Psicopatologia da Criança - Associação de Estudos do Alto Tejo
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Prefácio<br />
PSICOPATOLOGIA DA CRIANÇA NO SUL DA BEIRA INTERIOR (PERSPECTIVA ETNOLÓGICA)<br />
Francisco Henriques<br />
O sul <strong>da</strong> Beira interior, já muito cola<strong>do</strong> ao Alentejo e ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>veras liga<strong>do</strong> ao norte, zona<br />
fundiária <strong>de</strong> transição entre a pequena e a gran<strong>de</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>, serve <strong>de</strong> há muito como contexto<br />
ao trabalho <strong>do</strong> antropólogo e enfermeiro Francisco Henriques, numa <strong>de</strong>dicação meticulosa <strong>de</strong><br />
amante cioso. Através <strong>de</strong> um trabalho <strong>de</strong> campo prolonga<strong>do</strong> no tempo e com um cariz extensivo,<br />
duma cui<strong>da</strong><strong>da</strong> e muito varia<strong>da</strong> pesquisa <strong>de</strong> fontes escritas e com um exercício comparativo<br />
diversifica<strong>do</strong>, publica esta <strong>Psicopatologia</strong> <strong>da</strong> criança no sul <strong>da</strong> Beira Interior (Perspectiva<br />
Etnológica), que permite reconstituir um referente e, ao mesmo tempo, saborear as transcrições<br />
<strong>de</strong> entrevistas com o sotaque beirão que é fixa<strong>do</strong>, permitin<strong>do</strong> um ulterior trabalho <strong>de</strong> cariz<br />
linguístico. Junta uma vertente processual a um retrato contemporâneo, entre os <strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />
terreno, os <strong>do</strong>cumentos e a informação actualiza<strong>da</strong> <strong>do</strong>s hospitais e centros <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> locais.<br />
Completam esta obra uma extensa bibliografia e um notável inventário <strong>de</strong> termos e expressões<br />
beirãs.<br />
A história e a etnografia <strong>da</strong> infância estão liga<strong>da</strong>s ao grupo social, ao tempo, ao espaço e à<br />
conjuntura política. Os núcleos <strong>de</strong> mulheres aparenta<strong>da</strong>s - mães, tias ou avós - tratavam <strong>da</strong>s<br />
rotinas infantis, por vezes coadjuva<strong>da</strong>s pelas vizinhas e por um círculo <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>s<br />
instrumentais. Pelas construções hegemónicas <strong>de</strong> género, a associação entre as mulheres e as<br />
crianças é recorrente, seja nos cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s diários, seja na superação <strong>do</strong>s momentos <strong>de</strong> crise,<br />
através <strong>da</strong>s benze<strong>de</strong>iras, mulheres <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong> e bruxas, estas últimas com a carga ambígua que<br />
a <strong>de</strong>signação e o po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong> selvagem encerram.<br />
Os maus-tratos infantis são aqui apresenta<strong>do</strong>s no seu carácter generaliza<strong>do</strong>, comum por to<strong>do</strong> o<br />
país, através <strong>da</strong> aceitação tácita <strong>de</strong> que to<strong>do</strong>s batiam nas crianças – família, vizinhos,<br />
professores. Os espancamentos na escola revestiam-se até bem recentemente duma quase<br />
normali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ti<strong>da</strong> como inerente ao processo educativo, e os casos <strong>de</strong> infanticídio tinham a mãe<br />
como principal agressora. Os aci<strong>de</strong>ntes vitimavam mais as crianças activas que as passivas. A<br />
melhoria na redução <strong>do</strong> trabalho infantil é concomitante à escolari<strong>da</strong><strong>de</strong> obrigatória, às alterações<br />
nas condições <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, à criação <strong>de</strong> consensos sociais em relação à infância, plasma<strong>do</strong>s na<br />
legislação em vigor, que pressionaram os antigos emprega<strong>do</strong>res e os pais. Se em Inglaterra a<br />
legislação – mas não a prática, como nos mostram as obras <strong>de</strong> Charles Dickens ou Friedrich<br />
Engels – <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1833 que protegia supostamente a criança operária, esse apoio limitava-se a<br />
interditar o emprego <strong>do</strong>s menores <strong>de</strong> 9 anos. Nesta obra, abun<strong>da</strong>m os relatos <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> em torno<br />
<strong>do</strong> trabalho precoce, num tenebroso tempo longo associa<strong>do</strong> a difíceis situações, duma miséria<br />
quase generaliza<strong>da</strong>, que coincidiu com a mais longa ditadura europeia. Torna-se assim mais<br />
explicável o caso etnográfico referi<strong>do</strong>, em Proença-a-Velha, duma criança <strong>de</strong>sinquieta por<br />
albergar o espírito <strong>de</strong> Salazar…<br />
Esta obra mostra-nos uma etnografia <strong>do</strong>s tempos <strong>de</strong> fome, <strong>do</strong> trabalho precoce nos campos e <strong>da</strong><br />
sardinha a dividir por três, em que era regra que quan<strong>do</strong> uma criança regressava duma colónia<br />
<strong>de</strong> férias tinha aumenta<strong>do</strong> <strong>de</strong> peso. Ao contrário <strong>do</strong> que escrevia com <strong>de</strong>sprezo em 1855 um<br />
notável <strong>de</strong> Niza aqui cita<strong>do</strong>, não era por razões fúteis que as mães <strong>de</strong>scui<strong>da</strong>vam as crianças:<br />
uma mulher <strong>de</strong> Sarna<strong>da</strong>s <strong>de</strong> Ródão lembra que a sua mãe à refeição fazia os quinhões para a<br />
família e <strong>de</strong>pois lambia os <strong>de</strong><strong>do</strong>s, para se saciar.<br />
AÇAFA On Line, nº 1 (2008)<br />
<strong>Associação</strong> <strong>de</strong> <strong>Estu<strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong> <strong>Alto</strong> <strong>Tejo</strong>, www.altotejo.org<br />
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