A GLOBALIZAÇÃO NO MUNDO ANTIGO - Universidade de Coimbra
A GLOBALIZAÇÃO NO MUNDO ANTIGO - Universidade de Coimbra
A GLOBALIZAÇÃO NO MUNDO ANTIGO - Universidade de Coimbra
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
80<br />
julga estar a ser assediado 27 ), como ainda pela maneira como respon<strong>de</strong> à<br />
questão <strong>de</strong> Íon ser tanto seu filho como oferta <strong>de</strong> Apolo (v. 537). A ambiguida<strong>de</strong><br />
continua ainda no facto <strong>de</strong> Xuto se ter esquecido <strong>de</strong> perguntar ao<br />
<strong>de</strong>us quem era a mãe da criança, pormenor que motivou a ambos um subtil<br />
comentário (v. 542):<br />
Íon: Nasci com a terra como mãe.<br />
Xuto: A terra não dá à luz crianças.<br />
A ironia do passo é dupla, pois ambos os interlocutores parecem <strong>de</strong>sautorizar<br />
o mito <strong>de</strong> autoctonia: 28 Xuto <strong>de</strong> forma directa e Íon ao sugerir uma hipótese<br />
que não passa <strong>de</strong> um comentário sardónico, que o leva, aliás, logo adiante,<br />
a aventar a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Xuto ter tido um ‘leito ilegítimo’ (v. 545: nothon<br />
lektron) que estaria na origem do seu nascimento. Em resultado <strong>de</strong>sta revelação,<br />
o jovem livra-se da condição <strong>de</strong> escravo (v. 556), mas nem a reputada<br />
ascendência divina <strong>de</strong> Xuto, que se esten<strong>de</strong>ria também a Íon (v. 559), chegaria<br />
para o livrar do estigma <strong>de</strong> ser um filho ilegítimo (nothos), precisamente o<br />
termo por ele usado alguns versos antes para qualificar os supostos <strong>de</strong>vaneios<br />
eróticos <strong>de</strong> Xuto. Com efeito, à luz da prática usual do direito ático, um filho<br />
<strong>de</strong> uma relação clan<strong>de</strong>stina po<strong>de</strong>ria ver reconhecida a paternida<strong>de</strong> e assim<br />
garantir o estatuto <strong>de</strong> pessoa livre, mas continuava a ser consi<strong>de</strong>rado nothos,<br />
sendo penalizado em termos <strong>de</strong> prerrogativas legais. 29 Embora o argumento do<br />
drama euripidiano <strong>de</strong>corra no passado mítico da cida<strong>de</strong>, ainda assim é muito<br />
claro que o comentário que Íon tece, ainda no segundo episódio, pressupõe<br />
uma audiência familiarizada com as expetativas legais <strong>de</strong> um cidadão <strong>de</strong> finais<br />
do séc. v (vv. 585-594):<br />
O aspeto das situações, vistas <strong>de</strong> perto e <strong>de</strong> longe, não parece ser o mesmo.<br />
Bendigo o que sobreveio, pois encontrei em ti um pai. Mas ouve, pai, as coisas<br />
27 Já Wilamowitz (1926), 111, reconhecia que esta cena tinha a aparência <strong>de</strong> “ein erotischer<br />
Überfall”.<br />
28 Neste sentido se pronunciava já Conacher (1967), 284 n. 53, ao ver nas palavras <strong>de</strong> Xuto uma<br />
ridicularização daquele mito ateniense.<br />
29 Para mais pormenores, vi<strong>de</strong> Leão (2005c) 21-22 e 28.