Psicopatologia da Criança - Associação de Estudos do Alto Tejo
Psicopatologia da Criança - Associação de Estudos do Alto Tejo
Psicopatologia da Criança - Associação de Estudos do Alto Tejo
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
PSICOPATOLOGIA DA CRIANÇA NO SUL DA BEIRA INTERIOR (PERSPECTIVA ETNOLÓGICA)<br />
Francisco Henriques<br />
FH – Aos quantos anos começavam a guar<strong>da</strong>r ga<strong>do</strong>?<br />
- Aos três ou quatro anos já começavam a an<strong>da</strong>r mais outros. Não an<strong>da</strong>vam sozinhos mas com<br />
cinco anos já an<strong>da</strong>vam muitos. Já gostavam <strong>de</strong> an<strong>da</strong>r uns com outros a guar<strong>da</strong>r. Então era a<br />
nossa escola. Era a nossa escola era isso.<br />
FH – Até que i<strong>da</strong><strong>de</strong> guar<strong>da</strong>vam ga<strong>do</strong>?<br />
- Até aos quantos anos? Às vezes já tinham mais <strong>de</strong> 15 ou 16 e ain<strong>da</strong> an<strong>da</strong>vam com elas.<br />
FH – Tanto rapazes como raparigas?<br />
Tanto rapazes como raparigas. Mulheres já feitas, já com peitos, já gran<strong>de</strong>s ain<strong>da</strong> an<strong>da</strong>vam com<br />
as cabras. Pois, eu não an<strong>de</strong>i muito tempo com elas porque era a mais velha. Agora as minhas<br />
irmães estavam cria<strong>da</strong>s e ain<strong>da</strong> an<strong>da</strong>vam com elas. Pois, era aquele tempo assim ... ain<strong>da</strong><br />
an<strong>da</strong>vam com elas e os rapazes na mesma. Às vezes quase com 20 anos e ain<strong>da</strong> an<strong>da</strong>vam com<br />
elas. Então to<strong>da</strong> a gente tinha um rebanhinho <strong>de</strong> cabras”.<br />
Maria José Torres, professora primária, Lameira <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>m - Vila Velha <strong>de</strong> Ródão.<br />
“Quan<strong>do</strong> eu fui para a Lameira <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>m nunca tinha havi<strong>do</strong> escola. De forma que os pais iam<br />
para o trabalho, as mães também e eles estavam muito sós. As crianças ficavam em casa, sós.<br />
Acontecia que iam brincar.<br />
Quan<strong>do</strong> eu <strong>de</strong>pois fui para lá, as mães iam para o trabalho e iam pôr, mesmo assim, bebés<br />
mesmo por <strong>de</strong>trás <strong>da</strong> minha secretária. As crianças pequeninas ficavam ali a meu cargo 11 .<br />
No Verão, quan<strong>do</strong> os homens iam para a ceifa para o Alentejo, as mães tinham que fazer tu<strong>do</strong>.<br />
Regar as hortas, logo <strong>de</strong> manhã. Quan<strong>do</strong> eu abria a escola já tinha uma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> púcaros<br />
com batatas cozi<strong>da</strong>s, ficavam no forno. E eles quan<strong>do</strong> era à altura <strong>do</strong> almoço, os garotos iam<br />
buscar os púcaros lá ao forno com as batatas cozi<strong>da</strong>s e mastigavam-nas e metiam-lhas na boca,<br />
aos irmãos. Os que an<strong>da</strong>vam na escola faziam isso aos mais pequenos. Aos que estavam <strong>de</strong>trás<br />
<strong>da</strong> minha secretária. Nem estavam sobre cobertores, era sobre serapilheiras. E ali estavam<br />
aquelas criancinhas. E quan<strong>do</strong> eu ía comer eles estavam a mastigar as batatas e a meter-lhas<br />
na boca.<br />
(...) Os pais não as puxavam para eles dizerem esta ou aquela palavra. Na<strong>da</strong>. Os pais nem<br />
estavam em casa. An<strong>da</strong>vam só nos trabalhos. E já <strong>de</strong>ixavam o serviço <strong>de</strong>stina<strong>do</strong> para quan<strong>do</strong><br />
saíssem <strong>da</strong> escola, para irem com as cabras.<br />
Quan<strong>do</strong> saíam <strong>da</strong> escola, iam lá <strong>da</strong>r reca<strong>do</strong>, vai ter com as cabras a tal parte. As crianças nem<br />
tinham tempo <strong>de</strong> fazer o trabalho <strong>da</strong> escola porque os pais ocupavam-nas.<br />
(...) Uma vez vim passar aqui férias <strong>da</strong> Páscoa. E havia lá uma criança que estava <strong>do</strong>ente, já<br />
quan<strong>do</strong> eu abalei. Era o meu melhor aluno.”<br />
Mas os pais não tinham dinheiro para pagar a consulta, para chamarem o médico e o garoto<br />
morreu.<br />
11 Tinha 60 a 70 alunos no conjunto <strong>da</strong>s quatro classes.<br />
AÇAFA On Line, nº 1 (2008)<br />
<strong>Associação</strong> <strong>de</strong> <strong>Estu<strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong> <strong>Alto</strong> <strong>Tejo</strong>, www.altotejo.org<br />
28