessário atentar para as estratégias <strong>de</strong> ação dos sujeitos, para os<br />
objetivos por eles almejados, para os resultados obtidos, pois, a posição social, embora influencie<br />
consi<strong>de</strong>ravelmente <strong>no</strong>s rumos dados às relações havidas entre os homens, não obrigatoriamente<br />
<strong>de</strong>termina e rege a hierarquia existente nas relações instituídas por <strong>de</strong>siguais. Há <strong>de</strong> se <strong>de</strong>stacar<br />
9 XAVIER, Ângela B. & HESPANHA, Antônio M. “As re<strong>de</strong>s clientelares”. In: HESPANHA, Antônio Manuel (org.). História<br />
<strong>de</strong> Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, passim.<br />
10 I<strong>de</strong>m, p. 343. [Grifos dos autores e negrito meu].<br />
11 I<strong>de</strong>m, pp. 342-343.<br />
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também que os valores constitutivos da chamada “re<strong>de</strong> clientelar” - “amiza<strong>de</strong>”, “liberda<strong>de</strong>”,<br />
“carida<strong>de</strong>”, “magnificência”, “gratidão” e “serviço” – ganhavam contor<strong>no</strong>s <strong>no</strong>vos ao serem<br />
transpostos para as relações sociais estabelecidas <strong>no</strong>s domínios ultramari<strong>no</strong>s lusos.<br />
Para além <strong>de</strong> tais ressalvas, vale lembrar as consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> Maurice Go<strong>de</strong>lier acerca do<br />
dom. Conforme o autor,<br />
“Dar parece instituir simultaneamente uma relação dupla entre aquele que dá e aquele que<br />
recebe. Uma relação <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>, pois quem dá partilha o que tem, quiçá o que é, com<br />
aquele a quem dá, e uma relação <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong>, pois aquele que recebe o dom e o aceita fica<br />
em dívida para com aquele que <strong>de</strong>u. Através <strong>de</strong>ssa dívida, ele fica obrigado e, portanto,<br />
encontra-se até certo ponto sob sua <strong>de</strong>pendência, ao me<strong>no</strong>s até o momento em que conseguir<br />
‘restituir’ o que lhe foi dado” 12 .<br />
Contudo, embora o “dar parece instaurar assim uma diferença e uma <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
status entre doador e donatário, <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> que em certas circunstâncias po<strong>de</strong> se transformar<br />
em hierarquia: se esta já existisse entre eles antes do dom, ele viria expressá-la e legitimá-la ao<br />
mesmo tempo” 13 , não percebo essa característica como inerente a toda e qualquer relação na<br />
qual a lógica do dom se faça presente. Nesse sentido, e assentado <strong>no</strong> próprio Go<strong>de</strong>lier quando<br />
este afirma que “ao dar, ao receber, e ao dar <strong>de</strong> volta, cada um dos parceiros acumula as<br />
vantagens que tal <strong>de</strong>pendência recíproca engendra” 14 , tendo a concordar com Eduard Palmer<br />
Thompson quando afirma que “o grau <strong>de</strong> subordinação assegurado pela carida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong> um cálculo das vantagens em jogo” 15 , e a ver com extrema cautela as afirmações do tipo:<br />
“prestações materiais em troca <strong>de</strong> submissão política”.<br />
Notadamente <strong>no</strong> que tange a prática <strong>de</strong> concessões constitutiva do Estado Mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong> luso,<br />
Fernanda Olival percebeu a edificação do mesmo fundada sobre tal prática. Nas palavras da<br />
autora, esse Estado se consolidou “em tor<strong>no</strong> <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>s afins como a i<strong>de</strong>ologia do<br />
serviço/recompensa, os laços múltiplos <strong>de</strong> inter<strong>de</strong>pendência e valias (muitas vezes ditos<br />
‘clientelares’), bem como o po<strong>de</strong>r da Monarquia sobre amplos recursos”, como as Or<strong>de</strong>ns Militares<br />
<strong>de</strong> Avis, Cristo e Santiago. Nestes quadros, o gesto <strong>de</strong> dar seria consi<strong>de</strong>rado, “na cultura política<br />
do Antigo Regime”, como “virtu<strong>de</strong> própria dos reis”. Aqui se percebe uma imbricada relação entre<br />
o Estado e a figura do monarca, qual seja, o Estado foi edificado sobre uma “virtu<strong>de</strong> própria” do<br />
Rei, o ato <strong>de</strong> dar 16 .<br />
No Antigo Regime, o dar possuía, sim, uma herança aristotélica na medida em que se<br />
<strong>de</strong>via saber a quem dar, o que dar, em qual quantida<strong>de</strong> e quando. Segundo a autora, “o homem<br />
12<br />
GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio <strong>de</strong> janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 23. [Grifos do autor] Acerca da<br />
<strong>no</strong>ção <strong>de</strong> dom ver também MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU, 1974.<br />
13<br />
GODELIER, Maurice, Op. Cit., p. 23.<br />
14<br />
I<strong>de</strong>m, p. 70.<br />
15<br />
THOMPSON, Edward P. As peculiarida<strong>de</strong>s dos ingleses e outros artigos. São Paulo: Ed. UNICAMP, 2001, p. 246.<br />
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generoso aristotélico tinha dificulda<strong>de</strong>s em enriquecer porque gostava <strong>de</strong> dar e não fazia caso do<br />
dinheiro como um bem em si mesmo”. Dessa forma, o que realmente importava era a forma como<br />
o monarca governava e distribuía aquilo que po<strong>de</strong>ria ser dado, visando conquistar a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> dos<br />
súditos. O dar justificava o monarca como rei. Pelo contrário, o não dar incorria em um risco para<br />
a Coroa, pois po<strong>de</strong>ria angariar para si o ódio e a falta <strong>de</strong> apoio nesses mesmos súditos 17 . Aqui<br />
cabe outra ressalva.<br />
Assim como Pascoal da Silva Guimarães – principal lí<strong>de</strong>r da revolta <strong>de</strong> Vila Rica em 1720,<br />
ocorrida em Minas do Ouro durante o gover<strong>no</strong> <strong>de</strong> D. Pedro <strong>de</strong> Almeida Portugal, con<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Assumar –, a maioria dos homens envolvidos na revolta mineira <strong>de</strong> Vila Rica já havia recebido,<br />
recorrentemente, uma série <strong>de</strong> mercês e privilégios por parte <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>s régias, quer nas<br />
Minas, quer nas <strong>de</strong>mais localida<strong>de</strong>s dos domínios lusos. Essa simples constatação traz consigo<br />
uma <strong>no</strong>ção crucial para a compreensão do chamado sistema <strong>de</strong> concessão <strong>de</strong> mercês, qual seja,<br />
por si só, uma mercê, ou um privilégio, não é capaz <strong>de</strong> garantir a governabilida<strong>de</strong>.<br />
Preten<strong>de</strong>-se apenas problematizar a idéia segundo a qual o dar po<strong>de</strong>ria conquistar a<br />
fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> dos súditos o que, evi<strong>de</strong>ntemente, acarretaria melhores condições do exercício e<br />
manutenção da governabilida<strong>de</strong>. Parto da seguinte constatação: o efeito <strong>de</strong>sejado pelo ato <strong>de</strong> dar<br />
seria alcançado tão somente <strong>no</strong>s indivíduos cujos interesses estivessem em comum acordo com<br />
os interesses régios ou em comum acordo com os interesses daqueles que representavam El-Rei<br />
em seus territórios ultramari<strong>no</strong>s.<br />
Tal idéia ganha mais procedência caso se tenha em mente o próprio Pascoal da Silva<br />
Guimarães. Pascoal da Silva auxiliou aos dois primeiros governadores da capitania <strong>de</strong> São Paulo<br />
e Minas do Ouro – D. Antônio Albuquerque Coelho <strong>de</strong> Carvalho e D. Brás Baltasar da Silveira – na<br />
manutenção da governabilida<strong>de</strong>, e fez isso em função da coadunação <strong>de</strong> interesses que então<br />
havia entre ele e ambos os governadores. Contudo, na gestão <strong>de</strong> D. Pedro <strong>de</strong> Almeida, a coisa se<br />
passou <strong>de</strong> outra forma.<br />
Em 03 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1718, por tanto me<strong>no</strong>s <strong>de</strong> seis meses após ter assumido o gover<strong>no</strong> <strong>de</strong><br />
Minas, D. Pedro <strong>de</strong> Almeida lhe proveu <strong>no</strong> posto <strong>de</strong> governador <strong>de</strong> Vila Rica e seu termo. Na<br />
referida carta, lê-se que Pascoal da Silva foi servido com tal mercê, pois era necessária para a<br />
regência <strong>de</strong> Vila Rica e seu distrito, uma pessoa "em que concorram merecimentos, serviço,<br />
<strong>no</strong>breza e autorida<strong>de</strong>, e achando-se todas estas na do mestre-<strong>de</strong>-campo Pascoal da Silva<br />
Guimarães", D. Pedro <strong>de</strong> Almeida o proveu em tal cargo. Também <strong>de</strong>u conta dos serviços<br />
prestados por Pascoal da Silva aos governadores antece<strong>de</strong>ntes, tendo sido <strong>no</strong>meado para o<br />
16 OLIVAL, Fernanda. As or<strong>de</strong>ns militares e o estado mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>: honra, mercê e venalida<strong>de</strong> em Portugal, 1641-1789.<br />
Lisboa: ESTAR Ed., 2001, pp. 3-15.<br />
17 I<strong>de</strong>m, pp. 16-18.<br />
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eferido posto por D. Brás Baltasar e se portado com todo o zelo e merecimentos. O governador<br />
registrou que Pascoal da Silva servia nas Minas do Ouro por espaço <strong>de</strong> oito a<strong>no</strong>s <strong>no</strong>s postos <strong>de</strong><br />
sargento-mor da or<strong>de</strong>nança <strong>de</strong> Vila Rica e mestre-<strong>de</strong>-campo do terço dos auxiliares que havia<br />
nela se formado. Também a D. Antônio Albuquerque o régulo auxiliou. Em 1709, por ocasião da<br />
Guerra dos Emboabas, doou sua residência por espaço <strong>de</strong> 15 dias ao governador com seus 20<br />
soldados quando este passou para Minas, com gran<strong>de</strong> perda para sua fazenda 18 .<br />
Afora as mercês diretamente a ele concedidas, seu filho, João da Silva Guimarães,<br />
recebeu do próprio D. Pedro <strong>de</strong> Almeida, em 13 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1719, a patente <strong>de</strong> capitão-mor das<br />
or<strong>de</strong>nanças do “distrito <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Rio das Pedras até Raposos” 19 . Vale lembrar que em 1720, João<br />
da Silva era juiz ordinário da câmara <strong>de</strong> Vila Rica 20 , ou seja, além do controle da câmara<br />
permanecer na família <strong>de</strong> Pascoal da Silva, sua família estava às voltas com mercês a ela<br />
concedidas pelo representante do Rei na América.<br />
Não obstante a concessão <strong>de</strong> uma mercê da monta daquela dada a Pascoal da Silva<br />
Guimarães, esse homem e sua família voltaram-se contra aquele que a conce<strong>de</strong>u, D. Pedro <strong>de</strong><br />
Almeida. Po<strong>de</strong>ria-se argumentar que o governador agia em <strong>no</strong>me <strong>de</strong> El-Rei, ou seja, Pascoal da<br />
Silva não teria, em essência, insurgido contra quem verda<strong>de</strong>iramente havia lhe passado à mercê –<br />
uma vez que, em nenhum momento, os revoltosos questionam a autorida<strong>de</strong> régia. Porém, é fato<br />
que D. Pedro <strong>de</strong> Almeida não era forçado a prover <strong>no</strong>vamente Pascoal da Silva na regência <strong>de</strong><br />
Vila Rica – uma que vez que seria obrigação <strong>de</strong> Pascoal da Silva e <strong>de</strong> sua família prestarem<br />
auxílio ao Real Serviço por serem, sim, vassalos do Rei –, mas o fez visando garantir sua<br />
governabilida<strong>de</strong>. Além do mais, seria ingenuida<strong>de</strong> afirmar que Pascoal da Silva e os <strong>de</strong>mais<br />
revoltosos não tinham a exata <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> que seu movimento entrava em choque com uma<br />
<strong>de</strong>terminação, em última instância, régia. A revolta, embora tramada e urdida contra D. Pedro <strong>de</strong><br />
Almeida – diga-se <strong>de</strong> passagem, reforçando, era o representante <strong>de</strong> El-Rei em Minas do Ouro –,<br />
ia <strong>de</strong> encontro às pretensões do Rei. Nesse sentido, talvez a funcionalida<strong>de</strong> da mercê, como<br />
forma <strong>de</strong> obter a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> dos súditos, <strong>de</strong>ve ser, pois, relativizada.<br />
O dar <strong>de</strong>ve ser pensado à luz, não apenas do contexto <strong>no</strong> qual foi concedido, mas também<br />
tendo em mente as estratégias <strong>de</strong> ação tanto daquele quem o conce<strong>de</strong>u como daquele por ele<br />
agraciado. Somente assim po<strong>de</strong>rá, acredito, avaliar-se a real instrumentalização do chamado<br />
sistema <strong>de</strong> concessão <strong>de</strong> mercês. Embora a concessão <strong>de</strong> mercês e privilégios seja um caminho<br />
para tentar obter e garantir a governabilida<strong>de</strong>, sua eficácia po<strong>de</strong>, por vezes, ser questionada.<br />
18 APM, SC 12, fls. 25v.-26. CARTA patente passada a Pascoal da Salva Guimarães. 03 jan. 1718; APM, SC 12, fls.<br />
34v.-35. CARTA patente passada a Pascoal da Salva Guimarães. 03 jan. 1718.<br />
19 APM, SC 12, fl. 74. CARTA patente passada a João da Silva Guimarães. 13 mar. 1719.<br />
20 VASCONCELOS, Diogo <strong>de</strong>. História antiga das Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999, p. 365.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
26
De base <strong>de</strong> tais consi<strong>de</strong>rações, creio ser agora possível trabalhar com a <strong>no</strong>ção <strong>de</strong><br />
“eco<strong>no</strong>mia da mercê”, tal qual proposta por Fernanda Olival. Conforme a autora, tal <strong>no</strong>ção se<br />
encerraria na “disponibilida<strong>de</strong> para o serviço, pedir, dar, receber e manifestar agra<strong>de</strong>cimento, num<br />
verda<strong>de</strong>iro círculo vicioso”. Continuando, essa era uma realida<strong>de</strong> a qual gran<strong>de</strong> parte da<br />
socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna “se sentida profundamente vinculada, cada um segundo sua condição e<br />
interesses”. E ainda, “com efeito, servir a Coroa, com o objetivo <strong>de</strong> pedir em troca recompensas,<br />
tornara-se quase um modo <strong>de</strong> vida, para diferentes setores do espaço social português”, sendo<br />
que tal prática “era uma estratégia <strong>de</strong> sobrevivência material, mas também ho<strong>no</strong>rífica e <strong>de</strong><br />
promoção” 21 . Vale lembrar, a prática da concessão era “um dos vetores básicos da construção<br />
social do Estado Mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong> Português” 22 e, a meu ver, assim po<strong>de</strong> ser percebida muito em função<br />
<strong>de</strong> ser, essa prática, um dos fatores primeiros constitutivos daquilo por mim <strong>de</strong><strong>no</strong>minado “as<br />
condições da governabilida<strong>de</strong>”. Urge <strong>de</strong>stacar que, conforme apontado por Fernanda Olival,<br />
“pedir, dar e receber <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> ser meros impulsos antropológicos - tal como foram<br />
sistematizados por Marcel Mauss – e passaram a ser, cada vez mais ao longo do Antigo Regime,<br />
gestos profundamente envolvidos numa teia burocrática e <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, difíceis <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>slindar” 23 .<br />
Acredito ser nesse sentido que a “eco<strong>no</strong>mia da mercê” não se confinava à sistematização<br />
<strong>de</strong> retribuir algo dado. Nas palavras <strong>de</strong> Olival, “os diferentes modos como se ten<strong>de</strong>u a organizar<br />
eram complexos e com múltiplos efeitos sociais e políticos; certamente uns e outros terão<br />
marcado fortemente o processo social <strong>de</strong> construção do Estado Mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>” 24 . Coaduna-se, a meu<br />
ver, a prática da concessão com “as condições da governabilida<strong>de</strong>”, ou seja, não po<strong>de</strong>ndo<br />
prescindir do apoio <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rosos locais <strong>no</strong> exercício <strong>de</strong> práticas político-administrativas voltadas<br />
para a sustentação <strong>de</strong> uma dada estrutura <strong>de</strong> gover<strong>no</strong> – ao me<strong>no</strong>s <strong>no</strong> que concerne à região<br />
americana dos domínios portugueses –, a Coroa, por via <strong>de</strong> regra, valia-se da distribuição <strong>de</strong><br />
concessões como forma compensativa das valorosas ações empreendidas por aqueles po<strong>de</strong>rosos<br />
locais. Caso possa ser aceito o fato segundo o qual o ato <strong>de</strong> dar, ao longo do Antigo Regime,<br />
implicava em “múltiplos efeitos sociais e políticos” os quais, direta ou indiretamente, marcaram<br />
“fortemente o processo social <strong>de</strong> construção do Estado Mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>”, creio ser plausível perceber<br />
esse mesmo ato <strong>de</strong> dar, assim como seus “múltiplos efeitos sociais e políticos”, na base do<br />
processo <strong>de</strong> busca e manutenção das condições prática as quais viabilizavam o exercício político-<br />
administrativo voltado para a sustentação da estrutura <strong>de</strong> gover<strong>no</strong> presente na América lusa,<br />
<strong>no</strong>tadamente em Minas do Ouro durante a primeira meta<strong>de</strong> do século XVIII.<br />
21 OLIVAL, Fernanda, Op. Cit., pp. 18-21.<br />
22 I<strong>de</strong>m, p. 37.<br />
23 I<strong>de</strong>m, p. 108.<br />
24 I<strong>de</strong>m, p. 110.<br />
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27
O OUTRO LADO DA MOEDA<br />
Não obstante a necessida<strong>de</strong> da Coroa <strong>de</strong> contar com seus vassalos na busca e<br />
manutenção <strong>de</strong> sua governabilida<strong>de</strong> – fato que contribuía para as fortes limitações sofridas pelo<br />
po<strong>de</strong>r régio <strong>no</strong>s domínios <strong>de</strong> além-mar –, esses mesmos súditos não estavam eximidos da<br />
necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> (re)estabelecer estratégias <strong>de</strong> ação voltadas para a busca e manutenção <strong>de</strong> suas<br />
posições sociais as quais, em última instância, permitiam-lhes exercer seus papéis <strong>de</strong> recursos<br />
huma<strong>no</strong>s fundamentais para o exercício <strong>de</strong>sse mesmo po<strong>de</strong>r régio. Dessa forma, fechava-se o<br />
complexo círculo <strong>de</strong> influências, interesses e negociações inerentes às práticas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />
presentes <strong>no</strong> exercício da governabilida<strong>de</strong> e do mando <strong>no</strong> que concernia, respectivamente, à<br />
Coroa e aos po<strong>de</strong>rosos locais.<br />
A fim <strong>de</strong> exemplificar a necessida<strong>de</strong> do (re)estabelecimento <strong>de</strong> estratégias <strong>de</strong> ação frente<br />
a um <strong>no</strong>vo representante <strong>de</strong> El-Rei ávido por garantir sua governabilida<strong>de</strong>, trabalharei com quatro<br />
indivíduos, a saber, Custódio Rebelo Vieira, Félix <strong>de</strong> Azevedo Carneiro e Cunha, Manuel <strong>de</strong><br />
Barros Gue<strong>de</strong>s Madureira e Silvestre Marques da Cunha. Todos esses quatro sujeitos auxiliaram<br />
a D. Pedro <strong>de</strong> Almeida, con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Assumar e governador da capitania <strong>de</strong> Minas Gerais entre 1717<br />
e 1721, na contenção da revolta <strong>de</strong> Vila Rica <strong>de</strong> 1720, ou seja, auxiliaram-<strong>no</strong> na manutenção <strong>de</strong><br />
sua governabilida<strong>de</strong> 25 .<br />
Custódio Rebelo Vieira, um dos indivíduos mais <strong>de</strong>stacados na contenção da revolta <strong>de</strong><br />
Vila Rica, esteve bem relacionado com os dois governadores prece<strong>de</strong>ntes a D. Lourenço <strong>de</strong><br />
Almeida, a saber, D. Brás Baltasar e D. Pedro <strong>de</strong> Almeida, con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Assumar. Pelo primeiro, foi<br />
provido <strong>no</strong> posto <strong>de</strong> capitão <strong>de</strong> cavalos do regimento da or<strong>de</strong>nança do distrito <strong>de</strong> Vila Rica,<br />
posteriormente confirmado pelo Con<strong>de</strong> em carta patente <strong>de</strong> 01 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1718 26 . A 23 <strong>de</strong><br />
janeiro <strong>de</strong> 1719, o mesmo governador lhe proveu <strong>no</strong> posto <strong>de</strong> capitão da companhia <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nança<br />
do distrito do Brumado 27 já tendo, anteriormente, passado-lhe provisão para servir <strong>no</strong> cargo <strong>de</strong><br />
provedor dos quintos da freguesia do próprio Brumado 28 . Não obstante, em 1725 a trajetória <strong>de</strong><br />
Custódio Rebelo sofreria um forte revés nas Minas do Ouro.<br />
Já em 1724, D. Lourenço <strong>de</strong> Almeida obrigava Custódio Rebelo a assinar um termo<br />
"pelo qual se obriga e promete Custódio Rebelo abaixo assinado a viver todo o tempo que<br />
estiver nestas Minas com toda a quietação sem que em nenhum faça enredos e parcialida<strong>de</strong><br />
contra os gover<strong>no</strong>s e serviço <strong>de</strong> Sua Majesta<strong>de</strong> (...) promete emendar-se e quando ele dito faça<br />
25 Para a relação completa dos participantes da revolta <strong>de</strong> Vila Rica <strong>de</strong> 1720, assim como daqueles que entraram em<br />
conflito com D. Lourenço <strong>de</strong> Almeida ver KELMER MATHIAS, Carlos Leonardo. Jogos <strong>de</strong> interesses e estratégias <strong>de</strong><br />
ação <strong>no</strong> contexto da revolta mineira <strong>de</strong> Vila Rica, c. 1709 – c. 1736. Rio <strong>de</strong> Janeiro: UFRJ, PPGHIS, 2005. (Dissertação<br />
<strong>de</strong> mestrado inédita).<br />
26 APM, SC 12, fl. 25. CARTA patente passada a Custódio Rebelo Vieira. 01 jan. 1718.<br />
27 APM, SC 15, fl. 16v. CARTA patente passada a Custódio Rebelo Vieira. 23 <strong>de</strong>z. 1719.<br />
28 APM, SC 12, fl. 41v. PROVISÃO para Custódio Rebelo Vieira. 04 abr. 1718.<br />
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28
o contrário, assim por causa <strong>de</strong> enredos em exercícios como por sutiliza <strong>de</strong> língua, se sujeita a<br />
todo o castigo e a ser <strong>de</strong>gredado para qualquer das outras conquistas e em fé <strong>de</strong> que assim o<br />
promete" 29 .<br />
Por volta <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1725, D. Lourenço <strong>de</strong>u conta que havia solicitado ao comerciante<br />
Custódio Rebelo uma quantia emprestada “e quando se viu servido o governador com esse ouro<br />
começou a buscar pretextos frívolos e intimidar o suplicante para que se <strong>de</strong>sse, e claramente lhe<br />
explicou Ma<strong>no</strong>el Correa da Silva agente dos negócios do mesmo governador segurando-lhe que<br />
se assim o fizesse teria nele um amigo". Passados três a<strong>no</strong>s, o suplicante recebeu <strong>de</strong> D.<br />
Lourenço, via Ma<strong>no</strong>el Corrêa, 2100 oitavas <strong>de</strong> ouro, quantia irrisória para o governador, uma vez<br />
que este mordia, ao pagar as tropas <strong>de</strong> dragões, muito ouro da Fazenda Real, fato relatado pelo<br />
suplicante. Como não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, tal relato acen<strong>de</strong>u a cólera <strong>de</strong> D. Lourenço,<br />
mandando "logo <strong>no</strong> dia seguinte (...) pren<strong>de</strong>r o suplicante" que retirou-se aos matos "com grave<br />
prejuízo seu, e <strong>de</strong> seus correspon<strong>de</strong>ntes das praças do Brasil e <strong>de</strong>ssas cortes". Pouco <strong>de</strong>pois,<br />
Rafael da Silva e Souza, parcial do governador, prendia o suplicante na Vila do Carmo e o remetia<br />
à ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Vila Rica, on<strong>de</strong> “o governador mandou meter na escória, aon<strong>de</strong> só assistem os<br />
malfeitores e <strong>pretos</strong>, carregando-o <strong>de</strong> ferros".<br />
Posteriormente, João Ferreira dos Santos lhe fez uma proposta <strong>de</strong> ser solto mediante um<br />
pagamento <strong>de</strong> três ou quatro mil oitavas, o que foi recusado por Custódio, levando o governador a<br />
<strong>de</strong>ixá-lo permanecer na ca<strong>de</strong>ia com o pretexto pelo qual o suplicante tinha "em seu po<strong>de</strong>r algum<br />
bem <strong>de</strong> Pascoal da Silva Guimarães". Uma <strong>no</strong>va proposta lhe foi feita, <strong>de</strong>sta monta a pagar<br />
200000 cruzados, o que igualmente Custódio Rebelo não aceitou. Recorreu, em vista <strong>de</strong> sua<br />
situação, ao ouvidor geral, mas sem efeito por que "também é constante que o governador<br />
<strong>de</strong>scompunha toda a pessoa que intercedia pelo suplicante reputando-os por inimigos <strong>de</strong> Vossa<br />
Majesta<strong>de</strong>".<br />
Em 23 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1728, D. Lourenço <strong>de</strong> Almeida <strong>de</strong>u conta a El Rei <strong>de</strong> ser Custódio<br />
Rebelo "muito prejudicial a estas Minas", tendo do referido governador, pela "frota <strong>de</strong> Pernambuco<br />
e também por um navio das Ilhas”, remetido à Sua Majesta<strong>de</strong> a sentença <strong>de</strong> <strong>de</strong>gredo, pedindo a<br />
El-Rei que cumprisse a dita sentença, "por ela mandar castigar a este Custódio Rebelo, assim por<br />
ser um homem sumamente revoltoso e prejudicial, como para que o seu castigo sirva <strong>de</strong> exemplo<br />
nestas Minas" 30 . Ao que parece, Custódio Rebelo foi solto mediante o pagamento <strong>de</strong> uma dada<br />
29<br />
APM, SC 06, fl. 143v. TERMO em que se assi<strong>no</strong>u Custódio Rebelo Vieira pelo qual promete emendar o seu<br />
procedimento. 12 <strong>no</strong>v. 1724.<br />
30<br />
TRANSCRIÇÃO da segunda parte do Códice 23 Seção Colonial - Registro <strong>de</strong> alvarás, cartas, or<strong>de</strong>ns régias e cartas<br />
do governador ao Rei - 1721-1731. Revista do Arquivo Público Mineiro. A<strong>no</strong> XXXI, 1980, pp. 243-244.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
29
quantia partindo, então, para a Bahia, nutrindo um profundo rancor por aqueles que seguiram o<br />
partido real em 1720 31 .<br />
Do acima exposto, <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>-se claramente uma situação que, longe <strong>de</strong> ser um<br />
particularismo da capitania <strong>de</strong> Minas do Ouro, foi recorrente tanto <strong>no</strong> Estado espanhol como <strong>no</strong><br />
português. Acerca do primeiro, “a chegada <strong>de</strong> um <strong>no</strong>vo vice-rei <strong>de</strong>veria re<strong>no</strong>var constantemente<br />
os pactos e acordos com os colo<strong>no</strong>s, cujos interesses usualmente não coincidiam nem com as<br />
pretensões metropolitanas, nem com as aspirações <strong>de</strong> lucro do vice-rei e seus agregados” 32 . O<br />
conflito <strong>de</strong> interesses sugerido pela negociação coadunasse com a re<strong>no</strong>vação dos pactos e<br />
acordos estabelecidos entre as autorida<strong>de</strong>s régias e os vassalos. Concernente à relação entre D.<br />
Lourenço <strong>de</strong> Almeida e Custódio Rebelo, o pacto entre ambos não se realizou <strong>de</strong>vido à diferença<br />
<strong>de</strong> interesses estabelecidos <strong>no</strong> traçar <strong>de</strong> suas estratégias <strong>de</strong> ação. Acredito po<strong>de</strong>r afirmar a<br />
infelicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Custódio Rebelo em medir o valor daquilo a ser ganho ou perdido. Ao emprestar<br />
certa quantia a D. Lourenço <strong>de</strong> Almeida, Custódio Rebelo, em um primeiro momento, estreitou<br />
seus laços <strong>de</strong> reciprocida<strong>de</strong> com o referido governador. Contudo, ao cobrar a dívida e negar os<br />
acordos a ele oferecidos pelo representante régio, o que Custódio conseguiu foi angariar a<br />
insatisfação não só <strong>de</strong> D. Lourenço, mas também <strong>de</strong> sua re<strong>de</strong> em Minas do Ouro, obrigando-o à<br />
perda <strong>de</strong> seus bens e saída da região mais cobiçada <strong>de</strong> todo o Imperium Lusitanum.<br />
Félix <strong>de</strong> Azevedo Carneiro e Cunha parece ter tido, apesar da contenda com D. Lourenço<br />
<strong>de</strong> Almeida, sorte diferente da <strong>de</strong> Custódio Rebelo Vieira. Casado com Madalena Maria <strong>de</strong><br />
Andra<strong>de</strong> Matos e pai <strong>de</strong> cinco filhos 33 , Félix <strong>de</strong> Azevedo ascen<strong>de</strong>u "por todos os postos inferiores,<br />
e pelo <strong>de</strong> capitão do regimento da Armada Real, fazendo muitas campanhas e armadas por mar e<br />
terra achando-se em muitas ocasiões <strong>de</strong> peleja com valor <strong>no</strong>tório". Veio para as conquistas da<br />
América juntamente com D. Antônio <strong>de</strong> Albuquerque Coelho <strong>de</strong> Carvalho, trabalhando <strong>no</strong> Real<br />
Serviço em São Paulo, Rio <strong>de</strong> Janeiro – por ocasião da invasão francesa, em 1711 –, na<br />
arrecadação do quinto e em vários levantes ocorridos em Minas Gerais 34 . Antes <strong>de</strong> <strong>de</strong>scer à<br />
cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Sebastião do Rio <strong>de</strong> Janeiro, D. Antônio <strong>de</strong> Albuquerque, a quem Félix <strong>de</strong> Azevedo<br />
se apresentou com <strong>escravos</strong> seus armados às suas custas 35 , conce<strong>de</strong>u ao indivíduo em questão<br />
31<br />
AHU, MG, cx. 12 doc. 33. REQUERIMENTO (cópia) feito pelo comerciante Custódio Rebelo Vieira solicitando justiça<br />
nas violências contra ele praticadas pelo governador D. Lourenço <strong>de</strong> Almeida, as quais relata. OBS.: Segue-se uma<br />
cópia <strong>de</strong> <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> Eugênio Freire <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, Superinten<strong>de</strong>nte das Casas <strong>de</strong> Fundição e Moeda das Minas, dos<br />
acontecimentos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1725. 18 jun. 1728.<br />
32<br />
SUÁRES, Margarita. Desafíos transatlânticos: merca<strong>de</strong>res, banqueros y el estado en el Peru virreinal, 1600-1700,<br />
Fondo <strong>de</strong> Cultura Econômica, Peru, 2001, pp. 256-257.<br />
33<br />
AHU, MG, cx. 1 doc. 36. REQUERIMENTO <strong>de</strong> Madalena Maria <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> Matos, casado com Félix <strong>de</strong> Azevedo<br />
Carneiro e Cunha tenente do gover<strong>no</strong> das Minas, pedindo que por <strong>de</strong>creto se lhe dêem vinte mil réis cada mês, por<br />
conta dos soldos <strong>de</strong> seu marido. 02 jan. A713.<br />
34<br />
AHU, MG, cx. 1 doc. 40. REQUERIMENTO <strong>de</strong> Félix <strong>de</strong> Azevedo Carneiro e Cunha tenente <strong>de</strong> mestre-<strong>de</strong>-campo<br />
general do gover<strong>no</strong> das Minas Gerais, pedindo provimento <strong>no</strong> gover<strong>no</strong> da Capitania <strong>de</strong> Pernambuco. 11 jul. P714.<br />
35<br />
VASCONCELOS, Diogo <strong>de</strong>., op. cit., p. 296.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
30
a patente <strong>de</strong> sargento-mor <strong>de</strong> um terço pago recém criado nas Minas a mando <strong>de</strong> Sua Majesta<strong>de</strong>.<br />
Na carta patente, o governador <strong>de</strong>u conta que, até aquele momento, não havia criado o referido<br />
terço "por falta <strong>de</strong> meios para o po<strong>de</strong>r estabelecer”, uma vez que era preciso ir “socorrer a cida<strong>de</strong><br />
do Rio <strong>de</strong> Janeiro, que se acha sitiada do inimigo francês que com <strong>de</strong>zoito naus <strong>de</strong> guerra, entrou<br />
naquele porto <strong>de</strong> tanta importância" 36 .<br />
Em 12 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1722, D. Lourenço <strong>de</strong> Almeida redigiu uma carta en<strong>de</strong>reçada a El-Rei<br />
dando conta do zelo e valor com o qual Félix <strong>de</strong> Azevedo Carneiro e Cunha se portou nas várias<br />
ocasiões nas quais trabalhou <strong>no</strong> Real Serviço 37 . Não obstante, em 30 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1724, o<br />
governador lhe cobrava uma dívida que tinha com a Real Fazenda – imposto sobre uma ajuda <strong>de</strong><br />
custo à sua mulher, em 1713 –, causa do <strong>de</strong>sentendimento entre eles. Na referida documentação,<br />
D. Lourenço <strong>de</strong> Almeida afirmou ter Félix <strong>de</strong> Azevedo enviado-lhe uma carta dizendo para que<br />
"disfarçasse" tal cobrança o que, diferentemente dos seus antecessores, não aceitou 38 . Duas<br />
questões cabem ser formuladas a propósito <strong>de</strong> tal passagem, quais sejam, Félix <strong>de</strong> Azevedo era,<br />
além <strong>de</strong> um alto oficial <strong>no</strong> gover<strong>no</strong> <strong>de</strong> El-Rei, um profundo conhecedor das Minas – posto ter feito<br />
um mapa da citada capitania – e versado em guerra. Não seria a atitu<strong>de</strong> dos governadores<br />
anteriores <strong>de</strong> disfarçar a dívida uma estratégia para ter em Félix <strong>de</strong> Azevedo Carneiro e Cunha um<br />
aliado e, assim, garantir a governabilida<strong>de</strong>? Se assim o for, por que D. Lourenço não seguiu o<br />
mesmo caminho <strong>de</strong> seus antecessores? O governador também relatou ter ido à comarca do Rio<br />
das Mortes para resolver uma "gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sunião" entre alguns homens principais das vilas <strong>de</strong> São<br />
João e São José e que Félix <strong>de</strong> Azevedo o acompanhou nesta jornada muito a contra gosto com<br />
"repugnância com que faz a obrigação do seu posto" e servia ao Rei 39 .<br />
A alteração entre os dois tomou dimensões maiores, chegando ao conhecimento do<br />
Conselho Ultramari<strong>no</strong>, o qual or<strong>de</strong><strong>no</strong>u a D. Lourenço <strong>de</strong> Almeida restituir Félix <strong>de</strong> Azevedo <strong>no</strong> seu<br />
posto e pagar os soldos <strong>de</strong> todo o tempo que esteve fora <strong>de</strong>le 40 . O governador, além <strong>de</strong> não<br />
cumprir as or<strong>de</strong>ns régias, continuou perseguindo-o, mandando que lhe insultasse e matasse. O<br />
padre Marcelo Pinto Ribeiro, vigário da Matriz da Vila do Carmo, foi quem <strong>de</strong>u conta <strong>de</strong>sses<br />
acontecidos, datando-os <strong>de</strong> 1728. O governador, insatisfeito com o <strong>de</strong>senrolar da história,<br />
36 APM, SC 08, fl. 3. CARTA patente passada a Félix <strong>de</strong> Azevedo Carneiro e Cunha sargento mor do <strong>no</strong>vo terço pago<br />
que Sua Majesta<strong>de</strong> mandou criar nas Minas. 13 [ilegível] 1711. [Grifos meus]<br />
37 AHU, MG, cx. 3 doc. 5. CARTA <strong>de</strong> Dom Lourenço <strong>de</strong> Almeida, governador das Minas Gerais, mostrando satisfação<br />
pelos serviços do mestre-<strong>de</strong>-campo, Félix <strong>de</strong> Azevedo Carneiro e Cunha. Vila do Carmo 12 abr. 1722.<br />
38 AHU, MG, cx 5 doc. 5. CARTA <strong>de</strong> Dom Lourenço <strong>de</strong> Almeida, governador das Minas Gerais, queixando-se das<br />
violências feitas pelos oficiais Félix <strong>de</strong> Azevedo Carneiro e Cunha, tenente <strong>de</strong> mestre-<strong>de</strong>-campo, e Manuel <strong>de</strong> Barros<br />
Gue<strong>de</strong>s e Madureira, alferes <strong>de</strong> uma companhia <strong>de</strong> Dragões durante a viagem <strong>de</strong> Lisboa para Minas Gerais. Vila Rica<br />
31 jan. 1724.<br />
39 I<strong>de</strong>m.<br />
40 AHU, MG, cx. 5 doc. 13. PARECER do Conselho Ultramari<strong>no</strong> sobre a queixa feita por Félix <strong>de</strong> Azevedo Carneiro e<br />
Cunha, tenente <strong>de</strong> mestre-<strong>de</strong>-campo, contra Dom Lourenço <strong>de</strong> Almeida, governador das Minas, e seu filho, Dom Luis <strong>de</strong><br />
Almeida, pelos excessos e <strong>de</strong>litos cometidos por este último. OBS.: Falta a carta com a queixa. Lisboa 14 mar. 1724.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
31
<strong>de</strong>termi<strong>no</strong>u a prisão <strong>de</strong> Félix <strong>de</strong> Azevedo. Esse, por sua feita, enviou uma carta ao Rei,<br />
requerendo sua soltura e uma punição ao governador 41 .<br />
Em 25 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1728, El-Rei D. João-V estabeleceu o alvedrio <strong>de</strong> Félix <strong>de</strong> Azevedo,<br />
que se encontrava doente havia 08 a<strong>no</strong>s e preso havia 02. Em seu parecer, El-Rei levava em<br />
conta o estado <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> Félix <strong>de</strong> Azevedo e o fato <strong>de</strong> D. Lourenço <strong>de</strong> Almeida não haver tido<br />
em consi<strong>de</strong>ração a graduação do posto do suplicante. Tal resolução provocou a indignação do<br />
governador, afirmando que Félix <strong>de</strong> Azevedo "ficou enten<strong>de</strong>ndo que Vossa Majesta<strong>de</strong> dava mais<br />
veredicto as representações que ele fazia pelos seus procuradores do que as minhas contas, e<br />
como eu também assim o posso presumir" 42 .<br />
De fato, o prestígio <strong>de</strong> Félix <strong>de</strong> Azevedo era consi<strong>de</strong>rável, pois, em carta patente do rei<br />
datada <strong>de</strong> 06 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1731, este passa mercê <strong>de</strong> mestre-<strong>de</strong>-campo ad ho<strong>no</strong>rem da capitania<br />
<strong>de</strong> Minas Gerais a Félix <strong>de</strong> Azevedo, elogiando-o pelos 46 a<strong>no</strong>s <strong>de</strong> bons serviços 43 . Observa-se<br />
que tanto Custódio Rebelo Vieira como Félix <strong>de</strong> Azevedo Carneiro e Cunha entraram em<br />
<strong>de</strong>savenças com D. Lourenço <strong>de</strong> Almeida <strong>de</strong>vido a cobranças <strong>de</strong> dívida, o primeiro a reclamou<br />
junto ao próprio governador e o segundo teve sua dívida cobrada pelo governador.<br />
Des<strong>de</strong> 1705, Silvestre Marques da Cunha servia a El-Rei na cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro em<br />
praça <strong>de</strong> cabo <strong>de</strong> infantaria, para on<strong>de</strong> havia passado com patente assentada da cida<strong>de</strong> do<br />
Porto 44 . Foi eleito primeiro juiz da câmara <strong>de</strong> São João <strong>de</strong>l-Rei quando esta foi criada em 08 <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1713 45 . Em 1713, D. Brás Baltasar lhe conce<strong>de</strong>u carta patente do posto <strong>de</strong> sargento-<br />
mor do regimento da cavalaria da or<strong>de</strong>nança da vila <strong>de</strong> São João <strong>de</strong>l-Rei, posto <strong>no</strong> qual proce<strong>de</strong>u<br />
“com boa satisfação” 46 . Em 24 <strong>de</strong> <strong>no</strong>vembro <strong>de</strong> 1717, o con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Assumar conce<strong>de</strong>u-lhe carta<br />
patente provendo-o <strong>no</strong> posto <strong>de</strong> sargento-mor, <strong>no</strong> qual já tinha sido servido por D. Brás Baltasar.<br />
Na carta patente, o governador <strong>de</strong>u conta <strong>de</strong> ter<br />
“respeito aos merecimentos e mais partes que concorrem na pessoa <strong>de</strong> Silvestre Marques da<br />
Cunha, e a boa satisfação com que se houve em todo o tempo que militou assim <strong>no</strong> Rei<strong>no</strong> como<br />
na praça do Rio <strong>de</strong> Janeiro e ao bem que prece<strong>de</strong>u com que ocupou o posto <strong>de</strong> sargento-mor da<br />
cavalaria da Vila <strong>de</strong> São João <strong>de</strong>l-Rei” 47 .<br />
41 AHU, MG, cx. 12 doc. 36. REQUERIMENTO <strong>de</strong> Félix <strong>de</strong> Azevedo Carneiro e Cunha tenente <strong>de</strong> mestre-<strong>de</strong>-campo<br />
general <strong>de</strong> Minas, solicitando a D. João-V con<strong>de</strong>nasse o governador <strong>de</strong> Minas, D. Lourenço <strong>de</strong> Almeida por o ter<br />
mandado pren<strong>de</strong>r sem justa causa. 29 jun. A728.<br />
42 I<strong>de</strong>m.<br />
43 AHU, MG, cx. 21 doc. 35. REQUERIMENTOS <strong>de</strong> João Ferreira Tavares e Félix <strong>de</strong> Azevedo Carneiro e Cunha,<br />
mestres <strong>de</strong> campo com exercício <strong>de</strong> tenente-general das Minas, pedindo a conservação da sua antiguida<strong>de</strong>. 27 mar.<br />
A732.<br />
44 TRANSCRIÇÃO da primeira parte do Código - 23 - Seção Colonial Registro <strong>de</strong> Alvarás, cartas e or<strong>de</strong>ns régias e<br />
cartas do Governador ao Rei - 1721-1731. Revista do Arquivo Público Mineiro. A<strong>no</strong> XXX, 1979, pp. 162-163.<br />
45 MEMÓRIA história da capitania <strong>de</strong> Minas Gerais. Revista do Arquivo Público Mineiro. A<strong>no</strong> II, fascículo 3, 1897, p. 468.<br />
46 APM, SC 12, fls. 21-21v. PROVISÃO passada a Silvestre Marques da Cunha. 24 <strong>no</strong>v. 1717.<br />
47 APM, SC 12, fls. 21-21v. PROVISÃO passada a Silvestre Marques da Cunha. 24 <strong>no</strong>v. 1717.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
32
Cerca <strong>de</strong> quatro meses <strong>de</strong>pois, o governador passou-lhe provisão <strong>no</strong> cargo <strong>de</strong> "provedor<br />
dos quintos das freguesias <strong>de</strong> São Antônio da Vila <strong>de</strong> São José e <strong>de</strong> Nossa Senhora da<br />
Conceição dos Prados do distrito da mesma vila" pelo tempo <strong>de</strong> um a<strong>no</strong> 48 .<br />
Sempre às voltas com arrematações <strong>de</strong> contratos, Silvestre Marques obteve o arremate<br />
dos dízimos da comarca do Rio das Mortes em 1721, já <strong>no</strong> gover<strong>no</strong> <strong>de</strong> D. Lourenço <strong>de</strong> Almeida,<br />
por 3 arrobas e 10 libras 49 . Em 06 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1724, o governador escreveu a El-Rei dando<br />
conta <strong>de</strong> ser Silvestre Marques um bom executante <strong>de</strong> todas as or<strong>de</strong>ns a ele passadas e<br />
possuidor <strong>de</strong> dívidas com um Constanti<strong>no</strong> Alves e com João Ferreira dos Santos – revolto indireto<br />
– e seu irmão, pessoas “quietas e sossegadas” 50 . Conforme D. Lourenço <strong>de</strong> Almeida, assim que<br />
tomou posse <strong>de</strong> juiz ordinário, posto <strong>no</strong> qual somente era mantido por não haver outro melhor<br />
para substituí-lo, Sivestre Marques, homem “inclinado a paixões particulares”, passou a querer<br />
vingar-se do capitão-mor da Vila <strong>de</strong> São José, Felicia<strong>no</strong> Pinto <strong>de</strong> Vasconcelos e <strong>de</strong> Francisco do<br />
Amaral Coutinho 51 .<br />
Não obstante, em 16 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1725, Silvestre Marques relatou a El-Rei os maus<br />
procedimentos <strong>de</strong> João Ferreira dos Santos, <strong>de</strong> José Ferreira (irmão <strong>de</strong> João Ferreira) e <strong>de</strong><br />
Estevão Rodrigues <strong>de</strong> Carvalho, afirmando "que sendo há poucos a<strong>no</strong>s pessoas muito humil<strong>de</strong>s e<br />
ocupadas em serviço <strong>de</strong> outras pessoas com quem viviam assoldadados, que <strong>de</strong>ste gênero são<br />
os que cá se fazem mais dig<strong>no</strong>s <strong>de</strong> insolências, vendo-se com cabedais" 52 . Além da <strong>de</strong>núncia<br />
acerca dos sobreditos, Sivestre Marques havia, em 20 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1724, enviado a Sua<br />
Majesta<strong>de</strong> a <strong>de</strong>vassa tirada <strong>de</strong> Francisco do Amaral Coutinho. Escreveu Sivestre Marques,<br />
“o zelo <strong>de</strong> bom vassalo e o lugar <strong>de</strong> juiz em que me acho nesta vila <strong>de</strong> São José me permite<br />
tomar a confiança <strong>de</strong> remeter a Vossa Majesta<strong>de</strong> a <strong>de</strong>vassa inclusa para que assim fique<br />
Vossa Majesta<strong>de</strong> interirado do procedimento que em Francisco do Amaral Coutinho e assim<br />
mesmo costuma haver-se com o povo e justiças <strong>de</strong> Vossa Majesta<strong>de</strong> fazendo em todo o tempo<br />
muitas repetidas insolências como Vossa Majesta<strong>de</strong> achará sendo servido mandar-se<br />
informar” 53 .<br />
48 APM, SC 12, fls. 36-37v. PROVISÃO passada a Silvestre Marques da Cunha. 08 mar. 1718.<br />
49 AHU, MG, cx. 5 doc. 69. CARTA <strong>de</strong> Antônio Berquó Del Rio, provedor da Fazenda Real das Minas, enviando os<br />
mapas dos contratos das entradas dos caminhos do Rio <strong>de</strong> Janeiro, São Paulo, dos Currais e da Bahia, incluindo os<br />
dízimos, para provar os bons serviços do signatário. Vila Rica, 23 ago. 1724.<br />
50 Maria Verônica Campos constatou a existência <strong>de</strong> dois João Ferreira dos Santos. Segundo a autora, um "não se sabe<br />
a data <strong>de</strong> seu estabelecimento em Minas, mas vivia em São João <strong>de</strong>l-Rei em 1719. Enriquece, não como dizia, com<br />
ricas lavras, mas com a falsificação <strong>de</strong> barras <strong>de</strong> ouro e moedas, foi preso em 1735 e enviado para a prisão do<br />
Limoeiro. O segundo, o Tranca por alcunha, vivia em Santa Luiza <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1706. Era comparsa <strong>de</strong> Manuel Nunes Viana e<br />
Manuel Rodrigues Soares, com envolvimento em diversos motins em Minas. Faleceu em Minas em 1738, quando se<br />
homônimo se achava preso em Lisboa, após participação <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque <strong>no</strong> motim do sertão em 1736". CAMPOS, Maria<br />
Verônica. Gover<strong>no</strong> <strong>de</strong> mineiros: “<strong>de</strong> como meter as Minas numa moenda e beber-lhe o caldo dourado” 1693 a 1737.<br />
São Paulo: USP, FFLCH, 2002. (Tese <strong>de</strong> doutoramento inédita), p. 314.<br />
51 TRANSCRIÇÃO da primeira parte do Código - 23 - Seção Colonial Registro <strong>de</strong> Alvarás, cartas e or<strong>de</strong>ns régias e<br />
cartas do Governador ao Rei - 1721-1731. Revista do Arquivo Público Mineiro. A<strong>no</strong> XXXI, 1980, pp. 173-175.<br />
52 TRANSCRIÇÃO da primeira parte do Código - 23 - Seção Colonial Registro <strong>de</strong> Alvarás, cartas e or<strong>de</strong>ns régias e<br />
cartas do Governador ao Rei - 1721-1731. Revista do Arquivo Público Mineiro. A<strong>no</strong> XXX, 1979, pp. 162-163.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
33
No <strong>de</strong>correr do documento, Silvestre Marques da Cunha <strong>de</strong>nunciou, sobremaneira, o<br />
envolvimento <strong>de</strong> Francisco do Amaral Coutinho na arrematação havida em 1721 (durante o<br />
gover<strong>no</strong> <strong>de</strong> D. Lourenço <strong>de</strong> Almeida) acerca dos contratos dos dízimos da comarca do Rio das<br />
Velhas – essa última arrematada por Sebastião Barbosa Prado, homem ligado, conforme se verá,<br />
ao governador D. Lourenço <strong>de</strong> Almeida.<br />
Embora não seja muito nítido o motivo dos <strong>de</strong>sentendimentos entre o governador e<br />
Sivestre Marques, é patente a existência <strong>de</strong> uma certa <strong>de</strong>savença com D. Lourenço <strong>de</strong> Almeida –<br />
fato até então não ocorrido com nenhum outro governador. Não é possível afirmar se Silvestre<br />
Marques apontou os ilícitos envolvimentos <strong>de</strong> Francisco do Amaral – seu antigo sócio na<br />
arrematação <strong>de</strong> contrato da aguar<strong>de</strong>nte – justamente na arrematação do contrato relativo a<br />
Sebastião Barbosa propositadamente ou não. Também não pu<strong>de</strong> comprovar, exceto na referida<br />
<strong>de</strong>vassa, a tal participação <strong>de</strong> Francisco do Amaral <strong>no</strong> contrato do Rio das Velhas. Logo, não é<br />
possível afirmar ter sido essa uma estratégia <strong>de</strong> Silvestre Marques para se manter <strong>no</strong> posto <strong>de</strong><br />
juiz ordinário. Contudo, é bastante sugestivo que em apenas 14 dias após D. Lourenço <strong>de</strong><br />
Almeida ter dado conta a El-Rei <strong>de</strong> ser Silvestre Marques homem “inclinado a paixões<br />
particulares” sendo mantido <strong>no</strong> posto por não haver outro melhor para substituí-lo, ele ter remetido<br />
a tal <strong>de</strong>vassa a Sua Majesta<strong>de</strong>.<br />
Em carta régia <strong>de</strong> 09 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1724, Sua Majesta<strong>de</strong> <strong>de</strong>u conta <strong>de</strong> ter Manuel <strong>de</strong><br />
Barros Gue<strong>de</strong>s Madureira servido na Catalunha – companheiro do con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Assumar na<br />
chamada guerra da Sucessão Espanhola 54 – principado <strong>de</strong> Extremadura, por espaço <strong>de</strong> 13 a<strong>no</strong>s,<br />
7 meses e 6 dias – <strong>no</strong> período compreendido entre 03 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1704 e 08 <strong>de</strong> <strong>no</strong>vembro <strong>de</strong><br />
1717 – em praça <strong>de</strong> soldado, cabo <strong>de</strong> esquadra, sargento, alferes <strong>de</strong> cavalo e alferes <strong>de</strong> dragões<br />
(neste último posto Manuel <strong>de</strong> Barros já se encontrava nas Minas do Ouro). El-Rei reconheceu<br />
sua muito boa ação em 1720, ao persuadir pessoas a passarem para o partido régio. Manuel <strong>de</strong><br />
Barros pren<strong>de</strong>u o padre Frei Francisco <strong>de</strong> Monte Alverne e o mestre-<strong>de</strong>-campo Pascoal da Silva<br />
Guimarães, sendo o primeiro a entrar "na casa don<strong>de</strong> estava o tal culpado com quatro <strong>escravos</strong><br />
armados (...) indo por or<strong>de</strong>m do governador por fogo às casas do mestre <strong>de</strong> campo Pascoal da<br />
Silva Guimarães e dos seus sequazes por ser impreciso para castigo e exemplo dos mais<br />
revoltosos". Também foi responsável pela guarda <strong>de</strong> Felipe dos Santos e executou, igualmente, a<br />
prisão <strong>de</strong> José Peixoto da Silva e <strong>de</strong> José Ribeiro Dias 55 .<br />
53 AHU, MG, cx. 5 doc. 56. CARTA <strong>de</strong> Silvestre Marques da Cunha enviando a <strong>de</strong>vassa sobre o procedimento <strong>de</strong><br />
Francisco do Amara Coutinho. Vila <strong>de</strong> São José, 20 ago. 1724.<br />
54 VASCONCELOS, Diogo <strong>de</strong>. Op. Cit., p. 371.<br />
55 AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG, cx. 5, doc. 18. REQUERIMENTO <strong>de</strong> Manuel <strong>de</strong> Barros Gue<strong>de</strong>s Madureira, tenente <strong>de</strong><br />
Dragões <strong>de</strong> uma das companhias, enviada para o gover<strong>no</strong> das Minas do ouro, solicitando sua confirmação <strong>no</strong> exercício<br />
do referido posto. 23 <strong>de</strong> março A724.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
34
Também não me foi possível i<strong>de</strong>ntificar a aparente causa dos <strong>de</strong>sentendimentos entre<br />
Manuel <strong>de</strong> Barros e D. Lourenço <strong>de</strong> Almeida, mas pu<strong>de</strong> localizar um documento <strong>no</strong> qual Manuel<br />
<strong>de</strong> Barros queixava-se <strong>de</strong> que o governador lhe fez "manifestas injustiças". Pediu a El-Rei<br />
"mandar por seu Real <strong>de</strong>creto, <strong>de</strong>clarar nulos todos os procedimentos e sentenças do dito<br />
governador e que ao suplicante se restituam todos os seus soldos, posto, perdas e da<strong>no</strong>s" 56 .Em<br />
23 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1726, Manuel <strong>de</strong> Barros pe<strong>de</strong> para trocar <strong>de</strong> posto com Martinho Alvarez Coelho,<br />
ajudante <strong>de</strong> cavalaria <strong>no</strong> regimento do Marquês <strong>de</strong> Marialva, Pedro José <strong>de</strong> Meneses Coutinho,<br />
sob a alegação <strong>de</strong> que "tem nesta corte muita <strong>de</strong>pendência que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da sua assistência<br />
pessoal para os quais lhe foi preciso pedir licença a Vossa Majesta<strong>de</strong> para vir acudir a elas".<br />
Contudo, o parecer do Conselho Ultramari<strong>no</strong> revela uma outra face do real motivo <strong>de</strong> Manuel <strong>de</strong><br />
Barros vir a requerer sua transferência. Segundo o parecer, a troca seria boa por que Manuel <strong>de</strong><br />
Barros teria "gran<strong>de</strong> repugnância” em voltar para Minas <strong>de</strong>vido aos <strong>de</strong>sentendimentos com D.<br />
Lourenço <strong>de</strong> Almeida 57 . A versão do Conselho ganha ainda maior embasamento se tivermos em<br />
conta que, em 02 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1734 – dois a<strong>no</strong>s após a partida <strong>de</strong> D. Lourenço das Minas –,<br />
Manuel <strong>de</strong> Barros é <strong>no</strong>meado capitão <strong>de</strong> uma recém criada companhia <strong>de</strong> Dragões na comarca<br />
do Serro Frio 58 .<br />
Os casos acima relatados tornam-se mais relevantes tendo em conta que todos figuraram<br />
na lista elaborada por D. Lourenço <strong>de</strong> Almeida com os <strong>no</strong>mes dos indivíduos <strong>de</strong> maior <strong>de</strong>staque<br />
na contenção da revolta <strong>de</strong> Vila Rica em 1720, ou seja, eram homens merecedores <strong>de</strong> honras e<br />
privilégios <strong>de</strong> El-Rei. Disso <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>-se a flui<strong>de</strong>z <strong>de</strong> interesses e <strong>de</strong> alianças inerentes ao tecido<br />
social <strong>no</strong> qual tais indivíduos atuavam e se inseriam. De mais a mais, sugere um alto grau <strong>de</strong><br />
refinamento exigido dos sujeitos ao tomar esta ou aquela opção. Por assim dizer, a necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> rever estratégias <strong>de</strong> ação não se limitava somente aos momentos <strong>de</strong> alteração <strong>no</strong> gover<strong>no</strong>,<br />
mas durante o <strong>de</strong>correr da própria vida <strong>de</strong> um dado indivíduo, isto é, tal necessida<strong>de</strong> fazia parte<br />
das contínuas “situações <strong>de</strong> negociação” das quais os sujeitos estavam ao capricho.<br />
Para além <strong>de</strong> tais constatações, as observações acima sugerem que os representantes <strong>de</strong><br />
El-Rei em suas conquistas não estavam completamente à mercê dos caprichos e vonta<strong>de</strong>s<br />
daqueles os quais, “às custas <strong>de</strong> suas vidas, <strong>de</strong> seus negros armados e <strong>de</strong>spesas <strong>de</strong> suas<br />
fazendas”, asseguravam – ou contribuíam e<strong>no</strong>rmemente para tanto – a governabilida<strong>de</strong> para a<br />
Coroa. Todos os quatro indivíduos trabalhados acima haviam contribuído para a busca e<br />
56 I<strong>de</strong>m.<br />
57 AHU, MG, cx. 6 doc. 8. REQUERIMENTO <strong>de</strong> Manuel Barros Gue<strong>de</strong>s Madureira, tenente <strong>de</strong> cavalos <strong>de</strong> uma<br />
companhia <strong>de</strong> Dragões das Minas, e <strong>de</strong> Marinho Alves Coelho, ajudante <strong>de</strong> cavalaria <strong>no</strong> Regimento do Marques <strong>de</strong><br />
Marialva, Pedro José <strong>de</strong> Meneses Noronha Coutinho, solicitando licença para trocarem os postos. 23 jan. A725.<br />
58 AHU, MG, cx. 27 doc. 2. REQUERIMENTO dos cabos da esquadra da companhia criada <strong>de</strong> <strong>no</strong>vo para as Minas do<br />
Ouro, <strong>de</strong> que é capitão Manuel <strong>de</strong> Barros Gue<strong>de</strong>s, pedindo provisão para vencerem os seus soldos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o dia do<br />
embarque. 02 jun. A734.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
35
manutenção dos três governadores pre<strong>de</strong>cessores a D. Lourenço <strong>de</strong> Almeida, <strong>no</strong>tadamente <strong>no</strong><br />
que concernia a D. Pedro <strong>de</strong> Almeida na contenção da revolta <strong>de</strong> Vila Rica em 1720. Porém,<br />
esses valorosos serviços prestados ao Fi<strong>de</strong>líssimo não asseguraram a Custódio Rebelo, a Félix<br />
<strong>de</strong> Azevedo, a Silvestre Marques e a Manuel Gue<strong>de</strong>s privilégios junto D. Lourenço <strong>de</strong> Almeida.<br />
Em resumo, e a título <strong>de</strong> conclusão, o fato <strong>de</strong> a Coroa não po<strong>de</strong>r prescindir do apoio <strong>de</strong><br />
po<strong>de</strong>rosos locais na busca e manutenção <strong>de</strong> sua governabilida<strong>de</strong> não alçava esses mesmos<br />
homens a uma posição tal que, <strong>no</strong> complexo jogo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e negociação inerente ao gover<strong>no</strong> <strong>de</strong><br />
um rei<strong>no</strong> e <strong>de</strong> suas conquistas, pu<strong>de</strong>ssem gozar <strong>de</strong> isenções e privilégios para agir tal qual suas<br />
vonta<strong>de</strong>s. Havia, sim, um refinado e latente equilíbrio. Equilíbrio esse que estava na base das<br />
relações administrativas e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. Por conseguinte, estava na base das “condições da<br />
governabilida<strong>de</strong>” as quais estavam sujeitos aqueles indivíduos envoltos com o gover<strong>no</strong> das<br />
conquistas.<br />
Carlos Leonardo Kelmer Mathias é Doutorando em História Social pela UFRJ<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
36
ORGANIZAÇÃO MILITAR NO IMPÉRIO PORTUGUÊS: UMA ANÁLISE<br />
DAS BASES ORGANIZACIONAIS E LEGISLATIVAS DOS CORPOS DE<br />
ORDENANÇAS<br />
Resumo:<br />
O presente texto tem por objetivo abordar a<br />
estrutura <strong>de</strong> funcionamento dos Corpos <strong>de</strong><br />
Or<strong>de</strong>nanças dissertando acerca <strong>de</strong> suas bases<br />
organizacionais e legislativas, tanto para o rei<strong>no</strong><br />
quanto para o ultramar. Além disso, colocando<br />
em foco o caso <strong>de</strong> Minas Gerais, procuraremos<br />
também analisar o caráter <strong>de</strong>stes corpos, sua<br />
hierarquia, contingente e disposição <strong>de</strong> suas<br />
tropas pela comarca <strong>de</strong> Vila Rica, <strong>de</strong> forma a<br />
termos um retrato da orgânica dos Corpos <strong>de</strong><br />
Or<strong>de</strong>nanças, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua criação <strong>no</strong> Rei<strong>no</strong> até sua<br />
instalação na América Portuguesa e mais<br />
especificamente em Minas Gerais.<br />
Palavras-chave:<br />
Corpos <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nanças, Organização militar,<br />
Legislação militar.<br />
Ana Paula Pereira Costa<br />
Abstract:<br />
The purpose of this paper is approach the<br />
structure of operation of the “Corpos <strong>de</strong><br />
Or<strong>de</strong>nanças”, analyzing their organizational and<br />
legislative bases, so much for the kingdom as for<br />
the overseas. Besi<strong>de</strong>s, putting in focus the case of<br />
Minas Gerais, we will also try to analyze the<br />
character of these military bodies, his hierarchy,<br />
contingent and the disposition of their troops for<br />
the district of Vila Rica, in way to have a organic<br />
view of the “Corpos <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças”, from his<br />
creation in Kingdom, until his installation in<br />
Portuguese America and more specifically, in<br />
Minas Gerais.<br />
Key words:<br />
Corpos <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nanças, Military organization,<br />
Military legislation.<br />
O presente artigo tem por objetivo abordar a estrutura <strong>de</strong> funcionamento dos Corpos <strong>de</strong><br />
Or<strong>de</strong>nanças dissertando acerca <strong>de</strong> suas bases organizacionais e legislativas, tanto para o rei<strong>no</strong><br />
quanto para o ultramar 1 . Nos atentaremos também para as medidas tomadas <strong>no</strong>s campos do<br />
domínio financeiro e da administração militar a fim <strong>de</strong> dar suporte a estrutura mais geral da<br />
organização militar lusa. Além disso, colocando em foco o caso <strong>de</strong> Minas Gerais, procuraremos<br />
também analisar o caráter <strong>de</strong>stes corpos, sua hierarquia, contingente e disposição <strong>de</strong> suas tropas<br />
pela comarca <strong>de</strong> Vila Rica, um importante território das Minas Gerais <strong>no</strong> século XVIII, <strong>de</strong> forma a<br />
termos um retrato da orgânica dos Corpos <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua criação <strong>no</strong> Rei<strong>no</strong> até sua<br />
instalação na América Portuguesa e mais especificamente em Minas Gerais.<br />
A construção do Estado Mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong> na Europa, assente na fiscalida<strong>de</strong> e na guerra, passou<br />
também pela tentativa <strong>de</strong> constituição <strong>de</strong> um exército à escala do território nacional. A fragilida<strong>de</strong><br />
do aparelho burocrático e a escassez <strong>de</strong> recursos huma<strong>no</strong>s e técnicos fizeram com que os<br />
monarcas se apoiassem em milícias urbanas para assegurar a existência <strong>de</strong> uma tropa pronta a<br />
1 Este artigo é uma versão resumida do 1º capítulo da minha Dissertação <strong>de</strong> Mestrado intitulada “Atuação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res<br />
locais <strong>no</strong> Império Lusita<strong>no</strong>: uma análise do perfil das chefias militares dos Corpos <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças e <strong>de</strong> suas estratégias<br />
na construção <strong>de</strong> sua autorida<strong>de</strong>. Vila Rica, (1735-1<strong>77</strong>7)”, <strong>de</strong>fendida <strong>no</strong> PPGHIS/UFRJ sob orientação do Prof. Dr.<br />
Ma<strong>no</strong>lo Garcia Florenti<strong>no</strong>.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
37
servir em caso <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>. Portugal não constituiu exceção a este quadro sendo marcante a<br />
presença <strong>de</strong> forças militares ou paramilitares locais <strong>no</strong> quadro organizacional do exército<br />
português, à imagem do que ocorria em vários rei<strong>no</strong>s europeus 2 .<br />
Contudo cabe sublinhar uma especificida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Portugal neste contexto. No período <strong>de</strong><br />
1500-1800 boa parte das gran<strong>de</strong>s potências européias oci<strong>de</strong>ntais passaram por conflitos militares<br />
<strong>no</strong>s quais se po<strong>de</strong> acompanhar a evolução das táticas, dos armamentos e da organização militar,<br />
num processo que ficou conhecido como “revolução militar”. Como se sabe, a revolução militar é<br />
caracterizada pela introdução intensiva e extensiva da <strong>no</strong>va tec<strong>no</strong>logia militar <strong>de</strong> armas <strong>de</strong> fogo, o<br />
que resultou em uma série <strong>de</strong> mudanças não apenas nas técnicas <strong>de</strong> combate, mas também na<br />
organização militar e na relação da guerra com a socieda<strong>de</strong> 3 . Portugal, entretanto, ficou <strong>de</strong> fora<br />
<strong>de</strong>ste processo. Sua história militar é a <strong>de</strong> um país que, durante mais <strong>de</strong> 150 a<strong>no</strong>s, (entre Toro-<br />
1476 e a Aclamação-1640) não participou <strong>de</strong> operações militares terrestres na Europa e que, <strong>de</strong><br />
experiência, conhecia apenas a guerra ultramarina, em que se <strong>de</strong>frontavam práticas bélicas<br />
peculiares e a guerra <strong>de</strong> guerrilhas 4 . Com efeito, os esforços <strong>de</strong> guerra <strong>de</strong> Portugal concentravam-<br />
se, sobretudo, na força naval. Des<strong>de</strong> pelo me<strong>no</strong>s o século XVI Portugal tecia uma armada<br />
permanente. Apesar <strong>de</strong> esta comportar funções civis (comerciais) ela era ao mesmo tempo uma<br />
armada <strong>de</strong> guerra, sustentada pela Coroa, sendo o gran<strong>de</strong> sustentáculo <strong>de</strong>sta em seus êxitos,<br />
pelo me<strong>no</strong>s <strong>no</strong> Oriente, e do Império Ultramari<strong>no</strong>. Ou seja, a potência naval foi um fator – direto,<br />
enquanto força, e indireto, enquanto garantidor <strong>de</strong> riqueza – <strong>de</strong> credibilização externa <strong>de</strong><br />
Portugal 5 .<br />
Diferente era a situação da força armada terrestre. Aí as tradições portuguesas são tardias e<br />
pouco permanentes, até pelo me<strong>no</strong>s o século XVII 6 . Conforme dito anteriormente, e a exemplo do<br />
que acontecia em outras partes da Europa, os monarcas se apoiaram em milícias urbanas para<br />
assegurar a existência <strong>de</strong> uma tropa pronta a servir em caso <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>.<br />
A origem <strong>de</strong>stas milícias mergulha na Ida<strong>de</strong> Média. No período da Reconquista os fueros<br />
<strong>de</strong> leão e Castela, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XI, e os forais portugueses <strong>de</strong>s<strong>de</strong>, pelo me<strong>no</strong>s, 1157,<br />
consagravam a obrigatorieda<strong>de</strong> dos cavaleiros em participar das expedições militares. Com D.<br />
2 RODRIGUES, José Damião. “A guerra <strong>no</strong> Açores”. In. HESPANHA, António Manuel (Org). Nova História Militar <strong>de</strong><br />
Portugal. Vol. II – séculos XVI-XVII. Lisboa: Círculo <strong>de</strong> Leitores, 2003, p. 245.<br />
3 HESPANHA, António M. “Introdução”. In: HESPANHA, António Manuel (Org). Nova História Militar <strong>de</strong> Portugal... Op.<br />
cit., p. 9. Sobre revolução militar ver: Parker, Geoffrey. The Military Revolution: Military I<strong>no</strong>vation and the Rise of the<br />
West, 1500-1800. Cambridge, Cambridge University Press, 1992.<br />
4 I<strong>de</strong>m. Sobre este assunto ver: PUNTONI, Pedro. A guerra dos bárbaros: povos indígenas e a colonização do Sertão<br />
Nor<strong>de</strong>ste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec, 2002.<br />
5 HESPANHA, António M. “Conclusão”. In: HESPANHA, António Manuel (Org). Nova História Militar <strong>de</strong> Portugal... Op.<br />
cit., pp. 360-361.<br />
6 I<strong>de</strong>m.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
38
Afonso Henriques (1128-1185), <strong>no</strong> século XIII, os forais <strong>de</strong>claravam que os súditos eram<br />
obrigados a prestar serviços militares a fim <strong>de</strong> prepararem-se para a guerra a que as disputas<br />
territoriais com os mouros os obrigava. Para além do serviço militar exigido da população em<br />
geral, os monarcas portugueses preocuparam-se, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> final do século XIII, em criar corpos<br />
especializados. Assim surgem os besteiros organizados como a tropa <strong>de</strong> elite portuguesa <strong>no</strong><br />
primeiro quartel do século XIV, recrutados entre os mesteirais jovens, ou não os havendo em<br />
número suficiente, entre serviçais e braceiros 7 . Neste sistema o Rei era o comandante supremo,<br />
sendo a organização das tropas, nestes primeiros tempos, feita em hostes, uma unida<strong>de</strong> tática<br />
dividida em companhias <strong>de</strong> cavalaria e infantaria 8 .<br />
Esta modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> organização militar se manteve até o início do século XVI. Não existia<br />
um exército regular e o Rei continuava a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r <strong>de</strong>sta estrutura intimamente articulada com a<br />
re<strong>de</strong> concelhia e com as hostes senhoriais.<br />
A partir do século XVI, a estrutura militar lusitana começa a tomar forma mais consistente<br />
com o esboço <strong>de</strong> um projeto que transformasse a infantaria medieval em Tropa Regular, em<br />
“exército do Estado” 9 . Nesta esteira é que se tem a criação dos Corpos <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças. A criação<br />
do sistema <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças tem sido <strong>de</strong>stacada na história militar portuguesa e nas discussões<br />
acerca dos reflexos da revolução militar na Europa como uma especificida<strong>de</strong>. A pouca atuação<br />
direta do Monarca em confrontos bélicos po<strong>de</strong>ria tornar diminuta sua autorida<strong>de</strong> como chefe<br />
militar, o que seria prejudicial a sua imagem já que, como visto, o Estado Português mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong><br />
construiu-se sob a égi<strong>de</strong> do fisco e da guerra. Ao representar um universo quase geral da<br />
população masculina, na medida em que englobava todos os indivíduos capazes <strong>de</strong> pegar em<br />
armas, entre 18 e 60 a<strong>no</strong>s, obrigando-os, <strong>de</strong> acordo com sua riqueza, a possuírem equipamento<br />
militar, as tropas <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças apresentam-se assim como um fator <strong>de</strong> monta não <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> da<br />
eficácia, mas <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> i<strong>de</strong>ológico. Com tal sistema o Rei reafirma-se como um chefe militar, ainda<br />
que meramente simbólico, do rei<strong>no</strong>, topo <strong>de</strong> uma pirâmi<strong>de</strong> <strong>de</strong> chefias <strong>de</strong> hostes senhoriais e<br />
concelhias, passando a criar obrigações militares diretas aos seus vassalos, fazendo-se membro<br />
<strong>de</strong> uma hoste do rei<strong>no</strong>, diretamente recrutada e organizada sob seu comando 10 .<br />
Com a Restauração em 1640, a organização militar se fecha com a criação efetiva <strong>de</strong> um<br />
exército regular não mais baseado nas hostes medievais que na segunda meta<strong>de</strong> do XVII serão<br />
7<br />
RODRIGUES, José Damião. “A guerra <strong>no</strong> Açores” In: HESPANHA, António Manuel (Org). Nova História Militar <strong>de</strong><br />
Portugal... Op. Cit., p. 245.<br />
8<br />
SILVA, Kalina V. da. O miserável soldo & a boa or<strong>de</strong>m da socieda<strong>de</strong> <strong>colonial</strong>: militarização e marginalida<strong>de</strong> na<br />
Capitania <strong>de</strong> Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação <strong>de</strong> Cultura Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Recife, 2001, p. 46.<br />
9<br />
SILVA, Kalina V. da. O miserável soldo & a boa or<strong>de</strong>m da socieda<strong>de</strong> <strong>colonial</strong>... Op. Cit., p. 48.<br />
10<br />
BEBIANO, Rui. “A guerra: o seu imaginário e a sua <strong>de</strong>ontologia”. In: HESPANHA, António Manuel (Org). Nova História<br />
Militar <strong>de</strong> Portugal... Op. Cit. ,pp. 36-50.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
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substituídas pelos terços, divididos em companhias; e com a criação das Milícias 11 . Portanto,<br />
somente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1640 Portugal efetiva a criação <strong>de</strong> um exército permanente a fim <strong>de</strong> se<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> uma potência (Espanha) que como as gran<strong>de</strong>s monarquias européias dispunham <strong>de</strong><br />
exércitos permanentes a muito mais tempo. Progressivamente o exército português vai se<br />
estruturando, sem, contudo, fazer <strong>de</strong> Portugal uma potência militar 12 .<br />
A estrutura militar lusitana fica então organizada a partir <strong>de</strong> três tipos específicos <strong>de</strong> forças:<br />
os Corpos Regulares (conhecidos também por Tropa Paga ou <strong>de</strong> Linha), as Milícias ou Corpo <strong>de</strong><br />
Auxiliares e as Or<strong>de</strong>nanças ou Corpos Irregulares. Os Corpos Regulares, criados em 1640 em<br />
Portugal, constituíam-se <strong>no</strong> exército “profissional” português, sendo a única força paga pela<br />
Fazenda Real. Essa força organizava-se em terços e companhias, cujo comando pertencia a<br />
fidalgos <strong>de</strong> <strong>no</strong>meação real. Cada terço era dirigido por um mestre-<strong>de</strong>-campo e seus membros<br />
estavam sujeitos a regulamentos disciplinares. Teoricamente, <strong>de</strong>dicar-se-iam exclusivamente às<br />
ativida<strong>de</strong>s militares. Seriam mantidos sempre em armas, exercitados e disciplinados 13 .<br />
As Milícias ou Corpos <strong>de</strong> Auxiliares, criados em Portugal em 1641, eram <strong>de</strong> serviço não<br />
remunerado e obrigatório para os civis constituindo-se em forças <strong>de</strong>slocáveis que prestavam<br />
serviço <strong>de</strong> apoio às Tropas Pagas. Organizavam-se em terços e companhias, sendo seu<br />
enquadramento feito em bases territoriais, junto à população civil. Os Corpos <strong>de</strong> Auxiliares eram<br />
armados, exercitados e disciplinados, não somente para operar com a Tropa Regular, mas<br />
também para substituí-la quando aquela fosse chamada para fora <strong>de</strong> seu território. Esta força era<br />
composta por homens aptos para o serviço militar, já que eram “treinados” para tanto e que<br />
sempre eram mobilizados em caso <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> bélica. Entretanto, não ficavam ligados<br />
permanentemente à função militar como ocorre nas Tropas Regulares. Sua hierarquia se<br />
organizava da seguinte forma: mestres-<strong>de</strong>-campo, coronéis, sargento-mores, tenentes-coronéis,<br />
capitães, tenentes, alferes, sargentos, furriéis, cabos-<strong>de</strong>-esquadra, porta-estandartes e tambor.<br />
Deve-se observar que o título <strong>de</strong> Mestre <strong>de</strong> Campo era atribuído ao comandante <strong>de</strong> Terço <strong>de</strong><br />
Infantaria, enquanto o título <strong>de</strong> Coronel era atribuído ao comandante do Terço <strong>de</strong> Cavalaria 14 .<br />
A completar a organização militar estariam os Corpos <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças. Criados pela lei <strong>de</strong><br />
1549 <strong>de</strong> D. João III e organizados conforme o Regimento das Or<strong>de</strong>nanças <strong>de</strong> 1570 15 e da<br />
11<br />
I<strong>de</strong>m, p. 50.<br />
12<br />
HESPANHA, António M. “Conclusão”. In: HESPANHA, António Manuel (Org). Nova História Militar <strong>de</strong> Portugal... Op.<br />
Cit., pp. 361-362.<br />
13<br />
SILVA, Kalina Van<strong>de</strong>rlei. O miserável soldo e a boa or<strong>de</strong>m da socieda<strong>de</strong> <strong>colonial</strong>... Op. Cit., ver capítulo 2.<br />
14<br />
FILHO, Jorge da Cunha Pereira. “Tropas militares luso-brasileiras <strong>no</strong>s séculos XVIII e XIX”. In: Boletim do Projeto<br />
"Pesquisa Genealógica Sobre as Origens da Família Cunha Pereira". A<strong>no</strong> 03, nº. 12, 1998, pp. 19-21.<br />
15<br />
A respeito disso ver: Regimento das Or<strong>de</strong>nanças <strong>de</strong> 1570. In: COSTA, Veríssimo Antonio Ferreira da. Collecção<br />
Systematica das Leis Militares <strong>de</strong> Portugal, Tomo IV – “Leis pertencentes às Or<strong>de</strong>nanças”, Lisboa, Impressão Regia,<br />
1816. Localização: BN/F,4,3-5/Divisão <strong>de</strong> Obras Raras.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
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provisão <strong>de</strong> 1574 16 , os Corpos <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças, possuíam um sistema <strong>de</strong> recrutamento que<br />
<strong>de</strong>veria abranger toda a população masculina entre 18 e 60 a<strong>no</strong>s que ainda não tivesse sido<br />
recrutada pelas duas primeiras forças, excetuando-se os privilegiados 17 . Conhecidos também por<br />
“paisa<strong>no</strong>s armados” possuíam um forte caráter local e procuravam efetuar um arrolamento <strong>de</strong> toda<br />
a população para as situações <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> militar. Os componentes das Or<strong>de</strong>nanças também<br />
não recebiam soldo, permaneciam em seus serviços particulares e, somente em caso <strong>de</strong> grave<br />
perturbação da or<strong>de</strong>m pública, abandonavam suas ativida<strong>de</strong>s. O termo “paisa<strong>no</strong>s armados”<br />
carrega em si a essência do que seria a qualida<strong>de</strong> militar dos integrantes das Or<strong>de</strong>nanças, isto é,<br />
um grupo <strong>de</strong> homens que não possuía instrução militar sistemática, mas que, <strong>de</strong> forma paradoxal,<br />
eram utilizados em missões <strong>de</strong> caráter militar e em ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> controle inter<strong>no</strong> 18 . Também se<br />
organizavam em terços que se subdividiam em companhias 19 . Os postos <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças <strong>de</strong> mais<br />
alta patente eram: capitão-mor, sargento-mor, capitão. Os oficiais inferiores eram os alferes,<br />
sargentos, furriéis, cabos-<strong>de</strong>-esquadra, porta-estandartes e tambor 20 .<br />
Vejamos mais atentamente, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o rei<strong>no</strong> até o ultramar, a complexida<strong>de</strong> organizacional<br />
<strong>de</strong>sta força militar <strong>de</strong>stacando sua legislação, preenchimento dos postos, funções dos oficiais que<br />
compunham seus quadros e, para o caso <strong>de</strong> Minas Gerais, o caráter <strong>de</strong>stes corpos, sua<br />
hierarquia, contingente e disposição <strong>de</strong> suas tropas pela comarca <strong>de</strong> Vila Rica.<br />
O QUADRO ORGANIZACIONAL DAS ORDENANÇAS EM PORTUGAL<br />
O Alvará Régio <strong>de</strong> 1508, do rei D. Manuel, lançou as bases do sistema <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças em<br />
Portugal. De<strong>no</strong>minada <strong>de</strong> "Gente da Or<strong>de</strong>nança das Vinte Lanças da Guarda", eram nestes<br />
primeiros tempos constituídas <strong>de</strong> mercenários estrangeiros, não tendo ainda sua característica <strong>de</strong><br />
permanência. A<strong>no</strong>s <strong>de</strong>pois, em 1549, D. João III publicava um Regimento <strong>no</strong> qual <strong>de</strong>terminava<br />
que os serviços <strong>de</strong> armas cabiam a todos os súditos com ida<strong>de</strong> entre 20 e 65 a<strong>no</strong>s, <strong>no</strong> rei<strong>no</strong> e <strong>no</strong>s<br />
quatro arquipélagos atlânticos. Com este documento introduzia-se em Portugal aquilo que<br />
Joaquim Romero <strong>de</strong> Magalhães chamou <strong>de</strong> “princípio <strong>de</strong> militarização geral da socieda<strong>de</strong>” 21 .<br />
16 Esta provisão editada quatro a<strong>no</strong>s <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> promulgado o Regimento das Or<strong>de</strong>nanças complementava o mesmo com<br />
algumas alterações e esclarecimentos fundamentados nas necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>correntes da atuação prática das<br />
Or<strong>de</strong>nanças. Para maiores <strong>de</strong>talhes ver: Provisão das Or<strong>de</strong>nanças <strong>de</strong> 1574. In: COSTA, Veríssimo Antonio Ferreira da.<br />
Collecção Systematica... Op.Cit.<br />
17 MONTEIRO Nu<strong>no</strong> G. “Os concelhos e as comunida<strong>de</strong>s”. In: HESPANHA, António M. (Org). História <strong>de</strong> Portugal: o<br />
Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, Vol. 4, 1998, p. 273.<br />
18 COTTA, Francis Albert. “Os Terços <strong>de</strong> Homens Pardos e Pretos Libertos: mobilida<strong>de</strong> social via postos militares nas<br />
Minas do século XVIII”. MNEME – Revista <strong>de</strong> Humanida<strong>de</strong>s. UFRN – CERES. http://www.seol.com.br/mneme/, p. 3.<br />
19 I<strong>de</strong>m, p. 4.<br />
20 FILHO, Jorge da Cunha Pereira. “Tropas militares luso-brasileiras <strong>no</strong>s séculos XVIII e XIX...” Op. Cit., p p. 5-9.<br />
21 RODRIGUES, José Damião. “A guerra <strong>no</strong> Açores” In: HESPANHA, António Manuel (Org). Nova História Militar <strong>de</strong><br />
Portugal... Op. Cit., p. 245.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
41
Sobre esta estrutura, e perante a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um aparelho militar local bem montado,<br />
as leis e regimentos <strong>de</strong> D. Sebastião – com <strong>de</strong>staque para a “Lei <strong>de</strong> Armas (6.12.1569)”, o<br />
“Regimento dos capitães-mores e mais capitães e oficiais das companhias (10.12.1570)” e a<br />
“Provisão sobre as Or<strong>de</strong>nanças (15.5.1574)” – ampliaram as medidas anteriormente tomadas.<br />
Vejamos mais porme<strong>no</strong>rizadamente estes regulamentos sebásticos que se constituíram <strong>no</strong> eixo<br />
estruturante da organização militar que marcou todo o Antigo Regime português 22 .<br />
A “Lei <strong>de</strong> Armas” estabeleceu algumas regras para o funcionamento <strong>de</strong>sta força militar.<br />
Esten<strong>de</strong>u a todo o rei<strong>no</strong> a instituição das Or<strong>de</strong>nanças, que inicialmente havia sido estabelecida<br />
somente para Lisboa; estipulou que todos os homens entre os 20 e os 65 a<strong>no</strong>s estavam<br />
convocados automática e permanentemente para a <strong>de</strong>fesa do país, excetuando-se os sacerdotes,<br />
magistrados e outros funcionários graduados do gover<strong>no</strong>, ou pessoas doentes e <strong>de</strong>ficientes físicos<br />
ou mentais; e <strong>de</strong>terminava que cada fidalgo, cavaleiro, escu<strong>de</strong>iro ou assemelhado <strong>de</strong>veria<br />
participar da Or<strong>de</strong>nança com certa quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recursos e equipamentos, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo da sua<br />
renda 23 .<br />
O “Regimento das Or<strong>de</strong>nanças ou dos capitães-mores” organizou mais sistematicamente<br />
esta força militar, dissertando sobre sua hierarquia <strong>de</strong> comando, o processo e critério eletivo do<br />
preenchimento <strong>de</strong> seus postos, as obrigações dos mesmos, a composição das companhias, a<br />
forma <strong>de</strong> recrutamento, o a<strong>de</strong>stramento militar, os exercícios periódicos e sua organização<br />
territorial. Estabeleceu também algumas alterações, como por exemplo, a mudança <strong>no</strong>s limites <strong>de</strong><br />
ida<strong>de</strong> da convocação dos homens, agora feita entre aqueles com ida<strong>de</strong> entre 18 e 60 a<strong>no</strong>s.<br />
O Regimento <strong>de</strong> 1570 estabelecia a eleição do capitão-mor <strong>no</strong>s lugares on<strong>de</strong> o do<strong>no</strong> da<br />
terra não estivesse presente e on<strong>de</strong> não houvesse alcai<strong>de</strong>s-mores. O processo eletivo era<br />
realizado na câmara local, com a necessária presença do corregedor e do provedor da comarca 24<br />
sendo que:<br />
“[...]na eleição dos ditos capitães, especialmente os mores, terão sempre respeito que<br />
se elejão pessoas principais da terra e que tenham partes e qualida<strong>de</strong>s para os ditos<br />
cargos[...]” 25 .<br />
Dispunha-se, contudo, que se os senhores da terra viessem a residir em suas capitanias, o<br />
capitão-mor eleito pela Câmara municipal per<strong>de</strong>ria seu posto, a ser ocupado por aqueles senhores<br />
e pelos alcai<strong>de</strong>s-mores. Do<strong>no</strong> da terra ou eleito, o capitão-mor recebia o juramento e fazia as<br />
escolhas, juntamente com a Câmara, dos <strong>de</strong>mais oficiais: sargento-mor, capitão-<strong>de</strong>-companhia,<br />
22 I<strong>de</strong>m.<br />
23 MELLO, Christiane F. Paga<strong>no</strong> <strong>de</strong>. Os Corpos <strong>de</strong> Auxiliares e <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças na segunda meta<strong>de</strong> do século XVIII – As<br />
capitanias do Rio <strong>de</strong> Janeiro, São Paulo e Minas Gerais e a manutenção do Império Português <strong>no</strong> Centro-Sul da<br />
América. Niterói: UFF, 2002. Tese <strong>de</strong> Doutorado, p. 21.<br />
24 SALGADO, Graça (Org.). Fiscais e Meirinhos: a administração <strong>no</strong> Brasil <strong>colonial</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Fronteira, 1985,<br />
p. 100.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
42
alferes e sargento. No topo <strong>de</strong>ssa hierarquia, o capitão-mor encarregava-se <strong>de</strong> engajar a<br />
população <strong>no</strong> serviço das Or<strong>de</strong>nanças, bem como visitar e <strong>de</strong>terminar a formação <strong>de</strong><br />
Companhias. Teoricamente cada Companhia <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nança <strong>de</strong>veria ser composta <strong>de</strong> 250<br />
homens, distribuídos em 10 esquadras <strong>de</strong> 25 homens, sob o comando do capitão-<strong>de</strong>-companhia.<br />
Este se subordinava diretamente ao capitão-mor e tinha em sua companhia um alferes, um<br />
sargento, um meirinho, um escrivão, <strong>de</strong>z cabos-<strong>de</strong>-esquadra e um tambor. Em caso <strong>de</strong><br />
afastamento, a substituição seguia a or<strong>de</strong>m da hierarquia 26 . Eventualmente haveria ao lado das<br />
companhias <strong>de</strong> infantaria as companhias <strong>de</strong> cavalo, para enquadrar a gente <strong>no</strong>bre do concelho 27 .<br />
Posteriormente o número <strong>de</strong> soldados <strong>de</strong> uma companhia foi reduzido para 60 homens, o que<br />
geralmente correspondia a quatro 4 esquadras <strong>de</strong> 15 soldados. On<strong>de</strong> era possível, as<br />
Companhias <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças eram reunidas em unida<strong>de</strong>s maiores <strong>de</strong><strong>no</strong>minadas <strong>de</strong> terço <strong>de</strong><br />
Or<strong>de</strong>nanças. Cada terço era composto <strong>de</strong> quatro 4 Companhias, o equivalente a um efetivo <strong>de</strong><br />
1.000 soldados. Esse efetivo era exatamente um terço (1/3) do efetivo da unida<strong>de</strong> superior, o<br />
regimento <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças, que tinha 3.000 soldados 28 .<br />
Em maio <strong>de</strong> 1574, o mesmo D. Sebastião edita a “Provisão das Or<strong>de</strong>nanças”, repleta <strong>de</strong><br />
<strong>no</strong>vas instruções que complementava o Regimento <strong>de</strong> 1570, fundamentadas nas necessida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong>correntes da atuação prática <strong>de</strong>sta força militar 29 . Por sua <strong>de</strong>terminação, <strong>no</strong>s lugares on<strong>de</strong> só<br />
houvesse uma Companhia <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças, o comando da tropa seria exercido pelo capitão-<strong>de</strong>-<br />
companhia existente, e não mais pelo capitão-mor, exceto quando este fosse o próprio senhor das<br />
terras.<br />
A Provisão <strong>de</strong> 1574 reafirmava ainda a obrigatorieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos os moradores possuírem<br />
armas, além <strong>de</strong> encarregar funcionários – juízes <strong>de</strong> fora ou capitães-mores – <strong>de</strong> zelar pelo<br />
cumprimento <strong>de</strong>ssas <strong>de</strong>terminações num prazo máximo <strong>de</strong> seis meses. Estabelecia também a<br />
competência do sargento-mor da comarca, cuja função era vistoriar as Companhias <strong>de</strong><br />
Or<strong>de</strong>nanças sob sua jurisdição, bem como promover o a<strong>de</strong>stramento da tropa e fiscalizar o estado<br />
<strong>de</strong> conservação do armamento. Além disso, era obrigado a possuir um livro <strong>de</strong> registro on<strong>de</strong><br />
constasse o número <strong>de</strong> Companhias existentes na comarca, o total <strong>de</strong> indivíduos engajados e os<br />
<strong>no</strong>mes dos capitães-mores, capitães-<strong>de</strong>-companhia e alferes. Os capitães-<strong>de</strong>-companhia,<br />
sargentos-mores, alferes, sargentos e cabos-<strong>de</strong>-esquadra tinham <strong>de</strong> seguir à risca as<br />
25<br />
Regimento das Or<strong>de</strong>nanças <strong>de</strong> 1570. In: VERISSIMO, Antonio F. da Costa. Collecção Systematica... Op. Cit. pp. 1-2.<br />
26<br />
SALGADO, Graça (org.). Fiscais e Meirinhos... Op. Cit., p.100-101. Ver também: VERISSIMO, Antonio Ferreira da<br />
Costa. Collecção Systematica das Leis Militares <strong>de</strong> Portugal, Tomo IV – “Leis pertencentes às Or<strong>de</strong>nanças” Op. cit., pp.<br />
1-7.<br />
27<br />
HESPANHA, A M. “A administração militar”. In: HESPANHA, A M. (Org.). Nova História militar <strong>de</strong> Portugal... Op. Cit, p.<br />
169.<br />
28<br />
FILHO, Jorge da Cunha Pereira. “Tropas militares luso-brasileiras <strong>no</strong>s séculos XVIII e XIX...” Op. Cit., p. 7.<br />
29<br />
Para maiores <strong>de</strong>talhes ver: Provisão das Or<strong>de</strong>nanças <strong>de</strong> 1574. In: VERISSIMO, Antonio F. da Costa. Collecção<br />
Systematica... Op. Cit.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
43
ecomendações do sargento-mor da comarca, caso contrário, seriam submetidos a penas<br />
pecuniárias estabelecidas <strong>de</strong> acordo com a patente do infrator. A execução das con<strong>de</strong>nações<br />
ficava a cargo do ouvidor, do provedor ou do juiz <strong>de</strong> fora e, na ausência <strong>de</strong> alguma <strong>de</strong>ssas<br />
autorida<strong>de</strong>s, dos juízes ordinários 30 .<br />
Refira-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já que as reformas sebásticas conce<strong>de</strong>ram às Câmaras um papel central na<br />
organização das Or<strong>de</strong>nanças na medida em que ficaram responsáveis pelas eleições dos oficiais,<br />
sendo os membros da Câmara eleitores e elegíveis ao mesmo tempo, o que reforçava o po<strong>de</strong>r<br />
das elites locais 31 .<br />
Em 1709, com a promulgação <strong>de</strong> um Alvará Régio, o preenchimento dos postos <strong>de</strong><br />
Or<strong>de</strong>nanças sofreu algumas modificações. Na eleição para os capitães-mores <strong>de</strong> cada vila, cida<strong>de</strong><br />
ou concelho estipulou-se que em vez <strong>de</strong> elegê-los diretamente quando vagasse seu posto, os<br />
oficiais da Câmara municipal <strong>de</strong>veriam avisar o ouvidor ou o provedor da comarca, que era<br />
obrigado a comparecer à mesma para, juntamente com os camaristas, escolher três pessoas do<br />
local “da melhor <strong>no</strong>breza, cristanda<strong>de</strong> e <strong>de</strong>sinteresse”. Os <strong>no</strong>mes e as <strong>de</strong>vidas justificativas eram<br />
enviados ao general ou cabo que comandasse as armas da localida<strong>de</strong>, que baseado nas<br />
informações dadas pelos oficiais da Câmara e pelos funcionários régios encarregados <strong>de</strong><br />
supervisionarem as eleições, propunha ao Rei – através do conselho <strong>de</strong> guerra metropolita<strong>no</strong> – as<br />
pessoas mais convenientes para a ocupação do posto 32 .<br />
A eleição dos sargentos-mores e capitães-<strong>de</strong>-companhia passou a se realizar segundo<br />
esse mesmo mo<strong>de</strong>lo. Diferia apenas na composição do grupo <strong>de</strong> escolha: em lugar do ouvidor ou<br />
provedor da comarca, a opção pelos três <strong>no</strong>mes cabia aos oficiais da Câmara municipal em<br />
conjunto com o alcai<strong>de</strong>-mor ou capitão-mor e, na falta <strong>de</strong>stes, recaía obrigatoriamente sobre as<br />
pessoas resi<strong>de</strong>ntes <strong>no</strong>s limites da vila, cida<strong>de</strong> ou conselho. A escolha final caberia ao Conselho<br />
<strong>de</strong> Guerra. Este passou a ser responsável por expedir as patentes – assinadas pelo Rei – <strong>de</strong><br />
capitão-mor, sargento-mor e capitão-<strong>de</strong>-companhia, que <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> ser feitas por provisões,<br />
como se praticara até então. Os prazos para a confirmação régia <strong>de</strong> patentes era <strong>de</strong> 1 a<strong>no</strong> para<br />
os resi<strong>de</strong>ntes em porto <strong>de</strong> mar e <strong>de</strong> 2 a<strong>no</strong>s para os resi<strong>de</strong>ntes nas Minas e Sertões. As vagas<br />
para os postos <strong>de</strong> alferes e sargentos-<strong>de</strong>-companhia eram preenchidas através <strong>de</strong> <strong>no</strong>meação,<br />
recaindo a escolha sobre “as pessoas mais dignas e capazes <strong>de</strong> suas companhias”. Tais<br />
<strong>no</strong>meações, realizadas pelos capitães-<strong>de</strong>-companhia, <strong>de</strong>viam ser aprovadas pelo capitão-mor e<br />
confirmadas pelo governador das armas. Se incidissem sobre pessoas incapazes para o exercício<br />
do cargo, eram indicados outros <strong>no</strong>mes 33 .<br />
30 SALGADO, Graça. Fiscais e Meirinhos... Op. Cit.,p p.101-102.<br />
31 RODRIGUES, José Damião. “A guerra <strong>no</strong> Açores...” Op. Cit., p. 245.<br />
32 SALGADO, Graça. Fiscais e Meirinhos... Op. Cit., pp. 105-106.<br />
33 I<strong>de</strong>m.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
44
Como referido, a eleição para todos estes postos se processava <strong>de</strong>ntre as “pessoas<br />
principais” resi<strong>de</strong>ntes nas respectivas localida<strong>de</strong>s. O termo “pessoas principais” traduzia-se em<br />
homens com capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mando, que se mostravam extremamente <strong>de</strong>sejosos <strong>de</strong> títulos e<br />
honras. Po<strong>de</strong>-se dizer que os privilégios da ocupação <strong>de</strong> um posto nas Or<strong>de</strong>nanças não<br />
representavam diretamente ganhos monetários – o que representava para a Coroa uma eco<strong>no</strong>mia<br />
em gastos diretos com a administração – mas sim produção ou reprodução <strong>de</strong> prestígio e posição<br />
<strong>de</strong> comando, bens não negligenciáveis <strong>no</strong> Antigo Regime, bem como isenções <strong>de</strong> impostos e<br />
outros privilégios 34 .<br />
O comando e mesmo a criação das Tropas <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças, muitas vezes <strong>de</strong>vida a<br />
iniciativas individuais, era um fator <strong>de</strong> prestígio. Lembremos também que o exercício das armas<br />
era um fator <strong>no</strong>bilitante 35 . Na verda<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>-se dizer que uma patente das Companhias <strong>de</strong><br />
Or<strong>de</strong>nanças atribuía a seu possuidor um po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> atuação em dois sentidos. Pelo próprio<br />
Regimento das Or<strong>de</strong>nanças <strong>de</strong> 1570 fica estipulado que os “capitães-mores e os capitães das<br />
Companhias locais ficavam com um po<strong>de</strong>r imenso <strong>de</strong> escolha dos aptos e não aptos para o<br />
serviço militar” 36 , o que proporcionava aos oficiais uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> influências muito importante sobre<br />
os habitantes das localida<strong>de</strong>s on<strong>de</strong> se instituíam, pelo conhecimento <strong>de</strong>talhado da população e<br />
pela autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> impor-lhes o trei<strong>no</strong> militar 37 . Além disso, as patentes eram um instrumento <strong>de</strong><br />
<strong>no</strong>bilitação visto que os oficiais podiam “[...]gozar e usar do privilegio <strong>de</strong> cavaleiro, posto que o<br />
não seja. Gozam sim do privilegio <strong>de</strong> <strong>no</strong>bres, mas não adquirem <strong>no</strong>breza.[...]” 38 .<br />
A vocação militar era vista como um elemento <strong>de</strong>finidor da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>no</strong>biliárquica, as<br />
relações entre as <strong>no</strong>brezas e as monarquias européias <strong>no</strong> período mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong> foram muito variáveis,<br />
oscilando <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as situações <strong>de</strong> militarização da <strong>no</strong>breza pela monarquia (caso da Prússia) até<br />
aquelas em que o serviço militar da <strong>no</strong>breza era voluntário caso da Espanha, da França e também<br />
<strong>de</strong> Portugal 39 .<br />
Somente na segunda meta<strong>de</strong> do século XVIII é que se tomaram medidas em Portugal para<br />
que a assimilação imemorial “<strong>no</strong>breza-guerra” <strong>de</strong>sse lugar a <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> que a guerra seria uma arte<br />
<strong>no</strong>bre, porém técnica. Neste contexto é que a afirmação do estatuto militar, o papel dos<br />
engenheiros militares, dos matemáticos da balística e das táticas aliadas a um discurso<br />
34 SALGADO, Graça. Fiscais e Meirinhos... Op. Cit., p. 111.<br />
35 RODRIGUES, José Damião. “A guerra <strong>no</strong> Açores...” Op. Cit., p. 247.<br />
36 MAGALHÃES, Joaquim Romero. “A guerra: os homens e as armas”. In: O Algarve Econômico: 1600-1<strong>77</strong>3. Lisboa:<br />
Editorial Estampa, 1993, p. 110.<br />
37 MELLO, Christiane F. Paga<strong>no</strong> <strong>de</strong>. Os Corpos <strong>de</strong> Auxiliares e <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças na segunda meta<strong>de</strong> do século XVIII...Op.<br />
Cit., p. 32.<br />
38 VERISSIMO, Antonio Ferreira da Costa. Collecção Systematica das Leis Militares <strong>de</strong> Portugal, Tomo IV – “Leis<br />
pertencentes às Or<strong>de</strong>nanças”, Op. Cit., p. 44.<br />
39 GOUVEIA, António Camões & MONTEIRO, Nu<strong>no</strong> G. “A milícia”. In: HESPANHA, António M. (Org). História <strong>de</strong><br />
Portugal: o Antigo Regime... Op. Cit. p. 180.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
45
fundamentador <strong>de</strong> uma auto<strong>no</strong>mia <strong>de</strong> saber, adquiriu peso ímpar 40 . Nesse campo, e <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />
uma esfera estritamente militar, é e<strong>no</strong>rme o peso adquirido pelos trabalhos e pela ação do con<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Lippe. Foi na década <strong>de</strong> 1760, que ocorreram os maiores esforços <strong>no</strong> sentido <strong>de</strong> reformar o<br />
exército português que passou a contar com a ajuda do con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Schaumburg-Lippe, um dos<br />
oficiais <strong>de</strong> maior prestígio na época. Chegado a Portugal em 1762 à sombra do pacto da<br />
Família 41 , teve entre suas principais preocupações a melhoria das fortificações, introdução <strong>de</strong><br />
<strong>no</strong>vas regras <strong>de</strong> recrutamento, aprendizagem, fardamento e disciplina. Criar um corpo militar,<br />
ultrapassando o bando, foi sua preocupação fundamental 42 .<br />
Medidas <strong>no</strong>s campos do domínio financeiro e da administração militar também foram<br />
sendo tomadas a fim <strong>de</strong> dar suporte a esta estrutura mais geral da organização militar. Neste<br />
contexto é que se tem a criação da Junta dos Três Estados (pelo Decreto <strong>de</strong> 18.1.1643)<br />
responsável pela gestão das quantias votadas pelas cortes para o sustento da guerra; bem como<br />
a criação da Vedoria-geral, Contadoria-geral e Pagadoria-geral do exército (pelo Regimento das<br />
Fronteiras <strong>de</strong> 29.8.1645). Estas três instâncias supervisionavam a administração financeira das<br />
tropas, o sistema <strong>de</strong> promoções, baixas, pagamentos <strong>de</strong> soldo, suprimentos e contabilida<strong>de</strong> geral<br />
das tropas 43 . O vedor-geral do exército ficava encarregado <strong>de</strong> arrolar os soldados, controlar o<br />
pagamento dos oficiais e soldados quando fosse necessário, além <strong>de</strong> ser responsável por todos<br />
os gastos com as tropas das fronteiras. A seu serviço <strong>de</strong>viam estar 4 comissários <strong>de</strong> mostra e 4<br />
oficiais <strong>de</strong> pena, encarregados <strong>de</strong> fazer as revistas, inscrições das tropas e elaborar as listas on<strong>de</strong><br />
constariam os dados pessoais do militar (<strong>no</strong>me, data <strong>de</strong> ingresso, posto, conduta, morte em<br />
serviço, baixa, promoção). Dessas listagens era extraída a fé <strong>de</strong> ofício, que condicionava a<br />
promoção ou rebaixamento <strong>de</strong> patente. Cabia também ao vedor-geral zelar pela qualida<strong>de</strong> dos<br />
suprimentos fornecidos às Tropas Regulares, pelo estado das munições, armazéns e hospitais. As<br />
necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada praça eram verificadas pelo comissário da vedoria que, em conjunto com<br />
almoxarifes e capitães-mores, assentava todas as <strong>de</strong>spesas, cujas certidões <strong>de</strong>viam ser<br />
entregues ao vedor-geral e ao contador. Nenhum governador das armas, general, mestre-<strong>de</strong>-<br />
campo ou qualquer outro oficial podia opor obstáculo a esse trabalho 44 .<br />
40<br />
I<strong>de</strong>m.<br />
41<br />
O pacto da família constituiu-se em um pacto firmado em agosto <strong>de</strong> 1761 pelos integrantes da família dos Bourbons,<br />
então reinantes na França, para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rem seus estados mutuamente. Nesse mesmo período a França participava da<br />
Guerra dos Sete A<strong>no</strong>s contra a Inglaterra. Na ocasião, embora D. José <strong>de</strong> Portugal fosse casado com uma princesa<br />
Bourbon não podia a<strong>de</strong>rir ao pacto da família e auxiliar na <strong>de</strong>fesa do território francês, pois era aliado da Inglaterra.<br />
Portugal tentou por um tempo permanecer neutro ao conflito, mas as pressões inglesas levaram o Rei a participar da<br />
fase final da guerra como seu aliado, ficando assim em lado oposto ao da família Bourbon. MELLO, Christiane F.<br />
Paga<strong>no</strong> <strong>de</strong>. “A guerra e o pacto: a política <strong>de</strong> intensa mobilização militar”. In: Castro, Celso; Izecksohn, Vitor e Kraay,<br />
Hendrik (orgs.) Nova História Militar Brasileira. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ed. FGV, 2004, p. 69.<br />
42<br />
I<strong>de</strong>m, p. 181.<br />
43<br />
HESPANHA, A M. “A administração militar”. In: HESPANHA, A M. (Org). Nova História militar <strong>de</strong> Portugal... Op. Cit, p.<br />
175.<br />
44<br />
SALGADO, Graça. Fiscais e Meirinhos... Op. Cit. pp. 102-103.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
46
No domínio da administração militar cria-se o Conselho <strong>de</strong> Guerra (por um Regimento <strong>de</strong><br />
22.12.1643). Tratava-se <strong>de</strong> um tribunal real com atribuições <strong>de</strong> dar pareceres aos postos militares<br />
superiores, sobre recrutamentos, sobre fábrica das naus e sobre a fortificação <strong>de</strong> lugares.<br />
Abaixo do Conselho <strong>de</strong> Guerra, nas províncias, havia os governadores <strong>de</strong> armas das<br />
províncias, cargo criado pelo Regimento <strong>de</strong> 1650. Estes eram encarregados da administração<br />
militar <strong>no</strong> que concerne ao recrutamento, à supervisão das obrigações quanto a armas e cavalos e<br />
a avaliação da qualida<strong>de</strong> dos oficiais <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças, eleitos pelas Câmaras 45 .<br />
O QUADRO ORGANIZACIONAL DAS ORDENANÇAS NO BRASIL<br />
Segundo Maria Fernanda Bicalho a guerra po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada uma das chaves<br />
explicativas da relação entre Colônia e Metrópole, fundamentando toda a lógica do sistema<br />
<strong>colonial</strong>, visto ter marcado uma das modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> exercício <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e controle dos homens<br />
pelo Estado: a arregimentação e a militarização da população <strong>colonial</strong> 46 . O fato <strong>de</strong> o Estado<br />
Português ter procurado constituir-se com um caráter militar foi um pressuposto também<br />
transmitido para a América Portuguesa, na medida em que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início da colonização a Coroa<br />
procurou transformar cada colo<strong>no</strong> em um homem <strong>de</strong> guerra 47 .<br />
O aspecto militar sempre esteve presente na política colonizadora, on<strong>de</strong> a preocupação<br />
com a <strong>de</strong>fesa e conservação dos domínios ultramari<strong>no</strong>s era fator primordial <strong>no</strong> seio das questões<br />
administrativas, sendo isto feito tanto pela militarização dos colo<strong>no</strong>s naturais e reinóis, quanto pelo<br />
reforço da obediência dos súditos à autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus governantes, representantes da soberania<br />
real <strong>no</strong> além-mar 48 .<br />
Des<strong>de</strong> o Foral dado a Martim Afonso <strong>de</strong> Souza em 1530, os governadores dispunham<br />
também em sua titulação do papel <strong>de</strong> capitão-mor, mesmo não sendo um militar, pois lhes caberia<br />
o comando das armas na sua jurisdição. A <strong>de</strong>fesa constituía a garantia dos interesses exclusivos<br />
da Coroa sob o território <strong>colonial</strong> 49 .<br />
Em 1548, com a instituição do gover<strong>no</strong>-geral, a Coroa elaborou as primeiras <strong>no</strong>rmas para<br />
organização militar na colônia que, <strong>no</strong> entanto, girava ainda em tor<strong>no</strong> dos moradores locais. O<br />
Regimento <strong>de</strong> 1548, passado ao primeiro governador-geral, Tomé <strong>de</strong> Sousa, <strong>de</strong>finia estas<br />
primeiras medidas para uma organização militar na colônia. O referido Regimento estipulava que<br />
45<br />
HESPANHA, A M. “A administração militar”. In: HESPANHA, A M. (Org). Nova História militar <strong>de</strong> Portugal... Op. Cit, p.<br />
175.<br />
46<br />
BICALHO, Maria F. A cida<strong>de</strong> e o Império: O Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>no</strong> século XVIII. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização Brasileira,<br />
2003, p. 334.<br />
47<br />
SILVA, Kalina V. da. O miserável soldo & a boa or<strong>de</strong>m da socieda<strong>de</strong> <strong>colonial</strong>... Op. cit., pp.71-73.<br />
48<br />
BICALHO, Maria F. A cida<strong>de</strong> e o Império... Op. Cit., p. 332.<br />
49<br />
SALGADO, Graça. Fiscais e Meirinhos... Op. Cit., p. 99.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
47
os capitães-mores, os senhores <strong>de</strong> engenho e <strong>de</strong>mais moradores tivessem artilharia e armas,<br />
discriminando <strong>de</strong>talhadamente os tipos e quantida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> armamento. Concedia o prazo <strong>de</strong> um<br />
a<strong>no</strong> para a sua aquisição por parte dos moradores, findo ao qual era prevista punição aos não<br />
cumpridores <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>terminações. Para verificar se as or<strong>de</strong>ns estavam sendo obe<strong>de</strong>cidas e<br />
executar as penas em caso <strong>de</strong> falta, foi estabelecido que o provedor-mor se encarregasse <strong>de</strong><br />
realizar a inspeção e, na sua ausência, os provedores da capitania exerceriam tal função. Para a<br />
segurança e <strong>de</strong>fesa das povoações e fortalezas do Brasil, os capitães e os senhores <strong>de</strong> engenho<br />
seriam obrigados a sustentar o efetivo militar: cada capitão <strong>de</strong>veria ter em sua capitania pelo<br />
me<strong>no</strong>s 2 facões, 6 berços, 20 arcabuzes, a pólvora necessária, 20 bestas, 20 lanças, 40 espadas<br />
e 40 corpos <strong>de</strong> armas <strong>de</strong> algodão; cada senhor <strong>de</strong> engenho ao me<strong>no</strong>s 4 berços, 10 espingardas e<br />
a pólvora precisa, 10 bestas, 10 lanças, 20 espadas e 20 corpos <strong>de</strong> armas <strong>de</strong> algodão; e cada<br />
morador que tivesse <strong>no</strong> Brasil casas e terras <strong>de</strong>via ter pelo me<strong>no</strong>s besta, espingarda, lança e<br />
espada 50 .<br />
Portanto, com a implantação do gover<strong>no</strong>-geral e a subseqüente centralização dos negócios<br />
administrativos, o próprio governador-geral assumiria o comando das armas 51 . Nas Capitanias<br />
Hereditárias a hierarquia militar obe<strong>de</strong>cia à seguinte or<strong>de</strong>m: donatário, capitão-mor, capitão <strong>de</strong><br />
infantaria, capitão <strong>de</strong> cavalaria. As Or<strong>de</strong>nanças eram organizadas em cada Vila, aí se incluindo<br />
seus Arraiais e Povoados, sendo seus comandantes responsáveis diretos pela <strong>de</strong>fesa local 52 .<br />
Porém, <strong>no</strong> início da colonização – e assim o será por praticamente todo o período <strong>colonial</strong><br />
– os po<strong>de</strong>res públicos não tinham condições <strong>de</strong> realizar <strong>de</strong> maneira eficiente o controle e <strong>de</strong>fesa<br />
do território ante os inimigos inter<strong>no</strong>s e exter<strong>no</strong>s. Para tanto, utilizavam os guerreiros obtidos junto<br />
às tribos indígenas amigas, assim como os soldados das linhas Auxiliares. O Regimento <strong>de</strong> 1548<br />
fixava formas <strong>de</strong> recrutamento e organização <strong>de</strong>sta força Auxiliar, cujos encargos eram dos<br />
moradores. Em outros termos, para além das linhas Regulares, a força privada garantia a<br />
homeóstase do sistema 53 .<br />
A fim <strong>de</strong> armar a população da colônia através <strong>de</strong> imposições legais, a Coroa promulgou o<br />
Alvará <strong>de</strong> Armas <strong>de</strong> 1569 que tornava obrigatória a posse <strong>de</strong> armas pelos homens livres 54 .<br />
No entanto, essas medidas não conseguiram organizar o sistema <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa e transformar<br />
as Or<strong>de</strong>nanças em uma força militar regulamentada. Isto foi feito com a promulgação do já citado<br />
Regimento das Or<strong>de</strong>nanças <strong>de</strong> 1570 (ou Regimento dos capitães-mores) que ampliou as<br />
50 Para conhecimento do regimento citado ver AMARAL, Roberto e BONAVIDES, Paulo. Textos Políticos da História do<br />
Brasil. Brasília: Senado Fe<strong>de</strong>ral, Conselho Editorial, Vol. 1, 2002, pp. 157-170.<br />
51 SALGADO, Graça. Fiscais e Meirinhos... Op. Cit., pp. 98-99.<br />
52 FILHO, Jorge da Cunha P. “Tropas militares luso-brasileiras <strong>no</strong>s séculos XVIII e XIX...” Op. Cit., 12.<br />
53 PUNTONI, Pedro. “A arte da guerra <strong>no</strong> Brasil: tec<strong>no</strong>logia estratégias militares na expansão da fronteira da América<br />
portuguesa (1550-1700)”. In: Castro, Celso; Izecksohn, Vitor e Kraay, Hendrik (Orgs). Nova História Militar Brasileira...<br />
Op. Cit., p. 44.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
48
providências contidas <strong>no</strong> <strong>de</strong> 1548, estabelecendo a formação <strong>de</strong> Corpos <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nança nas<br />
capitanias 55 .<br />
Outras leis referentes às Or<strong>de</strong>nanças foram editadas <strong>no</strong> Brasil. O Regimento <strong>de</strong> 16<strong>77</strong>,<br />
passado ao governador-geral Roque da Costa Barreto (1678-1682), exortava os governadores ao<br />
cumprimento do Regimento <strong>de</strong> Fronteiras, particularmente <strong>no</strong> tocante às regras <strong>de</strong> promoção dos<br />
oficiais 56 . Em 1739, promulgou-se uma lei estabelecendo o provimento integral dos postos das<br />
Or<strong>de</strong>nanças pelo governador e capitão general, bem como <strong>de</strong>terminando que as localida<strong>de</strong>s<br />
marítimas <strong>de</strong>vessem ter também terços <strong>de</strong> Auxiliares; outra lei editada em 1749 tor<strong>no</strong>u o cargo <strong>de</strong><br />
capitão-mor vitalício, em lugar <strong>de</strong> ser trienal. Em abril <strong>de</strong> 1758 foi editada a “Provisão <strong>de</strong><br />
Or<strong>de</strong>nanças”, extinguindo os cargos civis <strong>de</strong> meirinhos e escrivães das companhias, passando<br />
suas funções para os sargentos. Assim todas as funções da companhia passaram a ser exercidas<br />
exclusivamente por militares 57 .<br />
Não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> citar a política <strong>de</strong> reorganização militar implementada em Portugal<br />
em 1760 com o Marquês <strong>de</strong> Pombal que também teve seus reflexos <strong>no</strong> Brasil. A política <strong>de</strong><br />
Sebastião <strong>de</strong> José <strong>de</strong> Carvalho e Melo em relação ao Brasil se apoiou em três pilares: a <strong>de</strong>fesa do<br />
território, a expansão econômica e o fortalecimento do po<strong>de</strong>r central 58 . Se em Portugal, a Coroa<br />
<strong>de</strong>legou a tarefa <strong>de</strong> organização <strong>de</strong> seu exército ao con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Schaumburg-Lippe, <strong>no</strong> Brasil isso foi<br />
feito pelo tenente-general austríaco João Henrique Böhm, influenciado pelo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> con<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Lippe, bem como pelo morgado <strong>de</strong> Mateus, D. Luís Antônio <strong>de</strong> Sousa, e pelo Marquês <strong>de</strong><br />
Lavradio, dois dos aristocratas mais eficientes que haviam trabalhado com Lippe 59 .<br />
Outras modificações na organização militar da colônia foram realizadas durante o século<br />
XVIII com o objetivo geral <strong>de</strong> reduzir gastos e evitar os abusos cometidos, recriando cargos e<br />
re<strong>de</strong>finindo critérios para seu provimento. Uma das mudanças a ser citada foi a ocorrida <strong>no</strong> papel<br />
das Milícias: por <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> 7 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1796 e resolução <strong>de</strong> 22 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1797, a Milícia<br />
passou à categoria <strong>de</strong> Tropa <strong>de</strong> Segunda Linha, sendo a composição <strong>de</strong> cada regimento feita por<br />
comarcas e distritos. Na mesma época, estabeleceu-se que os postos superiores <strong>de</strong>sse corpo<br />
Auxiliar seriam preenchidos por oficiais recrutados nas Tropas Pagas. Juntamente com as<br />
54 I<strong>de</strong>m.<br />
55 FILHO, Jorge da Cunha P. “Tropas militares luso-brasileiras <strong>no</strong>s séculos XVIII e XIX...” Op. Cit., pp. 4-11.<br />
56 COTTA, Francis A. No rastro dos Dragões: universo militar luso-brasileiro e as políticas <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m nas Minas<br />
setecentistas. Belo Horizonte: UFMG, 2005. Tese <strong>de</strong> Doutorado, p. 126.<br />
57 FILHO, Jorge da Cunha P. “Tropas militares luso-brasileiras <strong>no</strong>s séculos XVIII e XIX...” Op. Cit., p. 8.<br />
58 AZEVEDO, João Lúcio <strong>de</strong>. “Política <strong>de</strong> Pombal em relação ao Brasil”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico<br />
Brasileiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1927, tomo especial, Congresso Internacional <strong>de</strong> História da América, v.3, p. 167-203. Apud:<br />
BOSHI, Caio. “Administração e administradores <strong>no</strong> Brasil pombali<strong>no</strong>: os governadores da capitania <strong>de</strong> Minas Gerais”. In:<br />
Tempo: Revista do Departamento <strong>de</strong> História da UFF, Niterói, v.7, n. 13, 2002, pp. 78-79.<br />
59 MAXWELL, Kenneth. Guerra e Império. In: Marquês <strong>de</strong> Pombal: paradoxo do iluminismo. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e terra,<br />
1996, p. 126.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
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Or<strong>de</strong>nanças, as Milícias persistiriam como um dos seguimentos da organização militar em todo o<br />
período <strong>colonial</strong> e ambas foram extintas apenas em 1831, com a criação da Guarda Nacional 60 .<br />
Vale lembrar que <strong>no</strong> Brasil, ao contrário <strong>de</strong> Portugal, o caráter nivelador que se introduzia<br />
com as Or<strong>de</strong>nanças gerava gran<strong>de</strong>s expectativas. Se em Portugal a associação com as<br />
Or<strong>de</strong>nanças era tida pela <strong>no</strong>breza como <strong>de</strong>sonrosa, <strong>de</strong>vido à dissociação entre a expectativa <strong>de</strong><br />
um acréscimo <strong>de</strong> honra e a participação nesta força militar – que se traduzia numa resistência ao<br />
recrutamento e a participação <strong>no</strong>s seus escalões mais altos 61 – o cenário <strong>no</strong> Brasil era outro. Se<br />
levarmos em conta que na América Portuguesa a hierarquia social se forjava na presença do<br />
escravismo, o corte social proposto pelas Or<strong>de</strong>nanças era uma oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> afirmação social<br />
e <strong>de</strong> distinção entre os homens livres, sendo por isso a posse <strong>de</strong> uma patente nesta força militar<br />
algo muito requisitado pelas elites locais 62 .<br />
Importante também é <strong>no</strong>tar que as Or<strong>de</strong>nanças como força militar dominante nas décadas<br />
inicias da colonização, acabaram por moldar as estruturas políticas que se organizavam <strong>no</strong> nível<br />
local intermediário dos po<strong>de</strong>res locais e o gover<strong>no</strong>-geral. Com efeito, à medida que as capitanias<br />
hereditárias passavam ao controle da Coroa, ou seja, tornavam-se território sob administração<br />
direta da monarquia, o posto administrativo superior <strong>no</strong>s limites <strong>de</strong> sua jurisdição confundia-se<br />
<strong>no</strong>minalmente com o <strong>de</strong> capitão-mor. Mas esse capitão-mor exercia também as funções relativas<br />
ao Corpo das Or<strong>de</strong>nanças. Por sua vez estava subordinado ao governador-geral que exercia o<br />
comando supremo das forças militares 63 .<br />
AS TROPAS DE ORDENANÇAS EM MINAS GERAIS<br />
A introdução das Companhias <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças em Minas Gerais data <strong>de</strong> 1709. Instituídas<br />
por uma carta régia, elas foram sendo sistematicamente organizadas em diversas vilas e arraiais<br />
da região mineira que haviam sido criadas recentemente, a saber, Ribeirão do Carmo, Vila Rica,<br />
Sabará, Rio das Mortes, Serro Frio e Brejo do Salgado 64 .<br />
Alguns autores têm <strong>de</strong>stacado, direta ou indiretamente, a relevância do papel<br />
<strong>de</strong>sempenhado pelos Corpos <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças para a efetivação da colonização das Minas, na<br />
medida em que auxiliaram na repressão interna <strong>de</strong> levantes, <strong>no</strong> controle <strong>de</strong> opiniões contrárias a<br />
excessiva tributação a qual os povos da capitania estavam sujeitos, e <strong>no</strong> controle do inimigo, isto<br />
60 SALGADO, Graça. Fiscais e Meirinhos... Op. Cit., p.110.<br />
61 COSTA, Fernando Dores. “Milícia e socieda<strong>de</strong>: recrutamento”. In: HESPANHA, A M(Org). Nova História militar <strong>de</strong><br />
Portugal... Op. Cit., p 75.<br />
62 PUNTONI, Pedro. “A arte da guerra <strong>no</strong> Brasil: tec<strong>no</strong>logia estratégias militares na expansão da fronteira da América<br />
portuguesa (1550-1700)...” Op. Cit., p. 45.<br />
63 I<strong>de</strong>m, p. 46.<br />
64 FILHO, Jorge da Cunha Pereira. “Tropas militares luso-brasileiras <strong>no</strong>s séculos XVIII e XIX...” Op. Cit., p.13.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
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é, do gentio, do quilombola e do vadio 65 . Além disso, na concepção das autorida<strong>de</strong>s portuguesas,<br />
os Corpos <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças funcionariam também como um instrumento pedagógico, a mostrar a<br />
cada vassalo o seu lugar na or<strong>de</strong>m da socieda<strong>de</strong> 66 .<br />
A partir das <strong>no</strong>tícias do <strong>de</strong>scobrimento <strong>de</strong> ouro na região <strong>de</strong> Minas Gerais a Coroa<br />
procurou agilizar a montagem <strong>de</strong> estruturas administrativas, legais e militares que pu<strong>de</strong>ssem<br />
implementar medidas <strong>de</strong> controle sobre o espaço mineiro. A Coroa <strong>de</strong>sejava conhecer o território<br />
tencionando controlá-lo, saber suas potencialida<strong>de</strong>s, impedir extravios e sonegações <strong>de</strong> impostos,<br />
e estabelecer a or<strong>de</strong>m pública. Num território vasto, inóspito e <strong>de</strong>sconhecido, a informação e o<br />
saber constituíam indispensáveis elementos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. Neste aspecto, os militares constituíram-se<br />
em fortes colaboradores, pois ao disporem <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>, possuíam vasto conhecimento do<br />
território, “dois dos fatores indispensáveis à conservação da or<strong>de</strong>m e manutenção da tranqüilida<strong>de</strong><br />
pública” 67 .<br />
Assim sendo, <strong>no</strong> campo da atuação militar, há <strong>de</strong> se <strong>de</strong>stacar as especificida<strong>de</strong>s da<br />
capitania, <strong>de</strong>ntre elas a prepon<strong>de</strong>rância dos assuntos relacionados às questões da manutenção<br />
do controle social inter<strong>no</strong>. Não se <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra que a preocupação com a or<strong>de</strong>m interna também<br />
estivesse presente nas políticas militares das <strong>de</strong>mais capitanias <strong>no</strong> período <strong>colonial</strong>. Porém, em<br />
Minas Gerais, tal aspecto se sobressaiu <strong>de</strong>ntre outros assuntos relacionados com o campo militar.<br />
Assim sendo, em capitanias como Rio <strong>de</strong> Janeiro, Bahia e São Paulo a preocupação central era<br />
com a <strong>de</strong>fesa marítima. Outras capitanias como Goiás, Mato Grosso, Pará e mesmo São Paulo se<br />
<strong>de</strong>dicavam, primordialmente, à <strong>de</strong>fesa das fronteiras terrestres – que iam do Mato Grosso ao<br />
Amapá. Já <strong>no</strong> sul, a preocupação maior girava em tor<strong>no</strong> da expulsão dos espanhóis. Em Minas<br />
Gerais <strong>de</strong>vido à chegada <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> afluxo populacional durante boa parte do século XVIII, em<br />
<strong>de</strong>corrência do ouro, formou-se um clima <strong>de</strong> instabilida<strong>de</strong> social. Desta forma, o eixo central das<br />
preocupações relacionadas ao campo militar ficou sendo a manutenção da or<strong>de</strong>m pública interna,<br />
o que teria proporcionado uma certa especialização “policial” precoce 68 .<br />
Minas Gerais <strong>de</strong>stacava-se <strong>de</strong>ntre as outras capitanias da América Lusa pela sua<br />
contribuição em termos econômicos para a Coroa, pois com o ouro daí advindo, tal região passou<br />
65 SODRÉ, Nelson Werneck. História militar do Brasil. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. Apud SILVA, Kalina<br />
V. O miserável soldo e a boa or<strong>de</strong>m da socieda<strong>de</strong> <strong>colonial</strong>... Op. Cit., p. 95. MELLO E SOUSA, Laura <strong>de</strong>.<br />
Desclassificados do ouro. 4ª Ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Graal. Ver também: AMANTINO, Márcia. O <strong>mundo</strong> das feras: os<br />
moradores do sertão do Oeste <strong>de</strong> Minas Gerais – século XVIII. Rio <strong>de</strong> Janeiro: UFRJ, 2001. Tese <strong>de</strong> Doutorado. 2vls.<br />
Principalmente o cap. 4.<br />
66 A perspectiva pedagógica dos Corpos <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças foi <strong>de</strong>stacada por PRADO Jr. Caio, Formação do Brasil<br />
Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000. FAORO, Rai<strong>mundo</strong>. Os do<strong>no</strong>s do po<strong>de</strong>r: formação do<br />
patronato político brasileiro. São Paulo: Globo; Publifolha, Vol. 1, 2000. MELLO, Christiane F. Paga<strong>no</strong> <strong>de</strong>. Os Corpos <strong>de</strong><br />
Auxiliares e <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças na segunda meta<strong>de</strong> do século XVIII... Op. cit. Apud: COTTA, Francis A. No rastro dos<br />
Dragões... Op. Cit., pp. 242-243.<br />
67 COTTA, Francis A. No rastro dos Dragões... Op. Cit., p. 258.<br />
68 COTTA, Francis A. “Organização militar”. In: ROMEIRO, Adriana & BOTELHO, Ângela Vianna. Dicionário Histórico<br />
das Minas Gerais. 2ª ed. Revista. Belo Horizonte: Autênticas, 2004, p.218.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
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a ter papel significativo <strong>no</strong> cenário mundial do século XVIII equilibrando as finanças portuguesas 69 .<br />
No vasto Império Português setecentista, poucos foram os territórios em que as contradições do<br />
viver em colônia se exprimiram <strong>de</strong> forma tão acentuada como nesta capitania. Esta socieda<strong>de</strong><br />
fluida, volúvel e complexa exigia dos administradores um cuidado maior que nem sempre as<br />
autorida<strong>de</strong>s reinóis distinguiam e entendiam, não estando à capacida<strong>de</strong> administrativa submetida<br />
a regras ou <strong>no</strong>rmas genéricas que não levassem em conta as singularida<strong>de</strong>s locais 70 . Não por<br />
acaso, nesta capitania as Or<strong>de</strong>nanças tiveram ainda muito cedo um papel <strong>de</strong> controle e<br />
morigeração das populações 71 .<br />
Numa região marcada por alta <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> populacional, elevados índices <strong>de</strong> violência,<br />
inúmeras jazidas <strong>de</strong> riquezas naturais e consi<strong>de</strong>rável imensidão territorial seriam impossíveis para<br />
os Dragões, a Tropa Regular <strong>de</strong> Minas, <strong>de</strong>sempenharem <strong>de</strong> maneira eficiente suas missões, se<br />
não fosse pelo auxílio dado pelos Corpos <strong>de</strong> Auxiliares e <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças 72 .<br />
Em cada vila das Minas, agrupadas em quatro comarcas (Vila Rica; Vila Real do Sabará<br />
ou Rio das Velhas; Rio das Mortes; e Serro do Frio) existia um capitão-mor responsável por um<br />
conjunto <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças <strong>de</strong> homens pardos, negros libertos e brancos 73 . À frente <strong>de</strong> cada<br />
Or<strong>de</strong>nança estaria um capitão, conhecido por capitão-<strong>de</strong>-distrito, presente <strong>no</strong>s arraiais. Estes<br />
capitães seriam os responsáveis diretos pela execução das <strong>de</strong>terminações dos capitães-generais,<br />
repassadas pelos capitães-mores. Num território tão vasto eram eles, coadjuvados, em casos<br />
específicos, por outros corpos, os responsáveis por implementar as “políticas <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m” em suas<br />
localida<strong>de</strong>s 74 .<br />
Para o território das Minas Gerais, não se tem uma relação completa dos Corpos <strong>de</strong><br />
Or<strong>de</strong>nanças existentes na capitania. Entretanto, na segunda meta<strong>de</strong> do século XVIII, algumas<br />
autorida<strong>de</strong>s régias resi<strong>de</strong>ntes nas Minas, sob os auspícios da orientação <strong>de</strong> Pombal que visava<br />
reestruturar as forças bélicas <strong>de</strong>ste domínio luso, procuraram contabilizar os homens militarmente<br />
úteis. É neste contexto que se tem a promulgação da carta régia <strong>de</strong> 22 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1765, dirigida<br />
ao governador <strong>de</strong> Minas para que:<br />
“[...]man<strong>de</strong> alistar todos os moradores <strong>de</strong>sta Capitania sem distinção <strong>de</strong> cores e classes,<br />
que pu<strong>de</strong>ssem pegar em armas, e formar por classes, Terços Auxiliares e Or<strong>de</strong>nanças <strong>de</strong><br />
ambas as armas (infantaria e cavalaria), criando os oficiais precisos, e mandando<br />
disciplinar cada um dos Terços Auxiliares por Sargento-mor tirado das tropas pagas, que<br />
69 BOXER, Charles. “Vila Rica <strong>de</strong> Ouro Preto”. In: A Ida<strong>de</strong> do Ouro do Brasil. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Fronteira, 2000.<br />
70 MELLO E SOUZA, Laura <strong>de</strong>. “Prefácio”. In: SILVEIRA, Marco A. O universo do indistinto. São Paulo: Hucitec, 1999, p.<br />
14.<br />
71 SOUZA, Bernardo Xavier Pinto e. “Memórias Históricas da Província <strong>de</strong> Minas Geraes”. In: RAPM. Belo Horizonte,<br />
1908, vol. 8, pp. 523-639.<br />
72 COTTA, Francis Albert. No rastro dos Dragões... Op. Cit., p. 229.<br />
73 As vilas com população inferior a 100 moradores não teriam capitão-mor e o comando militar caberia ao capitão-<strong>de</strong>distrito.<br />
Apud: COTTA, Francis Albert. No rastro dos Dragões... Op. Cit., p. 185.<br />
74 I<strong>de</strong>m, p. 185-230.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
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vencerão o mesmo soldo que os das tropas pagas, que estão nesta Capitania, pagos pelos<br />
rendimentos das Câmaras[...]” 75 .<br />
Deste modo, foram elaborados alguns mapas com a disposição das Companhias <strong>de</strong><br />
Or<strong>de</strong>nanças existentes na capitania, aos quais recorrermos agora para termos uma <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> seu<br />
contingente, espalhados pelas comarcas mineiras, <strong>no</strong> a<strong>no</strong> <strong>de</strong>1764:<br />
TABELA 1<br />
Número <strong>de</strong> Cias. <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças existentes na capitania <strong>de</strong> Minas <strong>no</strong> a<strong>no</strong> <strong>de</strong> 1764<br />
Comarcas Homens <strong>de</strong> Pé Pardos Pretos<br />
Vila Rica 33 Cias. 21 Cias. 17 Cias.<br />
Rio das Mortes 51 Cias. 17 Cias. 15 Cias.<br />
Rio das Velhas 22 Cias. 15 Cias. 13 Cias.<br />
Serro Frio 47 Cias. 23 Cias. 13 Cias.<br />
Fonte: Relação <strong>de</strong> 4 regimentos <strong>de</strong> cavalaria auxiliar e dragões <strong>de</strong> MG, 1764. AHU/MG/ cx.: 84;<br />
doc.: 70.<br />
Apesar <strong>de</strong> não constar na tabela acima as Or<strong>de</strong>nanças estavam divididas em “homens <strong>de</strong><br />
pé” e “homens <strong>de</strong> cavalo” bem como em tropas <strong>de</strong> brancos, pardos e negros, ou seja,<br />
hierarquizada segundo a cor 76 . No Brasil, a <strong>de</strong>signação infantaria ou cavalaria era aplicada<br />
somente aos corpos militares Regulares e Auxiliares. De acordo com a legislação e com a<br />
tradição lusitana, não haveria Or<strong>de</strong>nanças <strong>de</strong> homens <strong>de</strong> cavalo formadas por pardos ou negros<br />
libertos. As Or<strong>de</strong>nanças <strong>de</strong> homens <strong>de</strong> cavalo eram <strong>de</strong>stinadas aos brancos. Por outro lado, os<br />
homens brancos pobres <strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong> montaria e <strong>de</strong> escravo, responsável pelo trato do<br />
semovente, seriam reunidos nas companhias <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças <strong>de</strong> Pé. Os homens pardos e negros<br />
estariam agrupados, basicamente, <strong>no</strong> caso das Or<strong>de</strong>nanças em companhias <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças <strong>de</strong><br />
Pé; os Corpos <strong>de</strong> Pe<strong>de</strong>stres e os Corpos <strong>de</strong> Homens-do-Mato <strong>77</strong> .<br />
Para a comarca <strong>de</strong> Vila Rica temos ao todo 33 Companhias <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças <strong>de</strong> brancos.<br />
Levando-se em conta que cada companhia tinha em média 60 soldados, isso para quase todo o<br />
75 AHU/MG/cx.: 85; doc.: 42.<br />
76 Conforme ressaltou Stuart Schwartz, <strong>de</strong>vido a forte presença do escravismo a socieda<strong>de</strong> <strong>colonial</strong> brasileira, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
seus primórdios, teve suas relações sociais estruturadas a partir da cor e da raça. Assim, estes dois componentes<br />
também hierarquizaram e criaram critérios <strong>de</strong> status que permearam a vida social da colônia. SCHWARTZ, Stuart.<br />
Segredos Inter<strong>no</strong>s: engenhos e <strong>escravos</strong> na socieda<strong>de</strong> <strong>colonial</strong> – 1550-1835. São Paulo: Cia. das Letras, 1988.Ver<br />
capítulo 9.<br />
<strong>77</strong> COTTA, Francis Albert. No rastro dos Dragões... Op. Cit., p. 186.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
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século XVIII 78 , po<strong>de</strong>-se consi<strong>de</strong>rar que para aquele a<strong>no</strong> <strong>de</strong> 1764 a comarca dispunha <strong>de</strong> um<br />
efetivo <strong>de</strong> 1.980 homens.<br />
Apesar da dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> se conhecer o número <strong>de</strong> oficiais <strong>de</strong> mais alta patente dos<br />
Corpos <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças existentes na comarca, <strong>de</strong>vido à falta <strong>de</strong> estatísticas, pelos dados<br />
coletados po<strong>de</strong>mos ter uma <strong>no</strong>ção da distribuição dos oficiais pelas vilas e arraiais da comarca <strong>de</strong><br />
Vila Rica <strong>no</strong> período abordado pela pesquisa:<br />
TABELA 2<br />
Distribuição dos oficiais <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças pelas vilas, arraiais e freguesias da comarca <strong>de</strong><br />
Vila Rica – 1735-1<strong>77</strong>7<br />
Localida<strong>de</strong> Freqüência %<br />
Ouro Preto 26 19,1<br />
Mariana 18 13,2<br />
Itaubira 4 2,9<br />
Congonhas 4 2,9<br />
São Bartolomeu 5 3,7<br />
Pinheiros 1 0,7<br />
Gama 3 2,2<br />
Camargo 3 2,2<br />
Catas Altas 7 5,1<br />
Mato Dentro 2 1,5<br />
Bocaina 2 1,5<br />
Passagem 4 2,9<br />
Brumado 3 2,2<br />
Santa Bárbara 2 1,5<br />
Taquaral 3 2,2<br />
Morro <strong>de</strong> Santana 4 2,9<br />
Inficcionado 4 2,9<br />
Bacalhau 2 1,5<br />
Ouro Branco 3 2,2<br />
Guarapiranga 8 5,9<br />
Gualachos do Norte 1 0,7<br />
António Pereira 4 2,9<br />
São Caeta<strong>no</strong> 3 2,2<br />
São José da Barra Longa 3 2,2<br />
São Sebastião 5 3,7<br />
Caquen<strong>de</strong> 2 1,5<br />
Cachoeira do Campo 4 2,9<br />
Itatiaia 1 0,7<br />
78 Foi o que constatamos com a análise das cartas patentes dos oficiais enfocados. Nestas cartas patentes vinha<br />
disposto o número <strong>de</strong> soldados que ficariam sob o comando dos oficiais, número este que girava em tor<strong>no</strong> <strong>de</strong> 60<br />
homens.<br />
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54
António Dias 3 2,2<br />
Itaverava 1 0,7<br />
Furquim 1 0,7<br />
Total 136 100<br />
Fonte: cartas patentes presentes <strong>no</strong> Arquivo Histórico Ultramari<strong>no</strong>/Projeto Resgate –<br />
Documentação avulsa <strong>de</strong> Minas Gerais/Cd-rom/ referentes aos oficiais <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças.<br />
Como se po<strong>de</strong> constatar pela tabela acima, longe <strong>de</strong> apresentarem uma distribuição<br />
uniforme, os oficiais concentravam-se <strong>de</strong> forma irregular pela comarca, sendo que sua maior<br />
incidência era nas principais vilas, arraiais e freguesias locais on<strong>de</strong> a circulação <strong>de</strong> pessoas,<br />
presença <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>s, dinâmica do comércio e da produção agrária era mais acentuada. O<br />
maior número dos oficiais se concentrava nas cabeças da comarca, isto é, em Mariana e Ouro<br />
Preto que juntas dispunham <strong>de</strong> 32, 3% dos mesmos. Outros arraiais e freguesias importantes da<br />
comarca também possuíam um número consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> oficiais <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças tais como<br />
Guarapiranga e Catas Altas, pertencentes ao termo <strong>de</strong> Mariana, que agrupavam 11% <strong>de</strong>stes<br />
indivíduos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssa amostragem. A tabela acima também permite <strong>de</strong>stacar a presença <strong>de</strong><br />
oficiais <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças em boa parte das vilas, arraiais e freguesias que compunham a comarca<br />
<strong>de</strong> Vila Rica, inclusive <strong>no</strong>s lugares mais longínquos, a exemplo do que relata a historiografia 79 .<br />
A fixação <strong>de</strong>stes homens <strong>de</strong> patente em diversas localida<strong>de</strong>s era importante para os<br />
propósitos <strong>no</strong>rmatizadores da Coroa e, por isso mesmo, rigorosamente exigida. O fato <strong>de</strong> o<br />
patenteado per<strong>de</strong>r seu posto, caso se retirasse <strong>de</strong> sua região, reforça a tese do interesse da<br />
Coroa em fixá-lo em <strong>de</strong>terminada localida<strong>de</strong>, pois, <strong>de</strong>sta forma, os capitães-generais e capitães-<br />
mores teriam, teoricamente, um maior controle sobre a população, que formalmente pertenceria à<br />
Or<strong>de</strong>nança <strong>de</strong> sua região.<br />
A principal função do capitão-mor era saber quantas pessoas existiam na localida<strong>de</strong> em<br />
que atuava capazes <strong>de</strong> pegar em armas, ou seja, ter conhecimento da população militarmente útil,<br />
o que lhes atribuía um forte po<strong>de</strong>r à escala local 80 . Seguindo essa lógica, os capitães-<strong>de</strong>-distrito e<br />
<strong>de</strong>mais oficiais conheceriam os moradores <strong>de</strong> sua Or<strong>de</strong>nança e, conseqüentemente, os<br />
estrangeiros que por lá andassem 81 .<br />
Além disso, a utilida<strong>de</strong> do conhecimento que esses oficiais adquiriam ao se espalharem<br />
por diferentes localida<strong>de</strong>s e aí se fixarem era útil para a Coroa também em tarefas relativas aos<br />
levantamentos <strong>de</strong> dados. Com as informações coletadas por estes oficiais, elaboravam-se mapas<br />
das populações, estatísticas acerca da estrutura econômica das localida<strong>de</strong>s - incluindo número <strong>de</strong><br />
79<br />
Neste sentido ver: PRADO Jr. Caio, Formação do Brasil Contemporâneo... Op. Cit., p. 324. FAORO, Rai<strong>mundo</strong>. Os<br />
do<strong>no</strong>s do po<strong>de</strong>r... Op. Cit., p. 222.<br />
80<br />
COSTA, Fernando Dores. “Milícia e socieda<strong>de</strong>: recrutamento”. In: HESPANHA, A M. (Org). Nova História militar <strong>de</strong><br />
Portugal... Op. cit., p 74.<br />
81<br />
COTTA, Francis Albert. No rastro dos Dragões... Op. cit., p. 244.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
55
plantações e <strong>escravos</strong>, avaliavam-se as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> rendas e procedia-se, <strong>de</strong> acordo com a<br />
conveniência, a abertura ou fechamento <strong>de</strong> caminhos 82 . Maria Alexandre Lousada <strong>de</strong>staca que<br />
“saber quantos são e on<strong>de</strong> se localizava a população das Minas é consi<strong>de</strong>rado o primeiro passo<br />
para o exercício mais eficaz da vigilância, da manutenção da or<strong>de</strong>m e da repressão” 83 .<br />
Maria Elisa Linhares Borges <strong>de</strong>staca a participação dos oficiais militares pertencentes aos<br />
Corpos Auxiliares e Or<strong>de</strong>nanças em ações <strong>de</strong> apoio logístico e mesmo <strong>no</strong> fornecimento <strong>de</strong><br />
conhecimentos locais para as expedições cartográficas: “O conhecimento que os paisa<strong>no</strong>s<br />
armados tinham do território não só viabilizavam as ativida<strong>de</strong>s corriqueiras da vida militar, como<br />
também facilitava a locomoção do cartógrafo em áreas por ele <strong>de</strong>sconhecidas” 84 .<br />
Vejamos então mais <strong>de</strong>talhadamente como estavam distribuídos os oficiais pela comarca<br />
cruzando os dados referentes à disposição dos oficiais por localida<strong>de</strong> com as patentes possuídas:<br />
TABELA 3<br />
Número <strong>de</strong> ocupantes dos postos <strong>de</strong> mais alta patente das Or<strong>de</strong>nanças distribuídos pela<br />
comarca <strong>de</strong> Vila Rica – 1735-1<strong>77</strong>7<br />
Patente<br />
Localida<strong>de</strong><br />
Total<br />
Capitão-mor Sargento-mor Capitão<br />
Ouro Preto 3 7 16 26<br />
Mariana 4 3 11 18<br />
Itaubira 1 2 1 4<br />
Congonhas 1 0 3 4<br />
São Bartolomeu 1 2 2 5<br />
Pinheiros 0 0 1 1<br />
Gama 1 1 1 3<br />
Camargo 0 0 3 3<br />
Catas Altas 1 0 6 7<br />
Mato Dentro 0 1 1 2<br />
Bocaina 0 0 2 2<br />
Passagem 0 1 3 4<br />
Brumado 0 1 2 3<br />
Santa Bárbara 1 0 1 2<br />
Taquaral 0 0 3 3<br />
Morro <strong>de</strong> Santana 0 0 4 4<br />
Inficcionado 0 0 4 4<br />
Bacalhau 0 0 2 2<br />
Ouro Branco 1 1 1 3<br />
82<br />
I<strong>de</strong>m. Ver também: ALDEN, Dauril. Royal government in <strong>colonial</strong> Brazil: with special reference to the administration of<br />
the Marquis of Lavradio... Op. Cit., pp. 444-445.<br />
83<br />
LOUSADA, Maria Alexandra. Espaços <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> em Lisboa: finais do século XVIII – 1834. Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras<br />
da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa, 1996. Tese <strong>de</strong> Doutorado, p. 70 Apud: COTTA, Francis Albert. No rastro dos Dragões Op.<br />
Cit., p. 247.<br />
84<br />
BORGES, Maria Eliza Linhares. “Cartografia, po<strong>de</strong>r e imaginário: produção cartográfica portuguesa e as terras <strong>de</strong><br />
além-mar”. In: SIMAN, Lara Mara <strong>de</strong> Castro & FONSEA, Thais N. <strong>de</strong> Lima (Orgs). Inaugurando a história e construindo<br />
a nação: discursos e imagens <strong>no</strong> ensi<strong>no</strong> <strong>de</strong> história. 1º ed. Belo Horizonte, 2001, p. 112. Apud: COTTA, Francis Albert.<br />
No rastro dos Dragões... Op. Cit., p. 247.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
56
Guarapiranga 1 1 6 8<br />
Gualachos do Norte 0 1 0 1<br />
António Pereira 0 0 4 4<br />
São Caeta<strong>no</strong> 0 0 3 3<br />
São José da Barra Longa 0 1 2 3<br />
São Sebastião 0 0 5 5<br />
Caquen<strong>de</strong> 0 0 2 2<br />
Cachoeira do Campo 0 1 3 4<br />
Itatiaia 1 0 0 1<br />
António Dias 0 0 3 3<br />
Itaverava 1 0 0 1<br />
Furquim 0 0 1 1<br />
Total 17 23 96 136<br />
Fonte: cartas patentes presentes <strong>no</strong> Arquivo Histórico Ultramari<strong>no</strong>/Projeto Resgate –<br />
Documentação avulsa <strong>de</strong> Minas Gerais/Cd-rom/ referentes aos oficiais <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças.<br />
Para exemplificarmos a disposição acima constatada, analisemos a ocupação <strong>de</strong> um dos<br />
postos mais alto da hierarquia nas cabeças da comarca, o <strong>de</strong> capitão-mor, posto que conferia a<br />
seus ocupantes “<strong>no</strong>breza vitalícia” e on<strong>de</strong> a rotativida<strong>de</strong> geralmente era me<strong>no</strong>r 85 Em Ouro Preto a<br />
ocupação do posto mencionado foi feita por apenas 3 indivíduos ao longo <strong>de</strong> todo período<br />
abordado pela pesquisa. O primeiro dos capitães-mores <strong>de</strong> Ouro Preto foi João Freire dos Santos.<br />
Não conseguimos <strong>de</strong>scobrir quando ganhou a patente, mas sabemos que ocupou o posto até<br />
1740 quando foi substituído por António Ramos dos Reis 86 . Este ocupou o dito posto <strong>de</strong> 1741 a<br />
1761, quando falece 87 . Para substituí-lo é escolhido José Alves Maciel que o ocupa até finais do<br />
século XVIII 88 .<br />
A cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mariana (antiga Vila do Carmo) também teve uma pequena rotativida<strong>de</strong> na<br />
ocupação do principal posto <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças. O primeiro <strong>de</strong> seus capitães-mores foi Rafael da<br />
Silva e Sousa que ocupou o posto até 1744/1745 aproximadamente, quando é <strong>no</strong>meado para o<br />
cargo <strong>de</strong> inten<strong>de</strong>nte da fazenda real <strong>no</strong> arraial <strong>de</strong> São Luís, distrito <strong>de</strong> Paracatu, comarca <strong>de</strong><br />
Sabará e para lá se muda 89 . Em seu lugar assume João <strong>de</strong> São Boaventura Vieira, que ocupa o<br />
posto até 1757, quando falece 90 . Para substituí-lo é escolhido José da Silva Pontes, capitão-mor<br />
até 1<strong>77</strong>5 91 , quando assume seu filho homônimo que exerce o posto até finais do século XVIII 92 .<br />
A pequena rotativida<strong>de</strong> <strong>no</strong> posto <strong>de</strong> capitão-mor po<strong>de</strong> ser explicada, obviamente, pelo fato<br />
<strong>de</strong> ser este um cargo vitalício mas também pelo fato <strong>de</strong> ser o mais elevado da hierarquia militar.<br />
85<br />
RODRIGUES, José Damião. “A guerra <strong>no</strong> Açores...” Op. cit., p. 251.<br />
86<br />
AHU/MG/cx.: 39; doc: 67.<br />
87<br />
Ver: CPOP, 1º ofício – Testamento <strong>de</strong> António Ramos dos Reis. Livro 20, folha 74, (1761).<br />
88<br />
Ver: AHU/MG/cx.: 85; doc.: 34.<br />
89<br />
AHU/MG/cx.: 47; doc.: 28.<br />
90<br />
Ver: CSM, 1º ofício – Inventário post-mortem <strong>de</strong> João <strong>de</strong> São Boaventura Vieira. Códice 13, auto 429, (1757).<br />
91 Ver: AHU/MG/cx.: 108; doc.: 45<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
57
Como só po<strong>de</strong>riam ser ocupados pelas “pessoas principais” das localida<strong>de</strong>s, como a própria<br />
legislação estabelecia, atestava o prestígio <strong>de</strong> seu ocupante, e aqueles que aí chegassem aí<br />
procuravam se manter.<br />
Situação diferente encontramos na ocupação do posto <strong>de</strong> capitão. Os capitães eram os<br />
mais bem distribuídos, existiram em maior número - estando presentes em quase todas as<br />
localida<strong>de</strong>s - e tinham uma rotativida<strong>de</strong> mais acentuada. Ouro Preto, por exemplo, teve ao longo<br />
do período enfocado 16 capitães <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças, nas forças <strong>de</strong> cavalo e <strong>de</strong> pé. Não <strong>de</strong>screverei<br />
as mudanças <strong>de</strong> ocupação como fiz anteriormente, até porque ficaria <strong>de</strong>masiado gran<strong>de</strong>, mas<br />
importa sublinhar que pela análise das cartas patentes passadas, referentes ao posto <strong>de</strong> capitão,<br />
constatamos que os principais motivos que levavam a esta constante troca <strong>no</strong> referido posto<br />
eram: ausência – para o rei<strong>no</strong>, para outras partes <strong>de</strong> Minas ou para outras capitanias; <strong>de</strong>sistência<br />
–por incapacida<strong>de</strong> advinda <strong>de</strong> doenças e velhice; promoções – o posto <strong>de</strong> capitão foi, em muitos<br />
casos, a porta <strong>de</strong> entrada para estes indivíduos atestarem seu valor e conseguirem alcançar uma<br />
patente mais alta; e, claro, falecimento.<br />
Outro posto <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque era o <strong>de</strong> sargento-mor que como mostra a tabela existiram em<br />
número significativo em toda a comarca e se concentravam nas principais vilas e arraiais, como<br />
dito anteriormente.<br />
A <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> o corpo militar ser <strong>de</strong>signado por sua localida<strong>de</strong>, abundavam casos em que<br />
o regimento, companhia ou terço era conhecido pelo <strong>no</strong>me do seu comandante 93 :<br />
92 Ver: CSM, 1º ofício – Inventário post-mortem <strong>de</strong> José da Silva Pontes. Códice 156, auto 3264, (1800).<br />
93 COTTA, Francis Albert. No rastro dos Dragões... Op. Cit., p. 114.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
58
TABELA 4<br />
Resumo geral das Forças Militares <strong>de</strong> Minas em 1768<br />
Número das Cias. Força<br />
67<br />
167<br />
Cavalaria Ligeira, Dragões e Auxiliares<br />
dos regimentos <strong>de</strong> Fraga, Souza,<br />
Azevedo, Soutto e Lacerda<br />
Infantaria <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças dos Corpos<br />
<strong>de</strong> Pontes, Maciel, Nogueira, Carvalho,<br />
Vieira, Neves, Villar, Monroy e Coelho<br />
Número <strong>de</strong><br />
Praças<br />
4.163<br />
11.575<br />
99 Pardos Libertos dos referidos distritos 6.020<br />
55 Pretos Libertos do referidos distritos 3.442<br />
388 Total 25.200<br />
Fonte: Mapas sobre capitação <strong>de</strong> <strong>escravos</strong>, entradas, dízimos, <strong>escravos</strong>, forças militares <strong>de</strong><br />
Minas e cálculos da Provedoria, 1768. AHU/MG/cx.: 93; doc.: 58.<br />
Como mostra a tabela acima, as Companhias <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças em Minas eram associadas<br />
aos <strong>no</strong>mes <strong>de</strong> seus comandantes. Por exemplo, o Corpo <strong>de</strong> Pontes remetia-se ao regimento<br />
comandado pelo capitão-mor José da Silva Pontes, e o Corpo <strong>de</strong> Maciel remetia-se ao regimento<br />
comandado pelo capitão-mor José Alves Maciel. Ressaltava-se, nestes casos a figura daquele<br />
oficial que estava <strong>no</strong> comando, que organizou, fardou e equipou o corpo militar com seus próprios<br />
recursos financeiros 94 .<br />
A historiografia tem chamado atenção para o fato <strong>de</strong> que na América Portuguesa, diante<br />
da dificulda<strong>de</strong> da Metrópole em financiar as <strong>de</strong>spesas militares da colônia, não raro se<br />
transferiram aos colo<strong>no</strong>s os custos <strong>de</strong> sua própria <strong>de</strong>fesa que assumiam, através <strong>de</strong> tributos e<br />
trabalhos, os altos custos da manutenção do Império. Inúmeros foram os expedientes utilizados<br />
pelas autorida<strong>de</strong>s militares para a <strong>de</strong>fesa das conquistas. Constava entre eles, à mobilização<br />
periódica da população, a requisição compulsória <strong>de</strong> seus <strong>escravos</strong> para a construção e reparo <strong>de</strong><br />
fortalezas, a tentativa <strong>de</strong> arregimentação <strong>de</strong> homens <strong>de</strong> qualquer “qualida<strong>de</strong>” - incluindo índios e<br />
vadios - para o preenchimento das tropas e para socorrer a Coroa <strong>no</strong>s momentos <strong>de</strong> suposto<br />
94 I<strong>de</strong>m.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
59
perigo, e o sustento das mesmas 95 . Tais imperativos facilitavam o atrelamento da figura do<br />
comandante com o seu corpo militar.<br />
O comandante do corpo militar assumia assim o papel <strong>de</strong> cabeça; os oficiais, sargentos,<br />
cabos e soldados seriam os membros, <strong>de</strong><strong>no</strong>tando que o universo militar, e como não po<strong>de</strong>ria<br />
<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, era também influenciado pelo paradigma corporativista 96 segundo o qual o indivíduo<br />
não existe sozinho e sim como parte <strong>de</strong> um todo ocupando um lugar na or<strong>de</strong>m, uma tarefa ou<br />
<strong>de</strong>ver social 97 .<br />
Ana Paula Pereira Costa é Doutoranda em História Social pelo PPGHIS/UFRJ<br />
95 BICALHO, Maria Fernanda A cida<strong>de</strong> e o Império... Op. Cit.,pp. 305-318.<br />
96 COTTA, Francis Albert. No rastro dos Dragões... Op. Cit., p. 114.<br />
97 HESPANHA, António M. Pa<strong>no</strong>rama Histórico da Cultura Jurídica Européia. Madri: Editorial Tec<strong>no</strong>s, 1998, pp. 59-61.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
60
ASPECTOS DA ADMINISTRAÇÃO PORTUGUESA NA AMÉRICA: UM<br />
ESTUDO DE CASO SOBRE AS FUNÇÕES DO PROVEDOR-MOR DA<br />
BAHIA NO SÉCULO XVIII<br />
Resumo:<br />
O artigo analisa o Regimento do Provedor Mor<br />
da Fazenda do Estado do Brasil <strong>de</strong> 1762. Esse<br />
documento apresenta as funções e tarefas que o<br />
provedor mor <strong>de</strong>via realizar na inspeção dos<br />
comboios provenientes da Europa e das Índias,<br />
que aportavam em Salvador. Analisar os<br />
aspectos da administração lusitana <strong>no</strong> Brasil e as<br />
tarefas que <strong>de</strong>viam ser efetuadas pelo provedor é<br />
o objetivo <strong>de</strong>sse artigo. Verificar o aparato<br />
burocrático, o comércio marítimo entre Brasil e o<br />
Império Português, os mecanismos usados para<br />
se evitar <strong>de</strong>svios e sonegações e as obrigações<br />
quanto ao concerto e manutenção das provisões<br />
nas naus são os outros objetivos <strong>de</strong>sse trabalho.<br />
Palavras-chave:<br />
Regimento, Administração, Comércio marítimo.<br />
Charles Nascimento <strong>de</strong> Sá<br />
Abstract:<br />
The article analyzes the Regiment of Supplying<br />
Mor of Finance of the State of Brazil 1762. That<br />
document presents the functions and tasks that<br />
the supplying mor should accomplish in the<br />
inspection of the coming convoys of Europe and<br />
of India, that contributed in Salvador. To analyze<br />
the aspects of the administration lusitana in Brazil<br />
and the tasks that should be ma<strong>de</strong> by the supplier<br />
is the objective of that article. To verify the<br />
bureaucratic apparatus and the mechanisms used<br />
to avoid <strong>de</strong>viations and <strong>de</strong>fraudments as well as<br />
its obligations with relationship to the concert and<br />
maintenance of the provisions in the naus are the<br />
other objectives of that work.<br />
Keywords:<br />
Regiment, Administration,Marine tra<strong>de</strong>.<br />
A construção do Império Marítimo Português <strong>de</strong>correu <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> fatores interligados.<br />
Esses elementos, que fizeram <strong>de</strong> Portugal, país peque<strong>no</strong> e sem importância política e econômica<br />
na Europa, um dos maiores impérios <strong>de</strong> que se tem <strong>no</strong>tícia, são motivos <strong>de</strong> assombro e mesmo<br />
<strong>de</strong> admiração 1 .<br />
Ora, como a empresa mercantil lusitana foi gerida <strong>no</strong>s séculos em que Portugal <strong>de</strong>teve o<br />
controle da América Portuguesa? Quais as atribuições que os administradores lusita<strong>no</strong>s tinham<br />
em seus cargos e funções <strong>de</strong>senvolvidos <strong>no</strong> cotidia<strong>no</strong> <strong>colonial</strong>? A manutenção <strong>de</strong> um império tão<br />
vasto foi surpreen<strong>de</strong>nte, ainda mais quando se sabe que esse domínio durou quase quatrocentos<br />
a<strong>no</strong>s e que Portugal era minúsculo em comparação com a Colônia.<br />
Enten<strong>de</strong>r a administração portuguesa e a forma como ela se constituiu é um dos objetivos<br />
<strong>de</strong>ste artigo. Além disso, as funções reservadas ao provedor-mor, as regulamentações <strong>de</strong> seus<br />
atos e os limites <strong>de</strong> sua atuação são outras questões que se preten<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r. Para isto será<br />
analisado o Regimento do Provedor Mor da Fazenda do Estado do Brasil <strong>de</strong> 1752 2 , instrumento<br />
que regulava o abastecimento e gerência dos navios que chegavam ao porto <strong>de</strong> Salvador. Esse<br />
11 BOXER, Charles R. O Império Marítimo Português: 1415 – 1825. Tradução: Ana Olga <strong>de</strong> Barros Barreto. São Paulo:<br />
Companhia das Letras. Título original: The Portuguese seaborne empire 1415 – 1825.<br />
2 REGIMENTO do Provedor-Mor da Fazenda do Estado do Brasil <strong>de</strong> 1752. In. Projeto Resgate <strong>de</strong> documentação<br />
histórica – Barão do Rio Branco – Documentos manuscritos avulsos da Capitania da Bahia (Castro e Almeida) 1613 –<br />
61
documento encontra-se disponível na coleção <strong>de</strong> cd-roons do Arquivo Ultramari<strong>no</strong> <strong>de</strong> Portugal.<br />
Sua elaboração fez parte do Projeto Resgate <strong>de</strong> documentação histórica – Barão do Rio Branco.<br />
Sua armazenagem na mídia está <strong>no</strong> arquivo <strong>de</strong> número 003, pasta 001, do cd-rom <strong>de</strong> número 25.<br />
No Arquivo Histórico Ultramari<strong>no</strong>, sua caixa é a <strong>de</strong> número 3, documento <strong>de</strong> número 291. Consta<br />
<strong>de</strong> 24 páginas e 12 artigos. Para análise e contextualização da socieda<strong>de</strong> baiana do período, em<br />
especial a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Salvador, foram utilizadas as obras clássicas <strong>de</strong> Antonil – Cultura e<br />
Opulência do Brasil, e Vilhena – A Bahia <strong>no</strong> século XIX, com comentários e organização <strong>de</strong> Braz<br />
do Amaral. Além <strong>de</strong>ssas fontes primárias, livros e artigos sobre a Bahia e a América Portuguesa<br />
foram utilizados como fonte secundária.<br />
O cargo <strong>de</strong> provedor-mor era um dos vários que compunham a burocrática administração<br />
portuguesa, em seu Império Ultramari<strong>no</strong>. A função do responsável por esse cargo era a <strong>de</strong><br />
supervisionar e abastecer (daí o <strong>no</strong>me <strong>de</strong> provedor) os navios que <strong>de</strong>sembarcassem <strong>no</strong>s portos<br />
portugueses.<br />
A construção do Império Marítimo Português foi um elemento que esteve em consonância<br />
com a emergência <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> fatores, como o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> <strong>no</strong>vas práticas mercantis,<br />
a busca por minerais preciosos (especialmente o ouro), as lutas religiosas e a expansão da<br />
Reforma Protestante e da Contra-Reforma na Europa.<br />
Além <strong>de</strong>sses problemas, outros intrínsecos à dinâmica cristã na península ibérica, como as<br />
lutas contra os invasores mouros, produziram o combustível necessário à expansão marítima<br />
lusitana. Os infiéis, como eram chamados os mulçuma<strong>no</strong>s em Portugal e na Espanha,<br />
representavam a principal ameaça à continuida<strong>de</strong> territorial e política lusitana. Esse último fator foi<br />
o elemento que possibilitou à coroa portuguesa um <strong>de</strong> seus maiores incentivos para a<strong>de</strong>ntrar em<br />
mares nunca dantes navegados.<br />
Para conseguir lutar contra um inimigo numérica e tec<strong>no</strong>logicamente superior, Portugal<br />
necessitaria do auxílio <strong>de</strong> outras nações. Nesse período, havia na Europa a crença na existência<br />
do rei<strong>no</strong> cristão <strong>de</strong> Preste João. Esse rei<strong>no</strong> localizar-se-ia na África e seu governante tinha sido<br />
batizado pelo apóstolo São Tomé. Possuía milhares <strong>de</strong> soldados, além <strong>de</strong> uma riqueza<br />
inesgotável em ouro. Conseguir o apoio <strong>de</strong> Preste João representaria a vitória <strong>de</strong> Portugal contra<br />
os mouros.<br />
Desta forma:<br />
[...] os quatros motivos principais que inspiraram os dirigentes portugueses (reis, príncipes, <strong>no</strong>bres<br />
ou comerciantes) foram, em or<strong>de</strong>m cro<strong>no</strong>lógica, mas sobrepostos em diversos graus: (01) o fervor<br />
1807. Conselho Ultramari<strong>no</strong>/Brasil, Arquivo Histórico Ultramari<strong>no</strong>. Cd 25/25, arquivo 003, pasta 001. AHU, caixa nº 3,<br />
doc. nº 291. Rio <strong>de</strong> Janeiro: LPC Datta Imagem, 2004.<br />
62
empenhado na cruzada contra os mulçuma<strong>no</strong>s; (02) o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> se apo<strong>de</strong>rar do ouro da Guiné; (03)<br />
a procura <strong>de</strong> Preste João; (04) a busca <strong>de</strong> especiarias orientais 3 .<br />
Esses motivos foram salutares para a conquista <strong>de</strong> <strong>no</strong>vas terras e construção <strong>de</strong> laços<br />
mercantis que fortaleceram a monarquia portuguesa <strong>no</strong> século XV frente a outros rei<strong>no</strong>s europeus<br />
mais po<strong>de</strong>rosos, especialmente a Espanha.<br />
A expansão marítima portuguesa, assombro para os habitantes <strong>de</strong>sse país, bem como<br />
para os <strong>de</strong>mais europeus, que não davam muito crédito ao minúsculo Estado lusita<strong>no</strong>, conce<strong>de</strong>u a<br />
Portugal <strong>de</strong>staque na política e na eco<strong>no</strong>mia européia dos séculos XV e XVI. Desse modo, à<br />
medida que <strong>no</strong>vas terras eram “<strong>de</strong>scobertas” e incorporadas ao mando <strong>de</strong> El-rei, ia se<br />
consolidando o senhorio lusita<strong>no</strong> sobre imensas áreas do globo 4 .<br />
Essa expansão mercantil rumo ao Oriente teve também <strong>de</strong>svios para o oeste. Já há muito<br />
tempo, era conhecida, entre marinheiros e cartógrafos europeus, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> existência <strong>de</strong><br />
terras, seguindo o poente <strong>no</strong> ocea<strong>no</strong> Atlântico. Foi <strong>de</strong>sse modo que Espanha e Portugal<br />
realizaram o Tratado <strong>de</strong> Tor<strong>de</strong>silhas dividindo as terras a serem <strong>de</strong>scobertas entre si. A chegada<br />
<strong>de</strong> Cristóvão Colombo ao continente que seria conhecido como América, revelou estarem corretas<br />
as suspeitas geográficas <strong>de</strong> então.<br />
A chegada dos portugueses à América aconteceu em 22 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1500, conforme se<br />
encontra documentado na carta enviada por Pero Vaz <strong>de</strong> Caminha, escrivão da esquadra<br />
comandada pelo capitão Pedro Álvares Cabral. O conhecimento <strong>de</strong>sse <strong>no</strong>vo território, porém, não<br />
suscitou <strong>no</strong> gover<strong>no</strong> português gran<strong>de</strong>s interesses. Isso foi motivado pelos maiores divi<strong>de</strong>ndos<br />
que eram recolhidos <strong>no</strong> comércio <strong>de</strong> especiarias com o Oriente e pela observação <strong>de</strong> ser o<br />
território america<strong>no</strong> <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> ouro.<br />
A América Portuguesa ficou sendo explorada por navios e mercadores franceses e<br />
ingleses, limitando-se o gover<strong>no</strong> português a algumas expedições <strong>de</strong> reconhecimento. Isso,<br />
porém, mudou a partir do momento que o comércio com o Oriente não conseguiu produzir os<br />
mesmos ganhos <strong>de</strong> antes. Outro fator a incentivar essas mudanças se encontrava na necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> se manter sob o controle português as imensas terras da América. Havia ainda o imperativo <strong>de</strong><br />
dotar essa região <strong>de</strong> uma administração que pu<strong>de</strong>sse sedimentar a soberania lusitana <strong>no</strong> <strong>no</strong>vo<br />
continente, evitando per<strong>de</strong>r o senhorio do território, ao mesmo tempo em que seria construída<br />
uma eco<strong>no</strong>mia capaz <strong>de</strong> fomentar o <strong>de</strong>senvolvimento econômico e o povoamento da região,<br />
elementos básicos para a exploração e catequese da população nativa 5 .<br />
3<br />
BOXER, Charles R. O Império Marítimo Português: 1415 – 1825. Tradução: Ana Olga <strong>de</strong> Barros Barreto. São Paulo:<br />
Companhia das Letras. Título original: The Portuguese seaborne empire 1415 – 1825. P. 34.<br />
4<br />
ALENCASTRO, Luiz Felipe <strong>de</strong>. O Trato dos Viventes: formação do Brasil <strong>no</strong> Atlântico Sul.São Paulo: Companhia das<br />
Letras, 2000.<br />
5<br />
TAVARES, Luiz Henrique Dias. História da Bahia. 10. ed. São Paulo: Editora UNESP, Salvador: Edufba, 2001.<br />
63
Como mecanismo para o aproveitamento da Colônia, foi iniciado o plantio <strong>de</strong> açúcar,<br />
produto que em pouco mais <strong>de</strong> trinta a<strong>no</strong>s, após o início da colonização, se consolidou <strong>no</strong><br />
território, elevando o Brasil a um patamar essencial ao <strong>de</strong>senvolvimento da eco<strong>no</strong>mia do rei<strong>no</strong><br />
português. O <strong>de</strong>senvolvimento da colônia ultramarina portuguesa na América foi um fator salutar<br />
para o sustento do erário régio. O avanço da lavoura canavieira nessas <strong>no</strong>vas paragens<br />
possibilitou a Portugal usufruir uma série <strong>de</strong> rendimentos, que até então eram sustentados pelo<br />
comércio com as Índias. Desse modo, a ligação entre a Colônia e a Metrópole tor<strong>no</strong>u-se cada vez<br />
mais indispensável para o sustento da eco<strong>no</strong>mia lusitana.<br />
A gênese econômica da América portuguesa, pautada primeiramente <strong>no</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
da lavoura canavieira, seguido <strong>no</strong>s séculos XVII e XVIII pela pecuária, algodão e ouro, bem como<br />
<strong>no</strong> intenso comércio <strong>de</strong> <strong>escravos</strong> africa<strong>no</strong>s, se encontra <strong>no</strong> ponto mais sensível para enten<strong>de</strong>rmos<br />
o alargamento da empresa mercantil portuguesa na América. A consolidação do Brasil como o<br />
principal sustentáculo da eco<strong>no</strong>mia lusa envolveu a constituição <strong>de</strong> uma administração altamente<br />
sofisticada e mo<strong>de</strong>rna. Era preciso gerenciar a socieda<strong>de</strong> e a eco<strong>no</strong>mia <strong>colonial</strong> em conformida<strong>de</strong><br />
com as necessida<strong>de</strong>s da Metrópole.<br />
Nesse âmbito, a consolidação da Bahia como mais importante centro econômico a partir<br />
do final do século XVII, fez <strong>de</strong> Salvador o mais importante porto brasileiro até meados do século<br />
<strong>de</strong>zoito. No momento em que o Regimento foi apresentado, o porto <strong>de</strong> Salvador já começara a<br />
per<strong>de</strong>r sua hegemonia econômica para o Rio <strong>de</strong> Janeiro. Apesar disso, ele ainda era um dos mais<br />
significativos das Américas, principalmente pelo seu <strong>de</strong>stacado tráfico <strong>de</strong> <strong>escravos</strong> e pelo e<strong>no</strong>rme<br />
fluxo <strong>de</strong> mercadorias dali exportadas 6 .<br />
A Bahia consolidou sua posição após a invasão holan<strong>de</strong>sa em Pernambuco. De fato,<br />
durante o período <strong>de</strong> dominação dos Países Baixos <strong>no</strong> Nor<strong>de</strong>ste, muitos senhores <strong>de</strong> engenho<br />
abandonaram suas proprieda<strong>de</strong>s e vieram residir na Bahia. No Recôncavo, receberam terras e<br />
auxílio <strong>de</strong> parentes e do gover<strong>no</strong>, o que permitiu o crescimento da lavoura na província e a<br />
superação mercantil face à Pernambuco. 7<br />
Inserida <strong>no</strong> contexto mais amplo do Império Português, a província baiana contou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />
início da colonização, com uma ligação intensa entre sua eco<strong>no</strong>mia e a <strong>de</strong> outros portos na África<br />
e Ásia. Tem especial <strong>de</strong>staque para essa região o porto africa<strong>no</strong> <strong>de</strong> São Jorge da Mina, o mais<br />
importante comprador do fumo <strong>de</strong> rolo produzido <strong>no</strong> Recôncavo Baia<strong>no</strong>, o qual foi durante muito<br />
6 VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico <strong>de</strong> <strong>escravos</strong> entre o golfo <strong>de</strong> Benin e a Bahia <strong>de</strong> todos os Santos, dos<br />
séculos XVII a XIX. Trad. Tasso Gadzanis. 4. Ed. Salvador: Corrupio, 2002.<br />
7 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Inter<strong>no</strong>s: engenhos e <strong>escravos</strong> na socieda<strong>de</strong> <strong>colonial</strong>. Tradução Laura Teixeira<br />
Moura. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. Título original: Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society,<br />
Bahia, 1550 – 1835.<br />
64
tempo a principal moeda <strong>de</strong> troca por <strong>escravos</strong> 8 . A Bahia tinha, <strong>de</strong>sse modo, uma <strong>de</strong>pendência<br />
estreita para com outras partes do Império. Isolamento, comercial ou social, não era um<br />
componente que fizesse parte da socieda<strong>de</strong> mercantil do período.<br />
Desse modo, o estudo sobre tão importante pólo econômico é significativo na<br />
compreensão do passado <strong>colonial</strong> da América portuguesa. O açúcar foi o mais importante produto<br />
cultivado na Bahia. Porém não foi o único: algodão, fumo, mandioca, cachaça, couro, ma<strong>de</strong>ira e<br />
outras mercadorias eram <strong>de</strong>spachadas pelo porto <strong>de</strong> Salvador. Navios das mais diferente nações<br />
faziam escala nessa cida<strong>de</strong>, para <strong>de</strong>sespero da administração <strong>colonial</strong>. Práticas contrárias à<br />
manutenção do exclusivismo mercantil eram praticadas pela maioria dos comerciantes, sendo<br />
comum também nas ações cotidianas dos que eram pagos para coibi-las 9 .<br />
Nesse mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> colonização, que sabiamente Caio Prado Júnior 10 chamou <strong>de</strong><br />
exploração, é necessário enfatizar que não havia o <strong>de</strong>sejo ou a intenção única <strong>de</strong> sugar<br />
inapropriadamente toda a riqueza da terra em favor do Rei<strong>no</strong>. Afinal, se tal ocorresse, a empresa<br />
mercantil <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> dar lucro. O que acontecia era muito mais a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se realizar, em<br />
território longínquo e <strong>de</strong>sconhecido, um empreendimento que gerasse receita e fosse viável à<br />
exploração econômica, transformando aquela região em uma continuação <strong>de</strong> Portugal.<br />
Exploração e povoamento se constituíram como um elemento histórico próprio. Ao longo<br />
dos séculos <strong>de</strong> sedimentação portuguesa na América, esses dois elementos se firmaram como<br />
necessários aos grupos dirigentes constituídos durante esse <strong>de</strong>senvolvimento. Esse núcleo<br />
firmou-se como a elite <strong>colonial</strong>, mantendo o controle do território <strong>no</strong> afã <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver e explorar<br />
suas riquezas 11 .<br />
Essa elite mercantil e política, formou-se <strong>no</strong> alargamento das diversas lavouras já citadas,<br />
e na expansão do capital mercantil luso-brasileiro. O Regimento do Provedor-Mor permite que se<br />
tenha uma idéia <strong>de</strong> como a ação <strong>de</strong>sses grupos era feita e <strong>de</strong> que forma a empresa <strong>colonial</strong> ia<br />
sendo gerenciada. A administração portuguesa, inserida <strong>no</strong>s quadros do que se convencio<strong>no</strong>u<br />
chamar Antigo Regime, teve uma “indiferenciação, típica do Antigo Regime, entre as atribuições<br />
executivas, legislativas e judiciárias” 12 .<br />
O documento que analisamos refere-se especificamente à cida<strong>de</strong> da Bahia. Po<strong>de</strong>-se<br />
raciocinar, <strong>no</strong> entanto, que o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>veria ser semelhante para outros portos e regiões.<br />
Saliente-se ainda o fato <strong>de</strong> ser Salvador, nesse período, um dos mais importantes portos do<br />
8 VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico <strong>de</strong> <strong>escravos</strong> entre o golfo <strong>de</strong> Benin e a Bahia <strong>de</strong> todos os Santos, dos<br />
séculos XVII a XIX. Trad. Tasso Gadzanis. 4. Ed. Salvador: Corrupio, 2002.<br />
9 VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia <strong>no</strong> século XVIII. Salvador: Itapuã, 1969. (coleção baiana).<br />
10 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 23. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Brasiliense, 1995.<br />
11 FLORENTINO, Ma<strong>no</strong>lo & FRAGOSO, João. O Arcaísmo como projeto: mercado atlântico, socieda<strong>de</strong> agrária e elite<br />
mercantil em uma eco<strong>no</strong>mia <strong>colonial</strong> tardia: Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1780 – 1840. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.<br />
65
Império Marítimo Português e se tem um painel a ser seguido em outras áreas do Rei<strong>no</strong>. Afinal “o<br />
comércio com os portos <strong>de</strong>ste continente consiste, na extração <strong>de</strong> carnes secas e salgadas do Rio<br />
Gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Pedro do Sul, bastante farinha <strong>de</strong> trigo, muita couranca e alguns queijos e muito<br />
sebo em pães e velas 13 ”.<br />
No período <strong>colonial</strong>, bem como posteriormente <strong>no</strong> império brasileiro, foi gran<strong>de</strong> o contato<br />
entre os portos do Brasil e os <strong>de</strong> outras regiões pertencentes a Portugal, como Angola, Guiné,<br />
Goa, Moçambique, ilhas do Atlântico, <strong>de</strong>ntre outras áreas que mantinham ativo contato com o<br />
Brasil. O Regimento enfatiza essa importância ao <strong>de</strong>ixar em evidência as necessida<strong>de</strong>s em<br />
“<strong>de</strong>sembarcar os materiais que forem <strong>de</strong> meu cabedal do meus armazéns <strong>de</strong> Guiné e Índia para<br />
provimento dos daquela cida<strong>de</strong> (1752, p. 4)”, <strong>no</strong> que se refere, obviamente a Salvador. As trocas<br />
<strong>de</strong> mercadorias entre essas duas partes do Império, ainda que sempre se tentando restringir,<br />
eram uma prática corriqueira.<br />
Como principal pólo econômico e mercantil da Colônia, a Bahia tor<strong>no</strong>u-se, ao longo <strong>de</strong><br />
quatro séculos, o mais promissor dos territórios que constituíam a América lusitana. Apesar do<br />
<strong>de</strong>senvolvimento inicial <strong>de</strong> Pernambuco, as invasões holan<strong>de</strong>sas, cujas batalhas danificaram as<br />
plantações e endividaram os senhores <strong>de</strong> engenho pernambuca<strong>no</strong>s, impossibilitaram que a<br />
capitania atingisse um patamar <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento similar ao alcançado <strong>no</strong> século XVI. Antonil já<br />
apontava que, mesmo com uma quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> engenhos muito superior à da Bahia, a capitania<br />
<strong>de</strong> Pernambuco não conseguia alcançar a produção baiana 14 .<br />
De gran<strong>de</strong> centro produtor <strong>de</strong> cana-<strong>de</strong>-açúcar, Pernambuco foi alçado à categoria <strong>de</strong><br />
segunda maior eco<strong>no</strong>mia, posto que per<strong>de</strong>u <strong>no</strong> século XVIII, quando da <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> ouro em<br />
Minas. Esse fenôme<strong>no</strong> termi<strong>no</strong>u beneficiando o <strong>de</strong>senvolvimento do Rio <strong>de</strong> Janeiro. A Bahia, que<br />
tinha assumido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XVII a dianteira na eco<strong>no</strong>mia <strong>colonial</strong>, manteria essa característica<br />
por boa parte dos séculos seguintes, só vindo a perdê-la nas décadas finais do XIX 15 .<br />
A produção <strong>de</strong> açúcar, aliada ao <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> outras culturas, possibilitou a<br />
Salvador e seu Recôncavo obter um crescimento surpreen<strong>de</strong>nte. Além <strong>de</strong>sse produto, o fumo, o<br />
couro, a cachaça, a farinha <strong>de</strong> mandioca, um ativo comércio <strong>de</strong> cativos, bem como outros<br />
produtos, dotavam o mercado <strong>de</strong>ssa cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> importante <strong>de</strong>staque <strong>no</strong> <strong>mundo</strong> atlântico lusita<strong>no</strong> 16 .<br />
12<br />
GOUVÊIA, Maria <strong>de</strong> Fátima Silva. Administração. In. VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />
Objetiva, 2000. P. 17.<br />
13<br />
VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia <strong>no</strong> século XVIII. Salvador: Itapuã, 1969. Vol.1. (coleção baiana). P. 57.<br />
14<br />
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. Disponível em: acesso em: 20<br />
abr. 2005.<br />
15<br />
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Inter<strong>no</strong>s: engenhos e <strong>escravos</strong> na socieda<strong>de</strong> <strong>colonial</strong>. Tradução Laura Teixeira<br />
Moura. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. Título original: Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society,<br />
Bahia, 1550 – 1835.<br />
16<br />
BARICKMAN, Bert Ju<strong>de</strong>. Um Contra-ponto baiana: açúcar, fumo, mandioca e escravidão <strong>no</strong> Recôncavo, 1780 – 1860.<br />
Tradução <strong>de</strong> Maria Luiza X. <strong>de</strong> A. Borges. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Título original: A Bahian<br />
Counterpoint: Sugar, Tobacco, Cassava and Slavery in the Recôncavo, 1780 – 1860.<br />
66
A safra <strong>de</strong> cana era acompanhada pela intensificação da exploração da mão-<strong>de</strong>-obra<br />
escrava. Nos períodos em que ela durava, o engenho era utilizado vinte e quatro horas por dia.<br />
Negros se revezavam em suas tarefas para produzir o ouro branco. Depois <strong>de</strong> fabricado, era<br />
preciso encaminhar o açúcar para o porto 17 . Nesse momento, o tráfico <strong>de</strong> embarcações na Baía<br />
<strong>de</strong> Todos os Santos era ainda maior. Muitos comerciantes ou mesmo senhores <strong>de</strong> engenho<br />
negociavam diretamente com capitães <strong>de</strong> navio e representantes europeus sobre o preço e a<br />
forma <strong>de</strong> pagamento da mercadoria.<br />
Após ser encaixotado, o açúcar seria transportado para os navios <strong>no</strong>s quais seria<br />
encaminhado até os portos europeus. O fumo <strong>de</strong> corda seguia também nessas embarcações pois<br />
era amplamente consumido pela população da Europa e África na época. O hábito <strong>de</strong> mascar era<br />
ainda muito comum e não havia sido suplantado pelo <strong>de</strong> fumar.<br />
A preocupação com a vistoria pela qual <strong>de</strong>via passar todas as naus que aportassem em<br />
Salvador transformava-se em imperativo para a manutenção <strong>de</strong> um eficiente fluxo <strong>de</strong> produtos<br />
<strong>de</strong>sse porto para o <strong>de</strong> Lisboa. Evi<strong>de</strong>nciando essa preocupação, o Regimento tem logo início com<br />
o aviso <strong>de</strong> que todas as naus que porventura aportassem ali <strong>de</strong>viam passar por vistorias para que<br />
pu<strong>de</strong>ssem prosseguir em suas viagens, sem causarem prejuízos à Real Fazenda portuguesa.<br />
Na Baía <strong>de</strong> Todos os Santos, ao lado das gran<strong>de</strong>s naus que singravam o Atlântico, <strong>no</strong><br />
intuito <strong>de</strong> alcançar a Europa ou a África, havia também as pequenas embarcações que traziam,<br />
dos mais distantes pontos do litoral baia<strong>no</strong>, gêneros <strong>de</strong> primeira necessida<strong>de</strong> que seriam<br />
consumidos pelos moradores <strong>de</strong> Salvador ou então adquiridos pelos senhores <strong>de</strong> engenho para<br />
serem levados às suas lavouras.<br />
O comércio <strong>de</strong> farinha <strong>de</strong> mandioca era, entre esses produtos inter<strong>no</strong>s, o mais <strong>de</strong>stacado.<br />
Sua importância, na dieta alimentar baiana, tornava-o imprescindível nas refeições tanto das<br />
gran<strong>de</strong>s e abastadas famílias como nas mais humil<strong>de</strong>s. Podia-se faltar tudo, me<strong>no</strong>s a farinha.<br />
Outros produtos como frutas, feijão, aipim, carne seca ou ver<strong>de</strong>, frutos do mar, pescados, beijus,<br />
gomas, temperos eram também conduzidos pelas pequenas embarcações, sua oferta, porém, não<br />
era regular 18 .<br />
Era, portanto, intenso o tráfego <strong>de</strong> pessoas e mercadorias que constantemente se<br />
<strong>de</strong>slocavam para as imediações da capital baiana. O centro da cida<strong>de</strong>, seu mercado e celeiro<br />
público fervilhavam <strong>de</strong> pessoas comprando e ven<strong>de</strong>ndo produtos. O celeiro público era o local<br />
para on<strong>de</strong> era direcionado a maior parte dos produtos que seriam posteriormente vendidos na<br />
cida<strong>de</strong> da Bahia.<br />
17 VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia <strong>no</strong> século XVIII. Salvador: Itapuã, 1969. Vol. 1. (coleção baiana).<br />
18 BARICKMAN, Bert Ju<strong>de</strong>. Um Contra-ponto baiana: açúcar, fumo, mandioca e escravidão <strong>no</strong> Recôncavo, 1780 – 1860.<br />
Tradução <strong>de</strong> Maria Luiza X. <strong>de</strong> A. Borges. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Título original: A Bahian<br />
Counterpoint: Sugar, Tobacco, Cassava and Slavery in the Recôncavo, 1780 – 1860.<br />
67
Um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>dores tinha nesse espaço seu local <strong>de</strong> trabalho e <strong>de</strong> ganho. O<br />
cenário que se vislumbra nesse quadro é o <strong>de</strong> um amplo leque <strong>de</strong> negociantes, ven<strong>de</strong>dores e<br />
consumidores que tinham <strong>no</strong> comércio <strong>de</strong> mercadorias sua fonte <strong>de</strong> ganho. Isso era ainda<br />
contribuído pela aquisição feita pelo provedor-mor <strong>de</strong> mercadorias e mantimentos que seriam<br />
utilizados pelos navios em suas viagens <strong>de</strong> retor<strong>no</strong>. Vinho, farinha, carne, frutas, bolachas,<br />
cachaça e vários outros alimentos eram adquiridos por esse funcionário régio para abastecimento,<br />
ou reabastecimento para as naus que estivessem em escala, dos comboios que se dirigiam para<br />
as diversas partes do Império português.<br />
A socieda<strong>de</strong> baiana fazia parte <strong>de</strong> um leque social amplo, que englobava os muitos<br />
domínios lusita<strong>no</strong>s pelo globo. A existência <strong>de</strong> diversos territórios dominados por Portugal na<br />
África e na Ásia, além da América, permitia o fluxo constante <strong>de</strong> diversas pessoas. A socieda<strong>de</strong><br />
baiana (e brasileira) <strong>de</strong>sse período estava em permanente contato com povos <strong>de</strong> outras regiões.<br />
A América portuguesa tinha sua dinâmica exercitada pelo contato entre povos das mais diferentes<br />
culturas. Globalização, como se po<strong>de</strong> perceber, não é um fenôme<strong>no</strong> tão recente assim.<br />
Des<strong>de</strong> o final do século <strong>de</strong>zesseis, que o gover<strong>no</strong> português tentava melhorar seu sistema<br />
<strong>de</strong> controle e <strong>de</strong> arrecadação junto a essas áreas. Para isso, foi criada em 1640 a Companhia <strong>de</strong><br />
Comércio <strong>no</strong>s mol<strong>de</strong>s das que existiam na Holanda e na Inglaterra.<br />
Diferente da Holanda, on<strong>de</strong> essas empresas gozavam <strong>de</strong> muita liberda<strong>de</strong>, em Portugal o<br />
controle do Estado era predominante, contrariamente ao que ocorria em outras regiões. Tendo<br />
possuído uma flexibilida<strong>de</strong> na auto<strong>no</strong>mia <strong>de</strong> seus domínios até o século XVII, fruto da<br />
impossibilida<strong>de</strong> em se fiscalizar todos os seus territórios ultramari<strong>no</strong>s, o gover<strong>no</strong> português iniciou<br />
<strong>no</strong>s setecentos uma tentativa <strong>de</strong> maior centralização administrativa. Isso seria recru<strong>de</strong>scido<br />
principalmente durante o reinado <strong>de</strong> D. José I e seu ministro Pombal. Influenciados pelas idéias<br />
iluministas, a administração do Rei<strong>no</strong> sofreu algumas alterações. Houve maior tentativa <strong>de</strong><br />
controle e centralização das ativida<strong>de</strong>s envolvendo as colônias. O receio que as idéias liberais <strong>de</strong><br />
então influenciassem os colo<strong>no</strong>s <strong>no</strong> intuito <strong>de</strong> separação, aliado aos movimentos nas treze<br />
colônias inglesas e as revoltas escravas que aconteciam na América, fez com que aumentassem<br />
a fiscalização e a repressão lusitanas. A publicação <strong>de</strong>sse <strong>no</strong>vo Regimento melhor a<strong>de</strong>quado a<br />
esses <strong>no</strong>vos tempos po<strong>de</strong> ser assim entendida 19 .<br />
As frotas e comboios que interligavam o rei<strong>no</strong> aos seus outros portos, <strong>de</strong>viam passar por<br />
intensa fiscalização possuindo também toda uma <strong>no</strong>rma <strong>de</strong> regimentos que <strong>de</strong>veriam ser<br />
seguidos. As frotas do Rei<strong>no</strong> e as da Índia eram duas das mais significativas envolvendo Portugal<br />
19 HESPANHA, António Manuel <strong>de</strong>. A Constituição do Império Português. Revisão <strong>de</strong> alguns enviensamentos<br />
correntes. In. In. FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVEIA, Maria <strong>de</strong> Fátima Silva (orgs.). O<br />
Antigo Regime <strong>no</strong>s Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI – XVIII). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização<br />
Brasileira, 2001. P. 163 – 189.<br />
68
e os portos do Brasil. A primeira, porém, era a mais visada <strong>no</strong> controle, pois, <strong>de</strong> acordo com as<br />
leis portuguesas, os navios vindos da Índia não podiam comercializar com o Brasil. Isso, <strong>no</strong><br />
entanto jamais foi seguido 20 . Para esses dois comboios, o <strong>de</strong>talhamento das funções do provedor<br />
é um elemento que segue à risca a burocracia portuguesa. Todos os passos para fiscalização dos<br />
navios são apontados. Dava-se pouca margem à atuação individual dos responsáveis para essa<br />
função. O modo como <strong>de</strong>via ser chamado cada marinheiro “com a letra do alfabeto que seguir<br />
com a última que lhe tiver parado (REGIMENTO, 1752, p. 1)” indica a precisão que se esperava<br />
fosse seguida pelo provedor e seus assessores.<br />
O contato entre as naus, a arrecadação e manutenção do mo<strong>no</strong>pólio régio, era função do<br />
provedor-mor. Essa ativida<strong>de</strong> foi instituída na Colônia, ainda durante o século XVI. A ele cabia a<br />
verificação e o controle <strong>de</strong> todos os navios que aportassem em Salvador, bem como outras<br />
funções que serão examinadas a seguir. A função do Provedor enquadrava-se na manutenção,<br />
por parte <strong>de</strong> Portugal, <strong>de</strong> um rígido enquadramento da socieda<strong>de</strong> e eco<strong>no</strong>mia <strong>de</strong>ntro dos<br />
parâmetros políticos e culturais <strong>de</strong>terminados pela Metrópole. Afinal: “durante os três séculos <strong>de</strong><br />
existência do Brasil como colônia portuguesa, todos os assuntos econômicos, políticos,<br />
administrativos e sociais eram enviados para Lisboa e era lá que todas as <strong>de</strong>cisões concernentes<br />
ao Brasil eram tomadas 21 ”.<br />
As <strong>de</strong>terminações iniciais do Regimento falam sobre a entrada <strong>de</strong> navios na baía <strong>de</strong><br />
Salvador e as providências que <strong>de</strong>veriam ser tomadas pelo provedor-mor. Os navios que<br />
aportassem seriam imediatamente averiguados por ele e por um séqüito composto do capitão <strong>de</strong><br />
mar e <strong>de</strong> guerra, capitães tenentes e <strong>de</strong> infantaria e mais oficiais. Esses acompanhantes eram<br />
necessários para que se passasse em mostra a guarnição daquela embarcação. Além disso,<br />
esses indivíduos simbolizavam, com seus cargos e funções, a própria figura do rei <strong>de</strong> Portugal e<br />
sua presença naquele ponto distante <strong>de</strong> seu Império.<br />
O caráter militar, evi<strong>de</strong>nciado nesse início <strong>de</strong> regimento, po<strong>de</strong> ser entendido como uma<br />
preocupação quanto às tentativas <strong>de</strong> invasão do território por piratas e/ou povos consi<strong>de</strong>rados<br />
inimigos do Rei<strong>no</strong>. Nesse contexto, a ida do provedor, la<strong>de</strong>ado <strong>de</strong>ssas figuras representativas do<br />
po<strong>de</strong>rio militar português, é extremamente significativa. A presença dos oficiais servia para<br />
re<strong>no</strong>var nesses súditos, que se encontravam distantes <strong>de</strong> Portugal, os laços <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência e<br />
subserviência.<br />
20 MONTEIRO, Nu<strong>no</strong> Gonçalo F. Trajetórias sociais e gover<strong>no</strong> das conquistas: Notas preliminares sobre os vice-reis e<br />
governadores-gerais do Brasil e da Índia <strong>no</strong>s séculos XVII e XVIII. In. FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda<br />
Baptista; GOUVEIA, Maria <strong>de</strong> Fátima Silva (orgs.). O Antigo Regime <strong>no</strong>s Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa<br />
(séculos XVI – XVIII). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.<br />
21 RUSSELL-WOOD, A. J. R. Precondições e precipitantes do movimento <strong>de</strong> In<strong>de</strong>pendência da América Portuguesa. In.<br />
FURTADO, Júnia Ferreira (org.). Diálogos Oceânicos: Minas Gerais e as <strong>no</strong>vas abordagens para uma história do<br />
Império Ultramari<strong>no</strong> Português. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. P. 431.<br />
69
A verificação da guarnição do navio <strong>de</strong>via ocorrer mediante as informações fornecidas pelo<br />
escrivão da frota. A ele cabia documentar tudo que ocorresse durante o período em que durasse o<br />
empreendimento. Caso conferisse aquilo que se encontrava nas a<strong>no</strong>tações do escrivão com a<br />
guarnição encontrada, o provedor os encaminharia para terra, dando-lhes quartel, enquanto o<br />
navio ficasse <strong>no</strong> porto.<br />
O próximo passo seria o <strong>de</strong> encaminhar doentes para os hospitais. Nesse período, as<br />
enfermida<strong>de</strong>s alastravam-se junto às tripulações a bordo e podiam representar um perigo para a<br />
população resi<strong>de</strong>nte na cida<strong>de</strong>. Muitos tripulantes sofriam <strong>de</strong> doenças, como o escorbuto,<br />
disenteria, vômitos, mal-estar, <strong>de</strong>sidratação, <strong>de</strong>ntre outras. O número <strong>de</strong> mortos durante as<br />
viagens era sempre elevado, dando à profissão <strong>de</strong> marinheiro um estigma <strong>de</strong> perigo constante. Os<br />
marujos e/ou soldados que quisessem ser assistidos pelos cirurgiões ou sangradores do próprio<br />
navio po<strong>de</strong>riam ser acatados em sua vonta<strong>de</strong>.<br />
O pagamento do tratamento <strong>de</strong>veria ser efetuado pelo provedor. No entanto, esse ato <strong>de</strong><br />
bonda<strong>de</strong> por parte do representante do gover<strong>no</strong> português teria como contraparte daqueles que<br />
porventura fossem ser medicadas <strong>no</strong> hospital, as baixas <strong>de</strong> seu cargo e/ou função. Em outras<br />
palavras, aqueles que, <strong>de</strong>vido a sua saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>bilitada, fossem ser tratados em terra, per<strong>de</strong>riam o<br />
direito <strong>de</strong> continuarem ganhando seus proventos durante o período em que ali permanecessem.<br />
Posta a guarnição em terra, seria ainda necessário que o provedor-mor averiguasse como<br />
andava o estoque <strong>de</strong> munição da guarnição da nau. Isso <strong>de</strong>via ocorrer para que se evitasse que<br />
os marinheiros, apoiados pela presença <strong>de</strong> suas armas e incentivados pelo álcool ou outras<br />
situações excitantes, provocassem vandalismo ou mesmo confronto com a autorida<strong>de</strong> dos<br />
representantes do rei em terras americanas. Caso houvesse dispensa da guarnição, <strong>de</strong>vido a<br />
motivos <strong>de</strong> doenças ou mortes, precisava o provedor obter <strong>no</strong>va mão-<strong>de</strong>-obra para o navio<br />
<strong>de</strong>sembarcado. Eram muitas, <strong>de</strong>ssa forma, suas atribuições, estando esse funcionário<br />
permanentemente em ativida<strong>de</strong>. Por isso mesmo, essa função trazia <strong>no</strong> seu bojo muito po<strong>de</strong>r e<br />
status, que garantiam ao seu ocupante relevante <strong>de</strong>staque na socieda<strong>de</strong> <strong>colonial</strong>.<br />
A inspeção dos alimentos era outra necessida<strong>de</strong> nesses tempos <strong>de</strong> viagens longas e sem<br />
processos <strong>de</strong> conservação dos mantimentos, a não ser a salga. Após averiguar como estava a<br />
guarnição, <strong>de</strong>via o provedor-mor verificar qual o estado <strong>de</strong> conservação dos alimentos. Aqueles<br />
que não tivessem condições <strong>de</strong> uso e que não pu<strong>de</strong>ssem ser vendidos, <strong>de</strong>veriam ser<br />
imediatamente atirados ao mar. Resta saber se essa medida sempre foi acatada pelo provedor e<br />
pelos responsáveis pela embarcação, ou se a falta <strong>de</strong> dinheiro ou mesmo a corrupção, acabavam<br />
por <strong>de</strong>terminar a manutenção <strong>de</strong> alimentos sem qualida<strong>de</strong>, <strong>no</strong>s porões do navio. Quanto a<br />
re<strong>no</strong>vação, o texto é bem enfático quanto à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se re<strong>no</strong>var o estoque das naus <strong>de</strong><br />
comboio.<br />
70
Retirados os mantimentos da nau, <strong>de</strong>via-se provi<strong>de</strong>nciar a vinda <strong>de</strong> víveres para o retor<strong>no</strong><br />
a Portugal. A quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alimentos <strong>de</strong>via ser suficiente para os três meses e meio que durava<br />
a viagem. Após a inspeção dos mantimentos, <strong>de</strong>via ocorrer a averiguação dos materiais<br />
provenientes <strong>de</strong> outras partes do Império, como Guiné e Índia, para serem levados ao mercado <strong>de</strong><br />
Salvador. Ali seriam eles comercializados e encaminhados para outras partes da Colônia. Nesse<br />
momento, a aquisição <strong>de</strong> alimentos por parte do provedor gerava um bom impacto sobre o<br />
comércio <strong>de</strong> Salvador. A procura por alimentos impulsionava as vendas na cida<strong>de</strong>, <strong>no</strong> entanto, se<br />
isso era bom para os comerciantes, podia não ser bom para os habitantes da cida<strong>de</strong>.<br />
O problema era que havia, com muita freqüência, a falta <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados mantimentos <strong>no</strong><br />
comércio soteropolita<strong>no</strong>. A venda <strong>de</strong> carne e <strong>de</strong> farinha, dois dos alimentos mais consumidos pela<br />
população da cida<strong>de</strong>, era sempre problemática quanto à reposição do estoque. Como os locais <strong>de</strong><br />
criação <strong>de</strong> gado ficavam <strong>no</strong> sertão baia<strong>no</strong>, a vinda <strong>de</strong>sses animais para serem abatidos não era<br />
contínua. Desse modo, havia épocas em que faltava carne para a população. Quanto à farinha em<br />
tempos <strong>de</strong> seca, na Bahia ou em outra capitania, muito provavelmente aconteceria <strong>de</strong> não haver<br />
esse alimento em quantida<strong>de</strong> suficiente para todos. Procurar alimentos em época <strong>de</strong> crise na<br />
capitania podia representar um problema a mais nas atribuições do provedor.<br />
O provedor <strong>de</strong>via ainda verificar se haveria necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se dotar a embarcação <strong>de</strong><br />
peças e artefatos sobressalentes. Para isso, a informação <strong>de</strong>via partir do capitão do navio, o qual<br />
se certificaria com uma pessoa <strong>de</strong> “maior confiança e inteligência e com todos os segredos dos<br />
preços (REGIMENTO, 1752, p. 5)”. Essa figura provavelmente <strong>de</strong>veria ser um mercador ou<br />
funcionário régio, entrosado com o comércio local. Po<strong>de</strong>mos raciocinar que esse indivíduo po<strong>de</strong>ria<br />
possuir relações mercantis ou políticas com comerciantes locais, os quais po<strong>de</strong>riam pagar-lhe<br />
pelo privilégio <strong>de</strong> suas informações e para serem por ele indicados. A preocupação do regimento<br />
aqui é sempre com o preço a ser comprado, <strong>de</strong>vendo ele “ser o mais cômodo a minha fazenda<br />
(I<strong>de</strong>m.p.5)”. Todo esse processo <strong>de</strong> consulta e aquisição <strong>de</strong> mercadorias passava também pelo<br />
crivo do almoxarife, o qual tinha a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> controlar os gastos na aquisição <strong>de</strong> <strong>no</strong>vas<br />
mercadorias.<br />
O pagamento <strong>de</strong> uma mercadoria era encaminhado pelo almoxarife para o provedor, o<br />
qual repassava a soma para o tesoureiro, que encaminhava para a assinatura do vice-rei, que<br />
repassava ao capitão, o qual obtinha um recibo com o escrivão do navio. Nada me<strong>no</strong>s do que seis<br />
pessoas eram necessárias para que a mercadoria fosse adquirida e paga.<br />
Adquiridas as mercadorias para reposição, era necessário verificar se havia necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> concerto ou reforma em algumas das naus. Para isso, seriam necessárias as presenças do<br />
Vice-rei e do capitão-general, os quais dariam or<strong>de</strong>m ao patrão-mor e mestre da ribeira em<br />
presença do capitão <strong>de</strong> mar e <strong>de</strong> guerra e <strong>de</strong> oficiais. Seriam essas pessoas responsáveis <strong>de</strong>pois<br />
71
pela assinatura <strong>de</strong> um termo <strong>de</strong> <strong>de</strong>claração em que se atestasse a veracida<strong>de</strong> das informações e<br />
a necessida<strong>de</strong> em serem feitas as benfeitorias <strong>no</strong> navio.<br />
Feito isso, e sendo preciso efetuar melhorias, <strong>de</strong>via o provedor encaminhar uma licitação<br />
para que as pessoas, responsáveis por esses ofícios, se dirigissem até o local do porto. Ali, diante<br />
dos Evangelhos, e jurando por eles, <strong>de</strong>viam apresentar o preço que seria cobrado pela obra que o<br />
navio requeresse. Eram muitos aqueles que podiam participar dos trabalhos: ferreiro, funileiro,<br />
vidraceiro, pintor, carpinteiro <strong>de</strong> “obra branca”, esparteiro (responsável pelo tecido usado nas<br />
velas do navio) e fundidor <strong>de</strong> cobre eram alguns dos envolvidos <strong>no</strong> processo <strong>de</strong> recuperação das<br />
naus. Todos esses trabalhos <strong>de</strong>veriam ser feitos ao me<strong>no</strong>r custo possível.<br />
As obras que pu<strong>de</strong>ssem ser realizadas pelos trabalhadores artesãos do próprio navio<br />
<strong>de</strong>veriam ser assim efetuadas. Nesse caso, ficava o provedor dispensado do pagamento a essas<br />
pessoas, pois elas já recebiam o soldo por estarem <strong>no</strong> navio. As ma<strong>de</strong>iras necessárias ao<br />
concerto do navio <strong>de</strong>viam ser adquiridas nas mesmas condições em que ocorreu a compra dos<br />
mantimentos. O Regimento não estabelece, <strong>no</strong> entanto, o tipo ou o local <strong>de</strong> on<strong>de</strong> <strong>de</strong>veria vir esse<br />
material. Provavelmente ficava a cargo do provedor e seus auxiliares, tendo com base <strong>no</strong>rmas<br />
anteriormente elaboradas pelo gover<strong>no</strong> português, para efetuar a localização <strong>de</strong>ssa ma<strong>de</strong>ira. É<br />
provável que esta viesse <strong>de</strong> Ilhéus, tendo em vista que Vilhena aponta em sua obra que “o<br />
comércio [...] consiste na importação <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira da comarca <strong>de</strong> Ilhéus [...].” 22<br />
Enquanto eram efetuadas as reparações <strong>no</strong>s navios, cabia ao provedor realizar o<br />
pagamento aos marujos e oficiais. Salários, soldos e vantagens <strong>de</strong>viam ser pagos em<br />
conformida<strong>de</strong> com aquilo que comumente se recebia <strong>no</strong> Brasil. Aqueles que estivessem <strong>no</strong><br />
hospital recebiam seus soldos, inclusive os atrasados, todos os outros tripulantes também. Quanto<br />
aos oficiais e aos responsáveis pela guarnição, <strong>de</strong>veriam receber seu soldo, até o que estivesse<br />
atrasado. O capitão tinha direito aos salários e soldos. No retor<strong>no</strong>, tinha ele direito <strong>de</strong> receber três<br />
meses <strong>de</strong> salário adiantado e mais dois <strong>de</strong> soldo. Era necessário, <strong>no</strong> entanto, que todos<br />
estivessem a bordo do navio.<br />
O pagamento seria feito também àqueles que prestassem todo e qualquer tipo <strong>de</strong> serviço<br />
ao navio, enquanto perdurasse seu conserto e serviços <strong>no</strong> porto. Esses serviços <strong>de</strong>veriam ser<br />
feitos <strong>no</strong> me<strong>no</strong>r tempo possível, <strong>de</strong> modo que o navio estivesse apto a retornar logo. Essa<br />
necessida<strong>de</strong> se fazia sentir pelo fato <strong>de</strong> o Rei<strong>no</strong> não dispor <strong>de</strong> uma marinha mercante ampla.<br />
Além disso, o tempo que se permanecia parado <strong>no</strong> porto retirava do erário régio seu mais lucrativo<br />
meio <strong>de</strong> comércio.<br />
22 22 VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia <strong>no</strong> século XVIII. Salvador: Itapuã, 1969. Vol. 1. (coleção baiana). P. 58.<br />
72
Todas essas <strong>de</strong>spesas <strong>de</strong>veriam ser sumariamente a<strong>no</strong>tadas em ca<strong>de</strong>r<strong>no</strong>s os quais<br />
posteriormente <strong>de</strong>veriam ser publicados. Esses papéis <strong>de</strong>veriam ser enviados para Portugal, on<strong>de</strong><br />
seriam feitas as averiguações para análise contábil dos gastos efetuados pelo provedor,<br />
almoxarife e tesoureiro. Essa prática tentava evitar corrupção e <strong>de</strong>svio <strong>de</strong> verba por parte dos<br />
funcionários régios. Ao mesmo tempo, <strong>de</strong><strong>no</strong>ta a vigilância do gover<strong>no</strong> português em sua tentativa<br />
<strong>de</strong> aumentar a fiscalização e a manutenção do Brasil como colônia vinculada à Portugal.<br />
Até aqui se tem falado sobre a forma como os navios <strong>de</strong> comboio, que partiam do Brasil<br />
para Portugal, <strong>de</strong>veriam ser inspecionados e abastecidos pelo provedor-mor daquele período.<br />
Porém, não se po<strong>de</strong> esquecer que o sistema transatlântico português englobava diversas regiões<br />
<strong>de</strong> três continentes. Muitos eram também os navios provenientes <strong>de</strong> outras regiões do Império,<br />
em direção ao Rei<strong>no</strong>, ou simplesmente navios e comboios que iam <strong>de</strong> uma colônia portuguesa na<br />
Ásia ou África para a América, sem intercurso com a Europa lusitana. Pela cida<strong>de</strong> da Bahia era<br />
ainda encaminhado, nas naus do comboio da Índia, o pau brasil que houvesse sido cortado na<br />
capitania <strong>de</strong> Pernambuco e que <strong>de</strong>via ser inspecionado por aqueles que tivessem conhecimento<br />
suficiente para avaliar se o carregamento possuía ou não boa qualida<strong>de</strong>. Essa re<strong>de</strong>, envolvendo<br />
vários pontos do Império, dotava as áreas <strong>de</strong> portos, como é o caso <strong>de</strong> Salvador, <strong>de</strong> um peso<br />
importante <strong>no</strong> sistema <strong>de</strong> manutenção do po<strong>de</strong>rio luso em suas colônias.<br />
É nesse contexto que precisamos diferenciar naus <strong>de</strong> comboio das naus das Índias. As<br />
primeiras tinham como <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> o comércio envolvendo diretamente a Colônia com o rei<strong>no</strong><br />
português. As segundas, <strong>no</strong> entanto, tinham <strong>no</strong> comércio com as Índias seu objetivo principal.<br />
Como se tratava <strong>de</strong> uma travessia maior, e por isso mesmo mais arriscada, tinham esses navios a<br />
necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> serem atendidos <strong>no</strong>s principais portos lusita<strong>no</strong>s. Apesar disso, e da importância<br />
comercial e cultural dos navios da Carreira das Índias, nem sempre eram esses navios<br />
supervisionados e providos com suas necessida<strong>de</strong>s para a travessia do Atlântico.<br />
Foi por esse motivo que o Regimento do provedor-mor, apesar <strong>de</strong> se direcionar aos navios<br />
dos comboios envolvendo a América com o rei<strong>no</strong> <strong>de</strong> Portugal, tratou também <strong>de</strong>, em suas últimas<br />
páginas, estabelecer os critérios que os provedores <strong>de</strong>veriam seguir, quando houvesse a chegada<br />
<strong>de</strong> uma nau das Carreiras das Índias <strong>no</strong> porto <strong>de</strong> Salvador. Ao assim proce<strong>de</strong>r, o gover<strong>no</strong><br />
português legalizava a vigilância sobre uma rota que até aquele momento havia sido<br />
negligenciada pelas autorida<strong>de</strong>s, fato que acontecia por ser proibido para os comboios que<br />
saíssem da Índia o atracamento <strong>no</strong> Brasil. O tempo mostrou que essa medida não havia dado<br />
muito resultado e que seria melhor legalizar a vistoria com o intuito <strong>de</strong> se coibir os contrabandos.<br />
A inexistência <strong>de</strong> um regimento sobre <strong>de</strong>spesas e costeamento das naus das Índias era<br />
utilizada como <strong>de</strong>sculpa pelos provedores e pessoas responsáveis para não prestarem os<br />
serviços <strong>de</strong> auxílio e reparações aos marinheiros e navios <strong>de</strong>sse percurso. Desse modo, a<br />
73
urocracia portuguesa servia como um impedimento ao bom caminhar da empresa mercantil.<br />
Com essas informações adicionadas ao Regimento, tentava a administração lusitana sanar mais<br />
essa <strong>de</strong>ficiência, possibilitando melhor tributação e fiscalização das naus.<br />
Com informações mais simplificadas, porém <strong>de</strong>talhadas, essa segunda parte tem início<br />
com a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>, assim que entre um navio da Carreira das Índias na Baía <strong>de</strong> Todos os Santos, o<br />
capitão da Ribeira embarcaria <strong>no</strong> navio cuidando para que ele fosse bem atracado, evitando que<br />
saíssem quaisquer pessoas antes das vistorias anteriormente citadas. Para essa tarefa, <strong>de</strong>veria<br />
ele contar com a presença <strong>de</strong> dois guardas que seriam responsáveis por impedir o afastamento<br />
<strong>de</strong> qualquer integrante do navio. Esses guardas <strong>de</strong>veriam permanecer à <strong>no</strong>ite para que não se<br />
fizesse contrabando com as mercadorias vindas da Índia. Dada a preocupação do Regimento com<br />
essa recomendação, po<strong>de</strong>-se inferir que essa prática seria recorrente.<br />
O contrabando <strong>de</strong> mercadorias é nessa parte a preocupação mais latente. Para que se<br />
evitasse esse tipo <strong>de</strong> coisa, as recomendações em relação aos navios que chegassem da Ásia<br />
são muito mais recorrentes que na parte em que se prescreviam as recomendações sobre os<br />
comboios para o Rei<strong>no</strong>. Vigilância constante, aliada às or<strong>de</strong>nanças <strong>de</strong> se dirigir toda a fazenda<br />
para os armazéns régios, era um dos mecanismos utilizados para inibir essa prática. Até mesmo<br />
os capitães e oficiais eram obrigados a permanecerem <strong>no</strong> navio, ainda que a nau estivesse<br />
passando por reparos, para se evitar que fossem “cada um cuidar em os seus negócios<br />
particulares sem <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> meu real serviço” (REGIMENTO, 1752, p. 17).<br />
A contratação <strong>de</strong> pessoal para as reparações que porventura os navios viessem precisar<br />
<strong>de</strong>veria acontecer privilegiando-se pessoas que não “apenas assistam ao trabalho” mas que<br />
possam efetivamente trabalhar na obra, <strong>de</strong>vendo o provedor-mor suspen<strong>de</strong>r do contrato todo<br />
aquele que não fizer jus ao pagamento estipulado (I<strong>de</strong>m, 1752, p. 18).<br />
Além das melhorias <strong>de</strong>vidas, essa parte do Regimento toca <strong>de</strong> modo mais <strong>de</strong>morado <strong>no</strong>s<br />
consertos que seriam necessários nas enxárcias, isto é, <strong>no</strong>s cabos que sustentam os mastros e<br />
os mastaréus do navio. Essa operação <strong>de</strong>via transcorrer sob os olhares atentos do almoxarife,<br />
patrão-mor e apontador da Ribeira, os quais tinham que garantir que os materiais não fossem<br />
<strong>de</strong>scartados, em benefícios dos comerciantes locais, representando prejuízos para a fazenda real.<br />
Esses serviços <strong>de</strong>viam ficar a cargo dos marinheiros e grumetes, porém o Regimento<br />
ressalva que cada um trabalhe <strong>no</strong> seu posto específico, recebendo seu soldo semanal. O soldo<br />
dos marinheiros e grumetes se compunha respectivamente, <strong>de</strong> cento e sessenta réis para os<br />
primeiros e sessenta réis para os segundos.<br />
Todos essa tarefas <strong>de</strong>viam ser realizadas <strong>no</strong> me<strong>no</strong>r espaço <strong>de</strong> tempo possível. A<br />
preocupação com <strong>de</strong>moras acentuadas <strong>no</strong> conserto dos navios é constantemente reafirmada <strong>no</strong><br />
Regimento. Não se <strong>de</strong>via sob nenhuma hipótese haver <strong>de</strong>moras quanto aos reparos. Cabia ao<br />
74
provedor ir “ao mar ou a Ribeira os mais vezes que for possível” procurando sempre cuidar para<br />
que as naus não ficassem sem os mantimentos necessários po<strong>de</strong>ndo partir tão logo fossem<br />
concertadas (Ib<strong>de</strong>m, 1752, p. 21).<br />
O Regimento também esclarece a distinção que o provedor <strong>de</strong>via começar a observar, a<br />
partir daquela data, <strong>no</strong> que se refere ao pagamento dos soldos dos marinheiros, grumetes e<br />
<strong>de</strong>mais participantes da tripulação dos navios da Carreira das Índias. Nessas embarcações, o<br />
soldo seria superior ao pago às naus provenientes <strong>de</strong> Portugal, por se enten<strong>de</strong>r ser este um<br />
percurso me<strong>no</strong>r que o vivenciado pela frota proveniente da Ásia. Um mês <strong>de</strong> soldo adiantado seria<br />
o principal diferencial para esses marinheiros.<br />
Quanto ao vinho embarcado, <strong>de</strong>veria o provedor-mor estar ciente <strong>de</strong> que este viesse em<br />
conformida<strong>de</strong> com a necessida<strong>de</strong> das embarcações e que se utilizasse para provimento aqueles<br />
que, porventura, tivessem sobrado do comboio do Rei<strong>no</strong> para provisão das naus da Índia.<br />
Todas essas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>viam ser registradas <strong>no</strong>s livros <strong>de</strong> receita e <strong>de</strong>spesa do<br />
Tesoureiro Geral, almoxarife nas partes <strong>de</strong> materiais, mantimentos e munições. Após terem sido<br />
<strong>de</strong>scritas todas as receitas e <strong>de</strong>spesas, <strong>de</strong>via o provedor proce<strong>de</strong>r à rubrica <strong>de</strong> todas as páginas<br />
<strong>no</strong> que dava autenticação às informações ali <strong>de</strong>scritas.<br />
As especificações da função do provedor-mor dão-<strong>no</strong>s uma idéia <strong>de</strong> como a administração<br />
lusitana fez para gerenciar seus quadros. As necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um extenso império, sem maiores<br />
ligações que não aquelas vitais para se evitar a perda territorial, produziram uma administração<br />
voltada para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma lavoura lucrativa e calcada na vigilância constante.<br />
Tentativas <strong>de</strong> separação emergiram <strong>no</strong> <strong>mundo</strong> america<strong>no</strong> a partir da difusão <strong>de</strong> <strong>no</strong>vos i<strong>de</strong>ais, em<br />
especial o Iluminismo e o liberalismo. O crescimento econômico das colônias e seu comércio com<br />
outras regiões, muitas vezes sem o aval da Metrópole, possibilitaram maior auto<strong>no</strong>mia por parte<br />
das elites coloniais <strong>no</strong> tocante à direção que essas regiões <strong>de</strong>viam seguir. Choque envolvendo<br />
esses grupos, bem como as pressões internas feitas por cada população nativa foram tornando<br />
inviável a manutenção dos antigos impérios na América.<br />
O <strong>de</strong>senvolvimento da socieda<strong>de</strong> e eco<strong>no</strong>mia <strong>no</strong> <strong>mundo</strong> luso-america<strong>no</strong> <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou<br />
necessida<strong>de</strong>s constantes <strong>de</strong> readaptações da burocracia e gover<strong>no</strong> português na América. As<br />
iniciativas <strong>de</strong>senvolvidas pelo Conselho Ultramari<strong>no</strong> e <strong>de</strong>mais órgãos responsáveis pela vigilância<br />
e administração dos domínios <strong>de</strong> Portugal <strong>no</strong>s outros continentes, são elementos salutares para<br />
se ampliar o entendimento <strong>de</strong> como a socieda<strong>de</strong> brasileira foi gestada durante o domínio lusita<strong>no</strong><br />
sobre o território america<strong>no</strong>. O pedido constantemente refeito <strong>no</strong> Regimento <strong>de</strong> que o Provedor<br />
observasse as <strong>no</strong>rmas ali <strong>de</strong>scritas e a seguisse <strong>no</strong>s remetem à tentativa por parte do gover<strong>no</strong><br />
metropolita<strong>no</strong> <strong>de</strong> se fazer seguido e obe<strong>de</strong>cido em suas possessões ultramarinas.<br />
75
As mudanças ocorridas <strong>no</strong> controle que Portugal dispensou às suas possessões<br />
ultramarinas po<strong>de</strong>m ser melhor entendidas com a análise <strong>de</strong> um instrumento administrativo como<br />
o Regimento. Suas indicações <strong>de</strong> funções e <strong>de</strong> tarefas <strong>de</strong><strong>no</strong>tam a extrema e complicada re<strong>de</strong><br />
burocrática efetuada pelo gover<strong>no</strong> lusita<strong>no</strong> para melhor gerir seus domínios. Suas implicações, em<br />
tarefas e ativida<strong>de</strong>s feitas pelo provedor e <strong>de</strong>mais auxiliares, estabelecem ligações sobre os<br />
mecanismo <strong>de</strong> controle e o modo como eles eram efetuados <strong>no</strong> Brasil na meta<strong>de</strong> final do século<br />
XVIII.<br />
As funções do provedor-mor, <strong>no</strong>s quadros da administração portuguesa <strong>no</strong> Novo Mundo,<br />
realçam a compreensão <strong>de</strong> uma história dinâmica e complexa, em que diversos objetivos e<br />
necessida<strong>de</strong>s se encontraram, construindo assim a história brasileira. Dessas diversas teias <strong>de</strong><br />
relações sociais e or<strong>de</strong>namentos políticos, emergem um melhor entendimento da dinâmica <strong>de</strong><br />
dominação portuguesa e seus mecanismo <strong>de</strong> manutenção do po<strong>de</strong>rio militar e administrativo<br />
sobre sua mais rica colônia.<br />
O controle do Império Marítimo Português foi possuidor <strong>de</strong> muitas nuances e<br />
<strong>de</strong>talhamentos, e nem sempre é possível compreendê-lo à luz <strong>de</strong> simplificações conceituais e/ou<br />
teóricas. As pesquisas e <strong>no</strong>vas indagações <strong>de</strong>verão melhorar <strong>no</strong>sso entendimento sobre o <strong>mundo</strong><br />
<strong>colonial</strong>, ampliando assim, o conhecimento existente sobre a construção <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssa história.<br />
Charles Nascimento <strong>de</strong> Sá é Professor do curso <strong>de</strong> História da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Tec<strong>no</strong>logia e Ciências <strong>de</strong> Itabuna e da Faculda<strong>de</strong> Santo Agostinho.<br />
76
CRISTÃOS PRETOS NO MUNDO COLONIAL: IRMANDADES DE<br />
ESCRAVOS E FORROS EM MINAS GERAIS – SÉCULO XVIII<br />
Resumo:<br />
Seguindo a tradição portuguesa, advinda da<br />
época medieval, <strong>de</strong> estabelecer confrarias<br />
<strong>de</strong>dicadas a santos católicos, os <strong>escravos</strong> e<br />
forros na Colônia também se reuniram nessas<br />
congregações sob a égi<strong>de</strong> da <strong>de</strong>voção e da<br />
carida<strong>de</strong>. Neste texto buscaremos mostrar que a<br />
relação das <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> “homens <strong>pretos</strong>” <strong>de</strong><br />
Minas Gerais com o “<strong>mundo</strong> branco” nem sempre<br />
era pacífica – havia conflitos que envolviam<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> <strong>de</strong>sacordos com os párocos até a luta pela<br />
liberda<strong>de</strong> dos irmãos cativos –, embora pu<strong>de</strong>sse<br />
em certos momentos, envolver algum tipo <strong>de</strong><br />
cooperação.<br />
Palavras-chave:<br />
Escravidão; Irmanda<strong>de</strong>s negras; Minas Colonial.<br />
Ana Paula dos Santos Rangel<br />
Abstract:<br />
In Colonial Minas Gerais the slaves and the<br />
freedmen organized congregations <strong>de</strong>voted for<br />
catholic saints, in conformity with the Portuguese<br />
tradition, came from the medieval period. In this<br />
article we will try to show that the relations<br />
between the black brotherhoods and the “white<br />
society” inclu<strong>de</strong>d conflicts, but involved also some<br />
cooperation.<br />
Key words:<br />
Slavery; Black brotherhoods; Minas Colonial.<br />
Seguindo a tradição portuguesa, advinda da época medieval, <strong>de</strong> estabelecer confrarias<br />
<strong>de</strong>dicadas a santos católicos, os <strong>escravos</strong> e forros na Colônia também se reuniram nessas<br />
congregações sob a égi<strong>de</strong> da <strong>de</strong>voção e da carida<strong>de</strong>. Na verda<strong>de</strong> o espaço <strong>colonial</strong> abrigou<br />
também <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> brancos. Aliás, as confrarias marcavam as divisões sociais presentes ali.<br />
Os <strong>escravos</strong> africa<strong>no</strong>s se reuniam nas <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong>dicadas a Nossa Senhora do Rosário, a<br />
Santa Efigênia, a Santo Elesbão e a São Benedito; os crioulos na <strong>de</strong> Nossa Senhora das Mercês;<br />
os pardos prestavam <strong>de</strong>voção a São Gonçalo Garcia; os brancos se reuniam nas <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> do<br />
Santíssimo Sacramento (formada por membros da elite), na <strong>de</strong> São Miguel e Almas, na <strong>de</strong> Nossa<br />
Senhora da Conceição, na <strong>de</strong> Bom Jesus dos Passos e na <strong>de</strong> Almas Santas 1 .<br />
Veremos neste artigo que a relações das <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> “homens <strong>pretos</strong>” com o “<strong>mundo</strong><br />
branco” nem sempre era pacífica, embora pu<strong>de</strong>sse em certos momentos, envolver algum tipo <strong>de</strong><br />
cooperação. Os conflitos envolviam <strong>de</strong>s<strong>de</strong> <strong>de</strong>sacordos com os párocos até a luta pela liberda<strong>de</strong><br />
dos irmãos cativos. A análise <strong>de</strong> alguns documentos relativos às <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> negros e pardos<br />
selecionados da Documentação Avulsa do Arquivo Histórico Ultramari<strong>no</strong>, relativa a Minas Gerais<br />
<strong>no</strong>s elucidará mais um pouco sobre esta forma <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> escrava costurada pela religião.<br />
1 BORGES, Célia Maia. Escravos e libertos nas Irmanda<strong>de</strong>s do Rosário: <strong>de</strong>voção e solidarieda<strong>de</strong> em Minas Gerais:<br />
séculos XVIII e XIX. Juiz <strong>de</strong> Fora: Editora da UFJF, 2005, p. 59.<br />
<strong>77</strong>
1. EM BUSCA DE AUTONOMIA: CONFLITOS COM O MUNDO BRANCO<br />
As <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong>, não somente as <strong>de</strong> <strong>pretos</strong> e pardos, estiveram em meio ao conflito entre o<br />
po<strong>de</strong>r temporal e o espiritual <strong>no</strong> que diz respeito ao controle sobre elas. Foram muitas as disputas<br />
entre a Coroa e a Igreja quanto à administração dos bens das confrarias. Segundo Caio Boschi: a<br />
Coroa não transigiu em sua jurisdição e em seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> interveniência <strong>no</strong>s assuntos religiosos<br />
(…) as <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> estiveram sob a tutela do Estado 2 . Entretanto, conforme Célia Borges: a Igreja<br />
tudo fez para não ser ultrapassada 3 . Tal cenário <strong>no</strong>s leva a questionar o grau <strong>de</strong> auto<strong>no</strong>mia que<br />
as <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong>, principalmente as <strong>de</strong> negros, po<strong>de</strong>riam conquistar. Neste respeito é possível<br />
i<strong>de</strong>ntificar algumas estratégias que as confrarias po<strong>de</strong>riam empregar em busca <strong>de</strong> algum nível <strong>de</strong><br />
auto<strong>no</strong>mia.<br />
A ambigüida<strong>de</strong> da lei, segundo Célia Borges, abriria brechas para que as <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> –<br />
formando re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> – enfrentassem os po<strong>de</strong>res temporal e espiritual. Como exemplo<br />
a autora cita o fato <strong>de</strong> que algumas confrarias, apoiadas na legislação, constituíram bens embora<br />
a Coroa buscasse limitar a aquisição <strong>de</strong> bens <strong>de</strong> raiz por parte <strong>de</strong>las 4 .<br />
A edificação <strong>de</strong> uma capela própria era uma das melhores formas <strong>de</strong> se alcançar certo<br />
grau <strong>de</strong> auto<strong>no</strong>mia, do contrário, os confra<strong>de</strong>s teriam que se instalar <strong>no</strong>s altares laterais das<br />
igrejas <strong>de</strong> <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> homens brancos. Assim, os irmãos se esforçavam para juntar recursos<br />
suficientes a fim <strong>de</strong> erigir um local <strong>de</strong> culto próprio. Algumas confrarias lograram alcançar tal<br />
intento. A Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nossa Senhora do Rosário <strong>de</strong> Vila Rica possuía uma capela <strong>no</strong> bairro do<br />
Caquen<strong>de</strong> que os mesmos <strong>pretos</strong> à própria custa erigiram 5 . Mais tar<strong>de</strong> os irmãos adquiriram um<br />
terre<strong>no</strong>, on<strong>de</strong> construíram a igreja que ainda hoje po<strong>de</strong> ser vista na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ouro Preto. A<br />
Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nossa Senhora do Rosário do Alto da Cruz da Freguesia da Nossa Senhora da<br />
Conceição <strong>de</strong> Antônio Dias, Vila Rica, também erigiu uma capela on<strong>de</strong> prestava culto aos santos<br />
<strong>de</strong> sua <strong>de</strong>voção. Estas representam, porém, uma mi<strong>no</strong>ria, a maior parte das <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong><br />
permaneceu sem ter um espaço próprio <strong>de</strong> reunião.<br />
Outra estratégia que po<strong>de</strong>ria ensejar um aumento na possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> as confrarias se<br />
autogerirem era a inclusão <strong>de</strong> cláusulas específicas <strong>no</strong>s compromissos 6 . Estas muitas vezes<br />
referiam-se à limitação do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> interferência do pároco <strong>no</strong>s assuntos das <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong>.<br />
Todavia, os estatutos <strong>de</strong>veriam ser aprovados pela Mesa <strong>de</strong> Consciência e Or<strong>de</strong>m em Lisboa. Por<br />
2<br />
BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Po<strong>de</strong>r: Irmanda<strong>de</strong>s Leigas e política Colonizadora em Minas Gerais. São Paulo:<br />
Editora Ática, 1986, p. 113.<br />
3<br />
BORGES, Célia. Op. Cit., p. 100.<br />
4<br />
Ibi<strong>de</strong>m, p. 101.<br />
5<br />
Representação da Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nossa Senhora do Rosário <strong>de</strong> vila Rica, 1745. Manuscritos Avulsos do Arquivo<br />
Histórico Ultramari<strong>no</strong> relativos a Minas Gerais. Microfilmados e Digitalizados – Cx. 45, Doc. 40.<br />
6<br />
BORGES, Célia. Op. Cit., p. 107.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
78
vezes, a Mesa recomendava a retirada ou alteração <strong>de</strong> alguns capítulos dos compromissos<br />
enviados, o que limitava a margem <strong>de</strong> ma<strong>no</strong>bra das confrarias. Contudo, algumas foram bem<br />
sucedidas em aprovar seus compromissos sem restrições. Isso lhes dava armas para lutarem<br />
contra as ingerências dos párocos.<br />
Uma confraria que é exemplar pelo nível <strong>de</strong> auto<strong>no</strong>mia que alcançou é a Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Nossa Senhora do Rosário do Alto da Cruz. Esta associação conseguiu reunir algumas condições<br />
que lhe garantiram certo grau <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> diante dos mecanismos <strong>de</strong> controle do Estado e,<br />
principalmente, da Igreja. Aquela irmanda<strong>de</strong> possuía, como apontado anteriormente, uma capela<br />
própria, um local <strong>de</strong> reunião on<strong>de</strong> os confra<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>riam estabelecer suas relações <strong>de</strong><br />
sociabilida<strong>de</strong> fora da supervisão dos brancos. Os irmãos do Alto da Cruz foram ainda bem<br />
sucedidos eco<strong>no</strong>micamente. O principal rendimento advinha das doações feitas aos santos <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>voção durante a semana da festivida<strong>de</strong> da confraria. Além da Senhora do Rosário, eram oragos<br />
da irmanda<strong>de</strong>: Santa Efigênia, São Benedito e Santo Antônio <strong>de</strong> Catalagerona, todos santos<br />
negros. No dia <strong>de</strong>dicado a cada um dos santos o cofre da irmanda<strong>de</strong> recebia um gran<strong>de</strong> volume<br />
<strong>de</strong> doações em dinheiro ou em jóias. O resultado <strong>de</strong> tal movimento foi que a Irmanda<strong>de</strong> do Alto da<br />
Cruz, conforme Célia Borges, teve um rendimento superior ao da po<strong>de</strong>rosa Irmanda<strong>de</strong> do<br />
Santíssimo Sacramento, composta por homens brancos 7 .<br />
Além, <strong>de</strong> ter um templo próprio e um cofre cheio a Irmanda<strong>de</strong> do Rosário do Alto da Cruz<br />
<strong>de</strong>u um outro passo fundamental em direção à auto<strong>no</strong>mia. O compromisso, redigido em 1733 sob<br />
os auspícios do capelão Bernardo Ma<strong>de</strong>ira, foi aprovado pela Mesa <strong>de</strong> Consciência em 1754 8 . O<br />
fator fundamental é que tal estatuto continha um capítulo que legava ao capelão da irmanda<strong>de</strong> a<br />
responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cuidar <strong>de</strong> todos os cultos, e que, portanto, excluía totalmente o pároco.<br />
Rezava o capítulo 15 do compromisso:<br />
Haverá hum Capellão elleyto pela Meza, que terá obrigação <strong>de</strong> dizer Missas todos os Domingos, e<br />
dias Santos pelas Almas dos Irmãos vivos e <strong>de</strong>funtos e igualmente todos os Sábados e <strong>no</strong> fim<br />
cantará a ladainha da Senhora, tendo obrigação <strong>de</strong> accompanhar sepultura todos os Irmãos que<br />
falecerem, e a confessar na Capella <strong>no</strong>s dias <strong>de</strong> jubileu, e Feztivida<strong>de</strong>s, assistindo à Meza; como<br />
Presi<strong>de</strong>nte e dando o seu voto; E também estará prompto para confessar os Irmãos e Irmãs em<br />
toda a occasião, que o procurarem na sua Capella e se em alguma ocasião for também chamado ou<br />
avisado para assistir a qualquer Irmão, ou Irmã em artigo <strong>de</strong> morte será obrigado a ir proptamente<br />
como tambem a cantar Missa <strong>no</strong>s dias em que costumam festejar a mesma Senhora e aos mais<br />
Santos, e Santas que se acham agregados à mesma Irmanda<strong>de</strong> 9 .<br />
Com base nesta cláusula os irmãos do Rosário do Alto da Cruz pu<strong>de</strong>ram por pelo me<strong>no</strong>s<br />
duas vezes recorrer ao sobera<strong>no</strong> português contra as pretensões do pároco <strong>de</strong> cantar missas<br />
7<br />
Ibi<strong>de</strong>m, pp. 93 e 94.<br />
8<br />
Ibi<strong>de</strong>m, pp. 104 e 105.<br />
9<br />
Compromisso da Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> N. Senhora do Rosário dos Pretos, <strong>de</strong><strong>no</strong>minada do Alto da Cruz, da Freguesia <strong>de</strong><br />
Nossa Senhora da Conceição <strong>de</strong> Antonio Dias <strong>de</strong> Vila Rica <strong>de</strong> Ouro Preto. Rolo 58, vol 123. Arquivo Eclesiástico <strong>de</strong> N.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
79
<strong>no</strong>s dias das festivida<strong>de</strong>s. O documento enviado ao Conselho Ultramari<strong>no</strong> em 1<strong>77</strong>7 tem um tom<br />
bastante agressivo. O pároco João Antônio Pinto arvorava-se em cantar-lhes missas nas suas<br />
festivida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>sprezo crimi<strong>no</strong>so as <strong>de</strong>terminações concedidas <strong>no</strong> capítulo 15 do seu<br />
compromisso, (…) on<strong>de</strong> expressamente lho facultam ao seu capelão 10 . Os irmãos lançam uma<br />
série <strong>de</strong> acusações contra o padre João Antônio, afirmam que:<br />
Para este horroroso atentado e absoluto procedimento achou propícia a vonta<strong>de</strong> do Ouvidor<br />
respectivo Antônio Ramos da Silva Nogueira seu parente por sangüinida<strong>de</strong> e semelhança, que<br />
<strong>de</strong>spacha, que suspen<strong>de</strong> a continuação dos cultos, quando só lhe é permitido como Juiz das<br />
Capelas o conhecimento das contas da receita e <strong>de</strong>spesa 11 .<br />
Valendo-se do seu parentesco com o Ouvidor o pároco teria conseguido a suspensão dos<br />
cultos da irmanda<strong>de</strong>. Todavia, Antônio Ramos da Silva Nogueira teria ido além <strong>de</strong> suas<br />
prerrogativas como Juiz das Capelas, levando os confra<strong>de</strong>s do Rosário a recorrerem à autorida<strong>de</strong><br />
maior do rei. Revelando conhecimento das leis eclesiásticas – o que, provavelmente, <strong>de</strong><strong>no</strong>ta uma<br />
ingerência do capelão na feitura do documento – os suplicantes <strong>de</strong>nunciam João Antônio Pinto<br />
por <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar as Bulas Pontifícias, a saber, o que fora <strong>de</strong>cidido pela Sagrada Congregação<br />
em 1703 e o Papa Clemente em 1704 e claramente nas Constituições <strong>de</strong> Benedito 14. Visto que o<br />
compromisso fora aprovado na Metrópole, o pároco estaria ainda <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rando o sobera<strong>no</strong><br />
português, primeiro Pároco <strong>de</strong> Seu Mestrado da Or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Cristo. Tal <strong>de</strong>sprezo pelas<br />
<strong>de</strong>terminações reais e eclesiásticas os irmãos atribuem à soberba e à ambição do pároco <strong>de</strong> levar<br />
pela missa cantada 4$800, das <strong>no</strong>venas 5$600, da cera 3$600, além dos Diáco<strong>no</strong>s e<br />
Sacristãos 12 .<br />
O que se percebe é que diante das disputas entre Igreja e Estado sobre a administração<br />
das <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> os confra<strong>de</strong>s podiam, por vezes, recorrer à Coroa contra a Igreja, fazendo valer<br />
neste momento o que fora <strong>de</strong>terminado pelo po<strong>de</strong>r temporal, ou seja, o estatuto da congregação.<br />
É dig<strong>no</strong> <strong>de</strong> <strong>no</strong>ta, ainda, que a hostilida<strong>de</strong> para com o pároco revelado neste requerimento<br />
está em consonância com o que foi expresso <strong>no</strong> capítulo 14 do compromisso da irmanda<strong>de</strong>. Dizia<br />
a dita cláusula:<br />
E porq’ esta Capella foy feyta a expensas da <strong>de</strong>voção, e fiéis, sem que para a sua factura, ornatos,<br />
ou guizamentos concorresse em tempo algum o Parocho <strong>de</strong>sta Freguezia; e estes costumam só<br />
<strong>de</strong>sfructalla, querendo se lhe paguem fabricas sem acompanharem os Irmãos, a e ainda sepulturas,<br />
sendo elles enterrados nesta própria Capella, sem mais zelo, e carida<strong>de</strong>, que o da sua ambição por<br />
não ser elle filial em razão <strong>de</strong> não ter concorrido a may com coisa alguma, se não pagará nada ao<br />
ditto Parocho, ou Fabrica, e será só sujeita <strong>no</strong> temporal aos Doutores Corregedores, e <strong>no</strong> Espiritual<br />
S. da Conceição <strong>de</strong> Antônio Dias, Casa dos Contos, Ouro Preto. Transcrito por Juliana Aparecida Lemos Lacet, retirado<br />
do site www.historia.uff.br/labhoi.<br />
10 Representação da Irmanda<strong>de</strong> dos Etíopes, Crioulos, Pretos Forros e Cativos <strong>de</strong> Vila Rica <strong>de</strong> Ouro Preto, 1<strong>77</strong>7.<br />
Manuscritos Avulsos do Arquivo Histórico Ultramari<strong>no</strong> relativos a Minas Gerais. Microfilmados e Digitalizados – Cx. 111,<br />
Doc. 82.<br />
11 I<strong>de</strong>m.<br />
12 I<strong>de</strong>m.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
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ao Ex.mo e R. Bispo, e ao seu Padre Capellão, o qual na mesma fará todas as ações <strong>de</strong><br />
Festivida<strong>de</strong>s, e do mais, como em caza sua própria pela concessão da ditta Irmanda<strong>de</strong>, pois tem<br />
mostrado a experiência as continuadas <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns que os Vigários fazem, e promovem tudo a<br />
benefício do seu interesse. Só não sera excluído o R Parocho da sua encomendação, como ovelhas<br />
suas particulares, sendo forros, pelos seus bens, e sendo <strong>escravos</strong> pelos seus Senhores, e da<br />
mesma forma a Cruz da Fabrica, quando sair a acompanhar qualquer Irmão por disposição sua<br />
própria sem prejuízo da Irmanda<strong>de</strong>. (grifo meu) 13<br />
Entretanto, em 1801 já não havia, pelo visto, uma gran<strong>de</strong> disposição por parte da<br />
irmanda<strong>de</strong> em atacar frontalmente o pároco. Mais uma vez a questão era em tor<strong>no</strong> das missas<br />
<strong>no</strong>s dias das festas dos santos. Os irmãos reafirmavam o capítulo 15 do compromisso, entretanto,<br />
em vez <strong>de</strong> qualquer acusação mais forte contra o padre eles alegavam <strong>de</strong>sejar viver em sossego<br />
e boa harmonia com o seu Pároco 14 . No correr do tempo, as mudanças <strong>de</strong> párocos, irmãos e<br />
capelães, provavelmente, haviam arrefecido as hostilida<strong>de</strong>s, embora não eliminassem os<br />
conflitos.<br />
Observamos, portanto, que as <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>pretos</strong> e pardos po<strong>de</strong>riam recorrer à Coroa<br />
contra a Igreja. Todavia, a Igreja também po<strong>de</strong>ria recorrer ao Estado contra as <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong>. Em<br />
1793 os Vigários Colados do Bispado <strong>de</strong> Mariana apresentaram à rainha, D Maria I, uma<br />
representação on<strong>de</strong> expunham a corrupção e <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m que grassavam nas or<strong>de</strong>ns terceiras e<br />
<strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>pretos</strong> e pardos das Minas 15 . O modo como se comportavam tais confrarias<br />
trariam, segundo os clérigos, prejuízo para a Igreja, o Estado, a Real Fazenda, o Padroado Régio<br />
e a Conservação dos Povos. Para comprovarem suas acusações os Vigários anexaram à<br />
representação <strong>de</strong>z documentos aos quais fazem referência <strong>no</strong> <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> sua argumentação.<br />
Embora a ênfase seja sobre as corporações <strong>de</strong> <strong>pretos</strong> e pardos os representantes do<br />
po<strong>de</strong>r espiritual em Minas Gerais também fazem referência às <strong>de</strong> brancos. As Or<strong>de</strong>ns Terceiras<br />
do Carmo e <strong>de</strong> São Francisco são acusadas <strong>de</strong> terem seus compromissos confirmados pelos<br />
Comissários Gerais <strong>de</strong> suas respectivas or<strong>de</strong>ns e não pelo rei, vivendo na jactância <strong>de</strong> que só<br />
estão sujeitos ao Prelado da respectiva or<strong>de</strong>m e aos Comissários Gerais. A Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Santa<br />
Efigênia e <strong>de</strong> Santos Elesbão situada <strong>no</strong> altar da capela dos Terceiros do Carmo, embora<br />
tivessem recebido <strong>no</strong>tificação da Mesa <strong>de</strong> Consciência, não havia confirmado seu compromisso<br />
nem prestado contas à Provedoria. Segundo os vigários, os Terceiros do Carmo <strong>de</strong>sejariam que,<br />
por estar na sua capela, a confraria dos <strong>pretos</strong> fosse também isenta e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. Haveria<br />
13 Compromisso da Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> N. Senhora do Rosário dos Pretos, <strong>de</strong><strong>no</strong>minada do Alto da Cruz, da Freguesia <strong>de</strong><br />
Nossa Senhora da Conceição <strong>de</strong> Antonio Dias <strong>de</strong> Vila Rica <strong>de</strong> Ouro Preto, op. cit..<br />
14 Requerimento do juiz, mesário e <strong>de</strong>mais irmãos da Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nossa senhora do Rosário do Alto da Cruz, 1801.<br />
Manuscritos Avulsos do Arquivo Histórico Ultramari<strong>no</strong> relativos a Minas Gerais. Microfilmados e Digitalizados – Cx. 157,<br />
Doc. 42.<br />
15 Representação dos Vigários Colados das igrejas paroquiais do Bispado <strong>de</strong> Mariana, 1793. Manuscritos Avulsos do<br />
Arquivo Histórico Ultramari<strong>no</strong> relativos a Minas Gerais. Microfilmados e Digitalizados – Cx. 138, Doc. 6.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
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ainda muitas outras <strong>de</strong>ssas corporações clan<strong>de</strong>stinas, como a Irmanda<strong>de</strong> do Rosário dos Pretos<br />
do Arraial da Barra. Esta além <strong>de</strong> não ter compromisso e <strong>de</strong> não prestar contas, tinha mesários<br />
perpétuos e era governada por um tesoureiro que cometia <strong>de</strong>spotismos e violências 16 .<br />
Visto que se fundavam sem a impreterível licença <strong>de</strong> V. Majesta<strong>de</strong> e não pediam para<br />
seus estatutos a confirmação régia, as confrarias <strong>de</strong>nunciadas seriam verda<strong>de</strong>iramente uns<br />
conventículos e ajuntamentos reprovados, que correm sem freio e licenciosida<strong>de</strong> e dissolução,<br />
dig<strong>no</strong>s <strong>de</strong> severo jugo ou <strong>de</strong> serem <strong>de</strong>sfeitos para bem da Igreja e conservação do Estado 17 . A<br />
condição irregular <strong>de</strong> algumas <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> perante o po<strong>de</strong>r temporal dava ao po<strong>de</strong>r espiritual<br />
armas para con<strong>de</strong>ná-las. Contudo, como já tivemos oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> observar, a regularização<br />
das confrarias po<strong>de</strong>ria significar limitações aos mecanismos <strong>de</strong> controle empregados pela Igreja.<br />
Os vigários <strong>de</strong> Minas não <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> tocar <strong>no</strong> controvertido assunto das prerrogativas<br />
dos párocos frente às <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong>. Segundo eles, as Irmanda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>pretos</strong> e pardos usurpavam<br />
as jurisdições e benesses paroquiais, celebrando ofícios e festivida<strong>de</strong>s solenes pelos seus<br />
Comissários e Capelães 18 . Haveria ainda uma atuação subversiva por parte das confrarias <strong>no</strong><br />
sentido <strong>de</strong> incitar os fregueses a não pagarem os trezentos réis anuais para a subsistência dos<br />
párocos. A consternação provocada por tais ações distrairia os párocos <strong>de</strong> sua missão como<br />
pastores. Por isso se pedia ao sobera<strong>no</strong> que or<strong>de</strong>nasse o pagamento sem hesitação das<br />
benesses <strong>de</strong>vidas aos sacerdotes.<br />
Paradoxalmente, talvez, <strong>no</strong> conflito entre leigos e eclesiásticos tanto uns quanto os outros<br />
po<strong>de</strong>riam recorrer à mesma instância – a Coroa – em busca do atendimento <strong>de</strong> suas requisições.<br />
Ao po<strong>de</strong>r temporal, obviamente, interessava o controle sobre as <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>pretos</strong> e pardos,<br />
isso se po<strong>de</strong> ver na Consulta feita pelo Conselho Ultramari<strong>no</strong> acerca da representação dos<br />
vigários do Bispado <strong>de</strong> Mariana. Conclui-se que o mal <strong>de</strong>veria ser eficazmente coibido e que era<br />
necessária cautela quanto as perniciosas conseqüências que <strong>de</strong>le po<strong>de</strong>m resultar 19 . No entanto,<br />
se consi<strong>de</strong>rarmos que as afirmações dos vigários <strong>de</strong> Minas tinham alguma correspondência com<br />
a realida<strong>de</strong>, as medidas <strong>de</strong> controle sobre as <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> não <strong>de</strong>viam ser tão bem sucedidas, haja<br />
vista o gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> confrarias irregulares. De fato, durante o período pombali<strong>no</strong>, e mesmo<br />
<strong>de</strong>pois, buscou-se restringir a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> bens pelas <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> através <strong>de</strong> alguns alvarás,<br />
Essas medidas, porém, parece não terem tido muito efeito na Capitania das Minas, segundo<br />
afirma Célia Borges 20 .<br />
16 I<strong>de</strong>m.<br />
17 I<strong>de</strong>m.<br />
18 I<strong>de</strong>m.<br />
19 I<strong>de</strong>m.<br />
20 BORGES, Célia. Op. Cit., p. 99.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
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Desta forma, embora vivessem sob o fogo cruzado entre Igreja e Estado e estivessem, por<br />
vezes, à mercê da união dos dois po<strong>de</strong>res, as <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> po<strong>de</strong>riam se constituir num espaço<br />
privilegiado da auto<strong>no</strong>mia escrava. Aqueles que estavam, ou que haviam estado, sob o cativeiro<br />
po<strong>de</strong>riam ter um espaço <strong>no</strong> qual expressar sua religiosida<strong>de</strong> – lembrando que o catolicismo dos<br />
<strong>escravos</strong> e forros se distinguia daquele praticado pelos brancos – estabelecer suas solidarieda<strong>de</strong>s<br />
e resolver seus conflitos, tudo isso sem ter que romper com o sistema escravista.<br />
Neste sentido é importante ressaltar que as <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> homens <strong>pretos</strong> não eram<br />
organizações que se encontravam isoladas da socieda<strong>de</strong> <strong>colonial</strong>. Estavam integradas a ela.<br />
Tanto que, para além dos conflitos, foi possível que elas estabelecessem relações <strong>de</strong> cooperação<br />
com os brancos.<br />
2. PELA UTILIDADE PÚBLICA: POSSIBILIDADES DE COOPERAÇÃO<br />
Entre os a<strong>no</strong>s <strong>de</strong> 1731 e 1733 a capela da Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nossa Senhora do Rosário dos<br />
Homens Pretos <strong>de</strong> Vila Rica do Ouro Preto serviu <strong>de</strong> Matriz para a vila 21 . Os irmãos ce<strong>de</strong>ram seu<br />
espaço <strong>de</strong> culto enquanto se construía uma <strong>no</strong>va igreja para abrigar o Sacrário Paroquial.<br />
Terminado o <strong>no</strong>vo prédio, era hora <strong>de</strong> fazer a trasladação do Santíssimo Sacramento. Entretanto,<br />
não havia rua nem comodida<strong>de</strong> para ir a Procissão. Em vista disso, mais uma vez, os irmãos do<br />
Rosário cooperaram com a Igreja e com o Estado, pois realizaram o que seria uma atribuição da<br />
Câmara, e romperam morros íngremes incapazes <strong>de</strong> habitação, abrindo uma rua para a<br />
passagem do Triunfo Eucarístico. Em remuneração pelo dito trabalho a Irmanda<strong>de</strong> do Rosário<br />
recebeu da Câmara <strong>de</strong> Vila Rica um terre<strong>no</strong> <strong>no</strong> caminho que havia sido aberto. Nessa área os<br />
irmãos principiaram a construção <strong>de</strong> um <strong>no</strong>vo templo, com a qual já haviam <strong>de</strong>spendido em 1765,<br />
segundo o Governador <strong>de</strong> Minas, para cima <strong>de</strong> cinqüenta mil cruzados 22 .<br />
Contudo, quando os irmãos solicitaram a confirmação da doação ao rei, houve dúvida<br />
acerca da valida<strong>de</strong> da concessão que a Câmara havia feito à Irmanda<strong>de</strong> do Rosário. Pela lei,<br />
apenas o rei tinha o direito <strong>de</strong> conce<strong>de</strong>r terras, <strong>de</strong> modo que a ação fora ilegal. A fim <strong>de</strong> tomar<br />
uma <strong>de</strong>cisão acerca do caso o Conselho Ultramari<strong>no</strong> fez uma consulta ao Governador das Minas,<br />
ao Procurador da Fazenda e ao Procurador da Coroa.<br />
O Governador à época, Luís Diogo Lobo da Silva, reconheceu que a concessão do terre<strong>no</strong><br />
fora feita in<strong>de</strong>vidamente, por não terem autorida<strong>de</strong> para o praticar sem as que <strong>de</strong>terminava o<br />
21 Ibi<strong>de</strong>m, p. 246.<br />
22 Consulta do Conselho Ultramari<strong>no</strong>, 1769. Manuscritos Avulsos do Arquivo Histórico Ultramari<strong>no</strong> relativos a Minas<br />
Gerais. Microfilmados e Digitalizados – Cx. 94, Doc. 6.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
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egimento dos oficiais da Câmara. Porém, chamava atenção para a diligência dos confra<strong>de</strong>s do<br />
Rosário, sem a qual se não conseguiria o cômodo público da sua servidão e para o seu zelo, pois:<br />
(…) sem embargo <strong>de</strong> sua pobreza principiaram, uma magnífica igreja (…) continuando na diligência<br />
<strong>de</strong> a acabarem, suprindo a côngrua <strong>de</strong> um capelão, festivida<strong>de</strong>s, enterros e sufrágios dos irmãos,<br />
não obstante ser a maior parte <strong>de</strong>la composta <strong>de</strong> cativos 23 .<br />
Para o Governador, com base em sua Pieda<strong>de</strong>, o rei po<strong>de</strong>ria suprir a ilegalida<strong>de</strong> da concessão do<br />
terre<strong>no</strong> e confirmá-la, <strong>de</strong>ixando <strong>no</strong> pertencimento da irmanda<strong>de</strong> as casas estabelecidas e as áreas<br />
aforadas.<br />
O Procurador da Coroa era <strong>de</strong> opinião semelhante. Embora a ação da Câmara fosse nula,<br />
consi<strong>de</strong>rava o Procurador que o rei tinha bons motivos para dispensar as leis e legalizar a posse<br />
do terre<strong>no</strong> pela irmanda<strong>de</strong>. Segundo ele:<br />
(…) sendo a Irmanda<strong>de</strong> dos homens <strong>pretos</strong> miseráveis: sendo ela tanto da sua <strong>de</strong>voção ou tanto<br />
do seu entusiasmo, tendo feito uma tamanha e tão consi<strong>de</strong>rável obra em benefício da cida<strong>de</strong> e o<br />
público e tudo isto <strong>de</strong>baixo da boa fé da concessão da Câmara, que seria um pouco duro <strong>de</strong>sfazer<br />
agora tudo, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um tal adiantamento 24 .<br />
O Procurador da Fazenda, por outro lado, <strong>de</strong>monstrava mais apego às leis. Para ele a nula<br />
concessão da Câmara não <strong>de</strong>veria ser confirmada pelo rei. Tal ação seria contra a disposição da<br />
Lei do Rei<strong>no</strong> que fundado na utilida<strong>de</strong> pública proibia que as Corporações, como as dos<br />
suplicantes adquiram assim e conservem o domínio <strong>de</strong> bens <strong>de</strong> raiz 25 . Desta forma, as terras<br />
<strong>de</strong>veriam ser tomadas da irmanda<strong>de</strong> e incorporados aos bens do Conselho. De fato sempre houve<br />
um esforço da Coroa <strong>no</strong> sentido <strong>de</strong> limitar o patrimônio das <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong>. As Or<strong>de</strong>nações Filipinas<br />
<strong>de</strong>finiam: (…) as igrejas e or<strong>de</strong>ns não comprem bens <strong>de</strong> raiz sem licença <strong>de</strong>l-Rei 26 . Para o<br />
Procurador da Fazenda a lei <strong>de</strong>veria ser seguida à risca.<br />
Na verda<strong>de</strong> a discordância entre as autorida<strong>de</strong>s revela que não havia consenso <strong>no</strong> que se<br />
refere ao modo <strong>de</strong> lidar com as questões envolvendo as <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong>. Se em algumas ocasiões<br />
elas pareciam representar um risco para a socieda<strong>de</strong>, como dava a enten<strong>de</strong>r a representação dos<br />
Vigários colados das Minas referida anteriormente, em outras elas po<strong>de</strong>riam se tornar parceiras<br />
da Igreja e da Coroa, contribuindo para a utilida<strong>de</strong> pública.<br />
Os pareceres do Governador e do Procurador da Coroa <strong>de</strong>monstram ainda que a diligência<br />
dos confra<strong>de</strong>s em manterem dignamente sua <strong>de</strong>voção, apesar <strong>de</strong> sua pobreza e da condição<br />
cativa da maior parte <strong>de</strong>les, contava a favor das <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong>. Isso talvez <strong>de</strong><strong>no</strong>tasse para as<br />
autorida<strong>de</strong>s um fervor cristão que contribuiria para a manutenção da or<strong>de</strong>m social. Aliás, a<br />
23 I<strong>de</strong>m.<br />
24 I<strong>de</strong>m.<br />
25 I<strong>de</strong>m.<br />
26 Or<strong>de</strong>nações Filipinas e Leis <strong>de</strong> Rei<strong>no</strong> <strong>de</strong> Portugal, livro 2 o , título 18. Coimbra: Na Real Imprensa da Universida<strong>de</strong>, 7 a<br />
ed, 1789. Apud: BORGES, Célia. Op. Cit., p. 99.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
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anulação da concessão do terre<strong>no</strong> à Irmanda<strong>de</strong>, tal como queria o Procurador da Fazenda,<br />
po<strong>de</strong>ria ser motivo <strong>de</strong> perturbação da paz social. É provável que os irmãos do Rosário não<br />
assistissem passivamente à tomada <strong>de</strong> seus bens. Findos os meios legais, talvez utilizassem<br />
meios <strong>de</strong> protesto mais incisivos ou agressivos. Neste respeito o Governador e o Procurador da<br />
Coroa talvez tenham se mostrado mais perspicazes e cautelosos do que o Procurador da<br />
Fazenda.<br />
O fato é que o Conselheiro do Ultramari<strong>no</strong>, Diogo Rangel <strong>de</strong> Almeida Castelo Branco,<br />
concordou com o Procurador da Coroa, <strong>de</strong>terminando que as casas estabelecidas e os<br />
rendimentos fossem mantidos sob a posse da Irmanda<strong>de</strong> do Rosário 27 . Sabemos, ainda que os<br />
irmãos, sem embargo <strong>de</strong> sua pobreza e cativeiro, conseguiram terminar a magnífica igreja que<br />
haviam principiado a construir na área cedida pela Câmara. Tal templo se mantém até o presente.<br />
Observamos, portanto, que para além dos conflitos com o <strong>mundo</strong> dos livres os <strong>escravos</strong> e<br />
forros reunidos em <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> po<strong>de</strong>riam estabelecer com ele uma relação mais pacífica. Se não<br />
po<strong>de</strong>mos chamar isso <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong><strong>no</strong>miná-lo cooperação. Afinal, o que houve foi<br />
uma negociação, uma barganha – um serviço público em troca <strong>de</strong> um terre<strong>no</strong>. Não é possível<br />
medir se houve, e até que ponto houve, má fé por parte dos oficiais da Câmara, já que eles<br />
provavelmente estavam cientes da ilegalida<strong>de</strong> da doação. No entanto, a Irmanda<strong>de</strong> também não<br />
agiu com ingenuida<strong>de</strong>, talvez sob a orientação <strong>de</strong> algum letrado (quem sabe o próprio capelão)<br />
ela recorreu ao rei em busca da confirmação da concessão. Os mecanismos legais disponíveis na<br />
socieda<strong>de</strong> <strong>colonial</strong> estavam ao alcance <strong>de</strong> muitos, mesmo dos homens <strong>pretos</strong> que formavam a<br />
confraria.<br />
3. SOLIDARIEDADE NA CONFRARIA<br />
Se com os brancos se estabelecia uma relação <strong>de</strong> colaboração interesseira, <strong>no</strong> interior das<br />
<strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> o que se verificava era o estabelecimento <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>s entre os associados.<br />
Obviamente as confrarias não formavam organizações perfeitamente integradas e <strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong><br />
conflitos, nem os irmãos recebiam os benefícios <strong>de</strong> fazer parte <strong>de</strong> uma corporação sem que<br />
pagassem seus anuais. Porém, o i<strong>de</strong>al caritativo, advindo das corporações medievais, conformava<br />
muitas das ações das <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong>. A solidarieda<strong>de</strong> <strong>no</strong> interior das confrarias envolvia o auxílio aos<br />
pobres e aos velhos, bem como o cuidado com os irmãos que faleciam.<br />
A morte <strong>de</strong> um associado era um dos momentos em que mais se exigia mobilização dos<br />
confra<strong>de</strong>s. Todos <strong>de</strong>veriam acompanhar o féretro, sob pena <strong>de</strong> repreensão, e os sufrágios<br />
27 Consulta do Conselho Ultramari<strong>no</strong>. op. cit..<br />
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<strong>de</strong>veriam ser realizados <strong>de</strong> imediato para garantia da boa morte do irmão. Esta era uma<br />
preocupação que rondava não só o imaginário cristão – em vista da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se diminuir<br />
as penas das almas <strong>no</strong> purgatório através das rezas dos fiéis e os sufrágios dos eclesiásticos –<br />
como também o africa<strong>no</strong>, tanto banto quanto sudanês. Segundo Célia Borges, entre os bantos os<br />
mortos tinham uma existência própria que exigia uma série se ritos funerários envolvendo os<br />
cadáveres. Entre os sudaneses os mortos eram enterrados <strong>no</strong> interior das casas, que eram,<br />
então, um espaço <strong>de</strong> convívio entre viventes e seres do além 28 . A autora conclui que:<br />
Os irmãos africa<strong>no</strong>s, ao interagirem com os rituais católicos, adaptaram suas crenças a uma <strong>no</strong>va<br />
situação. Integrados à dinâmica promovida pelas confrarias foram imprimindo, aos poucos, <strong>no</strong>vos<br />
conteúdos significativos <strong>no</strong>s imaginários escatológicos <strong>de</strong> origem 29 .<br />
O compromisso da Irmanda<strong>de</strong> do Alto da Cruz exemplifica bem a importância dada ao<br />
cuidado com os mortos. Rezava a parte final do capítulo 7:<br />
(…) e sendo das Missas, que se disserem pelos Irmãos <strong>de</strong>funtos, passarão os Padres, que as<br />
disserem certidão <strong>de</strong> as terem ditto em hum livro, que passará na mão do ditto Thesoureyro, tendo<br />
a mayor vigilância em que não fiquem por sufragar as Almas dos Irmãos que falecerem, antes com<br />
mayor zelo fará que digam com a mayor brevida<strong>de</strong>.(grifo meu) 30<br />
Sobre os sufrágios <strong>de</strong>vidos e a composição do féretro dizia o capítulo 13:<br />
Os Irmãos, que entrarem, e se sentarem <strong>no</strong>s Livros da Irmanda<strong>de</strong> pagarão <strong>de</strong> entrada meia oitava,<br />
e <strong>de</strong> annual em cada hum an<strong>no</strong> meya oitava, pelo que ficará a Irmanda<strong>de</strong> obrigada a mandar lhe<br />
dizer a cada hum, que falecer quatro Missas, a dar lhe sepultura, e a reconduzillo <strong>no</strong> seu [Esquife]<br />
com Cruz alçada, e Capellão com os Irmãos <strong>de</strong> Opa, com suas tochas que se pu<strong>de</strong>rem ajuntar,<br />
mas sendo o Irmão falecido daquelles que tiverem servido na ditta Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Juizes, terão mais<br />
<strong>de</strong>z missas cada hum 31 .<br />
É dig<strong>no</strong> <strong>de</strong> <strong>no</strong>ta que a morte era também um momento em que se marcavam as<br />
diferenças entre os irmãos, impressas pela hierarquia da ocupação <strong>de</strong> cargos. Além <strong>de</strong> terem<br />
mais missas pelas suas almas os irmãos que ocupavam cargos nas <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> eram enterrados<br />
mais próximos do altar que os <strong>de</strong>mais 32 .<br />
A solidarieda<strong>de</strong> ultrapassava, porém, o <strong>mundo</strong> dos mortos. Como dito acima os pobres,<br />
velhos e doentes eram também alvo das atenções da irmanda<strong>de</strong>. Outra ação que também po<strong>de</strong>ria<br />
ser tomada em favor dos confra<strong>de</strong>s era o auxílio na compra da alforria <strong>de</strong>stes. Neste respeito é<br />
exemplar o caso da Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Gonçalo Garcia dos Pardos da Vila <strong>de</strong> São João Del Rei.<br />
Em 1786 a Corporação enviou à rainha D. Maria I um requerimento reivindicando o direito <strong>de</strong><br />
28<br />
BORGES, Célia.Op. Cit., pp. 169 e 170.<br />
29<br />
Ibi<strong>de</strong>m, p. 171.<br />
30<br />
Compromisso da Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> N. Senhora do Rosário dos Pretos, <strong>de</strong><strong>no</strong>minada do Alto da Cruz, da Freguesia <strong>de</strong><br />
Nossa Senhora da Conceição <strong>de</strong> Antonio Dias <strong>de</strong> Vila Rica <strong>de</strong> Ouro Preto, Op. Cit..<br />
31<br />
I<strong>de</strong>m.<br />
32 BORGES, Célia.Op. Cit., p. 166.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
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comprar a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus irmãos cativos, in<strong>de</strong>nizando os do<strong>no</strong>s 33 . Afirma-se que muitos<br />
senhores se negavam a libertar seus <strong>escravos</strong> mesmo que estes lhe <strong>de</strong>ssem o preço justo por si.<br />
A redação do documento revela que seu produtor (ou produtores) tinha <strong>no</strong>ções <strong>de</strong> direito,<br />
consi<strong>de</strong>rando o conhecimento <strong>de</strong> leis <strong>de</strong>monstrado. Isso talvez confirme a hipótese <strong>de</strong> Célia<br />
Borges acerca da importância da intervenção dos capelães das <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> negras <strong>no</strong> que diz<br />
respeito à composição dos compromissos e a assuntos que envolvessem disputas judiciais. A<br />
autora aponta inclusive para uma postura i<strong>de</strong>ológica própria <strong>de</strong> certos homens que passaram por<br />
Minas, que os levava a agir em <strong>de</strong>fesa dos <strong>escravos</strong> 34 . Como exemplo é citada uma<br />
representação anônima que pedia à Coroa que trouxesse algum alívio aos cativos através da<br />
extensão à Colônia <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados Alvarás Régios, benéficos aos <strong>escravos</strong>, que vigiam <strong>no</strong><br />
Rei<strong>no</strong>. Esta é também a tônica do documento aqui analisado.<br />
O que se observa é que em busca <strong>de</strong> alcançar a graça pedida produz-se uma<br />
argumentação que constrói a imagem <strong>de</strong> um cativeiro rigoroso e injusto, principalmente na<br />
América Portuguesa e principalmente para os pardos. Para tanto, faz-se um contraste entre o<br />
escravo cristão e o mouro. Segundo se lê <strong>no</strong> documento: o senhor do mouro é obrigado a vendê-<br />
lo para resgate pela or<strong>de</strong>nação Livro quarto, título onze, parágrafo quarto. Assim, o senhor do<br />
escravo que residia <strong>no</strong> meio da Cristanda<strong>de</strong> <strong>de</strong>veria também ser obrigado a receber o justo valor<br />
do seu escravo e dar-lhe liberda<strong>de</strong> 35 .<br />
Recorre-se ainda à Lei <strong>de</strong> 16 <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> 1<strong>77</strong>3 que dava liberda<strong>de</strong> aos bisnetos <strong>de</strong><br />
<strong>escravos</strong> moradores <strong>no</strong> Rei<strong>no</strong> 36 . Segundo a argumentação do requerimento da Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> São<br />
Gonçalo, muitos <strong>de</strong>ntre os cativos <strong>de</strong>veriam estar compreendidos nessa lei por serem <strong>escravos</strong> <strong>de</strong><br />
terceira, quarta e quinta geração. Tal não ocorria porque nas infelicíssimas Capitanias da América<br />
a lei era interpretada por homens cheios <strong>de</strong> ambição, ricos, po<strong>de</strong>rosos e que ocupam os cargos<br />
públicos e da justiça, segundo os quais o Alvará Régio só valeria <strong>no</strong> Rei<strong>no</strong>, apesar da situação<br />
idêntica entre as Províncias <strong>de</strong> Portugal e as Capitanias da Colônia 37 .<br />
Na América Portuguesa, segundo o que se afirma, o <strong>de</strong>clarar um escravo,<br />
especialmente sendo pardo, que tem e quer dar o seu valor e pedir e rogar que se lhe conceda<br />
<strong>de</strong>sta sorte a liberda<strong>de</strong> provocava a ira do senhor que submetia o escravo a açoites excessivos,<br />
<strong>de</strong>monstrando toda a sua falta <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong> e tirania. (grifo meu) O castigo tinha como única<br />
causa o justo e natural <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> possuir a liberda<strong>de</strong>. Isso <strong>no</strong>s leva a outro argumento utilizado<br />
33<br />
Representação da corporação da Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Gonçalo Garcia, ereta pelos pardos da Vila <strong>de</strong> S. João Del Rei,<br />
1786. Manuscritos Avulsos do Arquivo Histórico Ultramari<strong>no</strong> relativos a Minas Gerais. Microfilmados e Digitalizados –<br />
Cx. 125, Doc. 20.<br />
34<br />
BORGES, Célia. Op. Cit., p. 109.<br />
35<br />
Representação da corporação da Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Gonçalo Garcia. Op.Cit..<br />
36<br />
BORGES, Célia. Op. Cit., p. 109.<br />
37<br />
Representação da corporação da Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Gonçalo Garcia. Op.Cit..<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
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em favor dos <strong>escravos</strong> – o Direito Natural, que envolvia o direito à liberda<strong>de</strong>. Levando-se em conta<br />
tal direito, não seria justo que, tendo ajuntado o valor para a compra <strong>de</strong> sua alforria, o escravo<br />
permanecesse perpetuamente sob o cativeiro. Mesmo que os senhores tivessem o direito <strong>de</strong> não<br />
ven<strong>de</strong>r coisa alguma que possuíssem se não o quisessem, haveria uma limitação para tal direito –<br />
a pública utilida<strong>de</strong>. E a República ganharia com a libertação dos cativos porque adquiriria <strong>no</strong>vos<br />
vassalos úteis ao Estado, <strong>no</strong>vos agricultores para as terras, <strong>no</strong>vos povoadores para os sertões,<br />
<strong>no</strong>vos <strong>de</strong>scobridores para as minas <strong>de</strong> ouro, <strong>no</strong>vos oficiais <strong>de</strong> todo o gênero <strong>de</strong> manufatura para o<br />
comércio tudo isso sem prejuízo dos senhores, que seriam in<strong>de</strong>nizados 38 .<br />
Os senhores, além <strong>de</strong> tira<strong>no</strong>s, são ainda apresentados como transgressores da boa<br />
moral. Um dos motivos <strong>de</strong> não quererem libertar as escravas pardas seria o fato <strong>de</strong> que eles as<br />
obrigavam a viver em concubinato involuntário. Algumas<br />
(…) por não aceitarem naqueles abomináveis e pecami<strong>no</strong>sos tratos tem sido objeto <strong>de</strong><br />
extraordinários castigos, principiando por uma nu<strong>de</strong>z vergonhosa a aquele sexo e seguindo-se<br />
açoites (…) opondo assim um obstáculo quase invencível à modéstia e à continência 39 .<br />
Os senhores ainda empregariam as cativas pardas na prostituição, aumentando seu<br />
patrimônio com a renda obtida na prática dos tratos ilícitos e com os filhos das escravas que<br />
nasciam <strong>de</strong>stes. Os <strong>escravos</strong>, que já haviam ressaltado a sua cristanda<strong>de</strong>, apontavam agora para<br />
o atentado contra os valores cristãos cometidos pelos senhores.<br />
Os proprietários cometeriam ainda outros atos con<strong>de</strong>náveis. Libertavam as escravas e<br />
<strong>escravos</strong> pardos para que auferissem a renda necessária pela sua liberda<strong>de</strong>. Entretanto, quando<br />
o escravo adquiria algo <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rável o senhor o reescravizava e tomava seus bens,<br />
<strong>de</strong>scumprindo sua promessa. Muitas vezes a situação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero chegava a tal ponto que o<br />
escravo se lançava <strong>no</strong> rio ou buscava outros gêneros <strong>de</strong> morte voluntária 40 . Seria também uma<br />
prática senhorial o abando<strong>no</strong> <strong>de</strong> <strong>escravos</strong> velhos e doentes, que lançados fora <strong>de</strong> casa pelo<br />
senhor eram obrigados a mendigar <strong>de</strong> porta em porta.<br />
Apresentadas as condições do cativeiro dos pardos na América Portuguesa, faz-se<br />
menção ao privilégio concedido à Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nossa Senhora do Rosário <strong>de</strong> Lisboa <strong>de</strong> comprar<br />
a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus irmãos cativos mesmo contra a vonta<strong>de</strong> do senhor. Conclui-se então:<br />
38 I<strong>de</strong>m.<br />
39 I<strong>de</strong>m.<br />
40 I<strong>de</strong>m.<br />
41 I<strong>de</strong>m.<br />
(…) se este benefício alcançaram os ditos irmãos em Lisboa, on<strong>de</strong> os cativeiros não eram tão<br />
requintes nem tão rigorosos, on<strong>de</strong> não haviam tantos motivos urgentes como o que foram<br />
pon<strong>de</strong>rados, com muita mais razão <strong>de</strong>ve esperar esta Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Gonçalo Garcia para seus<br />
irmãos <strong>escravos</strong> o mesmo privilégio 41 .<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
88
O requerimento dos irmãos pardos <strong>de</strong> São Gonçalo Garcia foi redigido, parece-me, a<br />
partir <strong>de</strong> dois gran<strong>de</strong>s eixos argumentativos – um jurídico, com o apelo às leis portuguesas, e<br />
outro moral, <strong>de</strong>stacando a <strong>de</strong>sumanida<strong>de</strong> e sordi<strong>de</strong>z dos senhores na Colônia. Embora tenha sido<br />
produzido com um objetivo específico, constituindo-se num discurso sobre a escravidão – o que<br />
exige cautela do pesquisador – o documento po<strong>de</strong> <strong>no</strong>s revelar ou <strong>no</strong>s fazer refletir sobre alguns<br />
aspectos da escravidão.<br />
Não obstante, ter-se carregado nas tintas, e isso por razões óbvias, a representação dos<br />
irmãos <strong>de</strong> São Gonçalo ressalta todo o potencial <strong>de</strong> violência do escravismo. As situações<br />
<strong>de</strong>scritas – violência sexual, a prostituição o abando<strong>no</strong> <strong>de</strong> <strong>escravos</strong> velhos – eram passíveis <strong>de</strong><br />
ocorrer e é bem provável que tenham ocorrido. Entretanto, há indicativos <strong>de</strong> que tais práticas<br />
eram con<strong>de</strong>nadas, pelo me<strong>no</strong>s por parte da população, e que também po<strong>de</strong>riam sê-lo pela Coroa,<br />
haja vista serem utilizadas para convencer a rainha <strong>de</strong> que os confra<strong>de</strong>s mereciam a graça<br />
requerida.<br />
Reforça-se ainda o caráter político da escravidão. A alforria não era uma conquista<br />
apenas econômica, havia que se contar com a disposição senhorial mesmo que já se tivesse<br />
acumulado pecúlio suficiente para a compra da liberda<strong>de</strong>. O processo <strong>de</strong> mudança <strong>de</strong> estatuto<br />
jurídico exigia ao mesmo tempo uma negociação com o senhor. Conquistar o afeto do proprietário<br />
era também um passo que contribuía para que este se dispusesse a conce<strong>de</strong>r a liberda<strong>de</strong> ao seu<br />
cativo. A ex-escrava Rita <strong>de</strong> Sousa Lobo afirmou ter conseguido sua carta <strong>de</strong> manumissão não<br />
apenas por ter dado uma Livra <strong>de</strong> Ouro por ela, mas porque seus senhores lhe tinham amor 42 .<br />
Indicativo da necessida<strong>de</strong> da disposição senhorial <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r ao escravo a alforria é também a<br />
<strong>de</strong>cisão expressa pela liberta Tula <strong>de</strong> Távora Ferreira em seu testamento. Escrava <strong>de</strong> Luzia <strong>de</strong><br />
Távora <strong>de</strong> Assunção, Tula foi dada como dote à filha <strong>de</strong> sua senhora Guiomar <strong>de</strong> Távora Ferreira,<br />
que se casou com Antônio Pais Chaves. Este lhe passou carta <strong>de</strong> manumissão pelo valor <strong>de</strong><br />
250$000 em ouro. Entretanto, embora tenha comprado sua liberda<strong>de</strong>, Tula <strong>de</strong>ixou cinco oitavas<br />
<strong>de</strong> ouro para seu antigo senhor, segundo <strong>de</strong>clarava <strong>no</strong> testamento pelo benefício que me fez <strong>de</strong><br />
me passar a dita carta 43 . No caso da Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Gonçalo Garcia dos Pardos, se a<br />
negociação foi tentada, não <strong>de</strong>u resultado <strong>de</strong> modo que foi necessário o emprego <strong>de</strong> outro tipo <strong>de</strong><br />
estratégia que visava ao alcance da liberda<strong>de</strong> à <strong>de</strong>speito da vonta<strong>de</strong> do senhor.<br />
Frente à opressão senhorial, a irmanda<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria se constituir num instrumento <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>fesa e <strong>de</strong> reivindicação daquilo que se tinha como justo. Neste sentido, a utilização dos meios<br />
legais mostra uma ação tomada <strong>de</strong>ntro do sistema, sem intenções <strong>de</strong> rompimento com o<br />
42 Requerimento <strong>de</strong> Rita <strong>de</strong> Souza Lobo, 1<strong>77</strong>9, Manuscritos Avulsos do Arquivo Histórico Ultramari<strong>no</strong> relativos a Minas<br />
Gerais. Microfilmados e Digitalizados – Cx. 115, Doc. 60.<br />
43 Inventário post-mortem <strong>de</strong> Tula <strong>de</strong> Távora Ferreira, 1755, Arquivo Histórico da Casa do Pilar <strong>de</strong> Ouro Preto (MG).<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
89
escravismo. Tratava-se aqui <strong>de</strong> libertar os irmãos daquela irmanda<strong>de</strong> específica – a <strong>de</strong> São<br />
Gonçalo Garcia dos Pardos – não todos os cativos. Além disso, ao longo <strong>de</strong> toda a representação<br />
é recorrente o fato <strong>de</strong> que os confra<strong>de</strong>s querem a liberda<strong>de</strong>, mas sem prejuízo dos senhores, quer<br />
dizer, <strong>de</strong>sejam pagar o legítimo valor <strong>de</strong> suas pessoas 44 .<br />
É possível ainda refletir sobre o grau <strong>de</strong> união interna que o pleito contra os senhores<br />
trouxe para a Irmanda<strong>de</strong>. Como já mencionado aqui, as solidarieda<strong>de</strong>s intraconfraria não<br />
anulavam os conflitos que po<strong>de</strong>riam existir. As diferenças étnicas, o que aqui possivelmente não é<br />
o caso, já que a irmanda<strong>de</strong> era formada por pardos, e as disputas pelos cargos po<strong>de</strong>riam ensejar<br />
lutas e minar a união entre os irmãos. Entretanto, numa situação em que se estabelecia um<br />
objetivo comum a ser atingido em oposição a um inimigo exter<strong>no</strong> e mais po<strong>de</strong>roso, é provável que<br />
se reforçassem os laços <strong>de</strong> pertença e <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> entre os irmãos.<br />
De fato, as situações adversas exigiam maior nível <strong>de</strong> cooperação entre os associados.<br />
Por exemplo, para sustentarem com <strong>de</strong>cência o culto <strong>de</strong> sua Senhora, os irmãos da Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Nossa Senhora do Rosário do Alto da Cruz, furtando os dias livres do cativeiro e concedidos ao<br />
<strong>de</strong>scanso arrisca[vam] suas vidas pelas entranhas da terra sem verem a luz do dia afim <strong>de</strong><br />
extraírem para o suprimento dos cargos da sua Irmanda<strong>de</strong> e as mais (…) 45 .Sendo a maior parte<br />
dos membros da Confraria <strong>escravos</strong>, era necessária uma significativa mobilização para a<br />
manutenção da <strong>de</strong>voção. Especialmente nas ocasiões das festas, a principal fonte <strong>de</strong> renda para<br />
esta Irmanda<strong>de</strong> específica como já mencionamos aqui. No caso da Irmanda<strong>de</strong> do Rosário <strong>de</strong> Vila<br />
Rica, construir um <strong>no</strong>vo templo e ao mesmo tempo manter a irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve ter sido um<br />
empreendimento <strong>de</strong>safiador, que <strong>de</strong>ve ter exigido um arrefecimento dos conflitos inter<strong>no</strong>s.<br />
* * *<br />
Falando sobre as interpretações acerca das congadas, Marina <strong>de</strong> Mello e Souza afirma:<br />
Importantes veículos <strong>de</strong> cristianização dos africa<strong>no</strong>s e seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes [as congadas] eram<br />
vistas, ora como instrumentos da classe senhorial na domesticação dos <strong>escravos</strong> e negros livres,<br />
ora como espaços <strong>de</strong> resistência cultural <strong>de</strong>sses últimos, sempre a partir <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista que<br />
privilegiava a opressão ou a rebeldia 46 .<br />
Diante disso, a autora propõe um enfoque alternativo que:<br />
44 I<strong>de</strong>m.<br />
45 Representação da Irmanda<strong>de</strong> dos Etíopes, Crioulos, Pretos Forros e Cativos <strong>de</strong> Vila Rica <strong>de</strong> Ouro Preto. Cp. Cit..<br />
46 MELLO E SOUZA, Marina. Reis negros <strong>no</strong> Brasil escravista: história da festa <strong>de</strong> coroação do Rei Congo. Belo<br />
Horizonte: editora da UFMG, 2002., p. 19.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
90
(…) busca traçar o processo histórico <strong>no</strong> qual as festas <strong>de</strong> coroação do rei congo se constituíram,<br />
privilegiando a perspectiva do encontro <strong>de</strong> culturas diferentes, que, em dado contexto <strong>de</strong> dominação<br />
social, produziu manifestações culturais mestiças 47 .<br />
Consi<strong>de</strong>ramos que uma análise das <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>pretos</strong> e pardos também não <strong>de</strong>ve ser<br />
feita do ponto <strong>de</strong> vista dos extremos da rebeldia ou da opressão. As <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> não eram<br />
compostas por Zumbis ou Pais João, mas estavam também inseridas <strong>no</strong> processo <strong>de</strong> negociação<br />
entre <strong>escravos</strong> e livres 48 .<br />
É bem verda<strong>de</strong> que em Minas Gerais a religião católica se impôs sobre as <strong>de</strong>mais 49 .<br />
Porém, isso não impediu que houvesse uma re-significação das heranças culturais africanas <strong>no</strong><br />
seu processo <strong>de</strong> interação com os rituais cristãos. O resultado foi que <strong>no</strong> seio das <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong><br />
homens <strong>pretos</strong> criou-se um catolicismo específico, diferente daquele advindo da herança<br />
portuguesa. O processo envolveu muito mais que a simples imposição <strong>de</strong> uma cultura que<br />
solapava por completo as <strong>de</strong>mais.<br />
Por outro lado, não se po<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar as confrarias como ilhas <strong>de</strong> rebeldia ou resistência<br />
em meio ao mar <strong>de</strong> opressão do sistema escravista. Vimos que até mesmo <strong>no</strong> conflito com o<br />
<strong>mundo</strong> branco os <strong>pretos</strong> e pardos po<strong>de</strong>riam lançar mão dos meios jurídicos disponíveis na<br />
socieda<strong>de</strong> a fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r aquilo que consi<strong>de</strong>ravam como um direito seu. Exemplos disso são<br />
as disputas da Irmanda<strong>de</strong> do Alto da Cruz com o pároco da Matriz <strong>de</strong> Vila Rica em que os irmãos<br />
pu<strong>de</strong>ram legalmente recorrer ao seu compromisso, aprovado na Metrópole. E a representação<br />
dos pardos <strong>de</strong>votos <strong>de</strong> São Gonçalo Garcia em São João Del Rei, que apelaram às leis e à<br />
pieda<strong>de</strong> da rainha portuguesa. Tratava-se <strong>de</strong> uma ação <strong>de</strong>ntro da or<strong>de</strong>m e, portanto,<br />
conservadora. Embora, ao mesmo tempo, fosse reveladora da habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stes forros e cativos<br />
<strong>de</strong> se apropriarem dos mecanismos <strong>de</strong> negociação do <strong>mundo</strong> dos brancos livres a fim <strong>de</strong> fazer<br />
valer seus interesses, atuando como sujeitos históricos e súditos reconhecidos como legítimos<br />
pelas autorida<strong>de</strong>s metropolitanas.<br />
Tivemos, ainda, a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> observar que a relação com os brancos não era apenas<br />
conflituosa, que havia a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> as <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong>, por vezes apontadas como <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>iras e<br />
corruptas, contribuírem para a utilida<strong>de</strong> pública, disso tirando vantagens.<br />
As <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> <strong>de</strong> <strong>pretos</strong> e pardos não punham em xeque o sistema escravista. Eram<br />
formas <strong>de</strong> organização coletiva, que significavam para <strong>escravos</strong> e libertos um espaço <strong>de</strong><br />
convivência e auto<strong>no</strong>mia, on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>riam reconstruir e expressar sua religiosida<strong>de</strong>. Além disso, as<br />
47 Ibi<strong>de</strong>m, pp. 19 e 20.<br />
48 SILVA, Eduardo. Entre Zumbi e Pai João, o escravo que negocia. In: REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação<br />
e conflito; a resistência negra <strong>no</strong> Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.<br />
49 BORGES, Célia. Op. Cit., p. 171.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
91
confrarias eram uma estratégia para lidar com as incertezas da vida escrava. Frente ao<br />
<strong>de</strong>samparo e à opressão os irmãos po<strong>de</strong>riam contar uns com os outros, numa re<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
solidarieda<strong>de</strong> que era extensiva até mesmo ao momento da morte. Momento este em que as<br />
almas dos mortos <strong>de</strong>pendiam sobremaneira dos vivos.<br />
Ana Paula dos Santos Rangel é Mestranda do Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em<br />
História Social - UFRJ<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
92
“A FORMA DE FAZER TESTAMENTO”: APONTAMENTOS ACERCA DE<br />
UM OPÚSCULO SETECENTISTA<br />
Resumo:<br />
O artigo traz a transcrição e alguns comentários<br />
sobre um opúsculo apresentado à “Real Mesa<br />
Censória” na segunda meta<strong>de</strong> do século XVIII.<br />
Trata-se do opúsculo intitulado “a forma <strong>de</strong> fazer<br />
testamento”, <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Antônio das Neves. O<br />
texto possui uma nítida função administrativa,<br />
objetivando auxiliar e formalizar a confecção <strong>de</strong><br />
testamentos. O presente artigo, além <strong>de</strong> trazer a<br />
transcrição do documento, faz algumas<br />
consi<strong>de</strong>rações sobre as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
investigação dos testamentos, enten<strong>de</strong>ndo-os,<br />
especialmente, como um instrumento<br />
administrativo.<br />
Palavras-chave:<br />
Testamentos; Século XVIII; Real Mesa Censória;<br />
História da administração<br />
Álvaro <strong>de</strong> Araújo Antunes<br />
Abstract:<br />
The paper presents the transcription of and some<br />
comments on a booklet presented to the "Royal<br />
Censorious Committee" in the second half of 18th<br />
century. The booklet is called "how to make a<br />
testament", by Antonio das Neves, and has a<br />
clear administrative function, aiming at helping<br />
and formalizing testament production. Besi<strong>de</strong>s<br />
presenting Antonio das Neves booklet<br />
transcription, this paper discusses the<br />
possibilities of investigating testaments, taking<br />
them mainly as administrative apparatuses.<br />
keywords:<br />
Testaments; 18th century; Royal Censorious<br />
Committee; Administration History<br />
São prolíficas e variadas as análises historiográficas baseadas <strong>no</strong>s testamentos. A<br />
riqueza <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> fonte é ratificada em trabalhos que enfocam aspectos econômicos, sociais,<br />
políticos, administrativos e culturais. Aspectos culturais e do imaginário social são revelados: nas<br />
evocações dos santos <strong>de</strong> <strong>de</strong>voção e da corte celestial; nas elaborações sobre o Além; <strong>no</strong>s<br />
procedimentos para ascensão e perdão das faltas; nas <strong>de</strong>terminações do local <strong>de</strong> exumação etc.<br />
Revelam, ainda, as relações familiares, sociais e políticas rememoradas <strong>no</strong>s últimos <strong>de</strong>sejos do<br />
moribundo que, diante da morte, po<strong>de</strong>ria reconhecer a existência <strong>de</strong> filhos fora do casamento, por<br />
exemplo. Outrossim, <strong>no</strong> testamento é possível i<strong>de</strong>ntificar indicações quanto à posse e circulação<br />
<strong>de</strong> bens, entre outros elementos da documentação que o olhar do pesquisador po<strong>de</strong> <strong>de</strong>svelar 1 .<br />
A distinção <strong>de</strong>stes e <strong>de</strong> outros campos, todavia, po<strong>de</strong> levar a uma impressão equivocada<br />
<strong>de</strong> seções estanques e evi<strong>de</strong>ntes, campos naturais da História. Em verda<strong>de</strong>, a constituição<br />
<strong>de</strong>ssas áreas é muito mais fruto <strong>de</strong> uma disposição e operação do historiador que, diante das<br />
informações presentes <strong>no</strong> testamento, privilegia e seciona esse ou aquele elemento conforme os<br />
interesses e necessida<strong>de</strong>s da pesquisa.<br />
1 Vários são os trabalhos que, direta ou indiretamente, utilizam o testamento como fonte <strong>de</strong> pesquisa, <strong>de</strong>ntre eles:<br />
ARIÈS, Philippe. O homem diante da Morte. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Francisco Alves, 1982. REIS, João José. A Morte é uma<br />
festa. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. CAMPOS, Adalgisa Arantes. Consi<strong>de</strong>rações sobre a pompa fúnebre na<br />
Capitania das Minas: o século XVIII. Revista do <strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> História FAFICH / UFMG. Belo Horizonte, n.4, p.5-24, jun.<br />
1987. e MATOSO, Kátia. “testamentos <strong>de</strong> Escravos Libertos na Bahia do século XIX: uma doente para o estudo das<br />
mentalida<strong>de</strong>s”. Publicações do Centro <strong>de</strong> Estudos Baia<strong>no</strong>., Salvador. 1979. PAIVA, Eduardo França. Escravidão e<br />
Universo Cultural na Colônia: Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005<br />
93
Nestes termos, o presente artigo não faz mais do que sugerir algumas <strong>de</strong>ssas construções,<br />
algumas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pesquisa. Para isso conta com a valiosa contribuição do opúsculo<br />
setecentista e <strong>de</strong> trabalhos que analisam os testamentos.<br />
Dentro das diversas possibilida<strong>de</strong>s que a produção historiográfica coloca à pesquisa, o<br />
artigo ressaltará alguns aspectos administrativos que envolvem a formulação <strong>de</strong> um testamento,<br />
entendido não somente como o registro das vonta<strong>de</strong>s do falecido, mas também como um meio <strong>de</strong><br />
produção e difusão do po<strong>de</strong>r gerido pela Igreja e pelo Estado 2 . Essas dimensões são discerníveis<br />
na “forma <strong>de</strong> fazer testamento”, escrita por Antônio das Neves.<br />
O opúsculo <strong>de</strong> Antônio das Neves <strong>de</strong>pura um mo<strong>de</strong>lo das formas testamentais correntes<br />
<strong>no</strong> século XVIII, apresentando a estrutura do testamento, limpo das particularida<strong>de</strong>s - o <strong>no</strong>me do<br />
falecido, sua condição social, os laços que firmou quando vivo, os santos <strong>de</strong> <strong>de</strong>voção... Para se<br />
usar uma metáfora, Neves reconstrói um esqueleto, <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong> carne, tecidos e tendões. O<br />
documento é significativo por revelar a estrutura dos testamentos.<br />
Descrição e possibilida<strong>de</strong>s<br />
“A forma <strong>de</strong> fazer testamento” é um texto da segunda meta<strong>de</strong> do século XVIII,<br />
provavelmente escrito na década <strong>de</strong> 70 3 . Como mencionado, a autoria é <strong>de</strong> Antônio das Neves,<br />
<strong>de</strong> quem pouco se conhece, além dos interesses e intenções que revela em sua obra. Nela, o<br />
autor setecentista mostra ter conhecimento e afinida<strong>de</strong> com os procedimentos <strong>no</strong>toriais, o que<br />
permitiria especulações sobre sua proximida<strong>de</strong> com o corpo administrativo.<br />
Ao apresentar sua obra à Real Mesa Censória – órgão responsável pelo controle da<br />
produção, compra, venda e posse <strong>de</strong> livros –, Antônio das Neves pleiteava uma licença para a<br />
publicação, tudo conforme a exigências legais 4 . Não se sabe se a obra foi publicada, apesar <strong>de</strong><br />
sua suposta utilida<strong>de</strong> <strong>no</strong> serviço administrativo. Mas, em meio às dúvidas, fica certa a significativa<br />
2 A abordagem da documentação administrativa como instrumento <strong>de</strong> difusão e efetivação do po<strong>de</strong>r do Estado e da<br />
Igreja po<strong>de</strong> ludibriar o historiador quanto à eficácia <strong>de</strong>sse sistema. Po<strong>de</strong> levar a crer que o cotidia<strong>no</strong> do Império<br />
Português fosse <strong>de</strong> todo regrado e monitorado pelas autorida<strong>de</strong>s. Uma vasta bibliografia discute a difusão dos po<strong>de</strong>res<br />
em meio à socieda<strong>de</strong> e sua coexistência, influencia e/ou interferência na ação dos órgãos <strong>de</strong> administração centrais.<br />
Não cabe, aqui, uma discussão <strong>de</strong>talhada <strong>de</strong> aspectos tão complexos que envolveram vários estudos <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>.<br />
Vale, contudo, apontar alguns trabalhos acerca do assunto: ANASTASIA, Carla Junho. Vassalos rebel<strong>de</strong>s: violência<br />
coletiva nas Minas na primeira meta<strong>de</strong> do século XVIII. Belo Horizonte: C/Arte, 1998. FAORO, Ray<strong>mundo</strong>. Os do<strong>no</strong>s do<br />
po<strong>de</strong>r: formação do patronato brasileiro. 10 ed. São Paulo: Globo, 1996. p. 149. v.1. PRADO JÚNIOR. Caio. Formação<br />
do Brasil contemporâneo; Colônia. 20 ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. SCHWARTZ, Stuart. B. Burocracia e socieda<strong>de</strong><br />
<strong>no</strong> Brasil <strong>colonial</strong>: a suprema corte e seus juizes: 1609-1751. São Paulo: Perspectiva, 1979.<br />
3 O opúsculo é um manuscrito <strong>de</strong> dimensões medianas, um in-quarto, para usar aqui a <strong>de</strong>signação habitual da época, o<br />
que correspondia ao in-folio dobrado duas vezes. Das oito páginas, contando-se frente e verso, apenas quatro estão<br />
escritas, sendo que a última registra o <strong>no</strong>me do autor. O documento encontra-se conservado <strong>no</strong> Arquivo Nacional da<br />
Torre do Tombo (ANTT), em Lisboa, <strong>no</strong> fundo da Real Mesa Censória, Caixa 370, documento 4684.<br />
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intenção do autor em divulgar uma fórmula, um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> como se fazer testamento, na tentativa<br />
<strong>de</strong> auxiliar <strong>no</strong>s trabalhos <strong>no</strong>toriais.<br />
O documento transcrito não é propriamente um testamento, mas sim um guia <strong>de</strong> como<br />
este <strong>de</strong>veria ser elaborado. É, portanto, um instrumento <strong>de</strong> caráter evi<strong>de</strong>ntemente administrativo,<br />
que visava apresentar as formalida<strong>de</strong>s, os cuidados, as disposições da lei. Revelava, sobretudo,<br />
uma preocupação em conferir ao testamento um aspecto <strong>de</strong> legalida<strong>de</strong>. Uma intenção que<br />
esbarrava em dificulda<strong>de</strong>s bem palpáveis, como a expressa <strong>no</strong> seguinte trecho: “Em lugares<br />
<strong>de</strong>sertos, seja o testamento cerrado, ou aberto,/ bastam três testemunhas e, na campanha, bastão<br />
duas [...]” 5 .O que se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse fragmento é um problema comum em várias localida<strong>de</strong>s do<br />
Império português, marcadas por seus imensos vazios <strong>de</strong>mográficos e pelo restrito raio <strong>de</strong><br />
atuação e influência dos órgãos administrativos.<br />
Aspecto semelhante também se distingue <strong>no</strong> caso, mencionado pelo autor, dos<br />
testamentos nuncupativos, ou seja, realizados oralmente. A ocorrência <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> expediente<br />
po<strong>de</strong> indicar, basicamente, duas possibilida<strong>de</strong>s. A primeira aponta para a necessida<strong>de</strong> imediata<br />
<strong>de</strong> testar, o que inviabilizaria a formulação escrita. A segunda sugere uma outra espécie <strong>de</strong> vazio:<br />
o “vazio <strong>de</strong>mográfico <strong>de</strong> letrados”, a insuficiência <strong>de</strong> pessoas em lugares ermos que soubessem<br />
escrever, implicando em uma restrição da ação administrativa.<br />
O caso do vazio <strong>de</strong>mográfico ou do <strong>de</strong>sconhecimento da linguagem escrita, ainda que<br />
indiquem condições sociais e culturais, revelam uma <strong>de</strong>ficiência do que António Manuel Hespanha<br />
chamou <strong>de</strong> condições materiais para a produção e difusão do po<strong>de</strong>r. Os aspectos <strong>de</strong>mográficos,<br />
segundo o autor, são um <strong>de</strong>sses fatores essenciais para a constituição do po<strong>de</strong>r. Na vastidão da<br />
Colônia, a maior <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mográfica contribuiria para uma maior dominação geográfica e<br />
política. Neste sentido, po<strong>de</strong>-se dizer que a efetivação do domínio é <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong>ntre outros<br />
fatores, do controle do espaço 6 .<br />
A escrita também seria outro meio para a produção e difusão do po<strong>de</strong>r, pois:<br />
sempre que houvesse necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> constituir um título ou um a prova, isso passava pelo tribunal<br />
ou pelo <strong>no</strong>tário e o seu suporte era, inevitavelmente, o acto judicial ou o documento autentico ou<br />
autenticado produzido pelo <strong>no</strong>tário. No <strong>no</strong>tário se documentavam, naturalmente, as transmissões e<br />
alterações do estatuto dos bens imóveis, a constituição e quitação, a dotação da mulher e da filha, o<br />
testamento, as finanças e hipotecas 7 .<br />
4<br />
Sobre a Real Mesa Censória, ver, entre outros: VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas <strong>de</strong><br />
leitura: usos do livro na América Latina. São Paulo: Departamento <strong>de</strong> História da USP, 1999. (Tese, Doutorado em<br />
História).<br />
5<br />
ANTT, Caixa 370, 4684.<br />
6<br />
HESPANHA, António Manuel. “Centro e Periferia nas Estruturas Administrativas do Antigo Regime”. Ler História.<br />
Revista Quadrimestral, N.8, 1986.<br />
7<br />
HESPANHA, António Manuel. Justiça e Litigiosida<strong>de</strong>: História e Prospectiva. Lisboa: Fundação Caluste Gulbenkian,<br />
1993. p.407.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 95
De fato, a escrita viabilizaria um alargamento do po<strong>de</strong>r, na medida em que permitiria<br />
vencer o espaço e o tempo. Por meio <strong>de</strong> um documento escrito é possível difundir informações e<br />
vencer distâncias <strong>de</strong> forma mais rápida, eficaz e controlada, se comparada à linguagem oral 8 .<br />
Entretanto, o conhecimento da linguagem escrita não era suficiente às carências do Estado<br />
que, para gerir seus interesses e/ou zelar pelos do povo, necessitava <strong>de</strong> um conhecimento formal,<br />
padronizado; <strong>de</strong> on<strong>de</strong> as várias leis, regimentos e extravagantes. Ao propor um mo<strong>de</strong>lo, uma<br />
padronização <strong>de</strong> procedimentos e <strong>de</strong> escrita, Antônio das Neves buscava contribuir diretamente<br />
para a fomentação do espaço administrativo e a maior inserção do Estado e da Igreja <strong>no</strong><br />
cotidia<strong>no</strong> 9 .<br />
Em par com o Estado, a Igreja estava presente e geria os vários rituais da vida, como o<br />
batismo, o casamento e a própria morte. Como bem observou Caio Prado Junior, <strong>no</strong> século XVIII<br />
era “inconcebível e inconcebida uma existência à margem da Religião e da Igreja” 10 . No que toca<br />
a morte, a Igreja conferia os atestados <strong>de</strong> óbitos e, através das misericórdias e <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong>,<br />
<strong>de</strong>tinha o “mo<strong>no</strong>pólio dos enterros”, como afirmou Russel-Wood, ou o “manuseio simbólico da<br />
morte”, como apontou Adalgisa Arantes Campos 11 .<br />
Entretanto, a gerência da morte não era incumbência exclusiva da Igreja. Assim como em<br />
outras ocasiões, ela se irmanava ao Estado na administração <strong>de</strong> aspectos da vida e, <strong>no</strong> caso, da<br />
morte. O Estado cuidava da distribuição dos legados dos falecidos e da quitação <strong>de</strong> suas dívidas,<br />
conforme a lei e a vonta<strong>de</strong> expressa <strong>no</strong> testamento. Para isso, contava com agentes<br />
administrativos, como o Juiz <strong>de</strong> Órfãos e o Provedor das Capelas e Resíduos, responsáveis,<br />
sobretudo, por fazer justiça, distribuindo, a cada um, o que lhe era <strong>de</strong> direito. Desta maneira, as<br />
8 “ [...] a escrita permite o alargamento do âmbito espacial do po<strong>de</strong>r; a carta permite produzir efeitos políticoadministrativos<br />
em lugares distantes. Depois, a escrita vence o tempo, cirando uma memória administrativa mais certa e<br />
comprovável. No domínio dos processos jurídicos e administrativos, ela estabelece <strong>no</strong>vos meios <strong>de</strong> prova, um <strong>no</strong>vo<br />
recorte do caso sub judice, um <strong>no</strong>vo ritmo temporal <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento processual, um <strong>no</strong>vo estilo <strong>de</strong> participação <strong>no</strong><br />
processo e uma <strong>no</strong>va estratégia <strong>de</strong> resolução dos conflitos. No pla<strong>no</strong> dos mecanismos <strong>de</strong> controle político, a redução a<br />
escrito dos actos políticos possibilita o recurso fácil para instâncias políticas superiores e a reapreciação por estas da<br />
<strong>de</strong>cisão inferior. Mas, sobretudo, a escrita introduz um fator <strong>de</strong> discriminação social, que virá a ser <strong>de</strong>cisivo durante toda<br />
a época mo<strong>de</strong>rna - a distinção entre analfabetos e alfabetizados. Perante a mensagem escrita, uma parte<br />
importantíssima da socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna fica marginalizada e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da mediação dos possuidores <strong>de</strong> um certo<br />
capital cultural – saber ler e escrever.”(...) HESPANHA, António Manuel. “Centro e Periferia nas Estruturas<br />
Administrativas do Antigo Regime”. Ler História. Revista Quadrimestral, N.8, p. 47.<br />
9 Conforme Michel <strong>de</strong> Certeau, a escrita só possui sentido fora <strong>de</strong> si mesma, diante do leitor. A vida, esse morrer<br />
constante, sempre encoberto <strong>no</strong> cotidia<strong>no</strong> e exilado <strong>no</strong>s hospitais e nas casas <strong>de</strong> repouso (doce ironia), indica sentido<br />
fora <strong>de</strong> si mesma, <strong>no</strong> além. Uma forma <strong>de</strong> lidar com aquilo que é obsce<strong>no</strong> à vida, isto é a morte, é tentar controlá-la por<br />
meio <strong>de</strong> mecanismos escritos que assegurem uma certa continuida<strong>de</strong>, por meio dos registros e legados materiais<br />
<strong>de</strong>ixados aos entes queridos e pela crença explicita <strong>de</strong> uma vida <strong>no</strong> além. (CERTEAU, Michel. A invenção do cotidia<strong>no</strong>.<br />
Tradução <strong>de</strong> Epharaim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. p.248.)<br />
10 PRADO JÚNIOR. Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1979 p.329.<br />
11 RUSSEL-WOOD. Fidalgos e Filantropos: a santa casa da misericórdia da Bahia, 1550-1755. Tradução <strong>de</strong> Sérgio<br />
Duarte. Brasília: Editora Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília, 1981. p. 153. e CAMPOS, Adalgisa Arantes. Consi<strong>de</strong>rações sobre a<br />
pompa fúnebre na Capitania das Minas – O século XVIII. Revista do Departamento <strong>de</strong> História, Belo Horizonte, FAICH-<br />
UFMG, N.4, 1987.p.11.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 96
<strong>de</strong>terminações testamentárias do <strong>de</strong>funto, ainda que consi<strong>de</strong>radas sagradas, eram passíveis <strong>de</strong><br />
questionamento se ferissem a Justiça.<br />
Se a Igreja zelava pela ritualística da morte, o Estado cuidava da efetivação da Justiça,<br />
que implicava na distribuição dos bens e <strong>no</strong> pagamento das dívidas <strong>de</strong>ixadas pelo falecido. Tais<br />
preocupações estão estampadas <strong>no</strong>s testamentos, nas disposições dos moribundos, os quais,<br />
diante da morte, se preocupavam, sobretudo, com dois tipos <strong>de</strong> problemas: a distribuição <strong>de</strong> seus<br />
bens para o conforto dos familiares e para a quitação das dívidas e a segurança da alma.<br />
Do que foi colocado, po<strong>de</strong>r-se-ia questionar as disposições estampadas <strong>no</strong> testamento em<br />
relação às exigências do Estado e da Igreja e/ou às preocupações que o moribundo tinha em<br />
relação sua família, amigos, alma e, até mesmo, credores. Para além das possíveis questões que<br />
po<strong>de</strong>m ser levantadas, resta o fato <strong>de</strong> que <strong>no</strong> testamento é palpável o exercício da Igreja em<br />
cuidar dos aspectos espirituais e do Estado em gerir as questões materiais que envolvem a morte.<br />
Antônio das Neves não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> observar, em várias passagens, a disposição dos<br />
referidos elementos na composição do testamento. O autor adverte, por exemplo, que o testador<br />
<strong>de</strong>veria explicitar a forma como seus bens seriam distribuídos:<br />
se forem muitos os her<strong>de</strong>iros, <strong>de</strong>ve-se <strong>de</strong>clarar se os/ institui pro rata e igualmente ou a cada um<br />
tanto. Po/<strong>de</strong>-se também fazer substituições <strong>de</strong> her<strong>de</strong>iros dizendo:/ Deixo a F. por meu her<strong>de</strong>iro e,<br />
morrendo ele/ [p.2] sem filhos, substituo por meu her<strong>de</strong>iro tal pessoa, Igreja, mosteiro etc.<br />
Antônio das Neves comenta, ainda, sobre regime <strong>de</strong> casamento, que <strong>de</strong>veria ser<br />
consi<strong>de</strong>rado <strong>no</strong> momento da morte <strong>de</strong> uma das partes. Ao se casarem, os <strong>no</strong>ivos estabeleciam<br />
como <strong>de</strong>veriam ser compartilhados seus bens e, na ocasião da morte <strong>de</strong> uma das partes, o<br />
estabelecido <strong>de</strong>veria ser cumprido.<br />
Declaro que meu casamento foi feito por carta <strong>de</strong> a/ meta<strong>de</strong>, ou por contrato <strong>de</strong> arras, ou dote, tanto<br />
<strong>de</strong>/ arras, tanto <strong>de</strong> dote e conforme a isto se partirá en/tre mim e minha mulher todo o monte; e<br />
porque me cabe,/ as duas partes são <strong>de</strong> meus her<strong>de</strong>iros, mulher e só a terça é minha,/ <strong>de</strong>la<br />
dispondo pelo modo o seguinte 12 .<br />
O que <strong>de</strong>termina o regime nupcial é o contrato <strong>de</strong> casamento ou, na falta <strong>de</strong>sse, a lei ou o<br />
costume. Na “forma <strong>de</strong> fazer testamento” constam três tipos <strong>de</strong> contratos: o <strong>de</strong> “carta <strong>de</strong> a<br />
meta<strong>de</strong>”, que pressupunha a comunhão universal <strong>de</strong> bens, e o <strong>de</strong> dote e/ou arras, que implicavam<br />
na distinção dos bens que a mulher adquiriu <strong>de</strong> seu pai (dote) ou antigo marido ou presente <strong>de</strong><br />
terceiros (arras) 13 . Os dois últimos, <strong>no</strong> caso do falecimento do homem, não entravam <strong>no</strong> cômputo<br />
dos bens inventariados <strong>de</strong>stinados à divisão e ao pagamento das dívidas. No caso do casamento<br />
<strong>de</strong> “carta a meta<strong>de</strong>”, todos os bens dos cônjuges <strong>de</strong>veriam ser inventariados sem distinções <strong>de</strong><br />
12 ANTT, Caixa 370, 4684.<br />
13 GILISSEN, John. Introdução a História do Direito. Tradução: António Manuel Hespanha e L.M. Macaísta Malheiros.<br />
3.ed. Lisboa: Fundação Caluste Gulbenkian, 2001. p. 585 e 593.<br />
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posse. Assim, po<strong>de</strong>r-se-ia contar com a totalida<strong>de</strong> dos bens da família para se pagar as dívidas,<br />
incluindo as do enterro, e o que restava era dividido em duas partes <strong>de</strong>stinadas ao marido e a<br />
mulher. A meta<strong>de</strong> que cabia ao cônjuge falecido era dividida em outras três partes, ficando duas<br />
partes para os her<strong>de</strong>iros e cônjuge, as Legitimas, e uma parte, a Terça, para o <strong>de</strong>funto: “as duas<br />
partes são <strong>de</strong> meus her<strong>de</strong>iros, mulher e só a terça é minha” 14 .<br />
Como mencionado, o gasto com o enterro, pompas, hábitos era pago com parte do monte-<br />
mor dos bens. Segundo o mo<strong>de</strong>lo construído por Antônio das Neves e conforme é possível se<br />
reconhecer na investigação dos testamentos, existe um espaço <strong>no</strong> qual o <strong>de</strong>funto explicitava suas<br />
expectativas com o próprio enterro: “or<strong>de</strong><strong>no</strong> que meu corpo seja sepultado em tal Igreja, <strong>no</strong>/ hábito<br />
<strong>de</strong> tal Religião e levado com tal acompanhamento/”. Como parte das cerimônias que<br />
acompanhariam sua morte, o moribundo encomendava também missas e sufrágios: “por minha<br />
alma <strong>de</strong>ixo tais sufrágios, tantas missas <strong>de</strong> esmola/ <strong>de</strong> tanto, tantos ofícios para o que <strong>de</strong>ixo tanto<br />
em dinheiro” 15 . Enquanto os gastos com o enterro eram cobertos com o grosso dos bens, as<br />
dívidas com missas e sufrágios seriam pagas com a Terça do falecido. Da Terça ele podia po<strong>de</strong>ria<br />
usufruir com maior liberda<strong>de</strong>, legando-a a parentes colaterais, por exemplo 16 . Mas, <strong>no</strong>rmalmente,<br />
com a Terça visava-se assegurar a alma diante do julgamento divi<strong>no</strong>, afinal “o funeral era<br />
insuficiente para colocar a alma <strong>no</strong> caminho do Paraíso, cabendo então, na contabilida<strong>de</strong> da<br />
morte a instituição e prática da terça” 17 .<br />
As quantias dispensadas em missas e pompas, bem como certas disposições da herança<br />
e outros elementos testamentais constituíam a vonta<strong>de</strong> explicita do moribundo. São espaços on<strong>de</strong><br />
eram formados os tecidos, nervos e tendões que davam rosto ao esqueleto montado por Neves.<br />
Particularida<strong>de</strong>s nas quais é possível distinguir relações pessoais dos fiéis com o fim inevitável.<br />
Em que pesem os estudos comparativos e quantitativos que se apercebem <strong>de</strong> constantes na<br />
relação do homem com a morte, o testamento não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> trazer a face do moribundo. No<br />
registro testamental estão estampadas suas <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iras preocupações e <strong>de</strong>sejos, ainda que neles<br />
se reflitam as marcas das crenças <strong>de</strong> um tempo. No testamento fica evi<strong>de</strong>nte tal vetor <strong>de</strong> relações<br />
firmado entre o indivíduo e as crenças da socieda<strong>de</strong>, tanto quanto suas relações, <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m<br />
administrativa e religiosa, com o Estado e a Igreja. De fato, em um momento tão particular como o<br />
14 Havia também as tercinhas, retirada do montante líquido dos bens em beneficio da alma do falecido, que vigoravam<br />
<strong>no</strong>s casos em que não havia testamento. (CHAMON, Carla Simone. “O bem da alma: a terça e a tercinha do <strong>de</strong>funto<br />
<strong>no</strong>s inventários do século XVIII da Comarca do Rio das Velhas”. Vária História. Belo Horizonte. N.12, 1993. p.63.)<br />
15 ANTT, Caixa 370, 4684.<br />
16 Conforme Antônio das Neves: “A Terça po<strong>de</strong> o testador dá-la a quem quiser/ e não é obrigado a dá-la aos parentes<br />
colaterais, ainda que sejam ir/mãos.” ANTT, Caixa 370, 4684.<br />
17 CHAMON, Carla Simone. “O bem da alma: a terça e a tercinha do <strong>de</strong>funto <strong>no</strong>s inventários do século XVIII da<br />
Comarca do Rio das Velhas”. Vária História. Belo Horizonte. N.12, 1993. p.65.<br />
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da morte, o moribundo não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> protagonizar um evento social que interferia <strong>no</strong> cotidia<strong>no</strong> da<br />
comunida<strong>de</strong> e merecia a atenção do Estado e da Igreja 18 .<br />
٭<br />
Assim como <strong>no</strong> ofício <strong>de</strong> um anatomista, ao historiador é permitido dissecar os<br />
testamentos e, conforme o interesse investigativo, botar à vista tendões, tecidos, órgãos. A obra<br />
<strong>de</strong> Antônio das Neves contribui com esse exercício, pois permite ao historiador visualizar a<br />
estrutura óssea dos testamentos. Nesse artigo, a estrutura montada por Neves foi utilizada para<br />
se apresentar um ou outro conjunto <strong>de</strong> ossos e articulações que, essencialmente, envolvem a<br />
ativida<strong>de</strong> administrativa da morte. Não se pensou, contudo, em supervalorizar uma espécie <strong>de</strong><br />
enfoque investigativo <strong>de</strong> caráter marcadamente administrativo. Talvez o mais profundo do homem<br />
seja, <strong>de</strong> fato, sua pele, individualida<strong>de</strong>. Todavia, não há como não reparar e ser seduzido pela<br />
contribuição que o trabalho <strong>de</strong> um “anatomista” como Antônio das Neves traz às pesquisas<br />
históricas, auxiliando na leitura dos testamentos e sugerindo possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pesquisas,<br />
algumas das quais apontadas neste artigo.<br />
٭<br />
“A Forma De Fazer Testamento” [p.1] 19<br />
“Em <strong>no</strong>me da Santíssima Trinda<strong>de</strong>, Pai, Filho e Espírito Santo; três/ pessoas distintas e um<br />
só Deus verda<strong>de</strong>iro. Sai/bam quanto este instrumento virem, como <strong>no</strong> a<strong>no</strong> do/ nascimento <strong>de</strong><br />
<strong>no</strong>sso Senhor Jesus Cristo <strong>de</strong> 1<strong>77</strong>etc, aos tantos/ dias, <strong>de</strong> tal mês, e em tal parte, eu N., estando<br />
em/ meu perfeito juízo e entendimento, que <strong>no</strong>sso senhor me/ <strong>de</strong>u, e doente em cama (se estiver),<br />
temendo-me da/ morte e <strong>de</strong>sejando por minha alma <strong>no</strong> caminho da/ salvação, por não saber o<br />
que <strong>no</strong>sso senhor <strong>de</strong> mim quer fa/zer e quando será servido levar-me para si, faço este/<br />
testamento na forma e teor seguinte:/<br />
Primeiramente, encomendo minha alma a Santíssima Trin/da<strong>de</strong>, que a criou, e rogo ao<br />
Eter<strong>no</strong> Padre que, pela morte/ <strong>de</strong> seu unigênito Filho, a queira receber, e a [Virgem Maria] e<br />
18 Conforme Philipe Áries, Edgar Morin consi<strong>de</strong>ra que, diante da morte, haveria uma tomada <strong>de</strong> consciência <strong>de</strong> si<br />
mesmo, da finitu<strong>de</strong> do ser. Ariès, por sua vez, acredita que existam outros critérios possíveis além da idéia <strong>de</strong><br />
“consciência <strong>de</strong> si mesmo”. Consi<strong>de</strong>ra que “a morte, tal como a vida, não é um ato apenas individual” e que, nesses<br />
momentos, os ritos e cerimônias marcam uma solidarieda<strong>de</strong> do indivíduo com a sua linhagem e sua comunida<strong>de</strong>”.<br />
(ARIÈS, Philippe. O homem diante da Morte. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Francisco Alves, 1982. p. 657 e 658) Em outra escala,<br />
po<strong>de</strong>ríamos visualizar o Estado e a Igreja, <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rando suas efetivas limitações, como elementos or<strong>de</strong>nadores<br />
<strong>de</strong>ssa comunida<strong>de</strong> e dos ritos e eventos que engendra.<br />
19 A transcrição buscou mo<strong>de</strong>rnizar a escrita, preservando, contudo, a separação das frases e i<strong>de</strong>ntificando a mudança<br />
<strong>de</strong> páginas.<br />
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Nossa [Senhora]/, ao Anjo <strong>de</strong> minha guarda, ao Santo do meu <strong>no</strong>me e ao N. da minha especial<br />
<strong>de</strong>/voção e a todos os Santos e Santas da Corte do céu/ sejam meus intercessores quando minha<br />
alma <strong>de</strong>ste mun/do partir para que vá gozar a bem-aventurança para que foi/ criada, porque como<br />
verda<strong>de</strong>iro cristão protesto viver e mor/rer na santida<strong>de</strong> da Fé católica e crer tudo o que tem e crê<br />
a santa m/adre igreja Romana, em cuja fé espero salvar a minha/ alma pelos merecimentos da<br />
paixão e morte <strong>de</strong> meu senhor/[p1v] Jesus Cristo.<br />
Declaro que sou natural <strong>de</strong> tal parte, por filho <strong>de</strong> Fula<strong>no</strong> e Fu/lana, legitimo (ou não) e que<br />
tenho (ou não) her<strong>de</strong>iros, meus/ filhos ou <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes ou ascen<strong>de</strong>ntes etc./<br />
Declaro que em todo o monte há esta fazenda/ (se a tem), tanto <strong>de</strong> raiz, tanto <strong>de</strong> móvel<br />
precioso/, fora as miu<strong>de</strong>zas da casa. Declaro que tenho tais dí/vidas (se tiver) que se hão <strong>de</strong><br />
pagar do monte por se/rem contraídas na administração da Família e tais/ dívidas se pagarão da<br />
minha meta<strong>de</strong> ou terça./<br />
Declaro que meu casamento foi feito por carta <strong>de</strong> a/ meta<strong>de</strong>, ou por contrato <strong>de</strong> arras, ou<br />
dote, tanto <strong>de</strong>/ arras, tanto <strong>de</strong> dote e conforme a isto se partirá en/tre mim e minha mulher todo o<br />
monte; e porque me cabe,/ as duas partes são <strong>de</strong> meus her<strong>de</strong>iros, mulher e só a terça é<br />
minha,/<strong>de</strong>la dispondo pelo modo o seguinte./<br />
Declaro que <strong>no</strong>meio e instituo por meu her<strong>de</strong>iro uni/versal, <strong>de</strong> tudo o que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> pagas<br />
as minhas dividas e cumpri/dos o meus legados restar da minha fazenda, a tal pessoa, Igreja,/<br />
mosteiro etc.<br />
* N.B. se forem muitos os her<strong>de</strong>iros, <strong>de</strong>ve-se <strong>de</strong>clarar se os/ institui pro rata e igualmente ou a<br />
cada um tanto. Po/<strong>de</strong>-se também fazer substituições <strong>de</strong> her<strong>de</strong>iros dizendo:/<br />
Deixo a F. por meu her<strong>de</strong>iro e, morrendo ele/ [p2] sem filhos, substituo por meu her<strong>de</strong>iro tal<br />
pessoa, Igreja, mosteiro etc./ 20<br />
Declaro que <strong>de</strong>ixo tais legados, a tais pessoas, Igreja, Com/frarias etc. Item: <strong>de</strong>claro que<br />
tal escravo <strong>de</strong>ixo forro ou com/ tantos a<strong>no</strong>s <strong>de</strong> serviço.<br />
**N.B. Primeiro se <strong>de</strong>ve por os a<strong>no</strong>s que quer que sirva e que, <strong>de</strong>pois/, o <strong>de</strong>ixa forro./<br />
antece<strong>de</strong>nte./<br />
Aqui se po<strong>de</strong> aprovar ou revogar, querendo, qualquer cé/dula, codicilo ou testamento<br />
***N.B. Ainda que outro testamento antece<strong>de</strong>nte tenha sido feito e/ firmado com juramento, po<strong>de</strong><br />
revoga-lo, exceto se for <strong>de</strong> coisas/ pias./<br />
20 A referência “NB”, que se encontrada <strong>no</strong> original, antece<strong>de</strong> as <strong>no</strong>tas do autor e são distinguidas, nessa tradução, pela<br />
apresentação em itálico.<br />
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Rogo a tal ou tais pessoas, que por serviço <strong>de</strong> Deus quei/ram ser meus testamenteiros./<br />
Or<strong>de</strong><strong>no</strong> que meu corpo seja sepultado em tal Igreja, <strong>no</strong>/ habito <strong>de</strong> tal Religião e levado com<br />
tal acompanhamento./ Por minha alma <strong>de</strong>ixo tais sufrágios, tantas missas <strong>de</strong> esmola/ <strong>de</strong> tanto,<br />
tantos ofícios para o que <strong>de</strong>ixo tanto em dinheiro./<br />
E por quanto esta é minha última vonta<strong>de</strong>, me assi<strong>no</strong> ou rogo/ ao escrivão que por mim<br />
assine, por eu não saber ou não po<strong>de</strong>r/ assinar. Em tal parte dia mês e a<strong>no</strong>./<br />
* N.B. No tempo da morte, po<strong>de</strong>-se fazer testamento cha/mado Nuncupativo, isto é, <strong>de</strong> palavras,<br />
sem nenhuma es/critura, diante <strong>de</strong> seis testemunhas homens ou mulheres, o qual testa/mento,<br />
contudo, não valera nem terá efeito, se o enfermo convalescer [p.3]/ segundo tem a or<strong>de</strong>nação do<br />
rei<strong>no</strong>./<br />
Em lugares <strong>de</strong>sertos, seja o testamento cerrado, ou aberto,/ bastam três testemunhas e,<br />
na campanha, bastão duas,na cida<strong>de</strong> e/ povoado serão necessárias seis./<br />
Segundo a or<strong>de</strong>nação do rei<strong>no</strong>, <strong>no</strong> tempo da morte,/ se po<strong>de</strong> fazer o testamento e<br />
nuncupativo <strong>de</strong> palavra e Sem etc./<br />
Os her<strong>de</strong>iros [meus] dão os <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, na falta <strong>de</strong>stes, os as/cen<strong>de</strong>ntes; os<br />
ascen<strong>de</strong>ntes mais propínquos, excluem os remotos,/ mas os filhos não impe<strong>de</strong>m os netos, mas<br />
estes todos herdam somente a/ parte que cabia a seu pai. A Terça po<strong>de</strong> o testador dá-la a quem<br />
quiser/ e não é obrigado a dá-la aos parentes colaterais, ainda que sejam ir/mãos.”<br />
Álvaro <strong>de</strong> Araújo Antunes é Professor da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Ouro Preto<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 101
Jovem Pesquisador:<br />
OS HOMENS RICOS DAS MINAS NAS MALHAS DO IMPÉRIO<br />
PORTUGUÊS<br />
Resumo: Este artigo busca analisar como a<br />
aquisição <strong>de</strong> títulos militares e <strong>de</strong> sesmarias<br />
po<strong>de</strong>ria se constituir em estratégias <strong>de</strong><br />
manutenção e consolidação do status por parte<br />
dos homens ricos <strong>de</strong> Minas Gerais <strong>no</strong> contexto <strong>de</strong><br />
Antigo Regime do Império Português.<br />
Palavras-chave: 1. Império Português; 2. Minas<br />
Colonial; 3. Homens ricos<br />
INTRODUÇÃO 1<br />
Prof. Dra. Carla Maria Carvalho <strong>de</strong> Almeida<br />
Ana Paula dos Santos Rangel<br />
Julia<strong>no</strong> Custódio Sobrinho<br />
Lívia Nascimento Monteiro<br />
Abstract: In this article we will try to show that the<br />
acquisition of military patents and sesmarias could<br />
be strategies of maintenance and consolidation of<br />
status used by the <strong>colonial</strong> elite of Minas Gerais.<br />
Key words: 1. Portuguese Empire; 2. Colonial<br />
Minas; 3. Rich men<br />
No a<strong>no</strong> <strong>de</strong> 1755 a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa foi <strong>de</strong>vastada por um forte terremoto. A fim <strong>de</strong> verificar<br />
quem po<strong>de</strong>ria enviar recursos para a reconstrução da capital do Império Português, o Conselho<br />
Ultramari<strong>no</strong> mandou que se elaborasse uma lista com o <strong>no</strong>me dos mais abastados homens da<br />
Capitania <strong>de</strong> Minas. Tal lista foi produzida em 1756 pelo então governador das Minas Domingos<br />
Pinheiro. Ela é o ponto <strong>de</strong> partida da pesquisa <strong>de</strong>senvolvida pela profª. Drª. Carla Maria Carvalho<br />
<strong>de</strong> Almeida. A partir dos 1061 <strong>no</strong>mes registrados é possível <strong>de</strong>linear quem eram os homens que<br />
constituíam a elite econômica nas Minas Colonial. A análise está centrada, porém, <strong>no</strong>s homens<br />
ricos das Comarcas <strong>de</strong> Vila Rica e do Rio das Mortes – são 443 <strong>no</strong>mes. O período abordado é o<br />
que vai <strong>de</strong> 1750 a 1822.<br />
A base teórico-metodológica <strong>de</strong>ste estudo provém <strong>de</strong> uma <strong>no</strong>va abordagem acerca da<br />
socieda<strong>de</strong> portuguesa do Antigo Regime e da inserção da colônia brasileira na lógica <strong>de</strong>sta.<br />
Lançando-se mão <strong>de</strong> conceitos como o <strong>de</strong> eco<strong>no</strong>mia do dom e eco<strong>no</strong>mia política <strong>de</strong> privilégios, os<br />
historiadores do período, têm constatado o caráter corporativo e hierarquizado das socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
Antigo Regime. No caso português, o que se verifica é a importância da eco<strong>no</strong>mia da mercê,<br />
conforme indicado por Fernanda Olival. A autora aponta para a lógica presente na socieda<strong>de</strong><br />
portuguesa que ressaltava a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> liberalida<strong>de</strong> da parte da figura do rei, a fim <strong>de</strong> que<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 102
este tivesse a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus súditos. “Servir”, “pedir”, “dar”, “receber” e “agra<strong>de</strong>cer” seriam<br />
atitu<strong>de</strong>s formadoras <strong>de</strong> um círculo vicioso, ao qual a socieda<strong>de</strong> dos séculos XVII e XVIII se sentiria<br />
vinculada, segundo sua posição e interesses. 2 Olival dá <strong>de</strong>staque ao mecanismo das mercês<br />
remuneratórias, que apontam para a obrigação do rei <strong>de</strong> remunerar os serviços prestados pelos<br />
seus vassalos. Neste sentido, o que se observa é a formação <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> reciprocida<strong>de</strong> ou re<strong>de</strong>s<br />
clientelares, que tinham como pólo superior o sobera<strong>no</strong>. Este, por sua vez, po<strong>de</strong>ria esten<strong>de</strong>r sua<br />
re<strong>de</strong> <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>s, garantindo o domínio sobre os súditos, embora tivesse seu po<strong>de</strong>r limitado<br />
pela necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> retribuir os serviços <strong>de</strong>stes.<br />
As pesquisas relacionadas ao ultramar português têm mostrado que a lógica corporativa e<br />
hierarquizada da socieda<strong>de</strong> portuguesa perpassava todo o território <strong>colonial</strong>. A eco<strong>no</strong>mia política<br />
<strong>de</strong> privilégios permitia a extensão da autorida<strong>de</strong> real por todo o Império Ultramari<strong>no</strong> Português,<br />
pois reforçava os laços <strong>de</strong> pertença e sujeição dos súditos <strong>de</strong> além mar, possibilitando a<br />
governabilida<strong>de</strong> das colônias. Perceber a inserção da elite mineira nesta lógica, sua relação com<br />
as instâncias centrais do Império, é objetivo da pesquisa mencionada inicialmente.<br />
Um dos corpos documentais analisados são os manuscritos avulsos referentes à capitania<br />
<strong>de</strong> Minas Gerais do Arquivo Histórico Ultramari<strong>no</strong> (microfilmados e digitalizados). Através <strong>de</strong>sta<br />
documentação é possível perceber quais as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> acesso às mercês reais por parte<br />
da elite local mineira – são consultados cartas, certidões, requerimentos, entre outros. Temos<br />
trabalhado mais intensivamente com os documentos relativos aos 332 homens ricos da Comarca<br />
<strong>de</strong> Vila Rica. Dentre estes 184 são encontrados recorrendo pelo me<strong>no</strong>s uma vez ao Conselho<br />
Ultramari<strong>no</strong> – 100 do Termo <strong>de</strong> Mariana e 84 do <strong>de</strong> Vila Rica. Realizamos a quantificação dos<br />
tipos <strong>de</strong> mercês mais solicitadas pelos homens ricos <strong>de</strong>ste último termo. Verificamos que há uma<br />
recorrência significativa dos pedidos relacionados a sesmarias e a patentes militares.<br />
Foram contabilizados 100 requerimentos que po<strong>de</strong>m ser classificados como solicitações <strong>de</strong><br />
mercês. Os pedidos vão <strong>de</strong> confirmações <strong>de</strong> sesmarias a requerimentos <strong>de</strong> licença para ir ao<br />
Rei<strong>no</strong>. Conforme o gráfico abaixo quase meta<strong>de</strong> dos requerimentos (45%) diz respeito a patentes<br />
militares, os casos envolvem pedido <strong>de</strong> provisão, <strong>de</strong> confirmação (a gran<strong>de</strong> maioria) e <strong>de</strong><br />
prorrogação em postos militares. Os pedidos relativos a sesmarias – solicitações e confirmações –<br />
representam 28% do total. De modo que, juntos, os requerimentos relativos a postos militares <strong>de</strong><br />
sesmarias perfazem o total <strong>de</strong> 73% do conjunto.<br />
1 Esse trabalho contou com financiamento do CNPQ e FAPEMIG<br />
2 OLIVAL, Fernanda. As Or<strong>de</strong>ns Militares e o estado Mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>. Honra, Mercê e Venalida<strong>de</strong> em Portugal (1641-1789).<br />
Lisboa: Estar Editora, 2001, p. 18.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 103
%<br />
50%<br />
45%<br />
40%<br />
35%<br />
30%<br />
25%<br />
20%<br />
15%<br />
10%<br />
5%<br />
0%<br />
Tipos <strong>de</strong> solicitações ao Conselho Ultramari<strong>no</strong> -<br />
Termo <strong>de</strong> Vila Rica<br />
1<br />
Solicitações<br />
Patente Militar<br />
Sesmaria<br />
Ofício civil<br />
Or<strong>de</strong>m Militar<br />
Ir ao Rei<strong>no</strong><br />
Nomear serventuário<br />
Tutelar os filhos<br />
Erguer engenho<br />
Fonte: Manuscritos Avulsos do Arquivo Histórico Ultramari<strong>no</strong> relativos a Minas Gerais.<br />
A partir dos resultados quantitativos e <strong>de</strong> alguns exemplos retirados da documentação,<br />
procuraremos analisar como a aquisição <strong>de</strong> títulos militares e <strong>de</strong> sesmarias po<strong>de</strong>ria se constituir<br />
em estratégias <strong>de</strong> manutenção e consolidação do status por parte dos homens ricos.<br />
1. ESTRATÉGIAS: A CONSOLIDAÇÃO DO STATUS<br />
1.1 Patentes militares e prestígio social<br />
A socieda<strong>de</strong> <strong>colonial</strong> possuía um alto grau <strong>de</strong> militarização. Des<strong>de</strong> o início da instalação da<br />
máquina do Estado Português na América, a Coroa procurou <strong>de</strong>legar os <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa do<br />
território <strong>colonial</strong>. Desta forma, cada colo<strong>no</strong> era um homem <strong>de</strong> guerra em potencial. 3 Há que se<br />
ressaltar que o próprio Estado Português se constituiu com um caráter militar, o que foi transmitido<br />
para a Colônia Americana.<br />
Um dos principais componentes do aparato militar constituído na América Portuguesa<br />
foram as Companhias <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nança. Elas se tornaram uma força militar regulamentada em<br />
3 SILVA, Kalina Van<strong>de</strong>rlei. O miserável soldo & a boa or<strong>de</strong>m da socieda<strong>de</strong> <strong>colonial</strong>: militarização e marginalida<strong>de</strong> na<br />
Capitania <strong>de</strong> Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação <strong>de</strong> Cultura da cida<strong>de</strong> do Recife, 2001, pp. 70 e<br />
71.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 104
território <strong>colonial</strong> em 1570, através do Regimento das Or<strong>de</strong>nanças, sendo introduzidas na<br />
Capitania das Minas em 1709, por meio <strong>de</strong> carta régia. 4 Segundo Ana Paula Pereira Costa o<br />
caráter nivelador das Or<strong>de</strong>nanças gerava gran<strong>de</strong>s expectativas <strong>no</strong>s colo<strong>no</strong>s do Brasil. Segundo a<br />
autora já que:<br />
(…) na América Portuguesa a hierarquia social se forjava na presença do escravismo, o corte social<br />
proposto pelas Or<strong>de</strong>nanças era uma oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> afirmação social e <strong>de</strong> distinção entre os<br />
homens livres, sendo por isso a posse <strong>de</strong> uma patente nesta força militar algo muito requisitado<br />
pelas elites locais. 5<br />
Os homens ricos das Minas procuraram tal tipo <strong>de</strong> inserção militar. Dois <strong>de</strong>les, Antônio<br />
Ramos dos Reis e José Álvares Maciel, ocuparam um dos postos mais altos na hierarquia da<br />
Companhia <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nança <strong>de</strong> Ouro Preto, a saber, o <strong>de</strong> capitão-mor. Tal patente conferia ao seu<br />
possuidor “<strong>no</strong>breza vitalícia”, po<strong>de</strong>ndo ser ocupada apenas pelas pessoas principais <strong>de</strong> cada<br />
localida<strong>de</strong>, sendo assim, atestava o prestígio daquele que a alcançasse. Antônio Ramos dos Reis,<br />
que ocupou o posto <strong>de</strong> capitão-mor <strong>de</strong> 1741-1761 6 , era o mais rico dos homens bons da Comarca<br />
<strong>de</strong> Vila Rica. Ocupara o importante cargo <strong>de</strong> Juiz dos Órfãos <strong>de</strong> Vila Rica, do qual pediu licença,<br />
além <strong>de</strong> possuir o Hábito da Or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Cristo, também um símbolo <strong>de</strong> prestígio do qual <strong>no</strong>s<br />
ocuparemos mais à frente. 7<br />
José Álvares Maciel, que substituiu Antônio Ramos dos Reis <strong>no</strong> posto <strong>de</strong> capitão-mor<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a morte <strong>de</strong>ste até finais do século XVIII, também não se limitou a cargos militares. Foi ainda<br />
Escrivão das Execuções <strong>de</strong> Vila Rica e Escrivão dos Órfãos <strong>de</strong> São João Del Rei. 8 É possível que<br />
a trajetória bem sucedida <strong>de</strong> José Álvares Maciel em direção à obtenção do título <strong>de</strong> Sargento Mor<br />
das Or<strong>de</strong>nanças, tenha relação com a sua união com uma jovem <strong>de</strong> uma das principais famílias<br />
da região o que reforçaria uma inserção ainda mais <strong>de</strong>stacada na socieda<strong>de</strong> local. Em 1755,<br />
Maciel unira-se em matrimônio a Juliana Francisca <strong>de</strong> Oliveira Leite, filha do também homem rico,<br />
Guarda-Mor Maximilia<strong>no</strong> <strong>de</strong> Oliveira Leite, membro <strong>de</strong> uma das melhores famílias da terra.<br />
Maximilia<strong>no</strong> era neto do lendário Fernão Dias Paes e sobrinho do Guarda-Mor Garcia Rodrigues<br />
Paes 9 .<br />
4 COSTA, Ana Paula Pereira. Atuação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res locais <strong>no</strong> Império Lusita<strong>no</strong>: uma análise das chefias militares dos<br />
Corpos <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nança e <strong>de</strong> suas estratégias na construção <strong>de</strong> sua autorida<strong>de</strong>. Vila Rica, (1735-1<strong>77</strong>7). Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />
UFRJ – Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em História Social, 2006. Dissertação <strong>de</strong> Mestrado, pp. 40 e 42.<br />
5 Ibi<strong>de</strong>m, p. 41.<br />
6 Ibi<strong>de</strong>m, p.50 e 51.<br />
7 Inventário post-mortem <strong>de</strong> Antonio Ramos dos Reis, data, arquivo; AHU/MG/Cx: 22, Doc: 52; Habilitação na Or<strong>de</strong>m <strong>de</strong><br />
Cristo.<br />
8 COSTA, Ana Paula Pereira. Atuação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res locais <strong>no</strong> Império Lusita<strong>no</strong>… op. cit., p. 51; AHU/MG/Cx: 57, Doc: 7;<br />
Cx: 71, Doc: 20; Cx: 75, Doc: 18.<br />
9 ALMEIDA, Carla Maria Carvalho <strong>de</strong>. Trajetórias imperiais: imigração e sistema <strong>de</strong> casamentos entre a elite mineira<br />
setecentista. In: ALMEIDA, Carla M. C. <strong>de</strong> e OLIVEIRA, Mônica Ribeiro <strong>de</strong> (orgs.). Nomes e números: alternativas<br />
metodológicas para a história econômica e social. Juiz <strong>de</strong> Fora: Ed. UFJF, 2006 (<strong>no</strong> prelo).<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 105
Não eram apenas os postos nas Companhias <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nança, porém, que estavam <strong>no</strong><br />
horizonte dos indivíduos da elite mineira. Havia, organizados na Colônia, ainda os corpos militares<br />
Regulares e Auxiliares, <strong>de</strong>signados como infantaria ou cavalaria. Na América Portuguesa, possuir<br />
um título militar era um meio <strong>de</strong> aquisição <strong>de</strong> status. Até mesmo a historiografia mais clássica já<br />
alertara para esta situação. Referindo-se à argumentação <strong>de</strong> Caio Prado Jr. a este respeito, Maria<br />
<strong>de</strong> Fátima Gouvêa afirma:<br />
(…) o autor também <strong>de</strong>stacou o fato <strong>de</strong> que a concessão <strong>de</strong> títulos militares constituía um elemento<br />
<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> peso em termos da hierarquização social promovida <strong>no</strong> seio <strong>de</strong> toda a população<br />
masculina, na medida em que quase toda ela era inserida em um corpo tão rigidamente organizado<br />
como aquele, dada sua natureza militar 10 .<br />
O caso <strong>de</strong> Simão da Rocha Pereira, homem rico da comarca <strong>de</strong> Vila Rica, é dig<strong>no</strong> <strong>de</strong> <strong>no</strong>ta<br />
neste sentido, principalmente em vista <strong>de</strong> sua ascensão <strong>de</strong>ntro do regimento militar do qual fez<br />
parte – a Companhia da Cavalaria Auxiliar <strong>de</strong> Ligeiros do distrito do Ouro Preto. No a<strong>no</strong> <strong>de</strong> 1736,<br />
Simão da Rocha Pereira começou a servir na praça <strong>de</strong> soldado na dita Companhia, posto que<br />
ocupou por mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z a<strong>no</strong>s. Em seguida passou ao posto <strong>de</strong> alferes, <strong>no</strong> qual permaneceu por<br />
mais <strong>de</strong> doze a<strong>no</strong>s, sendo, após, provido na praça <strong>de</strong> tenente. A<strong>no</strong>s <strong>de</strong>pois Simão da Rocha<br />
Pereira passou ao posto <strong>de</strong> Capitão por carta patente do Governador da Capitania Gomes Freire<br />
<strong>de</strong> Andrada, datada <strong>de</strong> 10 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1761. Embora, já estivesse <strong>no</strong> exercício do cargo Simão<br />
da Rocha Pereira precisava ainda da confirmação, pelo rei, <strong>de</strong> sua carta patente. Em 1765, o<br />
Governador das Minas, Luiz Diogo Lobo da Silva, enviou a proposta para a confirmação do dito<br />
homem <strong>no</strong> posto <strong>de</strong> Capitão ao rei D. José I. Para o envio <strong>de</strong>sta Simão teve que provi<strong>de</strong>nciar uma<br />
série <strong>de</strong> certidões que comprovassem sua competência. 11 A argumentação nelas utilizada é<br />
extremamente interessante, pois ajuda a esclarecer aspectos característicos da socieda<strong>de</strong> mineira<br />
<strong>colonial</strong>.<br />
Sendo esta mercê um benefício remuneratório pressupunha um serviço prestado ou por<br />
prestar. Desta forma, numa argumentação em que se pleiteava uma recompensa era preciso<br />
<strong>de</strong>stacar o exercício <strong>de</strong> um cargo e, para, além disso, o bom exercício <strong>de</strong>ste. O Coronel da<br />
Cavalaria da Or<strong>de</strong>nança <strong>de</strong> Vila Rica, Ma<strong>no</strong>el <strong>de</strong> Souza Ribeiro, afirma que quando foi alferes<br />
Simão <strong>de</strong>sempenhou <strong>no</strong> dito emprego qualquer ação <strong>de</strong> que o encarregaram havendo-se nela<br />
com prontidão e inteligência por zelo do Real Serviço. No posto <strong>de</strong> Capitão, segundo o Coronel,<br />
Simão cumpria tudo <strong>de</strong> que era encarregado sem queixa, pois era dotado <strong>de</strong> boa capacida<strong>de</strong> e<br />
prudência. As referências das <strong>de</strong>mais certidões levaram o Governador a concluir em sua proposta<br />
que Simão da Rocha Pereira tinha a distinção precisa, abundância <strong>de</strong> bens, ida<strong>de</strong> e saú<strong>de</strong><br />
10 GOUVÊA, M. F. S.. Re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Po<strong>de</strong>r na América Portuguesa - o caso dos Homens Bons do Rio <strong>de</strong> Janeiro, ca.1790-<br />
1822. Revista Brasileira <strong>de</strong> História, São Paulo, v. 18, n. 36, p. 297-330, 1998, p. 302.<br />
11 AHU/MG/Cx: 86, Doc: 10.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 106
proporcionada a servir qualquer serviço, que possa ocorrer por força do Real Serviço, trata-se<br />
com <strong>de</strong>cência e in<strong>de</strong>pendência, não tem culpa que o embarace, sendo, portanto, dig<strong>no</strong> da<br />
confirmação da patente. 12<br />
É importante ressaltar, também, que Simão da Rocha Pereira não se restringiu a cargos<br />
militares, assim como os dois homens ricos mencionados acima. Conforme se observa <strong>no</strong> gráfico,<br />
9% dos requerimentos dos homens ricos do Termo <strong>de</strong> Vila Rica versavam sobre ofícios não<br />
militares, a saber, os <strong>de</strong> tabelião, escrivão, juiz etc.. De modo que este tipo <strong>de</strong> mercê também<br />
estava <strong>no</strong> horizonte daqueles que formavam a elite <strong>colonial</strong>, embora, aparentemente, não fosse<br />
tão disseminada quanto a patente militar. Aliás, pelos exemplos <strong>de</strong> que dispomos é possível<br />
afirmar que ocupar cargos na administração <strong>colonial</strong> potencializava o acesso a postos militares <strong>de</strong><br />
maior prestígio. Simão conjugou os dois tipos <strong>de</strong> oficio. Foi almotacé, vereador e juiz ordinário.<br />
Segundo Ma<strong>no</strong>el <strong>de</strong> Souza Ribeiro, <strong>de</strong>vido à sua competência ele servira nesta Vila capital das<br />
Minas todos os cargos da República, sendo por último Juiz Ordinário, <strong>no</strong> qual cargo se houve com<br />
muita limpeza <strong>de</strong> mãos e gran<strong>de</strong> expedição das partes. 13 Nosso homem rico em questão foi<br />
também Tesoureiro da Fazenda Real das Minas Gerais, recebendo provimento para servir na dita<br />
ocupação em 1761. 14<br />
Simão da Rocha Pereira soube aproveitar-se muito bem da lógica da socieda<strong>de</strong> na qual<br />
estava inserido. Acumulou serviços que podiam a qualquer momento ser convertidos em mercês<br />
reais. Sua ascensão militar andou <strong>de</strong> mãos dadas com a aquisição <strong>de</strong> cargos políticos. Simão<br />
certamente gozava <strong>de</strong> significativo prestígio social e pô<strong>de</strong> estabelecer relações extremamente<br />
favoráveis. Contou com a boa referência do Ouvidor Geral da Comarca <strong>de</strong> Vila Rica, do Capitão-<br />
mor <strong>de</strong> Vila Rica – o também homem rico José Álvares Maciel –, do Coronel da Cavalaria, bem<br />
como dos vereadores e do Procurador da Câmara. Este membro da elite <strong>colonial</strong> mineira tirou<br />
vantagens dos mecanismos da eco<strong>no</strong>mia política <strong>de</strong> privilégios.<br />
Em 1766, o Capitão Simão da Rocha Pereira buscou adquirir mais um importante símbolo<br />
<strong>de</strong> prestígio – o Hábito da Or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Cristo. Para tanto, apelou para o caráter remuneratório das<br />
mercês concedidas pelo sobera<strong>no</strong> português. Entre os a<strong>no</strong>s <strong>de</strong> 1756 e 1757, o capitão fizera<br />
entrar mais <strong>de</strong> doze arrobas <strong>de</strong> ouro na Real Casa <strong>de</strong> Fundição <strong>de</strong> Vila Rica. E como V.Mag<strong>de</strong>.<br />
por sua Real Gran<strong>de</strong>za foi servido esperançar <strong>de</strong> mercês remunerativas a quem bem cumprisse<br />
as condições do Capº 9º § 4º da Lei do dito estabelecimento, pedia ao rei que houvesse por bem<br />
<strong>de</strong> o remunerar com a mercê do Hábito da Or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Cristo ou que for mais do seu real agrado. 15<br />
12 I<strong>de</strong>m.<br />
13 I<strong>de</strong>m.<br />
14 AHU/MG/Cx: 79, Doc: 9.<br />
15 AHU/MG/Cx: 88, Doc: 6.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 107
O privilégio do Hábito da Or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Cristo foi procurado também por pelo me<strong>no</strong>s outros<br />
três homens ricos – José Ferreira dos Santos, Paulo Pereira <strong>de</strong> Souza e Manuel Ribeiro dos<br />
Santos. Todos eles lançaram mão da mesma justificativa <strong>de</strong> merecimento utilizada por Simão da<br />
Rocha Pereira, o tamanho da riqueza que fizeram entrar na Real Casa <strong>de</strong> Fundição. Um <strong>de</strong>les,<br />
porém, se valeu, também, <strong>de</strong> outros argumentos. Vejamos.<br />
Manuel Ribeiro dos Santos alegou <strong>no</strong> seu requerimento, que como administrador geral<br />
dos dízimos da capitania <strong>de</strong> Minas Gerais, fez toda a diligência para que não se <strong>de</strong>sencaminhasse<br />
o ouro que entrou na Real Casa <strong>de</strong> Fundição, como fora <strong>de</strong>terminado pelo Conselho Ultramari<strong>no</strong>.<br />
E que os próprios generais e governador <strong>de</strong> Minas o tinham com gran<strong>de</strong> zelo. Ainda afirmou, que<br />
sempre se tratou como <strong>no</strong>bre (com cavalos e pagens que o acompanham) e que era <strong>no</strong>tório que<br />
era filho <strong>de</strong> pais sem mecânica. 16 Em outro documento José Caeta<strong>no</strong> Pereira, escrivão da<br />
Fazenda Real, alega que Manuel Ribeiro dos Santos nunca fora citado por dívidas e que tratava<br />
magnificamente a lei da Nobreza, <strong>no</strong> posto <strong>de</strong> capitão da Or<strong>de</strong>nança <strong>de</strong> Vila Rica. Quanto à<br />
companhia <strong>de</strong> pagens e cavalos, com ele marchavam vestidos e calçados nas ocasiões e funções<br />
que lhe eram atribuídas. Por fim, o escrivão afirma que Deus lhe fez mercê um dos maiores<br />
homens <strong>de</strong>stas Minas. 17 Notamos, a partir do requerimento <strong>de</strong> Manuel Ribeiro dos Santos que<br />
se verificava na Colônia o mesmo tipo <strong>de</strong> exigência para a obtenção do Hábito <strong>de</strong> Cristo que havia<br />
<strong>no</strong> Rei<strong>no</strong>. Fernanda Olival afirma:<br />
(…) quase todos os habilitandos tinham em comum o fato <strong>de</strong> viverem à maneira <strong>no</strong>bre (…) o modo<br />
<strong>de</strong> vida e a aparência era fundamental, em Portugal, para se conseguir o hábito. Daí o forte<br />
empenho <strong>no</strong> estilo <strong>de</strong> vida, por parte <strong>de</strong> quem tinha preocupações <strong>no</strong>bilitantes 18 .<br />
Não bastava ser <strong>no</strong>bre era preciso exteriorizar a <strong>no</strong>breza. Daí a preocupação em se viver<br />
<strong>no</strong>bremente, seguindo os códigos <strong>de</strong> representação da época, como andar com cavalos e pagens,<br />
sempre calçados e bem vestidos. A distinção <strong>de</strong>veria ser afirmada e reconhecida primeiramente<br />
<strong>no</strong> contexto local. Conforme Fernanda Olival:<br />
(…) quem tinha pretensões <strong>de</strong> ascensão, antes <strong>de</strong> iniciar qualquer processo <strong>de</strong> disputa antes das<br />
instituições centrais da monarquia, em regra começava por se esforçar <strong>no</strong> contexto local. Os<br />
códigos <strong>de</strong> representação eram mais visíveis e <strong>de</strong>marcados, boa parte das habilitações <strong>de</strong>cidia-se<br />
nesse contexto. 19<br />
Manuel Ribeiro dos Santos foi bem sucedido neste esforço <strong>de</strong> afirmação local. Segundo<br />
observamos <strong>no</strong> documento redigido pelo escrivão José Caeta<strong>no</strong> Pereira este homem rico era<br />
reconhecido como um dos maiores homens das Minas. Além <strong>de</strong> viver <strong>no</strong>bremente Manuel Ribeiro,<br />
16<br />
AHU/MG/Cx: 66, Doc: 56.<br />
17<br />
Ibi<strong>de</strong>m.<br />
18<br />
OLIVAL, Fernanda. Op. cit. P. 370.<br />
19 I<strong>de</strong>m.<br />
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era também filho <strong>de</strong> pais sem mecânica, ou seja, atendia ao requisito da limpeza <strong>de</strong> sangue,<br />
confirmando sua condição <strong>de</strong> <strong>no</strong>bre.<br />
Manuel Ribeiro dos Santos reunia, portanto, as exigências para receber a habilitação. Pelo<br />
visto, porém, seu sucesso nessa empreitada teve a ver, ainda, com o prestígio <strong>de</strong> que gozava<br />
junta à Coroa ou aos órgãos a ela ligados. Esta afirmação baseia-se <strong>no</strong> fato <strong>de</strong> que ele foi<br />
dispensado das "provanças" que <strong>no</strong>rmalmente eram realizadas para se conce<strong>de</strong>r ou não a<br />
habiltação ao interessado. Segue um trecho da habilitação concedida pela Mesa <strong>de</strong> Consciência e<br />
Or<strong>de</strong>ns:<br />
Hei por bem dispensar nas provanças e habilitações <strong>de</strong> sua pessoa, a que se <strong>de</strong>veria proce<strong>de</strong>r, e<br />
havê-lo por habilitado para receber o HOC <strong>de</strong> que lhe fiz mercê: dispensando-o, outrossim, da<br />
representação <strong>de</strong> quaisquer certidões e folhas corridas, que <strong>de</strong>vesse apresentar 20 .<br />
Há que se ressaltar, também, que para viver <strong>no</strong>bremente e, portanto, confirmar sua<br />
posição enquanto membros da elite, os homens ricos <strong>de</strong>veriam <strong>de</strong>sfrutar <strong>de</strong> cabedal. Isso <strong>no</strong>s<br />
leva à próxima estratégia <strong>de</strong> consolidação do status que i<strong>de</strong>ntificamos, a posse da terra.<br />
1.2 Sesmarias: da importância da posse <strong>de</strong> terras<br />
As concessões <strong>de</strong> sesmarias eram práticas do Império Português, que remontam a<br />
séculos antes da colonização na América. A lógica <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> mercê estava na doação <strong>de</strong><br />
terras, ditas incultas, a sesmeiros, ou melhor, homens bons que as recebiam como forma <strong>de</strong><br />
privilégios e retribuição pelos serviços prestados ao rei, que por sua vez agia <strong>no</strong> sentido <strong>de</strong> manter<br />
a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus súditos. Segundo as Or<strong>de</strong>nações Filipinas, as sesmarias <strong>de</strong>veriam ser<br />
permitidas àqueles que tivessem condições <strong>de</strong> realizar o bom aproveitamento das terras. Preceito<br />
que seria reafirmado <strong>no</strong> Regimento <strong>de</strong> 16<strong>77</strong>, dado ao Governador Geral Roque da Costa Barreto,<br />
que afirmava que na doação <strong>de</strong> sesmarias não se <strong>de</strong>veria conce<strong>de</strong>r terras aos indivíduos que não<br />
as cultivassem, causando assim um prejuízo ao bem público e aumento do Estado. 21<br />
Segundo Ângela Vianna Botelho, <strong>no</strong> verbete, Sesmarias, <strong>no</strong> Dicionário Histórico das Minas<br />
Gerais, esse tipo <strong>de</strong> exigência do Império Português, para a concessão <strong>de</strong> terras, jamais foi<br />
consi<strong>de</strong>rado para a América Portuguesa. Da mesma forma que as <strong>de</strong>marcações <strong>de</strong> terras, que<br />
<strong>de</strong>veriam respeitar a uma padronização também não foram praticadas à risca, para o caso<br />
<strong>colonial</strong>. A doação <strong>de</strong> sesmarias cabia, inicialmente, ao capitão donatário e, mais tar<strong>de</strong>, essa<br />
função seria <strong>de</strong>legada ao governador das capitanias. Assim, o governador <strong>de</strong>veria, em <strong>no</strong>me do<br />
rei, conce<strong>de</strong>r as mercês territoriais aos súditos que as requeressem junto ao ouvidor da capitania.<br />
20 Arquivo Nacional da Torre do Tombo – HOC - Maço 30 - n.2<br />
21 ROMEIRO, Adriana e BOTELHO, Ângela Vianna. Dicionário Histórico das Minas Gerais. Período Colonial. Belo<br />
Horizonte: Autêntica, 2003. p.274.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 109
A título <strong>de</strong> prover esses privilégios, o governador passava Carta <strong>de</strong> Sesmaria ao requerente e<br />
essa doação <strong>de</strong>veria posteriormente ser confirmada pelo Conselho Ultramari<strong>no</strong>. 22 Entretanto,<br />
ressaltamos que, mesmo diante <strong>de</strong> todas as leis criadas pelo Império Português para a concessão<br />
<strong>de</strong> sesmarias, a apropriação <strong>de</strong> terras ilegais foi prática corrente, da mesma forma que também<br />
era comum a concessão <strong>de</strong> terras por outras formas, que não somente a doação <strong>de</strong> sesmarias.<br />
Para o caso das Minas, a Coroa Portuguesa, <strong>no</strong> início do século XVIII, permitiu a<br />
concessão <strong>de</strong> 120 sesmarias para a área mineradora, a fim <strong>de</strong> que a crise do abastecimento fosse<br />
contida e a povoação nesses caminhos realizada. As terras <strong>de</strong>veriam ser <strong>de</strong>marcadas e aqueles<br />
sem concessão <strong>de</strong>veriam requerer suas cartas, para garantir posse sobre as terras. Contudo, isso<br />
não evitou as frau<strong>de</strong>s, que permitiram que várias sesmarias se concentrassem nas mãos <strong>de</strong> um<br />
mesmo homem. Além disso, muitas terras sofriam com a lentidão e as irregularida<strong>de</strong>s nas<br />
<strong>de</strong>marcações. O Alvará <strong>de</strong> 1795 veio a proibir a doação para aqueles que já possuíssem<br />
sesmarias, mas essa lei não fora respeitada. 23<br />
Como afirmamos, dos 100 requerimentos contabilizados como mercês, para o Termo <strong>de</strong><br />
Vila Rica, 73% perfazem pedidos referentes a postos militares e a sesmarias. Em relação às<br />
sesmarias, 28% do total representam requerimentos relativos a solicitações e confirmações <strong>de</strong><br />
posse <strong>de</strong> terras. A prática <strong>de</strong> concessão <strong>de</strong> sesmarias é algo verificado para toda a Capitania,<br />
<strong>de</strong>monstrando que essa estratégia era bastante comum nas comarcas das Minas. Vejamos a<br />
tabela:<br />
Sesmarias dos Homens Ricos do Termo <strong>de</strong> Vila Rica por Comarca – 1732-1<strong>77</strong>6<br />
CVR<br />
22 Ibi<strong>de</strong>m. p.275<br />
23 Ibi<strong>de</strong>m. p. 276<br />
CRM CRV CSF RJ NI TOTAL<br />
# % # % # % # % # % # % # %<br />
05 23,8 09 42,9 05 23,8 - - 01 4,75 01 4,75 21 100<br />
Fonte: Documentos Avulsos do Arquivo Histórico Ultramari<strong>no</strong> relativo a Minas Gerais.<br />
CVR= Comarca <strong>de</strong> Vila Rica<br />
CRM= Comarca do Rio das Mortes<br />
CRV= Comarca do Rio das Velhas<br />
CSF= Comarca do Serro Frio<br />
RJ= Capitania do Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />
NI= Local não i<strong>de</strong>ntificado<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 110
De acordo com Carla Almeida, em tese <strong>de</strong> doutoramento, a maioria dos homens ricos<br />
(67,8%), da Comarca <strong>de</strong> Vila Rica, se <strong>de</strong>dicava à ativida<strong>de</strong> mineradora. Aliás, o período que<br />
abarca os dados da tabela acima, insere-se <strong>no</strong> momento <strong>de</strong> auge minerador (1750-1<strong>77</strong>9), <strong>de</strong>scrito<br />
pela própria autora. 24 Para a Capitania das Minas o que se po<strong>de</strong> verificar é uma dinamização da<br />
eco<strong>no</strong>mia, em que era comum a prática <strong>de</strong> consorciar as ativida<strong>de</strong>s mercantis e que o<br />
enriquecimento <strong>de</strong> tais homens não vinha somente da ativida<strong>de</strong> mineradora. Sendo assim, ao se<br />
<strong>de</strong>dicarem à mineração, a maioria <strong>de</strong>sses homens po<strong>de</strong>ria possuir algum outro tipo <strong>de</strong> negócio,<br />
como a posse <strong>de</strong> terras; uma oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> diversificar seu patrimônio e garantir uma<br />
alternativa para o futuro.<br />
Um indício <strong>de</strong> que as sesmarias eram uma estratégia <strong>no</strong> sentido da diversificação<br />
econômica é que a maioria das sesmarias dos homens ricos do Termo <strong>de</strong> Vila Rica (42,9%) se<br />
localizava na Comarca do Rio das Mortes, região da Capitania que se <strong>de</strong>stacou por uma vocação<br />
econômica para a ativida<strong>de</strong> agropecuária. 25 Dessa forma, os homens que recorriam à Coroa na<br />
busca <strong>de</strong> parcelas <strong>de</strong> terra a faziam na tentativa <strong>de</strong> ampliar suas riquezas e, <strong>de</strong> alguma maneira,<br />
apostar em <strong>no</strong>vas posses na Comarca do Rio das Mortes - mesmo que suas ativida<strong>de</strong>s<br />
econômicas principais estivessem centradas <strong>no</strong> Termo <strong>de</strong> Vila Rica – era uma forma <strong>de</strong> esten<strong>de</strong>r<br />
seus negócios para outras ativida<strong>de</strong>s que também pu<strong>de</strong>ssem representar potencialida<strong>de</strong>s para o<br />
enriquecimento.<br />
De fato, após o auge minerador (1750-1<strong>77</strong>9) verificou-se uma fase <strong>de</strong> acomodação<br />
evolutiva (1780-1822), na qual a eco<strong>no</strong>mia das Minas se reor<strong>de</strong><strong>no</strong>u <strong>no</strong> sentido <strong>de</strong> estabelecimento<br />
<strong>de</strong> uma <strong>no</strong>va ativida<strong>de</strong> principal – a agropecuária. Nesse sentido, com a crise da mineração, a<br />
região do Rio das Mortes, on<strong>de</strong> a ativida<strong>de</strong> agropecuária já era bastante dinâmica, passou a<br />
ganhar gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque na eco<strong>no</strong>mia da Capitania, frente à eco<strong>no</strong>mia mineradora <strong>de</strong> Vila Rica. 26<br />
Além disso, dos requerimentos consultados referentes às sesmarias dos homens ricos do<br />
termo <strong>de</strong> Vila Rica apenas 05 (23,8%) remetiam a períodos anteriores a 1756, enquanto os<br />
<strong>de</strong>mais – 16 (76,2%) – eram datados <strong>de</strong> 1761 a 1<strong>77</strong>6. Isso talvez indique que <strong>no</strong> correr do tempo<br />
houve um aumento do interesse <strong>de</strong>stes sujeitos na posse <strong>de</strong> terra cultivável em toda a Capitania<br />
das Minas, principalmente a Comarca do Rio das Mortes.<br />
Com isso, percebemos que o momento <strong>de</strong> realização dos pedidos <strong>de</strong> sesmarias era<br />
pertinente com as transições econômicas que Minas passava e que da mesma forma, esse tipo <strong>de</strong><br />
mercê representava a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> enriquecimento para esses homens, a partir do cultivo e da<br />
24<br />
ALMEIDA, Carla. Homens ricos, homens bons: produção e hierarquização social em Minas <strong>colonial</strong>: 1750-1822. Tese<br />
<strong>de</strong> doutorado. Niterói: UFF, 2001. p. 234<br />
25<br />
Ibi<strong>de</strong>m. p. 235.<br />
26<br />
ALMEIDA, Carla. Alterações nas unida<strong>de</strong>s produtivas mineiras: Mariana – 1750-1850. Dissertação <strong>de</strong> Mestrado.<br />
Niterói: UFF, 1994. pp. 84-98<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 111
criação <strong>de</strong> animais nessas terras, numa produção voltada ao mercado inter<strong>no</strong> e até mesmo como<br />
uma alternativa, em relação à ativida<strong>de</strong> mineradora, predominante, até então, em suas unida<strong>de</strong>s<br />
produtivas. A aquisição <strong>de</strong> terras po<strong>de</strong>ria contribuir para suas estratégias econômicas, como<br />
forma <strong>de</strong> enriquecimento patrimonial, bem como <strong>de</strong> consolidação <strong>de</strong> seu status social e ampliação<br />
<strong>de</strong> suas re<strong>de</strong>s clientelares.<br />
Conclusão<br />
Para os membros da elite do termo <strong>de</strong> Vila Rica aqui analisados i<strong>de</strong>ntificamos duas<br />
estratégias para que se mantivessem enquanto tais – uma política e outra econômica. A primeira<br />
consistia na busca pela obtenção <strong>de</strong> ofícios militares, que conferiam aos seus possuidores status<br />
na socieda<strong>de</strong> Colonial, caracterizada por uma alta militarização. A segunda envolvia a aquisição<br />
<strong>de</strong> sesmarias como uma forma <strong>de</strong> garantir maior segurança financeira, estando <strong>no</strong> horizonte uma<br />
ativida<strong>de</strong> econômica alternativa à mineração. Tais estratégias não estavam, porém,<br />
<strong>de</strong>svinculadas, pelo contrário, estavam intrincadas. Já que a <strong>no</strong>breza precisava ser externalizada,<br />
o cabedal – riqueza – tornava-se necessário para que o modo <strong>de</strong> vida confirmasse tal distinção.<br />
Assim, o fato <strong>de</strong> serem homens ricos contribuía para que fossem reconhecidos enquanto homens<br />
bons. Ao mesmo tempo a aquisição <strong>de</strong> riquezas na forma <strong>de</strong> terras estava estreitamente<br />
relacionada à eco<strong>no</strong>mia da mercê, já que a sesmaria tratava-se <strong>de</strong> uma concessão real, estando<br />
inserida na lógica própria do Antigo Regime Português.<br />
Carla Maria Carvalho <strong>de</strong> Almeida é Professora do <strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> História da UFJF,<br />
Julia<strong>no</strong> Custódio Sobrinho e Lívia Nascimento Monteiro são bolsistas <strong>de</strong> iniciação<br />
científica e Ana Paula dos Santos Rangel é mestranda da UFRJ.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 112
Jovem Pesquisador:<br />
CÂMARAS MUNICIPAIS E PODER LOCAL: O “AVESSO DO<br />
DESEJO” METROPOLITANO<br />
Resumo:<br />
Este artigo tem como objetivo pautar as<br />
características gerais da burocracia camarária<br />
<strong>colonial</strong>, relacionando-a com sua “genitora”<br />
metropolitana <strong>no</strong> espaço <strong>de</strong> Minas Colonial. Ele<br />
faz parte <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> pesquisas sobre a<br />
Câmara Municipal marianense (1711-1800) cujo<br />
objetivo é estudar a auto<strong>no</strong>mia local e como se<br />
estabelecia a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relacionamentos entre<br />
coroa e elite mineira <strong>no</strong> período em questão.<br />
Além disso, o artigo busca ratificar como<br />
mecanismos metropolita<strong>no</strong>s foram capazes <strong>de</strong><br />
potencializar o po<strong>de</strong>r local, constituindo numa<br />
contradição <strong>no</strong> <strong>de</strong>vir das câmaras municipais em<br />
relação ao <strong>de</strong>sejo rei<strong>no</strong>l.<br />
Palavras-chave:<br />
Po<strong>de</strong>r, Império, colônia, Câmara municipal.<br />
Michelle Cardoso Brandão<br />
Abstract:<br />
This paper has a purpose to rule the basic<br />
<strong>colonial</strong> counsel bureaucracy’s characteristics,<br />
relating to its “metropolitan progenitor” at the<br />
region of Colonial Minas. It is part of a series of<br />
researches about the Marianense’s City counsel<br />
(1711-1800) whose goal is to study the local<br />
auto<strong>no</strong>my and how did the network between the<br />
crowd and Minas’ mining elite worked on the time<br />
period in question. And more, this article seeks to<br />
ratify about how did metropolitan mechanisms<br />
wore able to potentiate the local power, which<br />
build itself in contradiction to the city counsel’s<br />
duty as it relates to the King’s will.<br />
Key words:<br />
Power, Empire, Colony, City counsil<br />
Todo o processo <strong>de</strong> formação dos Estados Nacionais na Europa Mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou<br />
uma série <strong>de</strong> transformações as quais futuramente viriam traçar os <strong>no</strong>vos rumos do além mar. Ou<br />
seja, a reorganização dos feudos em tor<strong>no</strong> <strong>de</strong> um só rei e a constituição do Mundo Absolutista<br />
modificou o perfil europeu <strong>no</strong> momento em questão. Tais transformações não ocorreram somente<br />
numa primeira instância. Além <strong>de</strong> ditar a busca <strong>de</strong> <strong>no</strong>vos territórios, também influenciou na própria<br />
gestão da “remo<strong>de</strong>lação” do Novo Mundo; seja <strong>no</strong> seu aspecto político, econômico ou mesmo<br />
social.<br />
No que se refere ao aspecto burocrático, os <strong>de</strong>sígnios metropolita<strong>no</strong>s - <strong>no</strong>vas terras<br />
dominadas <strong>no</strong> além mar - também receberam traços europeus que, contudo, não foram capazes<br />
<strong>de</strong> superar as especificida<strong>de</strong>s regionais. No geral as características burocráticas que se formaram<br />
<strong>no</strong> Novo Mundo tiveram sua inspiração na metrópole, respeitando, contudo, a característica <strong>de</strong><br />
cada região. A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>colonial</strong> era variável, múltipla, nas diversas regiões do Império<br />
português; para cada região havia uma situação diversa cujo estatuto <strong>colonial</strong> era próprio e<br />
peculiar.<br />
Na verda<strong>de</strong>, o que ocorria é que Portugal tinha as suas <strong>no</strong>rmas, que <strong>no</strong> ultramar se<br />
portavam como regra geral, ressaltando o caráter judicial pluralista em que cada órgão <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 113
tinha resguardada sua auto<strong>no</strong>mia <strong>de</strong> ação, sendo subjugada e or<strong>de</strong>nada pelo centro <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />
real.<br />
Nesse sentido, as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r local contribuíam para o caráter centrífugo po<strong>de</strong>r; ou<br />
seja, o Império foi formado <strong>de</strong> modo pragmático, ou melhor, moldável às diversas circunstâncias<br />
do período e das várias localida<strong>de</strong>s. Assim, a chamada monarquia corporativa 1 funcionava <strong>de</strong><br />
modo que o po<strong>de</strong>r real compartilhasse o espaço político com outros po<strong>de</strong>res <strong>de</strong> maior ou me<strong>no</strong>r<br />
hierarquia; o direito legislativo da Coroa era limitado pela doutrina jurídica (ius commune) e pelo<br />
uso das práticas jurídicas locais.<br />
Os <strong>de</strong>veres políticos se submetiam aos <strong>de</strong>veres morais (graça, pieda<strong>de</strong>, misericórdia e<br />
gratidão) ou afetivos <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong> laços <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>, institucionalizados em re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> amigos e<br />
<strong>de</strong> clientes. E por fim, os oficiais régios gozavam <strong>de</strong> uma larga proteção em termos <strong>de</strong> direitos e<br />
atribuições, resultando em confronto com o rei visto que num “mesmo espaço <strong>de</strong> atuação”<br />
emerge, além do po<strong>de</strong>r real, aquele vindo dos indivíduos envolvidos com a localida<strong>de</strong>.<br />
Tudo isso colaborava em larga escala para que as câmaras tivessem o perfil da região em<br />
que estavam inseridas, uma vez que cada localida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mandava uma forma peculiar <strong>de</strong><br />
organização burocrática.<br />
As câmaras municipais, embora com o seu escopo <strong>de</strong>finido <strong>de</strong> modo que tais instituições<br />
representassem a força e o <strong>de</strong>sejo real <strong>no</strong> ultramar, foram um misto <strong>de</strong> instituição local e rei<strong>no</strong>l.<br />
Se por um lado serviram para efetivar as políticas da Coroa nas colônias, por outro serviram <strong>de</strong><br />
instrumento para consolidação do po<strong>de</strong>r local. Assim, mesmo as condições locais interferindo <strong>no</strong><br />
<strong>de</strong>vir das câmaras, a natureza administrativa foi herdada, ou mesmo trasladada da Europa para o<br />
<strong>mundo</strong> <strong>colonial</strong>. Como coloca Sampaio, “em outras palavras não é mais na dicotomia, mas sim na<br />
síntese entre influências externas <strong>de</strong> múltiplas origens e as especificida<strong>de</strong>s locais que<br />
encontramos a chave para a compreensão da socieda<strong>de</strong> <strong>colonial</strong>” 2 . Nesse sentido, observa-se a<br />
amplitu<strong>de</strong> característica da socieda<strong>de</strong> <strong>colonial</strong> cujas raízes burocráticas estariam do outro lado do<br />
ocea<strong>no</strong>.<br />
O fato <strong>de</strong> as câmaras coloniais terem sua estrutura trasladada <strong>de</strong> Portugal, fizeram <strong>de</strong>las<br />
instrumentos me<strong>no</strong>s eficientes do que o almejado. As poucas adaptações realizadas a fim <strong>de</strong><br />
a<strong>de</strong>quá-las melhor ao Novo Mundo não foram capazes <strong>de</strong> torná-las mais eficazes à política<br />
metropolitana; mas serviram <strong>de</strong> parâmetro estrutural burocrático à colônia. Dessa forma,<br />
“as instituições locais formalizadas existentes <strong>no</strong> território continental da monarquia portuguesa<br />
estavam longe <strong>de</strong> esgotar os focos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, autorida<strong>de</strong> e sociabilida<strong>de</strong> locais. No entanto, a sua<br />
1<br />
HESPANHA, Antônio Manuel (org.). História <strong>de</strong> Portugal: o Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Ed. Fundação<br />
Calouste Gulbenkian, 1984, p. 186.<br />
2<br />
SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá <strong>de</strong>. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas <strong>no</strong> Rio<br />
<strong>de</strong> Janeiro (c. 1650 – c. 1750), Rio <strong>de</strong> Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 318.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 114
presença multicelular fora suficientemente importante na estruturação do espaço social e político<br />
local para que apenas em algumas zonas ou regiões outros quadros organizacionais lhe<br />
disputassem a primazia” 3 .<br />
Ainda, contribuiu para que não houvesse total sucesso das câmaras <strong>no</strong> território<br />
ultramari<strong>no</strong> português, o fato <strong>de</strong> haver, em certas ocasiões, um <strong>de</strong>scompasso entre interesse local<br />
e metropolita<strong>no</strong>.<br />
“Também é certo que as falhas do gover<strong>no</strong> <strong>colonial</strong> provinham do relacionamento e satisfação <strong>de</strong><br />
certas exigências coloniais. (...) O gover<strong>no</strong> na colônia era muitas vezes ineficientes, <strong>de</strong> vez em<br />
quando opressivo e <strong>no</strong>rmalmente corrupto; raramente, porém era visto como instrumento <strong>de</strong><br />
dominação estrangeira” 4 .<br />
As câmaras foram instituições que mesclaram po<strong>de</strong>r real e local, imersas numa socieda<strong>de</strong><br />
cuja dinâmica interna construía aos poucos sua auto<strong>no</strong>mia e claro, isso também refletia <strong>no</strong>s<br />
órgãos burocráticos como <strong>no</strong> caso da câmara. A formação da câmara municipal foi como a <strong>de</strong> um<br />
quebra-cabeça, em que cada peça <strong>de</strong> característica própria contribuiu para a constituição da<br />
gran<strong>de</strong> peça final. Assim:<br />
“As diferentes câmaras municipais do Império ultramari<strong>no</strong> português, embora representassem<br />
especificida<strong>de</strong>s próprias das regiões e socieda<strong>de</strong>s nas quais se estabeleceram e ajudaram a criar,<br />
tinham muitos pontos em comum com suas congêneres metropolitanas. Não resta dúvida <strong>de</strong> que a<br />
formação do império se <strong>de</strong>u por meio da trasladação <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> mecanismos políticos,<br />
jurídicos e administrativos da metrópole para as mais recônditas regiões do globo, tanto <strong>no</strong> Oriente<br />
como <strong>no</strong> Oci<strong>de</strong>nte. No entanto, a diversida<strong>de</strong> sócio-cultural que os portugueses encontraram em<br />
sua faina colonizadora, principalmente <strong>no</strong> que diz respeito aos seus empórios orientais, criou<br />
matizes e adaptações <strong>no</strong> aparato institucional e legal transferido do rei<strong>no</strong>, colorindo <strong>de</strong> tons<br />
específicos as mesmas instituições adaptadas à realida<strong>de</strong> das diferentes colônias” 5 .<br />
A estrutura da câmara <strong>no</strong> além-mar seguia <strong>de</strong> perto os padrões europeus, segundo Boxer 6<br />
essa instituição fora responsável por supervisionar a distribuição e o arrendamento das terras<br />
municipais e comunais, lançar e cobrar taxas municipais, fixar preços <strong>de</strong> venda <strong>de</strong> produtos e<br />
provisões, verificar licença a ven<strong>de</strong>dores ambulantes e licenças <strong>de</strong> construção; além <strong>de</strong> assegurar<br />
a manutenção <strong>de</strong> obras públicas, regulamentar feriados públicos e procissões, sendo também<br />
responsável pelo policiamento da cida<strong>de</strong> e pela saú<strong>de</strong> e sanida<strong>de</strong> pública.<br />
Quanto aos termos fiscais, os rendimentos da câmara provinham diretamente <strong>de</strong> rendas da<br />
proprieda<strong>de</strong> municipal, além <strong>de</strong> multas passadas a infratores pelos almotacés e impostos<br />
municipais.<br />
3 MONTEIRO, Nu<strong>no</strong> Gonçalo. Os concelhos e as comunida<strong>de</strong>s. In: História <strong>de</strong> Portugal: o Antigo Regime (1620-<br />
1807).Lisboa: Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p. 270.<br />
4 SHWARTZ, Stuart B. Burocracia e socieda<strong>de</strong> <strong>no</strong> Brasil <strong>colonial</strong>. A suprema corte da Bahia e seus juízes: 1609 – 1751.<br />
São Paulo: Editora Perspectiva, 1979, pp. 294-295.<br />
55 BICALHO, Maria Fernanda. A cida<strong>de</strong> e o império: o Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>no</strong> século XVIII. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização<br />
brasileira, 2003, p. 367.<br />
6 BOXER, Charles R. O império <strong>colonial</strong> português (1415-1825). Lisboa: edições 70, 1969, pp. 265-266.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 115
O corpo <strong>de</strong> funcionários da câmara era formado por dois diferentes grupos: os oficiais da<br />
câmara (vereadores, juízes ordinários, procurador, escrivão e tesoureiro) e oficiais subordinados<br />
da municipalida<strong>de</strong> (almotacés, juízes <strong>de</strong> órfãos, alferes, porteiro, carcereiro e vereador <strong>de</strong> obras).<br />
Ainda, <strong>no</strong> caso da colônia brasileira, implementou-se um <strong>no</strong>vo cargo: o <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora, este veio<br />
a fim <strong>de</strong> assegurar o po<strong>de</strong>r real e diminuir a força e a auto<strong>no</strong>mia das elites locais. A Coroa via <strong>no</strong>s<br />
Juízes <strong>de</strong> Fora um meio <strong>de</strong> cercear o po<strong>de</strong>r local, uma vez que vinham <strong>de</strong> outras localida<strong>de</strong>s com<br />
o objetivo <strong>de</strong> servir ao rei; contudo, acabaram sendo envolvidos nas re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> clientelismo local.<br />
Esse foi um exemplo <strong>de</strong> modificação observada como necessária pelos portugueses, visando a<br />
a<strong>de</strong>quação do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> funcionários da câmara à realida<strong>de</strong> <strong>colonial</strong>.<br />
Percebe-se, pois que as câmaras coloniais seguiram “<strong>de</strong> perto o padrão das da metrópole,<br />
mas havia naturalmente diferenças marcadas, bem como gran<strong>de</strong>s semelhanças quanto ao modo<br />
como evoluíram subsequentemente” 7 . Dessa forma, apesar das adaptações que cada município<br />
fez na estrutura camarária a fim <strong>de</strong> adaptá-la à sua realida<strong>de</strong> elas também tiveram gran<strong>de</strong>s<br />
semelhanças com suas “genitoras” européias. E como se po<strong>de</strong> perceber, essa transposição da<br />
estrutura burocrática metropolitana para a colônia configurou num insucesso das câmaras, que<br />
mais que representar ao rei, serviram à elite local, inclusive como meio <strong>de</strong> perpetuar essas<br />
oligarquias.<br />
É necessário avaliar o raio <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r da metrópole em relação aos seus <strong>de</strong>sígnios. Em já<br />
mencionado trabalho, Bicalho 8 ressalta a dimensão do po<strong>de</strong>r da coroa levantando o que a seu ver<br />
seria uma <strong>de</strong>masiada amplitu<strong>de</strong> da intervenção real na vida dos seus súditos. Ainda, chama a<br />
atenção para a relevante expressão da monarquia portuguesa que extrapolava seu domínio para<br />
o ultramar e isso teria gran<strong>de</strong> importância para o processo <strong>de</strong> centralização monárquica próprio do<br />
absolutismo europeu Mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>.<br />
É criterioso, contudo, reavaliar a real proporção da atuação da monarquia portuguesa,<br />
inclusive <strong>no</strong> que se refere ao ultramar que é o espaço principal estudado em <strong>no</strong>sso trabalho sobre<br />
a Câmara Municipal <strong>de</strong> Mariana. Não se trata <strong>de</strong> negar o po<strong>de</strong>r da monarquia portuguesa, mas <strong>de</strong><br />
relativizar sua amplitu<strong>de</strong> e atuação, principalmente <strong>no</strong>s <strong>de</strong>sígnios tão distantes como <strong>no</strong> caso do<br />
Brasil. Po<strong>de</strong>mos observar, inclusive, <strong>no</strong> caso marianense como características peculiares <strong>de</strong>ram<br />
uma “face” à burocracia local, inclusive contribuindo para sua auto<strong>no</strong>mia frente à metrópole<br />
portuguesa.<br />
Mesmo a Ida<strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna tendo sido <strong>de</strong> fato marcada pelo processo <strong>de</strong> formação das<br />
monarquias absolutas, Portugal teve um específico caráter <strong>de</strong> se firmar como uma monarquia<br />
7 Ibi<strong>de</strong>m, p. 268.<br />
8 BICALHO, Maria Fernanda. Op. Cit., pp. 340-341.<br />
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permeada <strong>de</strong> características singulares. Estas fizeram <strong>de</strong>la uma Coroa cujo po<strong>de</strong>r se concretizou<br />
<strong>de</strong> modo bastante pulverizado pelas diversas instituições representativas que <strong>de</strong>la emanavam e<br />
<strong>de</strong> certo modo a enfraquecia. Assim, as câmaras municipais que a princípio tiveram um <strong>no</strong>tável<br />
<strong>de</strong>vir para a Coroa por serem a representação do rei <strong>no</strong> ultramar, principalmente nas vilas e<br />
municípios do Novo Mundo conquistado; teve ainda, um irrefutável papel para a socieda<strong>de</strong><br />
<strong>colonial</strong>. Ou seja, se por um lado elas foram o meio que Portugal encontrou em implantar sua<br />
política <strong>no</strong>s territórios conquistados, por outro, percebe-se que a câmara foi o local em que se<br />
configurou o po<strong>de</strong>r das elites coloniais. A criação <strong>de</strong>sses órgãos nas colônias significou o ponto<br />
chave para a institucionalização do po<strong>de</strong>rio e fortalecimento <strong>de</strong>ssas elites locais. Ou ainda, o fato<br />
da Coroa intervir assegurando que os cargos camarários fossem ocupados pelos homens bons da<br />
terra – aquela parcela abastada da socieda<strong>de</strong> – contribuiu para a consolidação do po<strong>de</strong>r da elite e<br />
até para perpetuação do seu status. Desse modo, longe <strong>de</strong> contrariar a elite <strong>colonial</strong>, a Coroa<br />
acabou colaborando para que ela tivesse na câmara municipal um aliado que não serviu<br />
estritamente a Portugal, mas também alimentou àqueles que mais e mais <strong>de</strong>tinham o verda<strong>de</strong>iro<br />
po<strong>de</strong>r em Minas: a sua elite. Desse modo, observa-se que:<br />
“ao contrário do que muitas vezes se afirma, as Câmaras coloniais raramente se tornaram meros<br />
carimbos <strong>de</strong> borracha e ‘sim senhores’ acríticos perante os funcionários superiores do Gover<strong>no</strong>, que<br />
se tratasse <strong>de</strong> vice-reis ou <strong>de</strong> Juizes do Supremo. Com todos os seus erros, e mesmo <strong>no</strong>s casos<br />
em que vereadores se haviam tornado um conventículo oligárquico autoperpetuador, continuavam a<br />
representar os interesses locais <strong>de</strong> outras classes <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r para além da sua, pelo me<strong>no</strong>s até certo<br />
ponto. O seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> influência e prestígio foram consi<strong>de</strong>ráveis durante todo o período <strong>colonial</strong><br />
(...)” 9<br />
As câmaras municipais enquanto instituições sob o regimento real, tiveram na metrópole<br />
um importante significado, uma vez que representariam os interesses do rei <strong>no</strong> além-mar.<br />
Contudo, uma outra face <strong>de</strong>ssas instituições se revelou imersa nas práticas costumeiras da re<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> clientelismo e troca <strong>de</strong> favores; acabando também por se integrar à socieda<strong>de</strong> <strong>colonial</strong> atuando<br />
<strong>no</strong> próprio sistema como fomentadoras da elite <strong>colonial</strong>.<br />
A socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Minas setecentista teve nas câmaras um lugar que também aten<strong>de</strong>u às<br />
suas <strong>de</strong>mandas. O caso marianense ratifica como a localida<strong>de</strong> teve num órgão <strong>de</strong> “comando real”<br />
o efetivador <strong>de</strong> boa parte <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>mandas. Percebe-se que a Câmara Municipal <strong>de</strong> Mariana,<br />
embora sendo um órgão <strong>de</strong> comando real, atendia às necessida<strong>de</strong>s da região. Os dados <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>spesa da Câmara Municipal <strong>de</strong> Mariana <strong>no</strong> período <strong>de</strong> 1711 a 1800 revelam que a receita era,<br />
em boa medida, investida na própria colônia; seja em festivida<strong>de</strong>s religiosas, melhorias na infra-<br />
estrutura da cida<strong>de</strong> e outros. O que inevitavelmente contribui para a auto<strong>no</strong>mia regional.<br />
9 BOXER, Charles R. Op Cit., p. 274.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 117
Outras questões ainda, influenciaram na contradição <strong>de</strong>ssas instituições. Sob esse<br />
aspecto, Carla Anastásia 10 , apoiada em Marx e em outros estudiosos trata a questão da<br />
auto<strong>no</strong>mização da burocracia em relação ao centro <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r dizendo que medida em que emerge<br />
um corpo <strong>de</strong> funcionários, este tem a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> usurpar o po<strong>de</strong>r e tornar possível o<br />
<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> estratégias próprias.<br />
Nesse sentido, apropriado exemplo é o das câmaras municipais <strong>no</strong> âmbito <strong>colonial</strong> que<br />
mesmo sendo um órgão real, teve sua auto<strong>no</strong>mia respeitada e seu envolvimento com a elite local<br />
favorecendo esta, bem evi<strong>de</strong>nte. As câmaras constituíram uma ferramenta <strong>de</strong> concretização da<br />
aliança entre po<strong>de</strong>r local e central, um “locus” <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r misto em que na medida do possível<br />
efetivavam a realização das políticas reinóis <strong>no</strong> ultramar e favorecia a elite local que sempre<br />
estava envolvida em políticas voltadas para interesses próprios. É viável esclarecer que não se<br />
trata <strong>de</strong> uma oposição entre po<strong>de</strong>r local e coroa, mas <strong>de</strong> uma aliança entre ambas, embora tal<br />
oposição pu<strong>de</strong>sse eventualmente ocorrer. Bicalho, diz ser esta uma “combinação <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong><br />
dividida e negociada” 11 o que representa um ganho para ambas as partes. É visível a contradição<br />
das câmaras municipais enquanto órgãos criados a fim <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>rem unicamente às políticas<br />
reais. Assim, para além <strong>de</strong> uma autorida<strong>de</strong> negociada e dividida com a Coroa, esta é uma<br />
auto<strong>no</strong>mia adquirida graças ao dinamismo <strong>colonial</strong>. Nu<strong>no</strong> Gonçalo Monteiro, percebendo tal<br />
po<strong>de</strong>rio municipal, completa ainda que ele é fruto da consolidação das oligarquias camarárias e<br />
mais, “em síntese a monarquia portuguesa não parece ter contrariado as tendências oligárquicas<br />
do po<strong>de</strong>r municipal, pelo contrário, tê-las-á potenciado” 12 . Configura-se, então, a duplicida<strong>de</strong> ou<br />
contradição das câmaras municipais que estiveram longe <strong>de</strong> ser o mecanismo <strong>de</strong> consolidação da<br />
unificação do po<strong>de</strong>r real; mas sim um meio <strong>de</strong> aliança que corroía a centralização do po<strong>de</strong>r real e<br />
alimentava a auto<strong>no</strong>mia <strong>colonial</strong>. Ao tratar da gran<strong>de</strong>za, em termos <strong>de</strong> importância, da câmara<br />
para a socieda<strong>de</strong> <strong>colonial</strong>, Boxer citando um provérbio alenteja<strong>no</strong> ressalta: “quem não estava na<br />
Câmara estava na Misericórdia” 13 , ratificando a importância <strong>de</strong>ssas instituições na região em que<br />
estavam instaladas.<br />
A própria Coroa portuguesa <strong>de</strong>u força à auto<strong>no</strong>mia <strong>colonial</strong>, por meio <strong>de</strong> dois mecanismos:<br />
pelo caráter polissi<strong>no</strong>dal burocrático português e pela venalida<strong>de</strong> dos cargos burocráticos inserido<br />
<strong>no</strong> sistema <strong>de</strong> troca <strong>de</strong> favores entre rei e municipalida<strong>de</strong>.<br />
10<br />
ANASTASIA, Carla. Vassalos rebel<strong>de</strong>s: a violência nas Minas na primeira meta<strong>de</strong> do século XVIII. Belo Horizonte:<br />
C/Arte, 1998, p. 21<br />
11<br />
BICALHO, Maria Fernanda. Cida<strong>de</strong>s e elites coloniais: re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e negociação. In: Revista Vária História. Belo<br />
Horizonte: UFMG, n.29, Janeiro <strong>de</strong> 2003, p. 37.<br />
12<br />
MONTEIRO, Nu<strong>no</strong> Gonçalo Os concelhos e as comunida<strong>de</strong>s. In: História <strong>de</strong> Portugal: o Antigo Regime (1620-1807).<br />
Lisboa: Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p. 289.<br />
13<br />
BOXER, Charles R. Op. Cit., p. 275.<br />
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O transplante da burocracia portuguesa ao ultramar, trouxe consigo peculiarida<strong>de</strong>s,<br />
inclusive aquela que fazia do modo <strong>de</strong> governar algo semelhante ao funcionamento do corpo<br />
huma<strong>no</strong>, sendo resguardadas e respeitadas as funções <strong>de</strong> cada órgão, cuja centralida<strong>de</strong> seria<br />
exercida pelo rei. Assim, as várias instâncias <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, incluindo as câmaras, tiveram sua<br />
individualida<strong>de</strong> respeitada pelo rei, o que tornaria, aos poucos, possível a construção <strong>de</strong><br />
importantes bases para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r autô<strong>no</strong>mo, adquirido através da própria<br />
dinâmica interna à colônia e concedido pela Coroa. No lugar <strong>de</strong> servir unicamente à consolidação<br />
dos <strong>de</strong>sejos reais na colônia, as câmaras, enquanto órgãos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r emanado do rei,<br />
possibilitaram o <strong>de</strong>senvolvimento e a força do po<strong>de</strong>r local. Assim, não se trata <strong>de</strong> uma oposição,<br />
mesmo porque “as possessões ultramarinas portuguesas, apesar <strong>de</strong> distintas por suas condições<br />
peculiares e localização geográfica, eram subordinadas ao sistema judicial da metrópole” 14 . Ou<br />
seja, o po<strong>de</strong>r e a or<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> fato eram <strong>de</strong> posse da Coroa, quero dizer, o centro governador<br />
das <strong>de</strong>mais instâncias <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r era o rei.<br />
Ainda, a venalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cargos oficiais e a troca <strong>de</strong> favores entre Coroa e elite local,<br />
colaborou para o processo <strong>de</strong> auto<strong>no</strong>mia <strong>de</strong>ssa elite, bem como para seu crescente fortalecimento<br />
ao longo do período <strong>colonial</strong>. Os oficiais camarários não eram indicados pela Coroa, mas eleitos<br />
entre os principais da terra, <strong>de</strong>certo não po<strong>de</strong>riam ter o peso do sangue negro, mouro ou ju<strong>de</strong>u<br />
correndo em suas veias. Esta seria a <strong>no</strong>breza da terra, não necessária e diretamente portuguesa<br />
e/ou <strong>de</strong> ascendência <strong>no</strong>bre, mas possuía as qualida<strong>de</strong>s necessárias para po<strong>de</strong>r alcançar o título<br />
<strong>de</strong> <strong>no</strong>breza <strong>no</strong> <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> sua vida, seja por mérito (troca <strong>de</strong> favores para com o rei) ou aquisição<br />
(compra). Desse modo, a ocupação <strong>de</strong> cargos institucionais importantes abria a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
se fazer valer o <strong>de</strong>sejo <strong>colonial</strong> em <strong>de</strong>trimento ao da Coroa.<br />
Percebe-se que a <strong>no</strong>breza que aos poucos se constituía <strong>no</strong> ultramar era bem diferente<br />
daquela que vivia <strong>no</strong> rei<strong>no</strong>. No caso europeu, a <strong>no</strong>breza foi “uma categoria institucional, enquanto<br />
que na colônia esta aparece como uma categoria social” 15 que se firmou na perpetuação do<br />
status da elite local e nas relações <strong>de</strong> clientelismo daí <strong>de</strong>correntes. A “cristalização das oligarquias<br />
locais” é tratada ainda por Bicalho em seu artigo sobre as câmaras municipais <strong>no</strong> império<br />
português, focalizando o fato <strong>de</strong> que <strong>no</strong> século XVII a Coroa interviu <strong>de</strong> modo a garantir que os<br />
ofícios nas vereações e os cargos nas or<strong>de</strong>nanças fossem ocupados pelos “principais da terra”.<br />
No século XVII foi frequentemente verificado que membros da burguesia alcançaram a<br />
<strong>no</strong>breza e, claro, certo padrão social. Isso via casamento, ativida<strong>de</strong> mercantil, compra <strong>de</strong> ofícios<br />
ou mesmo a aquisição por mérito. Aqui, centralizaremos <strong>no</strong>ssas atenções <strong>no</strong>s dois últimos casos.<br />
Os ofícios <strong>de</strong> Minas Gerais pertenciam todos ou quase à Coroa o que segundo Sampaio “facilitava<br />
14 SHWARTZ, Stuart R. Op Cit., p. 15.<br />
15 MONTEIRO, Nu<strong>no</strong> Gonçalo. Op Cit.; p. 291.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 119
o acesso dos negociantes através <strong>de</strong> arrematação das suas serventias por tempo <strong>de</strong>terminado” 16 .<br />
Ou comprava os cargos, os que podiam fazê-lo, ou ainda, eles po<strong>de</strong>riam ser obtidos por mérito<br />
como foi o caso <strong>de</strong> Antônio Pereira Machado 17 <strong>de</strong>sbravador <strong>de</strong> Minas, fundador <strong>de</strong> Antônio<br />
Pereira e Bonfim do Mato Dentro. Tendo conhecimento disso e <strong>de</strong> posse dos dados da receita e<br />
<strong>de</strong>spesa da Câmara Municipal <strong>de</strong> Mariana <strong>no</strong> período <strong>de</strong> 1711 a 1800, foi-<strong>no</strong>s possível<br />
estabelecer uma ligação entre as fontes. O cargo <strong>de</strong> recebedor das receitas câmara marianense<br />
<strong>no</strong> a<strong>no</strong> <strong>de</strong> 1712 foi o dito Antônio Pereira Machado, um importante <strong>de</strong>sbravador <strong>de</strong> Minas Gerais<br />
que acabou inserido <strong>no</strong> sistema que privilegiava a elite local e dava ao indivíduo oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimento e aquisição <strong>de</strong> auto<strong>no</strong>mia. Configura-se nesse caso um exemplo <strong>de</strong> troca <strong>de</strong><br />
favores entre Coroa e elite <strong>colonial</strong> <strong>no</strong> sentido da primeira retribuir ao indivíduo um serviço<br />
prestado. Tal situação é caracterizada por alguns autores baseados em Marcel Mauss como<br />
‘eco<strong>no</strong>mia do dom e contra dom’ em que ao prestar um serviço ao rei o indivíduo era favorecido<br />
<strong>de</strong> alguma forma, seja por honras, liberda<strong>de</strong> ou até privilégios como afirma Bicalho 18 .<br />
A ocorrência <strong>de</strong> fatos como este, em boa medida contribuiu para a reprodução do sistema<br />
e da hierarquia social fortalecendo a elite e a concentração social existente.<br />
A auto<strong>no</strong>mia e a dinâmica interna <strong>colonial</strong> não passaram <strong>de</strong>spercebidamente, a Coroa as<br />
reconheceu e diante disso buscou meios <strong>de</strong> minimizá-las a fim <strong>de</strong> cercear o po<strong>de</strong>r da elite<br />
<strong>colonial</strong>. No final do século XVIII o juiz ordinário – eleito pelo povo, fora substituído pelo juiz <strong>de</strong><br />
fora – <strong>no</strong>meado pela Coroa. Essa foi a maneira que Portugal encontrou para tentar “limitar o<br />
controle exercido por elementos do po<strong>de</strong>r local; (...) foram suportes do gover<strong>no</strong> real a nível<br />
local.” 19 . O papel <strong>de</strong> presi<strong>de</strong>nte da Câmara exercido pelo Juiz <strong>de</strong> Fora, numa perspectiva<br />
metropolitana, teria a função <strong>de</strong> reduzir a auto<strong>no</strong>mia <strong>colonial</strong>, porém, isso não foi observado uma<br />
vez que além da distância física entre os órgãos centrais da coroa e as diversas regiões coloniais,<br />
havia também uma distância relacional caracterizada principalmente pela atuação da elite local<br />
em função dos interesses seus e daquilo que a socieda<strong>de</strong> na qual estava inserido <strong>de</strong>mandava;<br />
seria, pois, uma regionalização dos interesses. O juiz <strong>de</strong> fora acabou sendo envolvido nas re<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> relacionamento e clientelismo <strong>colonial</strong>, servindo também aos interesses da comunida<strong>de</strong> da<br />
qual ele agora fazia parte.<br />
“A socieda<strong>de</strong> <strong>colonial</strong> <strong>de</strong>monstrava uma incrível habilida<strong>de</strong> para abrasileirar os burocratas – ou até<br />
a burocracia – isto é, integrá-los <strong>de</strong>ntro dos sistemas existentes <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e apadrinhamento. Os<br />
16 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá <strong>de</strong>. Op Cit., p.306.<br />
17 FONSECA, Cláudia Damasce<strong>no</strong>. O espaço Urba<strong>no</strong> <strong>de</strong> Mariana: sua formação e suas representações. In: Termo <strong>de</strong><br />
Mariana: história e documentação. Ouro Preto: Editora UFOP, Novembro <strong>de</strong> 2004, p.29.<br />
18 BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras ultramarinas e o gover<strong>no</strong> do império. In: O antigo regime <strong>no</strong>s trópicos: a<br />
dinâmica imperial portuguesa (séc. XVI-XVIII). pp. 204-205.<br />
19 SHWARTZ, Stuart B., Op Cit., p. 06.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 120
atrativos oferecidos pelos grupos e indivíduos da colônia e os <strong>de</strong>sejos dos magistrados davam início<br />
ao processo <strong>de</strong> interpenetração” 20 .<br />
Dessa forma, os juizes <strong>de</strong> fora não representaram um obstáculo capaz <strong>de</strong> brecar ou<br />
atrapalhar a dinâmica interna <strong>colonial</strong> rumo à auto<strong>no</strong>mia, foram somados, integrados ao sistema<br />
que acabaram por servir visando o bem próprio.<br />
Em toda essa re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relacionamentos intra<strong>colonial</strong> resi<strong>de</strong> e é construído pouco a pouco o<br />
avesso do <strong>de</strong>sejo metropolita<strong>no</strong> que apostou nas câmaras municipais e <strong>no</strong>s juizes <strong>de</strong> fora como<br />
mecanismos <strong>de</strong> “resguardo do po<strong>de</strong>r rei<strong>no</strong>l”. Ao oposto do esperado, o papel <strong>de</strong> ambos foi<br />
corrompido e contraditório; atuando crescentemente a favor <strong>de</strong>ssas localida<strong>de</strong>s, servindo-as e<br />
contribuindo <strong>de</strong> modo crescente para a auto<strong>no</strong>mia regional que estas adquiriram.<br />
Michelle Cardoso Brandão é Bacharel em História pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong><br />
Ouro Preto<br />
20 Ibi<strong>de</strong>m, pp. 251-252.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 121
Jovem Pesquisador:<br />
A IRMANDADE DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO DOS PRETOS DO<br />
ALTO DA CRUZ E OS ENTERROS DE ESCRAVOS: VILA RICA,<br />
SÉCULO XVIII<br />
Resumo:<br />
As <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> erigidas por "homens negros"<br />
revelam-se como fontes <strong>de</strong> fundamental<br />
importância para compreensão da socieda<strong>de</strong><br />
<strong>colonial</strong>. A morte, momento tão importante <strong>no</strong><br />
setecentos, ficou sob cuidado das <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong><br />
religiosas.O propósito <strong>de</strong>ste estudo consiste em<br />
analisar como a Irmanda<strong>de</strong> do Rosário dos Pretos<br />
do Alto da Cruz, em Vila Rica, na segunda<br />
meta<strong>de</strong> do século XVIII, cuidou dos enterros <strong>de</strong><br />
<strong>escravos</strong> e como estes rituais foram indicadores<br />
<strong>de</strong> outros aspectos da vida na Colônia.<br />
Palavras-chave:<br />
Escravidão, Irmanda<strong>de</strong>s, Morte.<br />
INTRODUÇÃO<br />
Juliana Aparecida Lemos Lacet<br />
Abstract:<br />
The lay botherhoods erected by "black men” are<br />
revealed as sources of fundamental importance<br />
for un<strong>de</strong>rstanding of the <strong>colonial</strong> society. The<br />
<strong>de</strong>ath, moment so important in the seven<br />
hundred, was un<strong>de</strong>r care of the lay botherhoods.<br />
The purpose of this study it consists of analyzing<br />
as the lay botherhoods of Rosário of the Blacks of<br />
the High of Cruz, in Rich Villa, in the second half<br />
of the century XVIII, took care of the slaves'<br />
funerals and as these rituals they were indicative<br />
of a<strong>no</strong>ther aspects of the life in the Colony.<br />
Key words:<br />
Slavery, Lay botherhoods, Death.<br />
A presença das <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> leigas em Minas Gerais guarda certas especificida<strong>de</strong>s.<br />
Diferentemente <strong>de</strong> outras regiões do Império Português, aqui, em razão da proibição da fixação <strong>de</strong><br />
or<strong>de</strong>ns religiosas, a assistência social e o culto católico foram <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> dos leigos. Por<br />
isso, a compreensão mais ampla da socieda<strong>de</strong> <strong>colonial</strong> mineira não po<strong>de</strong> prescindir da<br />
abordagem sistemática da vida confrarial. Também as <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> erigidas por "homens negros"<br />
revelam-se como fontes <strong>de</strong> fundamental importância para compreensão <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> que<br />
tinha em sua base a escravidão. A morte, momento tão ritualizado <strong>no</strong> setecentos, ficou sob<br />
cuidado <strong>de</strong>ssas associações.O propósito <strong>de</strong>ste estudo consiste em analisar como a Irmanda<strong>de</strong> do<br />
Rosário dos Pretos do Alto da Cruz, em Vila Rica, na segunda meta<strong>de</strong> do século XVIII, cuidou dos<br />
enterros <strong>de</strong> <strong>escravos</strong> e como estes rituais foram indicadores <strong>de</strong> outros aspectos da vida na<br />
Colônia. Fontes primordiais, que subsidiaram <strong>no</strong>ssa discussão, as atas <strong>de</strong> óbito, constituíram<br />
relatos individuais que, não raro, expressaram modos <strong>de</strong> viver coletivos e informaram sobre o<br />
comportamento <strong>de</strong>ste grupo social.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 122
RELIGIOSIDADE E IRMANDADES NAS MINAS DO SÉCULO XVIII<br />
A religião católica chegou a Minas Gerais em fins do século XVII, junto aos primeiros<br />
ban<strong>de</strong>irantes. O estabelecimento do Estado português e a ocupação do território estiveram<br />
ligados intimamente à extração do ouro, fator que contribuiu para que nesta região a religião<br />
católica tri<strong>de</strong>ntina tomasse rumos peculiares, diversos em relação às outras áreas da colônia.<br />
A "primeira missa" foi celebrada em 1696 pelo Pe. Canjica, às margens do Ribeirão do<br />
Carmo, num acampamento ban<strong>de</strong>irante <strong>de</strong> “caçadores” <strong>de</strong> ouro, cena que refletiu o símbolo do<br />
sacerdote e da fé que se estabeleceram em Minas. A “igreja primitiva” <strong>de</strong> Minas muitas vezes,<br />
<strong>de</strong>dicou-se mais à <strong>de</strong>scoberta do ouro do que à salvação das almas. 1 A construção e<br />
estabelecimento <strong>de</strong> igrejas, também foram <strong>de</strong>terminados pelo <strong>de</strong>scobrimento <strong>de</strong> datas auríferas.<br />
A imigração para esta região se caracterizou pela busca dos metais preciosos, e, ao redor<br />
<strong>de</strong>stas <strong>de</strong>scobertas, nasceu uma socieda<strong>de</strong> complexa, com a maior concentração populacional do<br />
Brasil Colônia, tornando-se o epicentro da vida econômica, com crescimento e urbanização<br />
rápidos. A escravidão, como em toda Colônia, foi base <strong>de</strong> sustentação econômica da capitania, e<br />
a região abrigou o mais expressivo contingente <strong>de</strong> <strong>escravos</strong> da colônia. A realida<strong>de</strong> social da área<br />
recém <strong>de</strong>scoberta pautou-se pelo caráter aventureiro daqueles que estavam em busca da riqueza,<br />
e esta situação gerou um clima <strong>de</strong> insegurança e incerteza.<br />
É a partir do gover<strong>no</strong> <strong>de</strong> Antônio <strong>de</strong> Albuquerque, que o Estado parece ter tomado as<br />
"ré<strong>de</strong>as do processo" iniciando a organização administrativa das Minas. Em 1711 Albuquerque<br />
funda Mariana, Vila Rica e Sabará. Em 1713 D. Brás Baltazar da Silveira inaugura São João Del<br />
Rei, em 1714 Caeté e Serro e em 1715 Pitangui. 1714 foi também o a<strong>no</strong> da criação das três<br />
primeiras comarcas da capitania: Vila Rica, Rio das Velhas e Rio das Mortes. Este primeiro<br />
período foi encerrado por Assumar em 1718, com a criação da vila <strong>de</strong> São José Del Rei 2 .<br />
Quanto à Igreja, seus primeiros passos para a “maiorida<strong>de</strong>” nas Minas serão o Triunfo<br />
Eucarístico, em 1733, e a criação do bispado <strong>de</strong> Mariana em 1745. O catolicismo que se<br />
estabeleceu em Minas, como em toda a América Portuguesa, caracterizou-se por elaboradas<br />
manifestações externas <strong>de</strong> fé: procissões, funerais, culto <strong>de</strong> imagens, louvor aos santos e templos<br />
- cuja abundante pompa barroca era uma festa para os olhos.<br />
Diretamente ligadas a esse contexto <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrimento e instalação, nasceram as<br />
Irmanda<strong>de</strong>s Leigas em Minas. Para Caio César Boschi, a história das confrarias, arquiconfrarias,<br />
1<br />
CARRATO, José Ferreira. Igreja, Iluminismo e Escolas Mineiras Coloniais. São Paulo: Companhia Editora Nacional,<br />
1968, p. 28.<br />
2<br />
SOUZA, Laura <strong>de</strong> Mello. Os Desclassificados do Ouro: a pobreza mineira <strong>no</strong> século XVIII. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Graal,<br />
1982. p. 104.<br />
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<strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> e or<strong>de</strong>ns terceiras se confun<strong>de</strong> com a própria história social das Minas Gerais do<br />
setecentos 3 .<br />
As confrarias estavam entre as instituições pilares do império português. Em todos os<br />
lugares on<strong>de</strong> a colonização portuguesa se estabeleceu, a vida associativa encontrou terre<strong>no</strong> fértil<br />
<strong>de</strong> expansão. Surgidas na Europa medieval, as <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> difundiram-se <strong>no</strong> contexto da reforma<br />
tri<strong>de</strong>ntina. De feição predominantemente leiga, essas associações tinham como fim o culto a um<br />
santo <strong>de</strong> <strong>de</strong>voção e se <strong>de</strong>dicavam também a obras <strong>de</strong> carida<strong>de</strong> voltadas para seus próprios<br />
membros ou para pessoas carentes não associadas 4 .<br />
Os dois pilares <strong>de</strong>ssas associações eram a propagação da doutrina e a filantropia social 5 .<br />
Na construção das igrejas e na realização das festas as <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> também tiveram papel<br />
primordial. Entre as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>senvolvidas pelas <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong>, assegurar as pompas fúnebres<br />
constituía uma das mais importantes obrigações. Enterrar os mortos era colocado <strong>no</strong> mesmo nível<br />
<strong>de</strong> carida<strong>de</strong> que alimentar os famintos, abrigar os peregri<strong>no</strong>s, vestir os nus, visitar os doentes e os<br />
encarcerados 6 .<br />
No contexto da Minas Gerais do século XVIII as <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> leigas alcançaram gran<strong>de</strong><br />
importância, por isso, a compreensão <strong>de</strong> suas funções, não po<strong>de</strong> prescindir do estudo dos<br />
aspectos da vida cotidiana <strong>de</strong>ste período histórico. É inevitável que o estudo das <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong><br />
leigas esteja inserido nas condições do po<strong>de</strong>r político, social e econômico vigentes nas Minas na<br />
época, uma vez que, uma análise <strong>de</strong>sconexa faria com que perdêssemos suas dimensões<br />
religioso-culturais e assim caíssemos <strong>no</strong> risco <strong>de</strong> <strong>no</strong>s resvalar em território abstrato.<br />
O papel das duas mais importantes instituições da cultura portuguesa, que se instalaram<br />
em Minas, Igreja e Estado, sob o Regime <strong>de</strong> Padroado 7 , parece não ter se cumprido efetivamente.<br />
O Estado Absolutista português impôs àquela capitania uma política religiosa que não permitia a<br />
presença e fixação <strong>de</strong> or<strong>de</strong>ns religiosas, sob alegação <strong>de</strong> que os religiosos eram os responsáveis<br />
pelo extravio do ouro e por insuflar o não pagamento <strong>de</strong> impostos. Des<strong>de</strong> os primeiros<br />
<strong>de</strong>scobrimentos <strong>de</strong> ouro nas Gerais, os religiosos, em geral, mas principalmente os fra<strong>de</strong>s, eram<br />
apontados como dos que mais contribuíam para a fuga do metal 8 .<br />
O gover<strong>no</strong> metropolita<strong>no</strong>, apesar da maciça cobrança tributária, <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> cumprir<br />
necessida<strong>de</strong>s básicas da população, ficava então a cargo dos leigos o preenchimento <strong>de</strong> diversas<br />
lacunas da vida social e espiritual. Neste sentido, eram as <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> que se propunham a<br />
3<br />
BOSCHI, Caio César. Os leigos e o Po<strong>de</strong>r: Irmanda<strong>de</strong>s leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo:<br />
Ática, 1986, p.1<br />
4<br />
VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Objetiva, 2000, pp. 316- 317<br />
5<br />
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e Filantropos. Brasília: Editora Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília, 1981, p. 93.<br />
6<br />
ARIÈS, Philipp. O homem Diante da Morte. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Francisco Alves, 1989, p. 198.<br />
7<br />
BOXER, Charles R. O Império Colonial Português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1981.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 124
facilitar a vida social, <strong>de</strong>senvolvendo inúmeras tarefas que, pelo me<strong>no</strong>s em princípio, seriam da<br />
alçada do po<strong>de</strong>r público, assim se afirmavam como uma das principais forças sociais presentes<br />
em Minas <strong>colonial</strong> 9 .<br />
Nesta capitania, os sodalícios erguiam-se sob o consentimento do Estado e <strong>de</strong>tinham todo<br />
um aparato legal, compromissos e hierarquia. Caracterizavam-se e se formavam basicamente a<br />
partir da divisão social: brancos, livres, <strong>escravos</strong>, ricos e pobres 10 . E, pertencer a uma <strong>de</strong>las era,<br />
pois, essencial para a organização e i<strong>de</strong>ntificação dos homens <strong>no</strong>s núcleos urba<strong>no</strong>s que iam se<br />
constituindo. As <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> serviam ao reconhecimento dos lugares sociais <strong>de</strong> cada um <strong>no</strong> seio<br />
da comunida<strong>de</strong>, e eram locais para exercício <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> prerrogativas, inclusive o direito <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sfrutar <strong>de</strong> um funeral dig<strong>no</strong> 11 .<br />
Sob esta perspectiva, as Irmanda<strong>de</strong>s obtiveram gran<strong>de</strong> representativida<strong>de</strong>, principalmente<br />
as associações erguidas por “homens <strong>pretos</strong>”, visto que estas foram um dos únicos ou talvez o<br />
único meio <strong>de</strong> associação permitido aos <strong>escravos</strong>. E ainda, pela história social <strong>de</strong>ste período estar<br />
intimamente ligada à escravidão. As <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> eram a oportunida<strong>de</strong> que <strong>escravos</strong>, tinham <strong>de</strong><br />
garantir auxílio, reconhecimento e participação na socieda<strong>de</strong> 12 .<br />
No momento da morte, gran<strong>de</strong> parte da socieda<strong>de</strong> recorria às Irmanda<strong>de</strong>s, para obter os<br />
sacramentos da Igreja e a realização <strong>de</strong> seus sepultamentos. Brancos e forros buscavam a<br />
"pompa funerária", a fim <strong>de</strong> garantir reconhecimento da socieda<strong>de</strong>. Escravos procuravam <strong>no</strong><br />
máximo sepultamentos dig<strong>no</strong>s. Analisadas por este ângulo, as Irmanda<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m <strong>no</strong>s revelar o<br />
comportamento da Igreja em relação à socieda<strong>de</strong>, à administração dos sacramentos da morte aos<br />
<strong>escravos</strong> e as formas <strong>de</strong> sepultamento dos mesmos. Em <strong>no</strong>ssa pesquisa, voltamos a atenção<br />
para o tratamento oferecido pela Igreja, a <strong>escravos</strong> na hora da morte. Nosso objeto <strong>de</strong> estudo foi<br />
uma Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>voção negra, a Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nossa Senhora do Rosário dos Pretos do Alto<br />
da Cruz, em Vila Rica.<br />
A base empírica <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssa pesquisa consistiu na leitura dos registros <strong>de</strong> óbitos <strong>de</strong><br />
<strong>escravos</strong>. Analisamos os aspectos da morte, a fim <strong>de</strong> que eles superassem simples condição<br />
fisiológica e fossem lançados na esfera da cultura.<br />
8<br />
HOLANDA, Sérgio Buarque <strong>de</strong>. Metais e Pedras Preciosas. In: História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo,<br />
Difel, 1960. p.2<strong>77</strong>.<br />
9<br />
BOSCHI, Caio César. Op. Cit., p.21-29<br />
10<br />
SALLES, Fritz Teixeira. Associações Religiosas <strong>no</strong> Ciclo do Ouro. Belo Horizonte. Centro <strong>de</strong> Estudos Mineiros. p.47<br />
11<br />
FURTADO, Júnia Ferreira. Transitorieda<strong>de</strong> da vida, eternida<strong>de</strong> da morte.p. 402. In: JANCSÓ, István, KANTOR, Íris.<br />
Festa: Cultura e Sociabilida<strong>de</strong> na América Portuguesa. vol.I. São Paulo. Editora da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo. 2001<br />
12<br />
Ibid., p.403.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 125
OS ENTERROS DE ESCRAVOS PELA IRMANDADE DE NOSSA SENHORA DO<br />
ROSÁRIO DOS PRETOS DO ALTO DA CRUZ.<br />
“E porque é alheio da razão e pieda<strong>de</strong> cristã, que os senhores, que se serviram <strong>de</strong> seus<br />
<strong>escravos</strong> em vida, se esqueçam <strong>de</strong>les em sua morte, lhes encomendamos muito, que pelas almas<br />
<strong>de</strong> seus <strong>escravos</strong> <strong>de</strong>funtos man<strong>de</strong>m dizer missas, e pelo me<strong>no</strong>s sejam obrigados a mandar dizer<br />
por cada um escravo, ou escrava que lhe morrer, sendo <strong>de</strong> quatorze a<strong>no</strong>s para cima, a missa <strong>de</strong><br />
corpo presente, pela qual se dará a esmola acostumada”. 13 .<br />
Em seu livro quarto, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia or<strong>de</strong>navam aos<br />
senhores que cuidassem do sepultamento <strong>de</strong> seus <strong>escravos</strong> e escravas, mas nem sempre os<br />
senhores seguiam os preceitos da Igreja. Prova <strong>de</strong> tal realida<strong>de</strong>, sendo constantes os relatos <strong>de</strong><br />
abando<strong>no</strong> <strong>de</strong> corpos <strong>de</strong> <strong>escravos</strong> <strong>no</strong> Brasil colônia. Espaços como o Campo da Pólvora em<br />
Salvador eram o <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> dos suicidas, crimi<strong>no</strong>sos, indigentes e <strong>escravos</strong> 14 . A praça da Matriz <strong>de</strong><br />
Maceió também era um <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>pósitos <strong>de</strong> corpos, on<strong>de</strong> se enterravam <strong>escravos</strong> 15 . Em Olinda,<br />
<strong>escravos</strong> eram enterrados na beira da praia, em sepulturas rasas, on<strong>de</strong> os “cachorros quase sem<br />
esforço achavam o que roer e os urubus o que pinicar” 16 . No Rio <strong>de</strong> Janeiro, também não<br />
existiam lugares a<strong>de</strong>quados para se enterrar os <strong>escravos</strong> 17 .<br />
Em Salvador, a Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Domingos do Convento <strong>de</strong> São Francisco chegou a<br />
fazer uma petição ao rei, na qual informava a precária situação dos <strong>de</strong>funtos <strong>escravos</strong>:<br />
(...) “e da mesma sorte acontece freqüentemente lançarem os <strong>de</strong>funtos corpos <strong>no</strong>s adros<br />
das igrejas principalmente <strong>de</strong> religiosos os quais se vêem precisados a dar lhe sepultura, pois tem<br />
os senhores por mais barato esta inumanida<strong>de</strong> do que experimentar as <strong>de</strong>moras, e embaraços<br />
das averiguações da sua pobreza, com que muitas vezes, além <strong>de</strong> se corromper primeiro o<br />
cadáver, fica totalmente dificultada a sepultura” 18 .<br />
Em 1693, D. Pedro II, mostrando preocupação com as condições dos negros <strong>no</strong> Brasil,<br />
escrevera ao cabido da catedral do Rio <strong>de</strong> Janeiro mandando assegurar a todos os <strong>escravos</strong><br />
moribundos os últimos sacramentos. O rei fora informado <strong>de</strong> que os sacramentos não eram<br />
13 Constituições Primeiras do feitas e or<strong>de</strong>nadas pelo ilustríssimo e reverendíssimo senhor D. Sebastião Monteiro da<br />
Vi<strong>de</strong> 5º, Arcebispo do dito Arcebispado, e do Conselho <strong>de</strong> Sua Majesta<strong>de</strong>: propostas e aceitas Sy<strong>no</strong>do Diocesa<strong>no</strong>, que<br />
o dito Senhor celebrou em 12 <strong>de</strong> junho do an<strong>no</strong> <strong>de</strong> 1707.1ª edição Lisboa 1719 e Coimbra. 1720. São Paulo: Typografia<br />
2 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> Antonio Louzada Antunes, 1853.Livro 4, título LI, p.293.<br />
14 REIS, João José. A Morte é uma Festa: Ritos fúnebres e Revolta Popular <strong>no</strong> Brasil do Século XIX. São Paulo:<br />
Companhia das Letras,1995., p. 193.<br />
15 COARACY, Vivaldo. O Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>no</strong> século XVII. Citado por: CAMPOS, Adalgisa Arantes. Notas Sobre Rituais<br />
<strong>de</strong> Morte na Socieda<strong>de</strong> Escravista. Revista do <strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> História da UFMG, nº6, 1988. p.109- 122<br />
16 FREYRE, Gilberto. Casa Gran<strong>de</strong> e Senzala: Formação da socieda<strong>de</strong> da família brasileira sob o regime <strong>de</strong> eco<strong>no</strong>mia<br />
patriarcal. 10 ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro, José Olympio, 1961. 2v p. 713<br />
17 SOARES, Mariza <strong>de</strong> Carvalho. Devotos da Cor: I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> étnica, religiosida<strong>de</strong> e escravidão <strong>no</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />
Civilização Brasileira, 2000.p. 146<br />
18 Trecho <strong>de</strong> petição da Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Domingos do Convento <strong>de</strong> São Francisco da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Salvador ao rei.<br />
Arquivo Histórico Ultramari<strong>no</strong>, Lisboa, Bahia, 1735. Citado por: SOARES, Mariza Carvalho. Op. Cit., p. 144<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 126
ministrados em parte porque os padres cobravam taxas exorbitantes, e, em parte, porque os<br />
senhores se recusavam a chamar padres para assistir aos <strong>escravos</strong> moribundos. As cartas do rei<br />
aos seus governadores raramente produziam efeitos práticos 19 . Deixar cadáveres <strong>de</strong> <strong>escravos</strong> às<br />
portas das Igrejas era uma prática comum que perdurou até 1814, a<strong>no</strong> em que o Con<strong>de</strong> dos Arcos<br />
<strong>de</strong>cretou a cessação <strong>de</strong> tal costume 20 .<br />
Em Minas Gerais, a situação também não fora diferente, os relatos das atas <strong>de</strong> óbito <strong>de</strong><br />
<strong>escravos</strong> <strong>no</strong>s informam sobre circunstâncias semelhantes. Em Vila Rica, o <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> dos <strong>escravos</strong><br />
sem proteção confrarial ou da pieda<strong>de</strong> do seu senhor era o adro da igreja Matriz 21 . Este recinto,<br />
dotado <strong>de</strong> covas com reduzida qualificação espiritual, tinha pouca aceitação por parte das<br />
populações livres (branca e parda) durante o setecentos e primeiro terço do oitocentos. O adro da<br />
Matriz foi, sem dúvida, a maior necrópole na Capitania das Minas. Geralmente permaneciam<br />
neste cemitério os <strong>de</strong>funtos <strong>escravos</strong>, não filiados a Irmanda<strong>de</strong> do Rosário dos Pretos ou<br />
naquelas <strong>de</strong> crioulos (Mercês e Misericórdia, Mercês e Perdões, São José dos Homens Pardos,<br />
São Francisco <strong>de</strong> Paula, Nossa Senhora das Dores, Santa Efigênia <strong>no</strong> Alto da Cruz, etc.) 22 .<br />
Na Paróquia <strong>de</strong> Nossa Senhora da Conceição do Antônio Dias, também em Vila Rica,<br />
além do adro ou cemitério da Matriz - o mais usado pela Paróquia do Pilar para o enterramento <strong>de</strong><br />
<strong>escravos</strong> - também foram utilizados adros <strong>de</strong> outras capelas para o mesmo fim. Abaixo apresento<br />
uma tabela com a distribuição dos sepultamentos <strong>de</strong> <strong>escravos</strong> na Paróquia <strong>de</strong> Nossa Senhora da<br />
Conceição do Antônio Dias:<br />
19<br />
RUSSEL-WOOD. Op. Cit., p.175-176.<br />
20<br />
Ibid. p.181.<br />
21<br />
CAMPOS, Adalgisa Arantes. A idéia do barroco e os <strong>de</strong>sígnios <strong>de</strong> uma <strong>no</strong>va mentalida<strong>de</strong>: A Misericórdia através do<br />
sepultamento pelo amor <strong>de</strong> Deus na paróquia do Pilar <strong>de</strong> Vila Rica (1712 - 1750) In: O território do barroco <strong>no</strong> século<br />
XXI. Ouro Preto, 2000. pp.50-55.<br />
22<br />
I<strong>de</strong>m. p. 51.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 127
Tabela 1<br />
DISTRIBUIÇÃO DOS SEPULTAMENTOS DE ESCRAVOS, POR ANO E POR LOCAL<br />
1<strong>77</strong><br />
0<br />
1<strong>77</strong><br />
1<br />
1<strong>77</strong><br />
2<br />
1<strong>77</strong><br />
3<br />
1<strong>77</strong><br />
4<br />
1<strong>77</strong><br />
5<br />
1<strong>77</strong><br />
6<br />
1<strong>77</strong><br />
7<br />
1<strong>77</strong><br />
8<br />
TOTAL<br />
nº nº nº nº nº nº nº nº nº nº %<br />
Cem. Da Matriz 29 30 24 35 34 22 18 34 14 240 33,8<br />
Capela da Matriz 2 3 1 2 8 1,1<br />
Cap. <strong>de</strong> N S. do<br />
Rosário dos<br />
Pretos<br />
Cem. <strong>de</strong> N S. do<br />
Rosário dos<br />
Pretos<br />
10 34 26 18 22 23 17 17 19 186 26<br />
2 2 1 1 1 1 8 1,1<br />
Cem. De Santana 9 12 9 15 20 16 15 19 8 123 17,1<br />
Cem. De Padre<br />
Faria<br />
8 14 9 7 13 7 6 11 8 83 11,5<br />
Cem. do Taquaral 1 4 2 7 7 2 6 3 2 34 4,7<br />
Cem. <strong>de</strong> São<br />
João do<br />
Ouro Fi<strong>no</strong><br />
Cem. Senhor dos<br />
Perdões<br />
4 2 3 3 3 5 0 6 4 30 4,1<br />
0 0 0 1 0 1 2 0 0 4 0,6<br />
TOTAL 63 98 75 90 100 <strong>77</strong> 65 90 58 716<br />
Fonte: Livro <strong>de</strong> óbitos. Paróquia <strong>de</strong> Nossa Senhora da Conceição do Antônio Dias, 1<strong>77</strong>0-1<strong>77</strong>8.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 128
Observa-se que a maioria dos <strong>escravos</strong> era, <strong>de</strong> fato, sepultada <strong>no</strong> adro das capelas,<br />
havendo uma predominância do adro da Matriz. A capela do Rosário foi a que mais enterrou<br />
<strong>escravos</strong> em seu interior.<br />
Havia também a preocupação <strong>de</strong> não ser enterrado <strong>no</strong>s cemitérios, uma vez que este tipo<br />
<strong>de</strong> sepultamento significava per<strong>de</strong>r as indulgências da sepultura na capela e as rezas dos irmãos<br />
que, cotidianamente, lá realizavam seus exercícios religiosos. No caso dos <strong>escravos</strong> outra<br />
possibilida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser acrescentada, a <strong>de</strong> ficar entre "parentes" <strong>de</strong>pois da morte. Segundo João<br />
José Reis, para o africa<strong>no</strong> viver entre parentes reais tornava-se difícil pelo trauma da escravidão,<br />
mas morrer numa família ritual, e com ela passar ao Além, se tornara possível com a irmanda<strong>de</strong> 23 .<br />
Neste período constata-se a existência <strong>de</strong> uma hierarquia do conjunto espacial que<br />
envolvia os rituais da morte, revelando tanto a hierarquização do sagrado, quanto do social.<br />
Aqueles <strong>escravos</strong> que possuíam condições <strong>de</strong> pertencer a uma irmanda<strong>de</strong> obtinham funerais<br />
dig<strong>no</strong>s, ao contrário dos outros, aos quais restava o adro das igrejas.<br />
A entrada dos <strong>escravos</strong> nas confrarias po<strong>de</strong> ter sido motivada pela busca da "boa morte",<br />
ou seja, a morte assistida, com sacramentos, cortejo e sepultamento dig<strong>no</strong>. Como avalia Soares,<br />
a justificativa para a criação das confrarias <strong>de</strong> <strong>pretos</strong> vinha freqüentemente associada ao fato <strong>de</strong><br />
os <strong>escravos</strong> serem abandonados por seus senhores <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> velhos e doentes tendo seus<br />
cadáveres <strong>de</strong>ixados <strong>no</strong> adro das igrejas. Ainda <strong>de</strong> acordo com Soares, consi<strong>de</strong>rando-se a baixa<br />
natalida<strong>de</strong> e a alta mortalida<strong>de</strong> da população escrava, é possível concluir que um reduzido<br />
número <strong>de</strong> <strong>escravos</strong> tinha acesso ao sepultamento cristão. Os sepultamentos feitos <strong>de</strong> acordo<br />
com as <strong>no</strong>rmas eclesiásticas <strong>de</strong>viam correspon<strong>de</strong>r, grosso modo, ao universo dos filiados a<br />
<strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> que conseguiam cumprir todas as exigências do sepultamento cristão, o que, mesmo<br />
nas <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong>, nem sempre era fácil. As exigências constituíam-se em administrar os<br />
sacramentos ao moribundo e, após o falecimento, realizar a encomendação do corpo, a<br />
preparação em mortalha a<strong>de</strong>quada, o transporte e o sepultamento com a presença <strong>de</strong> um<br />
religioso, missa e velas. Paga-se o padre, a mortalha, a sepultura, a missa e também as velas 24 .<br />
Dentre os sacramentos administrados aos moribundos - penitência, eucaristia e extrema<br />
unção - este último era o mais significativo. A tabela 2 apresenta os dados das atas <strong>de</strong> óbitos e<br />
revela que nem todos os <strong>escravos</strong> o recebiam, mesmo os sepultados na Igreja do Rosário. Em<br />
compensação, não po<strong>de</strong>mos afirmar que os <strong>escravos</strong> morriam completamente <strong>de</strong>sassistidos, na<br />
maioria das vezes os cativos recebiam, por ocasião da morte, alguma benção ou confessavam<br />
seus pecados.<br />
23 REIS, João José. Op.Cit., p. 198.<br />
24 SOARES, Mariza Carvalho <strong>de</strong>. Op. Cit., p. 151<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 129
Tabela 2<br />
SACRAMENTOS MENCIONADOS NAS ATAS DE ÓBITOS: 1<strong>77</strong>4<br />
Localida<strong>de</strong> % <strong>de</strong> extrema-unção % com<br />
Outros sacramentos<br />
Cem. da Matriz 61 82 28<br />
Ig. <strong>de</strong> N. S. Do<br />
Rosário<br />
53 94 17<br />
Cem.<strong>de</strong> Santana 36 93 14<br />
Cem. Padre Faria 40 80 10<br />
Cem do Taquaral 67 100 7<br />
Cem. <strong>de</strong> São João<br />
do<br />
Ouro Fi<strong>no</strong><br />
Cem. <strong>de</strong> Senhor dos<br />
Perdões<br />
-<br />
-<br />
100<br />
-<br />
Total <strong>de</strong><br />
Atas <strong>de</strong> óbito<br />
Fonte: Livro <strong>de</strong> óbitos. Paróquia <strong>de</strong> Nossa Senhora da Conceição do Antônio Dias, 1<strong>77</strong>0-1<strong>77</strong>8.<br />
Os sodalícios <strong>de</strong> homens negros se esforçavam <strong>no</strong> cuidado com seus mortos, cuidavam<br />
do cortejo fúnebre e sepultura dos irmãos, não <strong>de</strong>scuidando <strong>de</strong> suas almas, sufragadas com as<br />
missas especificadas <strong>no</strong> compromisso. A irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nossa Senhora do Rosário dos Pretos do<br />
Alto da Cruz oferecia primazia <strong>no</strong>s cuidados com os mortos. Em seu compromisso, chegava a<br />
<strong>de</strong>stacá-los como garantias primordiais, estabelecidas <strong>no</strong> ato <strong>de</strong> ingresso dos irmãos: “Os irmãos,<br />
que entrarem, e se sentarem <strong>no</strong>s livros da irmanda<strong>de</strong> pagarão <strong>de</strong> entrada meia oitava, e <strong>de</strong> anual<br />
em cada um a<strong>no</strong> meia oitava, pelo que ficará a irmanda<strong>de</strong> obrigada a mandar-lhe dizer a cada um,<br />
que falecer quatro missas, e dar-lhe sepultura, e a ir conduzi-lo <strong>no</strong> seu Esquife com Cruz Alçada,<br />
e Capelão com os irmãos <strong>de</strong> Opa, com suas tochas, que se pu<strong>de</strong>rem ajuntar, mas sendo o irmão<br />
falecido daqueles, que tiverem servido na dita irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> juizes, terão mais <strong>de</strong>z missas cada<br />
um” 25 .<br />
A presença dos irmãos <strong>no</strong> acompanhamento do cortejo fúnebre era consi<strong>de</strong>rada<br />
fundamental: “Falecendo qualquer irmão, assim que se <strong>de</strong>r parte, se farão os sinais costumados,<br />
e se avisará a irmanda<strong>de</strong> para nas horas assinaladas se acharem os irmãos para o<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 130<br />
3<br />
-
acompanharem, e unidos todos em corpo <strong>de</strong> irmanda<strong>de</strong> com suas opas, e tochas, esquife, cruz, e<br />
o capelão sairão a busca-lo, e dar-lhe sepultura” 26 .<br />
A irmanda<strong>de</strong> também buscava solenizar ao máximo a morte dos seus membros, mesmo<br />
<strong>de</strong>srespeitando a legislação eclesiástica, atraindo a reprovação das autorida<strong>de</strong>s eclesiásticas. O<br />
visitador D. Henrique Moreira <strong>de</strong> Carvalho <strong>de</strong>terminava, em 20 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1747: “Achei nesta<br />
freguesia uma capela <strong>de</strong> Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, que falecendo algum irmão da<br />
irmanda<strong>de</strong> se tocava os si<strong>no</strong>s a toda hora, e a todo tempo contra o que dispõe a constituição<br />
observada neste bispado. Pois <strong>no</strong>s dias <strong>de</strong> preceito tocaram os dois si<strong>no</strong>s antes da missa<br />
conventual sem cessar até se dar o corpo do irmão <strong>de</strong>funto a sepultura; pelo que havendo <strong>de</strong> se<br />
reformar nesta parte: mando que o capelão da dita capela não consinta que <strong>no</strong>s dias <strong>de</strong> preceito<br />
antes dos ofícios divi<strong>no</strong>s se dobrem os si<strong>no</strong>s por qualquer irmão <strong>de</strong>funto, e que os dobres não<br />
passem <strong>de</strong> três sendo homem e <strong>de</strong> dois sendo mulher, por que o mais é <strong>de</strong> ir contra as<br />
disposições da lei que se <strong>de</strong>ve observar, com pena <strong>de</strong> que não observando isto o dito capelão ser<br />
suspenso, e privado da dita capelania e o reverendo pároco assim o fará observar” 27 .<br />
Os ritos fúnebres não apenas prestavam homenagem ao morto, ajudando-o a trilhar o<br />
caminho para o outro <strong>mundo</strong>, mas, em sua pompa, mostravam o po<strong>de</strong>r da irmanda<strong>de</strong> em cuidar<br />
<strong>de</strong> seus membros e enterrar seus mortos. Daí o fato <strong>de</strong>, mesmo <strong>no</strong>s enterros dos irmãos <strong>de</strong><br />
me<strong>no</strong>r <strong>de</strong>staque, a irmanda<strong>de</strong> comparecer, chorar e carregar o morto até a sepultura. A parcela<br />
<strong>de</strong> <strong>escravos</strong> sepultados pelas <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> fugia do a<strong>no</strong>nimato do sepultamento <strong>no</strong> adro da matriz,<br />
afirmando assim a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um grupo social específico. Também as missas solenes <strong>de</strong> corpo<br />
presente e pelas almas dos irmãos falecidos, assim como os cortejos fúnebres, as procissões<br />
eram oportunida<strong>de</strong>s para re<strong>no</strong>var a solidarieda<strong>de</strong> do grupo e <strong>de</strong>monstrar à socieda<strong>de</strong> a<br />
importância da irmanda<strong>de</strong>. Segundo Scara<strong>no</strong>, esse é o motivo da con<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> ausências e<br />
omissões dos irmãos nessas ocasiões 28 .<br />
tesoureiro:<br />
Quanto às missas o compromisso do Rosário dos Pretos do Alto da Cruz recomendava ao<br />
"... e sendo das Missas, que se disserem pelos irmãos <strong>de</strong>funtos, passarão os padres, que os<br />
disserem certidão <strong>de</strong> as terem dito em um livro, que parará na mão do dito tesoureiro, tendo a maior<br />
vigilância, em que não fiquem por sufragar as almas dos irmãos, que falecerem, antes com maior<br />
zelo fará se digam com a maior brevida<strong>de</strong>" 29 .<br />
25<br />
OURO PRETO. Arquivo da Casa dos Contos. Compromisso da Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> N. S. do Rosário dos Pretos do Alto da<br />
Cruz, cap. 13 e 18, rolo 058, vols 123 e 124.<br />
26<br />
Ibid.<br />
27<br />
Editais e provisões do Bispado <strong>de</strong> Mariana (1743-1756), fs. 12-12v. citado por AGUIAR, Marcos Magalhães <strong>de</strong>. Vila<br />
Rica dos Confra<strong>de</strong>s: a socieda<strong>de</strong> confrarial entre negros e mulatos <strong>no</strong> século XVIII. São Paulo: FFLCH/USP, 1993.<br />
(Dissertação <strong>de</strong> Mestrado em História). p. 235.<br />
28<br />
SCARANO, Julita. Devoção e Escravidão: A Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nossa Senhora do Rosário dos Pretos <strong>no</strong> Distrito<br />
Diamanti<strong>no</strong> <strong>no</strong> século XVIII. 2ª edição. São Paulo: Editora Brasiliana, 1978.p. 55.<br />
29<br />
Compromisso da Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Op. Cit., capítulo 7.<br />
Revista Eletrônica <strong>de</strong> História do Brasil, v. 7 n. 2, jul.-<strong>de</strong>z., 2005 131
Os documentos por nós pesquisados, pertencentes à Irmanda<strong>de</strong> do Rosário dos Pretos do<br />
Alto da Cruz, em Vila Rica, permitiram analisar os funerais <strong>de</strong> <strong>escravos</strong>, apenas pelo ângulo dos<br />
rituais católicos, silenciando sobre aspectos estranhos a estes. Todavia, po<strong>de</strong>mos encontrar <strong>no</strong><br />
relato <strong>de</strong> uma visita do bispo D. Antônio <strong>de</strong> Guadalupe, à capitania, em 1726, a preservação <strong>de</strong><br />
alguns costumes africa<strong>no</strong>s: “Achamos que alguns <strong>escravos</strong>, principalmente da costa da Mina,<br />
retêm algumas relíquias <strong>de</strong> sua gentilida<strong>de</strong>, fazendo ajuntamento <strong>de</strong> <strong>no</strong>ite com vozes e<br />
instrumentos em sufrágio <strong>de</strong> seus falecidos ajuntando-se em algumas vendas, on<strong>de</strong> compram<br />
várias bebidas e comidas, e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> comerem lançam os restos nas sepulturas” 30 . O prelado<br />
<strong>de</strong>u assim testemunho da tradição africana <strong>de</strong> que os mortos <strong>de</strong>vem levar à sepultura oferendas<br />
propiciatórias, participando do banquete festivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>spedida dos vivos.<br />
Quiséramos ter para Minas Gerais do século XVIII, as excelentes <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> Jean-<br />
Baptiste Debret sobre os cerimoniais fúnebres <strong>no</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>no</strong> início dos oitocentos. O autor<br />
<strong>de</strong>screve com riqueza <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes, os funerais <strong>de</strong> uma negra moçambicana e do filho <strong>de</strong> um rei<br />
negro. No primeiro caso, só acompanhavam o funeral mulheres, à exceção <strong>de</strong> dois homens<br />
carregando o cadáver numa re<strong>de</strong>, um “mestre-<strong>de</strong>-cerimônias” e um tocador <strong>de</strong> tambor. Este último<br />
puxava o cortejo, ora adiantando-se, ora <strong>de</strong>tendo-se para tocar. Na Igreja <strong>de</strong> Nossa Senhora <strong>de</strong><br />
Lampadosa, o mestre-<strong>de</strong>-cerimônias, vestido com um tipo <strong>de</strong> gibão colorido, or<strong>de</strong><strong>no</strong>u que o<br />
cortejo parasse, ao tempo em que a porta da igreja se abria. Neste momento, o tambor entrou em<br />
ação e as negras puxaram cantos fúnebres, acompanhados por palmas. Algumas mulheres<br />
colocaram as mãos sobre a mortalha e diziam: “estamos chorando <strong>no</strong>sso parente, não<br />
enxergamos mais, vai embaixo da terra até o dia do juízo, hei <strong>de</strong> século secolorum amém”. Não<br />
faltou latim nesse ritual agora sincrético. Um sincretismo percussivo também misturava o som dos<br />
si<strong>no</strong>s ao do tambor. Nada <strong>de</strong> velas, caixão, padres, orquestras, mas ainda assim um enterro<br />
pomposo a seu modo.<br />
No enterro do príncipe, estiveram presentes representantes <strong>de</strong> várias <strong>de</strong>legações africanas<br />
que compunham a população escrava carioca. Des<strong>de</strong> manhã cedo reinava um clima <strong>de</strong> festa, com<br />
dança e música tocada com instrumentos africa<strong>no</strong>s acompanhados <strong>de</strong> palmas. As “palmas<br />
constituem-se <strong>de</strong> duas batidas rápidas e uma lenta ou <strong>de</strong> três rápidas e duas lentas, geralmente<br />
executadas com energia e conjunto”. Vez por outra se soltavam bombas juninas. Essas ativida<strong>de</strong>s<br />
se esten<strong>de</strong>ram até seis ou sete horas da <strong>no</strong>ite, quando teve início o cortejo fúnebre, aqui também<br />
havia um mestre-<strong>de</strong>-cerimônias que, a bengaladas, abriu caminho entre a multidão para a<br />
passagem do <strong>de</strong>funto, levado numa re<strong>de</strong> coberta com pa<strong>no</strong> mortuário, sendo nesta hora saudado<br />
30 VASCONCELOS, Diogo <strong>de</strong>. História do Bispado <strong>de</strong> Mariana. Belo Horizonte, Ed. Apollo.1935.p.18. Apud: CAMPOS,<br />
Adalgisa Arantes. Notas sobre os Rituais <strong>de</strong> Morte na Socieda<strong>de</strong> Escravista. Revista do <strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> História da<br />
UFMG, n. 6, 1988. p.120.<br />
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por fogos <strong>de</strong> artifício e as acrobacias <strong>de</strong> quatro africa<strong>no</strong>s. O morto foi escoltado por amigos e<br />
pelas <strong>de</strong>legações africanas, seguidos por negros empunhando bengalas e, mais atrás, gente que<br />
Debret chamou <strong>de</strong> “curiosos”. Chegando à igreja, enquanto do lado <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro acontecia a<br />
cerimônia <strong>de</strong> sepultamento, do lado <strong>de</strong> fora homens e mulheres soltavam bombas, batiam palmas,<br />
tocavam tambores, cantavam canções africanas 31 .<br />
Estas <strong>de</strong>scrições mostram que o Brasil colônia foi cenário <strong>de</strong> uma cultura funerária que<br />
mesclava tradições portuguesas e africanas. Entretanto, algumas pesquisas revelam que em<br />
certas regiões do Brasil colônia, como a região <strong>de</strong> São Salvador <strong>de</strong> Campos dos Giotacazes <strong>no</strong><br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro, os <strong>escravos</strong> <strong>de</strong>sprezaram por completo os sacramentos católicos na hora da<br />
morte. Esta negação se traduzia como forma <strong>de</strong> resistência, como meio <strong>de</strong> preservação <strong>de</strong> seus<br />
ritos próprios. No momento da morte, a intromissão da Igreja Católica não era bem vinda. A<br />
negação <strong>de</strong>stes <strong>escravos</strong> aos sacramentos era nítida e <strong>de</strong>scrita <strong>no</strong>s assentos <strong>de</strong> óbito feitos pela<br />
igreja, como “não foram pedidos” 32 .<br />
Na documentação da Irmanda<strong>de</strong> analisada em <strong>no</strong>ssa pesquisa, não encontramos <strong>escravos</strong><br />
que se negaram a receber os sacramentos católicos na hora da morte. E a ausência <strong>de</strong> algum<br />
sacramento veio sempre acompanhada <strong>de</strong> justificativa, como se verifica <strong>no</strong> assento <strong>de</strong> Antônio<br />
Garcia <strong>de</strong> Menezes, preto, natural do rei<strong>no</strong> <strong>de</strong> Angola que não recebeu o sacramento da<br />
eucaristia “por causa da repetição <strong>de</strong> alguns vômitos” 34 ; outro exemplo, o <strong>de</strong> Antônia Mina que<br />
não recebeu os sacramentos, “por ser batizada na ocasião da enfermida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que morreu” 35 . E o<br />
<strong>de</strong> Bernardo Mina, que também morreu sem sacramentos “por se achar <strong>de</strong> todo variado" 36 .<br />
Po<strong>de</strong>mos conjeturar que a aceitação e a procura por sepultamentos cristãos por parte dos<br />
<strong>escravos</strong> podia representar uma tentativa <strong>de</strong> fuga das condições precárias do sepultamento <strong>no</strong><br />
adro da Matriz. E ainda, uma tentativa <strong>de</strong> se preservar tanto a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do morto como da<br />
irmanda<strong>de</strong>.<br />
Vale lembrar também que, em ambas as culturas, africana e portuguesa, é recorrente a<br />
idéia <strong>de</strong> que o indivíduo <strong>de</strong>ve preparar-se para morrer 37 e, neste sentido, a Igreja católica po<strong>de</strong> ser<br />
31<br />
Sobre comentários <strong>de</strong> Debret em tor<strong>no</strong> das práticas funerárias <strong>de</strong> ascendência africana, consultar REIS,João José.<br />
Op.Cit,. pp. 160-161.<br />
32<br />
Estas foram às conclusões a que chegou FARIA, Sheila <strong>de</strong> Castro, em pesquisa realizada na freguesia <strong>de</strong> São<br />
Salvador dos Campos dos Goitacazes <strong>no</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro. A colônia em Movimento: Fortuna e família <strong>no</strong> cotidia<strong>no</strong><br />
<strong>colonial</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Fronteira, 1998.p.305.<br />
34<br />
OURO PRETO. Arquivo da Casa dos Contos-, Antônio Garcia <strong>de</strong> Menezes, 14/04/176, vol 06, rolo 047,fl 381.<br />
35<br />
OURO PRETO. Arquivo da Casa dos Contos-, Antônia Mina, 01/08/1<strong>77</strong>1, vol 07, rolo 047,fl 22.<br />
36<br />
OURO PRETO. Arquivo da Casa dos Contos-, Bernardo Mina, 09/12/1<strong>77</strong>1, vol 07, rolo 047,fl 28.<br />
37<br />
Sobre rituais <strong>de</strong> morte na África e em Portugal consultar: REIS, João José. Op. Cit., p. 90.<br />
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encarada não apenas como uma instituição <strong>de</strong> opressão, mas também como uma estrutura usada<br />
para <strong>de</strong>fesa e auto<strong>de</strong>finição da comunida<strong>de</strong> escrava 38 .<br />
CONCLUSÃO<br />
O objetivo do presente estudo constituiu em tecer consi<strong>de</strong>rações sobre os processos que<br />
levaram <strong>escravos</strong> a procurarem rituais cristãos através das <strong>irmanda<strong>de</strong>s</strong> leigas, e <strong>de</strong> que forma<br />
estas atitu<strong>de</strong>s podiam revelar cenas do cotidia<strong>no</strong> e das vidas daquelas pessoas. Não houve a<br />
intenção <strong>de</strong> reconstruir todas as modalida<strong>de</strong>s culturais dos rituais <strong>de</strong> morte na socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Vila<br />
Rica, na segunda meta<strong>de</strong> do século XVIII.<br />
Essencialmente, buscamos através da documentação, a face social da morte. Os rituais<br />
fúnebres, <strong>no</strong> período e espaço por <strong>no</strong>s analisados, <strong>no</strong>s apontaram elementos <strong>de</strong>finidores do<br />
<strong>mundo</strong> material e da esfera mental e <strong>no</strong>s revelaram uma situação <strong>de</strong> precarieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> pobreza.<br />
A necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> filiação a uma irmanda<strong>de</strong> leiga, com o objetivo <strong>de</strong> fugir do abando<strong>no</strong> do<br />
corpo <strong>no</strong> adro das igrejas, <strong>de</strong><strong>no</strong>tou a falta <strong>de</strong> assistência pública aos <strong>de</strong>svalidos.<br />
Nesta socieda<strong>de</strong> tão hierarquizada, foi necessário ao escravo buscar reconhecimento e<br />
assegurar direitos básicos, direitos <strong>de</strong> vida e morte dignas e, na ausência <strong>de</strong> assistência do<br />
Estado, as Irmanda<strong>de</strong>s Leigas foram meios <strong>de</strong> conquistá-los.<br />
Juliana Aparecida Lemos Lacet é Bacharel em História pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong><br />
Ouro Preto<br />
38 RAMOS, Donald. A influência africana e a cultura popular em Minas Gerais: um comentário sobre a interpretação da<br />
escravidão. p. 159 In: JANCSÓ, István, KANTOR, Iris. Festa: Cultura e sociabilida<strong>de</strong> na América Portuguesa. vol.I. São<br />
Paulo. Editora da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo. 2001<br />
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