Heterogeneidade e Divisao em Discursos de Suicidas
Heterogeneidade e Divisao em Discursos de Suicidas
Heterogeneidade e Divisao em Discursos de Suicidas
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Authier-Revuz fala <strong>em</strong> heterogeneida<strong>de</strong> mostrada e heterogeneida<strong>de</strong> constitutiva. A<br />
primeira, como o nome indica, po<strong>de</strong> ser i<strong>de</strong>ntificada no fio do discurso 12 (aspas, discurso<br />
direto e indireto, glosas, etc.), enquanto a segunda não é facilmente perceptível, porém está<br />
s<strong>em</strong>pre presente. A heterogeneida<strong>de</strong> constitutiva é da natureza da linguag<strong>em</strong> e, no entanto, vai<br />
além daquilo que a <strong>de</strong>scrição linguística po<strong>de</strong> dar conta. Embora a presença do outro esteja<br />
<strong>em</strong> toda parte, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre é possível i<strong>de</strong>ntificá-la a partir da análise da superfície do<br />
discurso.<br />
Authier-Revuz reconhece a existência <strong>de</strong> uma heterogeneida<strong>de</strong> teórica, buscando uma<br />
ancorag<strong>em</strong> exterior para falar sobre o sujeito, algo que a linguística abandonou <strong>em</strong> sua<br />
constituição como ciência. Para tanto, a autora baseia-se <strong>em</strong> duas abordagens não-linguísticas<br />
da heterogeneida<strong>de</strong> constitutiva do discurso e da fala: o dialogismo bakhtiniano e a<br />
psicanálise <strong>de</strong> Lacan.<br />
O princípio dialógico interessa à autora <strong>em</strong> dois aspectos: como interação verbal entre<br />
interlocutores e como diálogo entre discursos. A interação verbal não se refere ao diálogo<br />
face-a-face, mas à presença da intersubjetivida<strong>de</strong> na linguag<strong>em</strong>: <strong>em</strong> tudo o que é dito, ressoa<br />
também a voz do outro, o ponto <strong>de</strong> vista do outro e da comunida<strong>de</strong> a que pertenc<strong>em</strong>os. De<br />
fato, o locutor apropria-se das vozes que o anteced<strong>em</strong> e daquelas que antecipa no momento da<br />
interação. No que tange ao diálogo entre discursos, inexiste neutralida<strong>de</strong> nas palavras, pois<br />
estas estão s<strong>em</strong>pre atravessadas pela alterida<strong>de</strong>, por vários outros discursos.<br />
A partir <strong>de</strong> Lacan, Authier-Revuz (2004, p. 64) conclui que, se a linguag<strong>em</strong> é a<br />
condição do inconsciente, o sujeito nada mais é que um efeito <strong>de</strong> linguag<strong>em</strong>. Ele não t<strong>em</strong><br />
centro fora da ilusão e do fantasma, conquanto essa ilusão do centro lhe seja normal e<br />
necessária. Consequent<strong>em</strong>ente, o sujeito não é uma entida<strong>de</strong> exterior à linguag<strong>em</strong>, que a<br />
<strong>em</strong>prega como instrumento para expressar sentidos dos quais seja fonte consciente.<br />
As formas <strong>de</strong> heterogeneida<strong>de</strong> mostrada não constitu<strong>em</strong> um reflexo fiel da<br />
heterogeneida<strong>de</strong> constitutiva do discurso. São, na realida<strong>de</strong>, el<strong>em</strong>entos da representação<br />
fantasmática que o locutor t<strong>em</strong> <strong>de</strong> sua enunciação (AUTHIER-REVUZ, 2004). Isso porque,<br />
nas ocorrências <strong>de</strong> heterogeneida<strong>de</strong> mostrada, o locutor estabelece um “exterior”, um discurso<br />
que reconhece como outro e que, inevitavelmente, revela a existência <strong>de</strong> um “interior”, isto é,<br />
um discurso que acredita ser próprio. Na verda<strong>de</strong>, essa fronteira interior/exterior é uma ilusão,<br />
pois o enunciador ignora a heterogeneida<strong>de</strong> constitutiva <strong>de</strong> todo o seu discurso. Ele acredita<br />
12<br />
Para usar a terminologia <strong>de</strong> Authier-Revuz, referindo-se à materialida<strong>de</strong> linguística. Esse termo aproxima-se<br />
da noção pêcheutiana <strong>de</strong> intradiscurso.<br />
45