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Ciro Marcondes Filho<br />
A <strong>SOCIEDADE</strong> <strong>FRANKENSTEIN</strong><br />
São Paulo<br />
1991
Um Frankenstein tecnológico nos ameaça.<br />
Pelo menos é o que cremos. Vivemos já<br />
num mundo de máquinas de transportar,<br />
de fabricar, de pensar. Frankenstein,<br />
nosso duplo, esse mundo-máquina que<br />
criamos, assume pouco a pouco sua<br />
autonomia e seu poder.<br />
Lucien Sfez
Primeira Parte................................................................................................................................................<br />
5<br />
O DESTINO DE UMA ILUSÃO................................................................................................................... 5<br />
1. A Crise do Pensamento Esclarecido................................................................................................. 5<br />
2. O antiiluminismo................................................................................................................................. 8<br />
3. O desencanto estético..................................................................................................................... 11<br />
Segunda Parte.............................................................................................................................................<br />
15<br />
O <strong>FRANKENSTEIN</strong> TECNOLÓGICO.......................................................................................................15<br />
Traços gerais da sociedade..................................................................................................................... 17<br />
1. Crescimento louco, multiplicação e morte....................................................................................... 17<br />
2. Vivência imaginária.......................................................................................................................... 17<br />
3. Ficcionalização da memória............................................................................................................. 18<br />
4. Esvaziamento do ser........................................................................................................................ 18<br />
5. Substituição dos sistemas lógicos................................................................................................... 19<br />
I - Tecnologias e meios de comunicação.................................................................................................19<br />
1. Tecnologias...................................................................................................................................... 19<br />
1.1. A velocidade.............................................................................................................................. 20<br />
1.2. A transformação da cidade....................................................................................................... 22<br />
1.3. O novo status do saber............................................................................................................. 24<br />
2. Meios de comunicação.................................................................................................................... 24<br />
2.1. O processo televisivo................................................................................................................ 25<br />
2.1.1.. A visão.............................................................................................................................. 25<br />
2.1.2. A televisão.......................................................................................................................... 28<br />
2.1.3.. O tempo televisivo............................................................................................................ 29<br />
2.1.4. A densidade televisiva....................................................................................................... 29<br />
2.1.5. A linguagem ...................................................................................................................... 29<br />
2.2. A Informação............................................................................................................................. 31<br />
2.3. Rock.......................................................................................................................................... 32<br />
3 - Teoria em ruinas............................................................................................................................. 33<br />
3.1. Velhas teorias da comunicação................................................................................................ 33<br />
3.2. Nova teoria da comunicação.....................................................................................................36<br />
3.3. Os conceitos da Era Frankenstein............................................................................................ 37<br />
3.3.1. A circularidade................................................................................................................... 37<br />
3.3.2. Superfície........................................................................................................................... 37<br />
3.3.3. Autonomia do objeto.......................................................................................................... 39<br />
3.3.4. Movimento.......................................................................................................................... 41<br />
II - História, tempo, política...................................................................................................................... 41<br />
1. Fim da história.................................................................................................................................. 41<br />
2. O tempo............................................................................................................................................43<br />
3. A política...........................................................................................................................................44<br />
4. O Estado orbital............................................................................................................................... 46<br />
5. O "locus" do poder........................................................................................................................... 47<br />
III. O ser enfraquecido.............................................................................................................................. 48<br />
1. Assassinato de Deus....................................................................................................................... 49<br />
2. Multiplicação e fracionamento infinito.............................................................................................. 50<br />
3. A desestabilização dos sujeitos....................................................................................................... 51<br />
4. A nova esquizofrenia........................................................................................................................ 53<br />
IV. Cultura pastiche e vazia..................................................................................................................... 55<br />
1. Cultura do cinismo e da indiferença ................................................................................................56<br />
2. Coletividade interativa...................................................................................................................... 58<br />
3. O corpo e a morte............................................................................................................................ 59<br />
4. O processo econômico.................................................................................................................... 60<br />
Terceira Parte...............................................................................................................................................<br />
64<br />
PARA ONDE VAI O HOMEM .................................................................................................................. 64<br />
1. Teorias e estratégias........................................................................................................................64<br />
1.1. Corrente histórico-humanista, voluntarista............................................................................... 64<br />
1.1.1. A esquerda hegeliana........................................................................................................ 64<br />
1.1.2. A teoria de Juergen Habermas.......................................................................................... 66<br />
1.2. Corrente estruturalista...............................................................................................................68<br />
1.3. Corrente pós-moderna.............................................................................................................. 70<br />
2.O oráculo de Freud........................................................................................................................... 73<br />
Bibliografia....................................................................................................................................................<br />
77<br />
3
O DESTINO DE UMA ILUSÃO<br />
Primeira Parte<br />
1. A Crise do Pensamento Esclarecido<br />
O homem da Era Moderna era marcado pela ilusão da onipotência. Nele<br />
foi inculcado que possuia poderes, capacidades, força de interferir no meio, na<br />
cultura, na história. De Deus, ele arrancou os poderes absolutos e determinou<br />
com isso o declínio da metafísica: a nova era passa a ser a do homem<br />
dominando a máquina, usando-se da ciência, da razão, do objetivo sobre o<br />
subjetivo, do concreto sobre o abstrato, do material sobre o imaterial. O domínio<br />
posivito da natureza e do meio decretava que nada mais de sobrenatural<br />
poderia interferir na ação racional humana com vistas à realização de seus<br />
nobres fins sociais. A técnica, nas mãos do homem, de fato promoveu o<br />
crescimento industrial, a expansão dos bens de consumo, o desenvolvimento<br />
de todos os meios de transporte e comunicação, bem como a inovação no<br />
campo artístico, o aumento das facilidades das próprias sociedades humanas e<br />
em todos os âmbitos da vida cotidiana.<br />
As esperanças excepcionais que os homens atribuiram à técnica,<br />
entretanto, não previam que seus desdobramentos questionariam a natureza do<br />
espírito social da própria época moderna. A técnica não só deu conta das<br />
aspirações humanas em realizar suas intenções de expansão, exploração e<br />
domínio, mas superou-as excepcionalmente. Técnica, instituições e objetos<br />
deixaram claro, no século XX, que os poderes humanos têm alcance restrito:<br />
demonstraram que o homem não pode tudo; de fato, ele pode muito pouco. Os<br />
objetos têm autonomia, impõem-se ao homem e não se subjugam. A<br />
onipotência tornou-se impotência.<br />
A técnica e seus desdobramentos na sociedade, isto é, a ideologia que<br />
se desenvolve a partir de seu uso e de sua instrumentalização tornaram<br />
possível, em primeiro lugar, a erosão dos princípios filosóficos que haviam sido<br />
erguidos no começo do século XVII. A ontologia, ou seja, a concepção baseada<br />
na filosofia clássica de que no homem existiriam "estruturas estáveis" - que só<br />
não eram claramente perceptíveis porque o homem no seu processo social<br />
estaria encoberto por uma nuvem de alienação provocada originalmenmte pelo<br />
processo de trabalho - assim como a metafísica, foram minadas pela própria<br />
forma de a técnica de autoimpor-se no social. Esta liquidou a imagem de que no<br />
homem sua aparência poderia ser negada ou contraposta a uma estrutura<br />
íntima última, bem como consagrou a afirmativa de Nietzsche, de que Deus<br />
estava morto. Isto é, impôs uma verdade positiva de que as coisas são como<br />
são e qualquer recurso transcendente de explicação seria tido como misticismo.<br />
Em outras palavras: a crença na existência de Deus, e, por derivação, na<br />
possibilidade de uma natureza permanente e imutável no homem passaram,<br />
depois desta expansão da técnica, a ser tidas como mera ficção.<br />
A existência de uma ontologia do ser teve sua origem nos mecanismos<br />
de antropomorfização da própria sociedade, no destronamento da cultura<br />
erguida sobre a imagem de Deus.<br />
4
Isto quer dizer que na Época Moderna havia se instaurado um inchaço<br />
nas possibilidades do sujeito, marcante especialmente na filosofia idealista, no<br />
liberalismo e no socialismo. O sujeito transcedental era o homem ou o<br />
proletariado que deveria realizar a utopia histórica. Nesse sentido, a história<br />
funcionava como continuação do pensamento religioso e sua filosofia, surgida<br />
na Época Moderna, não passava de uma reformulação ou modernização do<br />
pensamento e da utopia cristã. Aquilo que para o Cristianismo era a redenção,<br />
a salvação, a possibilidade de felicidade final, o pensamento materialista do<br />
século XIX transferiu para agentes humanos historicamente determinados. O<br />
homem, as classes ou as revoluções deveriam realizar a tarefa histórica de<br />
construção terrena de uma utopia social.<br />
Estes grandes discursos legitimadores da ação política, como o foram o<br />
marxismo e o liberalismo, funcionaram também como aval do exercício da<br />
ciência, do direito, da moral e da arte. O desenvolvimento da técnica,<br />
entretanto, foi tornando cada vez mais débil este tipo retaguarda filosófica,<br />
porque justificava-se por si mesmo, prescindindo de uma sombra religiosa,<br />
ideológica ou abstrata. Quanto mais se desenvolvia a ciência e a técnica,<br />
menos se poderia dizer que elas deveriam se basear num estatuto externo a<br />
elas, isto é, numa ideologia. É por isso que o desenvolvimento técnico acabou<br />
por realizar, especialmente no após-guerra, a liquidação final das ideologias<br />
legitimadoras ou das "metanarrativas", e por suprimir o respaldo que se<br />
baseava numa filosofia especulativa, num agir ético-político passando a uma<br />
legitimação em si mesmo , segundo seus próprios parâmetros.<br />
Com isso, todos os conceitos de sustentação do pensamento iluminista<br />
começaram a cair por terra neste final de século. Em primeiro lugar, a razão já<br />
que estava associada a um espírito iluminista e, segundo ela, o homem poderia<br />
através da inteligência e do uso de sua racionalidade abarcar todas as formas<br />
do real. O real é racional, dizia Hegel, atribuindo à capacidade humana a<br />
possibilidade de dar conta de todas as ocorrências terrenas. Havia se<br />
desfechado aí o golpe mortal e radical contra todas as formas de misticismo,<br />
transferidas para a margem da sociedade, para o campo desprestigiado das<br />
crenças e ilusões. Tinha prestígio e status, ao contrário, o saber racional e a<br />
possibilidade de o homem, através dele, executar o domínio da natureza.<br />
As crises históricas e os caminhos desastrosos a que conduziram os<br />
desenvolvimentos técnicos e as tecnologias, e especialmente as formas de<br />
dominação, opressão, violência, genocídios e ameaça planetária puseram em<br />
cheque a capacidade da administração racional da sociedade. Os sistemas<br />
políticos fanáticos e radicais, como barbáries sem rédeas pela história,<br />
inspiraram-se, ao contrário, na mais absoluta irracionalidade. A partir da<br />
experiência destes, o conceito de razão não tem mais sentido.<br />
Sobreviveram, opostamente, fatos inexplicáveis, imprevisíveis,<br />
incontroláveis, inadministráveis, demonstrando que independente ou além de o<br />
homem conseguir dar conta da sua realidade, os eventos, acontecimentos,<br />
irrupções fogem absolutamente de seu controle e de sua atuação.<br />
Semelhante destino tiveram os conceitos de verdade, ideologia, história,<br />
progresso, evolução. O conceito de verdade subordinava-se a uma estrutura<br />
lógica maior, que lhe garantia o critério de legitimidade. Tratava-se de um<br />
metarrelato e uma razão superior, que justificava os meios de acordo com os<br />
5
fins pré-determinados. Com a crise do conceito de verdade, cai por terra<br />
também o conceito de história, já que este baseava-se na noção de linearidade<br />
ou de determinação. Ele supunha um processo evolutivo em que uma<br />
sociedade medieval seria substituída por uma mercantilista mais desenvolvida e<br />
esta por uma sociedade industrial capitalista, ainda mais avançada.<br />
A concepção de evolução ascendente do social entra em crise na<br />
medida em que os próprios valores que embasavam essa evolução já eram<br />
determinados pelo estágio em que se vivia. Ou seja, na noção da história,<br />
estava contida uma idéia de finalização, de finalismo e de a história tender à<br />
realização de algum princípio, idéia, sociedade que os homens acreditavam<br />
fosse se realizar necessariamente. A história deveria dobrar-se a essa idéia<br />
criada pelos homens e seguir um rumo pré-programado. Progresso e evolução<br />
seriam os indicadores da correção ou não desse rumo. Ingenuamente achavase<br />
que se poderia colocá-la sobre os trilhos.<br />
Vem abaixo também o conceito de ontologia, como mencionado, porque<br />
se baseava numa lógica marcada por opostos, essência/aparência,<br />
alienação/desalienação, latente/manifesto, que implicavam, a partir de uma<br />
crítica ao místico na sociedade, uma revisão de todo o pensamento, buscando<br />
trazer à luz aquilo que se apresentava como mistificador, encobridor ou<br />
falseador de uma determinada realidade. A concepção de uma ontologia e a<br />
idéia de um desmascaramento estão igualmente subordinados às<br />
possibilidades do real ser racional, de se chegar através da conscientização<br />
política ou do trabalho intelectual ao "fundo" das coisas.<br />
Com a crise dos grandes discursos genéricos, desaba também a noção<br />
de totalidade que, derivada basicamente da dialética, reduzia todos os<br />
fenômenos a leis gerais de funcionamento e da mesma forma "explicáveis"<br />
segundo seus princípios determinantes. A noção de totalidade introduzia um<br />
componente simplificador em todas as relações sociais e era da mesma forma<br />
aglutinador. Por outro lado, exercia uma força terrorista sobre o conjunto dos<br />
demais discursos, na medida que ao integrar todos os componentes sob sua<br />
lógica, favorecia o desenvolvimento do pensamento ortodoxo e mesmo fanático<br />
em termos de ideologia, política e lógica social.<br />
Desmorona-se também a noção de sujeito histórico e mesmo a de indivíduo.<br />
Indivíduo, assim como citoyen e burgeois, fazem parte de uma lógica em que<br />
o homem obtém destaque dentro do conjunto social e se afirma como ser<br />
dominante. Entretanto, já desde Copérnico e Darwin que não se justifica tal<br />
preponderância filosófica e histórica do homem. Copérnico, acabando com as<br />
ilusões de o planeta estar no centro do sistema solar, e Darwin, reduzindo o<br />
homem a um mamífero cujos ancestrais eram símios, obteriam ainda no início<br />
deste século um novo complemento a partir de Freud, cuja teoria iria<br />
demonstrar que sequer os pensamentos e a ação dos homens lhes pertenciam,<br />
fazendo parte, ao contrário, de uma estrutura inconsciente genérica da<br />
sociedade, da qual o homem não passava de um mero representante. A<br />
radicalização deste ponto de vista deu-se com Lacan, que por meio do método<br />
estruturalista iria levar às últimas consequências a determinação do<br />
inconsciente enquanto responsável pelas ações humanas: o homem nada é,<br />
nada faz, nada altera; ele não passa de um personagem que fala uma língua<br />
que já encontra dada , que participa de um mundo simbolicamente estruturado<br />
6
pelo Outro e cuja função não é nada mais do que dar conta de um destino e de<br />
um dever já fixo e determinado.<br />
Cada vez mais a técnica ocupa um lugar próprio, autônomo, e se no<br />
começo da Revolução Industrial ela apenas fazia com mais perfeição e rapidez<br />
o trabalho em série, auxiliava e garantia um melhor rendimento, eficiência e<br />
produtividade do trabalho social, no século XX, com a sofisticação e o<br />
refinamento dos sistemas técnicos, reduz-se o espaço efetivo de intervenção<br />
humana: a automação, a substituição das atividades vitais, a organização total<br />
da vida nas sociedades segundo normas técnicas, instituem um novo quadro<br />
em que o homem vai do centro à periferia.<br />
O momento desta inversão do papel da técnica - que, segundo irá se expor<br />
durante todo o desenvolvimento deste livro é a marca do surgimento de uma<br />
nova era em que o homem toma consciência das ilusões passadas e tem que<br />
reconhecer sua pequena estatura - é a época em que já não se pode falar mais<br />
de superação crítica, evolucionismo ou progresso. Em Humano, demasiado<br />
humano, Nietzsche dizia que dentro do conceito de modernidade está implícita<br />
a idéia de sua permanente superação. A época atual, já instalando uma ruptura<br />
com a modernidade, não pode assim ser caracterizada como "superação". Há<br />
de ser vista, de fato, como um corte, em que nenhum dos conceitos anteriores<br />
pode ser reativado. Nem o de reapropriação nem o de recuperação das origens<br />
e dos fundamentos.<br />
Tampouco tem sentido para esta época a aspiração de autonomia em<br />
oposição a uma totalidade coisificada, como pressupunha o pensamento<br />
hegeliano-marxista, ou da contraposição de necessidades forjadas e<br />
necessidades verdadeiras. Dentro deste mesmo princípio, a chamada<br />
"experiência estética autêntica" não tem mais espaço. Todas estas categorias<br />
estavam marcadas pelo conceito de verdade ou de essência irredutível, que<br />
faziam parte dos princípios iluministas.<br />
Assim, não se podendo mais pensar em termos de história e<br />
desmoronado as bases do humanismo, pode-se acreditar, com Heidegger, que<br />
a crise deste humanismo ocorre no ápice da técnica. Em lugar destas duas<br />
categorias que centravam o pensamento da Idade Média até a Idade Moderna,<br />
instala-se uma nova ordenação lógica dando novo estatuto à técnica.<br />
Heidegger dizia que já não é mais hora de se pensar o homem como um<br />
personagem forte e heróico; ao contrário, trata-se de encontrar seu verdadeiro<br />
lugar como um "sujeito emagrecido".<br />
Mas não somente Heidegger pensou prematuramente a questão da<br />
expansão da técnica e a crise do modelo iluminista. Outros autores,<br />
especialmente Nietzsche e Weber, posicionaram-se de forma precursora em<br />
relação aos desdobramentos que só hoje podemos sentir em sua profundidade.<br />
7<br />
2. O antiiluminismo<br />
-------------------------------------------------------<br />
Modernismo História, Superação Humanismo<br />
Ontologia (Incl. marxista)<br />
-------------------------------------------------------
Nietzsche Eterno retorno Niilismo completo<br />
(Homem > do centro<br />
ao X)<br />
-------------------------------------------------------<br />
Heidegger Fim da Metafísica Anti-humanismo;<br />
(Pós-Metafísica) enfraquecimento do<br />
Ser<br />
-------------------------------------------------------<br />
No quadro estão apresentadas duas dimensões básicas do pensamento antiiluminista.<br />
Naquilo que para o modernismo corresponde à história ou à<br />
possibilidade de superação e de uma ontologia, em Nietzsche encontramos, ao<br />
contrário, um caminho circular do eterno retorno. Não existe o conceito de<br />
avançar no sentido do progresso e da evolução. Em Heidegger, a superação da<br />
morte de Deus dá-se com a fase do predomínio da técnica como uma espécie<br />
de sua continuação em outro plano, ou seja, na idade pós-metafísica.<br />
Em relação ao sujeito histórico, a que o modernismo atribuía uma<br />
capacidade de interferência e realização, Nietzsche situa o niilismo completo e<br />
o caminho do homem não em direção a um fim previamente determinado por<br />
um discurso maior mas em direção ao X. Heidegger, igualmente negador desta<br />
"inflagem" do ser, vê nisso, ao contrário das possibilidades humanistas, um<br />
equívoco já que os homens para ele já estão excessivamente debilitados.<br />
É de Nietzsche a afirmação de que "Deus está morto". Deus é<br />
assassinado quando o saber já não deseja mais chegar às causas últimas, ou<br />
seja, numa situação em que o fim dos valores supremos não é substituído por<br />
outros valores em que o próprio conceito de valor torna-se supérfluo. Em<br />
Crepúsculo dos deuses, propõe a consideração do mundo como fábula: a<br />
fábula perdeu seu sentido, pois não há mais verdade que a revele como<br />
aparência. Não há mais um Grund (fundamento) a ser falsificado ou<br />
desmentido. O mundo verdadeiro torna-se fábula e com isso dissolve também o<br />
mundo aparente. Daí ser tudo "errância" sem qualquer relação com uma<br />
verdade fundamental.<br />
Sob este conceito apresenta-se a proposição de niilismo completo, que<br />
se refere à superfluidade dos valores últimos. É também de Nietzsche a crítica<br />
mais veemente às concepções da metafísica, quando previu também que a<br />
superação das idéias de Deus não traria necessariamente, como imaginava o<br />
marxismo, o homem de volta a si mesmo: "Na recuperação das forças levadas<br />
aos céus não há emancipação da humanidade mas crescente autonegação".<br />
O pensamento utilitarista e a crença no progresso, que são<br />
sistematicamente criticados por Nietzsche, vão novamente tornar os homens<br />
escravos e, de fato, este parece que foi o resultado do desenvolvimento da<br />
técnica na época atual em que Deus desapareceu. Na eliminação da entidade<br />
metafísica, o homem passa a oscilar entre extremos de êxtase e decadência,<br />
vivendo a morte de velhos significantes junto com o niilismo completo da pósmodernidade.<br />
8
Assumindo uma postura igualmente crítica em relação à técnica e às<br />
expectativas de um sujeito heróico que pudesse domesticá-la, aparece com<br />
proeminência a posição de Martin Heidegger. Sua proposta é a da destruição<br />
da metafísica como forma de chegar às origens, ao Seinsvergessenheit; isto<br />
quer dizer que voltando-se a ela, atingir-se-ia o fim e a realização da própria<br />
metafísica. Para Heidegger, a técnica, caracterizada pela Ge-Stell ou imposição<br />
universal e provocação do mundo técnico (Vattimo, p.26), e nada mais do que<br />
ela compõe a essência oculta da metafísica ocidental. Ela seria o máximo<br />
desdobramento desta, ou seja, numa situação em que Deus está morto, a<br />
técnica assume para o homem a posição de uma nova divindade. Daí a<br />
acepção heideggeriana de que a essência da técnica é algo de natureza não<br />
técnica.<br />
Ele prevê, para tanto, uma possibilidade de o homem desembaraçar-se<br />
desta realidade que o nega e desta metafísica que o encobre, no conceito de<br />
Verwindung. Diante da transposição da circularidade vertiginosa em que o<br />
homem e o ser perderam todo o caráter metafísico por força da técnica (no<br />
Ereignis), urge no presente momento viver de forma radical a própria crise do<br />
humanismo, a saber, é preciso assumir esta qualidade da técnica como algo<br />
não técnico e entregar-se a uma espécie de "cura de emagrecimento" na qual o<br />
homem assumiria sua franqueza.<br />
Partindo de concepções filosóficas diferentes e rejeitando tanto o<br />
pensamento niilista quando o existencialista, ao mesmo tempo que afirmando<br />
pressupostos antiiluministas, aparece a figura de Max Weber, como outro<br />
grande pensador contemporâneo que radicalmente questiona o mito da<br />
racionalidade ocidental.<br />
O Iluminismo para Weber não passava de uma ilusão. A racionalidade,<br />
em vez de dar conta das exigências e das aspirações humanas de bem-estar e<br />
de progresso, levou, ao contrário, à ação racional com vista a fins<br />
(Zweckrationalitaet); a razão desembocou numa forma de dominação e<br />
opressão. Errado estava Marx que encarava a razão do ponto de vista positivo,<br />
como possibilidade real de desenvolvimento das forças econômicas e sociais.<br />
Marx acreditava categoricamente nas possibilidades do homem de, através do<br />
agir racional, remodelar o próprio meio e construir seu futuro.<br />
Não obstante, os pensadores marxistas deste século, especialmente os<br />
que se mantiveram alinhados à corrente hegeliana e que foram portanto<br />
herdeiros de Lukács, já abandonavam essa visão romântica da razão e<br />
assimilavam o contrário, a concepção mais realista de Weber. Atrás da razão<br />
escondia-se a lógica da dominação, da opressão, da burocracia e da<br />
impessoalidade; não houve melhoramentos humanos com a tecnologia e a<br />
pressão das forças produtivas não conduziu à revolução.<br />
Resultado disso é o que Max Weber caracterizou como "processo<br />
universal de desencanto". A razão, que ocupou o lugar do misticismo, não<br />
ofereceu em contrapartida um bem-estar psicológico nem material ao homem.<br />
As superstições foram liquidadas, já que faziam parte do pensamento mágico,<br />
inimigo da postura racional do Iluminismo, e com isso perdeu-se o sentido ético<br />
e da unidade da vida. Em substituição a elas a razão foi usada para aumentar o<br />
controle ("netro e instrumental") do mundo.<br />
9
Na modernidade, para Max Weber, aquilo que significava a preocupação<br />
com os bens materiais, que num primeiro momento era visto como um "leve<br />
manto" do qual se poderia despojar a qualquer momento, fez com que o manto<br />
de tornasse, segundo suas palavras, uma "armadura férrea"<br />
(Weber,1973,p.187). Igualmente os homens desta nova era, em que a<br />
racionalidade e a relação com os bens materiais assumem um aspecto nuclear,<br />
são caracterizados por Weber como "especialistas sem espírito, fruidores sem<br />
coração".<br />
Os principais intelectuais deste século que se pautaram pela<br />
continuidade do pensamento marxista no campo da filosofia e da crítica da<br />
cultura, ou seja, o grupo que se denominou Teoria Crítica da Sociedade, sofreu<br />
também os revezes desta virada das perspectivas otimistas em relação à<br />
racionalidade. Originalmente seguindo as idéias de Georg Lukács dos anos 30<br />
e sua posição ímpar no desenvolvimento do materialismo histórico em<br />
confrontação com a tendência materialista dialética em expansão na União<br />
Soviética, os pensadores da Teoria Crítica assimilaram e deram continuidade<br />
às possibilidades da crítica à reificação através da razão e da filosofia da<br />
consciência; a auto-reflexão racional significava um instrumento criativo nas<br />
formas de luta para se atingir a realização do Estado socialista. Não obstante,<br />
logo sentiram os rumos desastrosos da técnica, especialmente no período em<br />
que eles próprios sofreram sua expansão nas mãos dos Estados totalitários e<br />
fanáticos. A autonomização da razão instrumental passou a ser vista, então,<br />
como uma decorrência funesta do desenvolvimento da razão e as chances<br />
otimistas de Marx foram descartadas.<br />
A partir daí os autores ingressam numa trajetória de negatividade,<br />
refutando qualquer espécie de revalidação mais positiva das possibilidades da<br />
racionalidade voltada a fins, fato que Juergen Habermas critica em sua<br />
tentativa de reapropriação da razão. Para este, haveria a possibilidade de uma<br />
racionalidade positiva quando orientada e articulada pelo mundo vivido<br />
(Lebenswelt).<br />
3. O desencanto estético<br />
A crise talvez mais marcante e transparente da chamada Era Moderna<br />
estaria situada na sua expressão estética, na crise da modernidade estética.<br />
No primeiro período do modernismo, a concepção de arte estava ainda<br />
dominada pelos enciclopedistas e por uma relação exageradamente unívoca<br />
em relação ao processo artístico. Para estes, só haveria uma possibilidade de<br />
observação, uma forma de representação. Engrossavam essas fileiras também<br />
filósofos como Comte, Bentham e Mill.<br />
A partir da metade do século passado configura-se uma segunda e mais<br />
marcante forma de se encarar a arte, ao lado da aceitação da multiplicidade de<br />
formas de representação. É o período que coincide com a expansão da<br />
fotografia, que monopoliza a possibilidade de reprodução exata do real por<br />
meios técnicos. A arte rebela-se contra esta perda de espaço representativo e<br />
parte para processos desviantes, particularistas, impressionistas de<br />
representação.<br />
10
É a época em que surgem os teóricos do modernismo, como Baudelaire<br />
e Flaubert, que assinalam as marcas que distinguem este fenômeno artístico<br />
dos outros ciclos culturais. Para Baudelaire, a arte é transitória e contingente<br />
mas ao mesmo tempo eterna e imutável. Este segundo aspecto é também de<br />
certa forma reafirmado por Flaubert para quem a arte extrai do mundo que<br />
passa os traços de eternidade que ele contém (cf. Harvey, 1989, p.20).<br />
Encontram-se aí, portanto, nos dois autores, a expressão viva do componente<br />
ontológico da cultura, a essência última, que também na filosofia ocupava uma<br />
posição de destaque.<br />
Partindo disso, contrói-se a concepção modernista de arte que vai<br />
vigorar durante esta parte do século passado (segunda metade) e boa parte<br />
ainda deste, segundo a qual, o artista deve desempenhar um papel criativo na<br />
definição de uma "essência da humanidade" assim como um papel heróico no<br />
que Nietzsche chamava de "destruição criativa". Ele realizaria na prática o que<br />
Kant havia proposto em relação o juízo estético: ponte entre a razão prática e o<br />
conhecimento científico.<br />
No século XX, contudo, o modernismo já começa a oscilar em posições<br />
ambíguas. No primeiro momento, até antes da I Guerra, a posição dos artistas<br />
era de reação às inovações técnicas e às tranformações sociais e políticas que<br />
a ela estavam relacionadas, como a grande expansão da indústria, o<br />
significativo aumento do maquinário e a urbanização das cidades. A isso se<br />
somam o desenvolvimento das redes comerciais, dos transportes, das<br />
comunicações, assim como, no plano do consumo, o grande aumento dos<br />
produtos culturais, a popularização dos bens artísticos e a massificação da<br />
própria arte.<br />
Depois da Guerra, os próprios artistas assumem posições divergentes<br />
em relação à aceitação ou não do componente técnico na transformação da<br />
sociedade. Instala-se uma tendência que mitifica as técnicas e que vai se<br />
atrelar de forma mais ou menos radical aos regimes totalitários dos anos 20 e<br />
30. É o caso do futurismo de Marinetti e de Ezra Pound na Itália, mas também<br />
de Dos Passos e Hemingway nos Estados Unidos. No âmbito da arquitetura,<br />
estão Le Corbusier e Walter Gropius (Bauhaus), em cuja concepção as cidades<br />
e as casas seriam "máquinas para dentro delas se viver".<br />
De fato, apesar da não adesão ao regime fascista, os projetos e os<br />
propósitos de Gropius foram de fato aplicados pelos engenheiros de Hitler na<br />
construção de moradias e instalações para controle político.<br />
Ao lado dessa tendência sobreviveram correntes que rejeitavam a<br />
adesão aos regimes fascistas: o surrealismo, o construtivismo e o realismo<br />
socialista.<br />
Com a expansão da técnica, o acirramento da corrida armamentícia e a<br />
dilatação da própria sociedade de consumo, a arte moderna entra em declínio.<br />
Sua última forma é a do alto modernismo, nitidamente identificado com o<br />
establishment, movimento este marcado pelo expressionismo abstrato, pelas<br />
idéias positivistas, tecnocráticas e racionalistas.<br />
O projeto da arte moderna sucumbe, portanto, com os outros<br />
componentes do espírito das Luzes até chegar a um momento de absoluta<br />
perda de identidade. É exatamente nesse momento que se trava o debate que<br />
11
marcará a divisão de rumos de concepções que pautarão a discussão sobre a<br />
pós-modernidade.<br />
De um lado, aparece Juergen Habermas, que segue a tradição de Kant e<br />
de Adorno em relação à arte, que ainda vê nela a possibilidade de restauração<br />
de uma certa utopia perdida. Para ele, a arte ainda é a marca da negação<br />
contra o poder totalizador de uma sociedade unidimensional, o "armazém de<br />
significados que se encontram em perigo"(Jay,1988, p.207).<br />
Para Habermas, a arte moderna encontra-se num dilema: ela pode<br />
recuperar aquilo que está fortemente ameaçado pela devastadora cultura da<br />
pós-modernidade mas para isso é preciso que resgate o projeto kantiano de<br />
fusão de esferas cognitiva, político-moral e expressivo-estética.<br />
Claro está aqui, que para o pensador alemão as coisas ainda se colocam<br />
em termos de uma essência perdida ou mutilada pelo processo histórico, que<br />
deve ser de alguma forma recuperada.<br />
No debate sobre a questão, Peter Buerger, Andreas Huyssen e Jean-<br />
François Lyotard colocam-se radicalmente contra a perspectiva habermasiana.<br />
Para Buerger, a interpretação de Habermas é absolutamente ilusória. As três<br />
esferas não têm nenhuma identificação entre si já que a ciência não integra a<br />
vida cotidiana, a arte goza de autonomia própria e aspira à transcendência,<br />
coisa que a ciência não faz. Sua crítica é de que Habermas tentaria fazer valer<br />
uma concepção totalmente irreal de harmonia entre as três esferas que<br />
buscariam apoiar-se mutuamente na construção do projeto estético.<br />
Para Huyssen, Habermas é holista e está na verdade em busca de um<br />
"telos" (fim, realização), procurando recuperar portanto a concepção de um<br />
devir, de uma história, de um futuro utópico de natureza finalista.<br />
Para Lyotard, da mesma maneira, Habermas, na sua proposta de<br />
revitalização do fenômeno estético, deixa transparecer seu objetivo unificador<br />
da história e a existência do sujeito totalizador. Para ele, Habermas busca a<br />
ordem, a unidade, esperança, a esfera pública quando critica todos os<br />
movimentos chamados vanguardistas e a por ele caracterizada perda do<br />
referencial histórico da arte.<br />
Mas para a maioria dos autores que analisam o momento atual pósmoderno<br />
do desenvolvimento social, a arte é uma manifestação que por seu<br />
atrelamento às concepções de mundo e ao espírito do Iluminismo e da razão<br />
não tem mais possibilidades nem esperanças de recuperação da aura perdida.<br />
A arte na sociedade tecnológica deixou de ser um fenômeno específico; a<br />
experiência geral das pessoas tornou-se estetizada, isto é, os ambientes gerais<br />
que compõem a cultura passaram eles próprios a se tornarem porta-vozes,<br />
maneiras públicas de expressão artística. Tanto nas pessoas como designers<br />
bodies (Kroker), como nos ambientes interiores e nos próprios edifícios da<br />
paisagem urbana instala-se uma total estetização dos ambientes de vida. Isso<br />
constitui o que se convencionou chamar de "fenômeno artístico integral".<br />
A arte dissolve-se, dilui-se, pulveriza-se na cultura como um todo,<br />
deixando de existir, portanto, como um fenômeno em si, singular.<br />
Por outro lado, em vista também do espírito do tempo, ela já perdeu sua<br />
característica de escandalizar: já não choca, já não atrai, já não é capaz de<br />
12
esgatar valores, conceitos ou expressões que tornem as pessoas fixadas e<br />
marcadas por eles. Vive-se um período do "transestético" (cf. tb. Baudrillard,<br />
1990), com o desaparecimento de todos os padrões de julgamento artístico.<br />
Faz-se uma arte em que nada há mais a ser visto, que só sobrevive como um<br />
ritual em relação ao qual nada temos a fazer senão simplesmente crer.<br />
13
Segunda Parte<br />
O <strong>FRANKENSTEIN</strong> TECNOLÓGICO<br />
Partindo de perspectivas diferentes, Paul Virilio e Lucien Sfez descrevem<br />
o quadro da passagem da Modernidade à Pós-Modernidade (ou: da era do<br />
predomínio da lógica da razão à da crise da razão) em três momentos que se<br />
completam.<br />
Paul Virilio<br />
-------------------------------------------------------<br />
Lógica pintura realidade conhecimento<br />
formal pleno<br />
-------------------------------------------------------<br />
Lógica foto, atualidade conhecimento<br />
dialética cinema aproximado<br />
-------------------------------------------------------<br />
Lógica vídeo virtualidade pouco<br />
paradoxal conhecimento<br />
-------------------------------------------------------<br />
Lucien Sfez<br />
-------------------------------------------------------<br />
Representação "com" máquina bola de bilhar<br />
-------------------------------------------------------<br />
Expressão "em" organismo criatura<br />
-------------------------------------------------------<br />
Confusão "por" tautismo Frankenstein<br />
-------------------------------------------------------<br />
Em Virilio, a pintura era a expressão da realidade sob uma perspectiva<br />
formalista e através dela chegava-se a um conhecimento pleno, direto,<br />
"transparente" do real que estava sendo representado. O cinema e a fotografia,<br />
como intervenções técnicas na forma de se reproduzir a realidade, atuavam sob<br />
a perspectiva dialética da representatividade. O primado aqui já não já mais da<br />
realidade, mas da atualidade. Fotografia e cinema, isto é, o fotograma, significa<br />
uma captação atual, momentânea, instantânea que dava à representatividade<br />
uma apreensão não programada, não maquiada. Neste caso, com o privilégio<br />
da instantaneidade perde-se o componente da plenitude do conhecimento que<br />
tinha a ver com uma captação duradoura e exaustiva do objeto. Por fim, no<br />
momento atual das tecnologias sofisticadas, marcadas pela videografia e pela<br />
14
holografia, já não se trabalha mais com a atualidade mas com um fenômeno<br />
que transcende a possibilidade de correspondência do objeto com a imagem<br />
real. Está-se no campo da virtualidade e aqui o conhecimento torna-se<br />
absolutamente impreciso.<br />
Em Sfez, na visão de mundo da representação, o homem domina a<br />
máquina e está com ela para seus fins. Há o predomínio da razão e as<br />
máquinas representam o homem segundo o princípio da dualidade cartesiana<br />
(corpo/espírito, sujeito/objeto). Os meios de comunicação traduzem o mundo, a<br />
imagem representa o emissor, vive-se num universo, em termos de<br />
comunicação, da representação. A figura é a bola de bilhar que, uma vez<br />
enviada, atinge seu objetivo e é novamente reenviada com a conservação da<br />
plena integridade do movimento.<br />
A segunda visão de mundo é a da expressão, em que os objetos são o<br />
ambiente natural; nosso mundo é introduzido por ele e o homem está no<br />
mundo, nele jogado, não o dominando mas a ele se adaptando. As partes se<br />
relacionam com o todo. Os meios de comunicação igualmente estão no mundo<br />
e o mundo está neles mas não há mais envio de mensagem . A figura desta<br />
segunda fórmula é a criatura, e os signos são produtivos como organismos,<br />
exprimem a natureza.<br />
A terceira visão de mundo é a da confusão; não há sujeito e é o objeto<br />
técnico que marca seus limites e determina suas qualidades. A tecnologia diz<br />
tudo sobre o homem e seu devir. O homem existe pela tecnologia. Nos meios<br />
de comunicação ocorre uma ausência de comunicação exatamente pelo próprio<br />
excesso de informação. A comunicação torna-se uma entidade metafísica,<br />
auto-referente; é uma repetição imperturbável do mesmo no silêncio de um<br />
sujeito morto. A figura desta terceira categoria é Frankenstein. (Sfez, 1988,<br />
p.12ss)<br />
15
TRAÇOS GERAIS DA <strong>SOCIEDADE</strong><br />
A sociedade da racionalidade técnica, que substitui a da razão humana,<br />
é constituída por traços gerais novos e próprios, que marcam sua<br />
especifidade. No decorrer da exposição eles serão melhor esclarecidos através<br />
dos exemplos e das descrições de situações.<br />
1. Crescimento louco, multiplicação e morte<br />
Nos novos processos que caracterizam a época atual, os atores<br />
históricos, desinvestidos de sua onipotência, são testemunhas de que os<br />
próprios movimentos, os próprios objetos expandem-se, desenvolvem-se,<br />
desagregam-se indiferentes às intenções de controle racional dos homens. (A<br />
fundamentação deste item 1 está baseada principalmente em Baudrillard: 1981,<br />
1983, 1986, 1987a)<br />
Com a morte da ilusão do sujeito e o fim das metanarrativas,<br />
movimentos e objetos afirmam sua autonomia e auto-realização; instala-se a<br />
lógica da divisão, da multiplicação serial, da duplicação, da potencialização, da<br />
proliferação ao infinito. Sujeitos e instituições explodem anômala e<br />
arbitrariamente e são as técnicas que "refundem" o social. Nos sistemas como<br />
os de comunicação, informação, produção e destruição, as formações<br />
cancerosas, a antecipação da morte no seio da significação viva, o crescimento<br />
louco, desordenado, o girar em torno de si mesmo, a ausência de regras, a<br />
proliferação permanente caracterizam seu movimento.<br />
Os sistemas ultrapassam os limites de suas funções reafirmando com<br />
isso um funcionamento cego e automático, indiferente à questão do sentido, da<br />
finalidade e da função e tornam-se inertes, hipertélicos e mortos. É aquilo que,<br />
apesar de morto, continua a se mover mecanicamente, realizando-se como<br />
histerese, processo que continua por inércia mesmo quando a causa<br />
desaparece. Os meios de comunicação são o exemplo mais claro deste<br />
processo: forma extrema de clonagem que dispensa o original e em que as<br />
coisas só existem para sua reprodutibilidade ilimitada. O real desaparece no<br />
hiperreal, o sexo no pornográfico, o movimento na aceleração e na velocidade,<br />
o corpo no obeso, a informação na obscenidade, as redes na proxenética.<br />
Também nos homens, agora despidos das fantasias iluministas, instalase<br />
a lógica indiferente da multiplicação serial, sem aura; a fabricação de<br />
idênticos, sexuados mas com sexualidade inútil. Sem a representação do<br />
original, o ser vivo torna-se matriz artificial. Só a nostalgia o restitui como<br />
"autêntico". O outro passa a ser ele mesmo, desaparecida a confrontação. É a<br />
morte: o ser confunde-se consigo mesmo, desaparece o jogo com a aparência,<br />
a individualidade, a transcendência, a representação de si mesmo. A identidade<br />
individual fractaliza-se em múltiplos pedaços como cacos de espelho. Fim da<br />
representação sintética, de uma "grande gama de dimensões".<br />
2. Vivência imaginária<br />
A vivência na sociedade da racionalidade técnica institui o privilégio do<br />
imagético, do virtual, do circular e do autocentrado. O imagético é o privilégio da<br />
16
imagem, da televisão e do ecrã sobre a palavra, o som e o tato. No virtual, este<br />
sobrepõe-se ao real, as ficções tornam-se vida, a realidade externa é menos<br />
investida de importância e significação. As simulações, os modelos ocupam o<br />
real. É a era do "falso absoluto", os media passam a referir-se a si mesmos e a<br />
concepção de "mediação" é substituída pela de ficcionalização.<br />
Na circularidade, o conceito de (transmissão de) mensagens não existe;<br />
o universo torna-se circular e orbital, um girar sideral em que os vetores rodam<br />
acima de nós e escapam de nossa realidade. A informação não transcende,<br />
não se reflete no infinito, tampouco toca o real. No autocentramento ocorre a<br />
negação da espacialidade, da geografia, das dimensões. Investe-se no<br />
enclausuramento, no encapsulamento, no autofechamento, na concentraçãocondensação<br />
do espaço.<br />
3. Ficcionalização da memória<br />
A memória é construída e reconstruída a partir da televisão, que institui<br />
modelos, formatos, simulacros do que antes era tido como dado histórico. A<br />
memória torna-se fato disponível, flexível, acessível, eletronicamente<br />
recuperável e os componentes da antiga historiografia têm seu contexto<br />
relativizado ao extremo; os fatos são reaproveitados, reutilizados e opera-se<br />
uma intervenção no passado, manipulando-se, agora mais livremente, fontes,<br />
dados, procedimentos, participações, atuações numa disponibilidade absoluta<br />
da própria história.<br />
Ao lado da livre pilhagem do fato histórico, opera-se nos meios de<br />
comunicação a ressurreição fictícia e maquiada de acontecimentos do passado,<br />
o retrô, o culto dos modelos antigos, a abolição dos tempos e o uso aleatório de<br />
símbolos históricos.<br />
4. Esvaziamento do ser<br />
O enfraquecimento do ser coloca-se na razão direta da elevação do<br />
status do objeto. O momento desacredita os heróis, os líderes; as identidades<br />
agora flutuam. As pessoas tornam-se "perdidas"; é o domínio das máscaras, da<br />
esquizofrenia, da solidão e do desejo de suicídio. Narcisismo, necessidade de<br />
provar a própria existência, minimalismo são os novos comportamentos. O<br />
outro, deixando de ser nosso espelho, decreta a supressão relação de troca<br />
social, do acesso ao imaginário.<br />
Paralelamente, com a elevação do status do objeto, as máquinas, os<br />
computadores, as tecnologias enredam os sujeitos; os fatos já não são<br />
conduzidos, influenciados, produzidos ou determinados por homens ou grupos<br />
mas acontecimentos que irrompem de forma imprevista e imprevisível. São<br />
eclosões repentinas, de surpresa, viradas espetaculares, violência explosiva<br />
descodificada.<br />
Com o enfraquecimento do ser e o fim do princípio da densidade do<br />
sujeito heróico, coloca-se em seu lugar uma ética performática; um sujeito sem<br />
o peso de uma ontologia, de uma história, de uma ética investe no agir, no<br />
movimentar-se, no pular, no participar, no exercitar, no correr, no experimentar<br />
17
emoções pura e simplesmente. O investimento é no corpo, na emoção pura, na<br />
velocidade, na euforia e no êxtase. Atrás das emoções não há nada.<br />
Suprime-se a "seriedade do compromisso, da missão, do ideal" e<br />
enaltece-se o jogo e a festa. Paralelamente ao investimento no agir, a negação<br />
do maldito e a purificação de negação: assepsia, embranquecimento,<br />
eliminação da negatividade (do pobre, do feio, do inferior).<br />
5. Substituição dos sistemas lógicos<br />
A destituição dos antigos grandes códigos, o fim da razão abstrata, das<br />
metanarrativas, a queda do prestígio das instituições e das autoridades, o<br />
descrédito dos princípios, das categorias clássicas, dos fatos fundadores ocorre<br />
em contrapartida ao privilégio das coisas úteis, dos resultados, das<br />
consequências, das práticas. Instala-se o princípio da fragmentação, da<br />
descontinuidade, da pulverização.<br />
Em lugar da visão do social como uma totalidade passa-se a encarar a<br />
sociedade como equivalente àquilo que metaforicamente Wittgenstein aplicava<br />
à linguagem, uma descontinuidade sem centro: "uma velha cidade com uma<br />
rede de vielas e praças, casas novas e velhas e casas contruídas em diferentes<br />
épocas, e tudo isso cercado por uma quantidade de novos subúrbios, com ruas<br />
retas e regulares e com casas uniformes". (Investigações Filosóficas).<br />
O universo torna-se pluralista, os gêneros e estilos misturam-se. No<br />
campo da crítica, marcado pelo enraizamento de princípios iluministas,<br />
prevalece o negativismo, o niilismo e o ceticismo. No campo dos atores<br />
culturais, o relacionamento com o mundo é marcado pela ironia, ridicularização<br />
de tudo, indiferença e cinismo.<br />
I - TECNOLOGIAS E MEIOS DE COMUNICAÇÃO<br />
1. Tecnologias<br />
A vida social, política e cultural das sociedades pós-industriais é<br />
inteiramente marcada pelos efeitos das novas tecnologias de comunicação e<br />
informação. Estamos diante de um cenário cibernético-informático que<br />
recompõe todo o real segundo novos critérios e novas formas.<br />
As técnicas invadem todas as áreas e não só a da difusão de<br />
informação. Administração, direito, educação, sistemas de transporte,<br />
comunicação, lazer, em suma, em todos os campos são penetrados pelo seu<br />
discurso. Sua função é de agregar uma sociedade que se desintegrou. (Sfez,<br />
1988, p.20).<br />
O homem dentro desta complexidade marcada pela sofisticação técnica<br />
vive pela primeira vez e com toda a intensidade a crise do humanismo apontada<br />
por Heidegger. É o ápice da técnica, da imposição universal e provocação do<br />
mundo técnico, a Ge-Stell que assinala o ocaso desse humanismo e o<br />
aparecimento do que ele chamava de Ereignis, o enfraquecimento do ser, a<br />
circularidade vertiginosa em que o homem e o ser perdem seu caráter<br />
metafísico.<br />
18
A técnica, criação do homem, assinala esse ponto de virada na história<br />
humana. De dependente passa assumir cada vez mais contornos de autonomia<br />
e de liberdade de movimentos. O enfraquecimento do homem vem na razão<br />
direta desse fortalecimento da técnica. "As máquinas, nosso duplo, que<br />
criamos, adquirem autonomia e poder". (Sfez, 1988, p.15)<br />
Cada vez mais o homem constitui-se de forma maquínica como<br />
robotização humana, semi-carne, semi-metal; cada vez mais a máquina assume<br />
o espírito da natureza e através da inteligência artificial humaniza-se,<br />
desenvolve formas de malícia, de trapaça, de cordialidade convivial. A<br />
tecnologia nesta fase torna-se "way of life" e sensualidade. Como way of life é o<br />
"segundo eu" encontrado no computador; entidades e modos de<br />
comportamento flutuantes. Como sensualidade, o computador é um contato<br />
quase sensual (Turkle,l984, p.173ss.). Marinetti, precursor remoto do<br />
endeusamento da máquina, já via o ferro e a madeira como "mais apaixonantes<br />
que a mulher".<br />
1.1. A velocidade<br />
Mas as máquinas não são apenas os computadores penetrando cada<br />
vez mais amplamente em todos os ambientes da vida pública e privada. A<br />
rapidez do envio de mensagens e comunicados encontra um paralelo no<br />
conceito de velocidade, uma das categorias mais decisivas da nova era da<br />
técnica.<br />
Em alta velocidade dá-se a transmissão de informações, o domínio de<br />
percursos geográficos, a criação de material técnico, a produção, distribuição e<br />
consumo de bens e serviços, a rotatividade dos objetos e materiais que servem<br />
nosso cotidiano, e até mesmo da mão-de-obra.<br />
A alta velocidade trouxe como consequências a acentuada volaticidade e<br />
efemeralidade das modas, produtos, da inovação técnica, dos processos do<br />
trabalho, das idéias, ideologias e práticas pré-estabelecidas. Valoriza-se a<br />
instantaneidade e a descartabilidade, inclusive a de valores, estilos de vida,<br />
relacionamentos estáveis, da fixação em coisas, edifícios, lugares, povos,<br />
formas autênticas de fazer e se ser.<br />
Trata-se de um processo angustiante de troca em que as pessoas são<br />
compelidas por uma pulsão incontrolável de trocar de carro, de casa, de<br />
companheiro, de emprego, de roupas etc. É uma pulsação incessante pelo<br />
devir sem nenhum investimento substantivo no estar: não se está em lugar<br />
nenhum, vive-se contínuamente na expectativa do provável. É um estado de<br />
permanente flutuação acima das coisas, dos atos e dos comportamentos. A<br />
ênfase já desloca-se do conceito de "sentido", da materialidade, da mera<br />
existência física; os bens, matérias tornam-se somente componentes físicos de<br />
uma sensação, de um eterno pular de ponto em ponto. É o girar, o movimento<br />
que se opõe à permanência. Oscila-se o tempo todo entre um estado de<br />
expectativa angustiante e de prazer e euforia que rapidamente se desfaz.<br />
Estimula-se, a um ritmo crescente, a busca contínua por outra coisa e no<br />
momento de sua obtenção ela como que automaticamente se dilui, recriando<br />
novamente a busca.<br />
19
Desaparecendo os clássicos componentes estruturantes da realidade de<br />
cada um (forte ligação à religião, a um princípio filosófico, a uma ideologia<br />
política) as pessoas buscam sair da angústia do esvaziamento através de<br />
novas formas de metafísica. Assim, o renascimento religioso, ou seja, a busca<br />
de uma "verdade eterna" acaba funcionando como um oportuno substituto<br />
deste estado de coisas marcado pelo flutuar acima de qualquer envolvimento<br />
mais efetivo. É uma forma de pseudomistificação numa sociedade altamente<br />
racionalizada.<br />
A velocidade está no costume com o conforto, naquilo que nos faz<br />
reduzir o senso de tocar, de sentir o contacto muscular com as matérias e<br />
volumes em proveito, ao contrário, de uma série de afloramentos, de toques e<br />
de deslizes furtivos. (Virilio, 1980, p.61) É Virilio que vai caracterizar também a<br />
velocidade como uma forma de morte. "Montar um animal ou sentar-se num<br />
veículo automotor é preparar-se para morrer no momento da partida e renascer<br />
na chegada ... O aumento da velocidade é a curva de crescimento da angústia.<br />
A velocidade de deslocamento não é mais do que a sofisticação da fuga".<br />
(idem, pp.43-47)<br />
A saída da angústia estaria naturalmente no suicídio. Mas este<br />
subordina-se, como a própria angústia, a uma vivência trágica, logicamente<br />
associada aos destinos da ontologia. A era das emoções e do êxtase, ao<br />
contrário, banaliza a morte, na medida que torna-a medidade de suas próprias<br />
forças de estímulo: só se investe, só se estimula, só se trabalha naquilo que<br />
"inibe a morte", que faz o jogo fascinante de brincar com ela, isto é, que consiga<br />
restituir emoções que nenhum outro modelo hoje mais alcança.<br />
Para Virilio, a velocidade também significa o envelhecimento prematuro,<br />
em que mais o movimento se acelera, mais rápido o tempo passa, mais o<br />
ambiente se priva de significação. (Virilio, 1984, p.43)<br />
A velocidade tornou os fatos da vida cotidiana absolutamente sintéticos,<br />
reduzidos, condensados, comprimidos, de tal forma que mediante todos os<br />
recursos que temos à disposição pelas tecnologias podemos em uma só vida<br />
viver experiências que num passado distante exigiam muitas. Pode-se viajar<br />
milhares de vezes pelo mundo, trocar diversas vezes de ocupação, fazer<br />
circular um maior número de parceiros e, em última análise, condensadamente,<br />
viver uma vida elevada a uma potência jamais imaginada no passado. Daí a<br />
sensação de tudo ter sido vivido, de esgotamento, de ausência de prazer no<br />
novo e de uma angústia de envelhecimento precoce. Faz-se hoje muito mais do<br />
que qualquer pessoa das gerações passadas poderia fazer, ganha-se em<br />
quantidade na razão inversa da apreensão exaustiva, cuidadora e<br />
compenetrada da experiência.<br />
Também os lugares mudam de significado na destruição geográfica das<br />
distâncias. Quanto mais rápido o carro segue pelas estradas, menor é o tempo<br />
que liga o ponto de chegada ao de partida, menor é o registro real do ambiente<br />
externo. Cada vez mais o panorama que é atravessado pela autopista e através<br />
dela pelo veículo que corre deixa de existir realmente, tornando-se apenas uma<br />
sequência enfileirada de diagramas, que compõem um visual composto de<br />
pouca fixação. É como um filme de rotação acelerada, do qual pouco nos é<br />
dado captar e sentir. A paisagem desaparece com a velocidade. A atenção<br />
20
eeduca-se no hábito da apreensão acelerada e múltipla de estímulos,<br />
alterando radicalmente o intervalo de sensações registradas.<br />
O declínio da indústria cinematográfica não se deveu apenas á expansão<br />
da televisão. Esta teve também como correlato o desenvolvimento da<br />
motorização. O automóvel substitui o cinema e as filas nos guichês tornaram-se<br />
as filas nos pedágios (Virilio, 1980, p.73). Dentro do automóvel, cada indivíduo<br />
encontra o seu "lar": sua vida itinerante e permanentemente em movimento tem<br />
como correspondência tecnológica o automóvel, como o sistema que o coloca<br />
em órbita nesta sideralização do cotidiano. A solidão do motorista é equivalente<br />
às demais formas de solidão, das pessoas que em casa ouvem rádio ou<br />
assistem TV apenas para que perto delas "algo fale", independente do que na<br />
verdade esteja sendo dito. E a decrescente importância do outro como<br />
possibilidade de contacto e comunicação encontra similar no próprio declínio do<br />
ambiente. Além do meu carro nada mais existe, a periferia é sem registro, a<br />
miséria "desaparece", o mundo perde significação.<br />
No trajeto, todas as existências físicas que são atravessadas seguem,<br />
como "horizonte negativo"(Virilio), o caminho da sua própria diluição no campo<br />
de registro do motorista. "A utilização desenfreada do automóvel e da moto não<br />
tem, contrariamente aos transportes em comum, nenhum destino, não é a priori<br />
uma questão de distâncias a cumprir, o que cria fatalmente novas condições de<br />
viagem. Não ir a parte alguma, mesmo girar em círculos num quarteirão<br />
desértico ou numa pista periférica obstruída parece natural ao voyeur-voyageur.<br />
Ao contrário, parar, estacionar são operações desagradáveis e mesmo o<br />
condutor detesta ir a qualquer parte ou a alguém, visitar uma pessoa ou ir a um<br />
espetáculo parece-lhe um esforço sobrehumano".(Virilio, 1980, p.77)<br />
Com isso, o uso do automóvel torna-se um fenômeno em si<br />
absolutamente hipertélico: busca mais locomoção do que a própria locomoção,<br />
gira no vazio. A utilização da máquina torna-se um fim em si, tendência esta<br />
que é registrada também em outros sistemas da Sociedade Frankenstein, como<br />
o computador e a televisão.<br />
1.2. A transformação da cidade<br />
A lógica do desaparecimento da paisagem, da secundarização do outro,<br />
em suma, da mudança de importância do espaço geográfico urbano ou mesmo<br />
das grandes áreas rurais só poderia conduzir a uma alteração da importância<br />
das cidades. As cidades esvaziam-se não no sentido da concepção medieval<br />
de cultura e sociedade mas pelo despovoamento dos habitantes dentro do<br />
próprio espaço urbano. Em vez da expansão extensiva, difusa e horizontal da<br />
população nos centros de cultura, lazer, comércio e nos diferentes bairros,<br />
assiste-se, ao contrário, à ruina urbana contrabalançada pela progressiva<br />
eleição de pontos de alto investimento comercial-publicitário, que passam a<br />
sugar todo o capital circulante da cidade e funcionar como pólos portadores de<br />
significação e importância dentro do quadro dos signos do consumo. Assim são<br />
os shoppings centers, clubes e associações semifechados, espaços turísticos<br />
privilegiados que concorrem para a verticalização de um investimento social<br />
provocando a reordenação do tecido urbano.<br />
21
A cidade extensiva perde cada vez mais importância, deixando de ser o<br />
espaço de discussão pública, a cidade como pólis pauperiza-se, torna-se<br />
espaço das populações mais desfavorecidas e a vida de fato desloca-se para<br />
espaços que já não são mais públicos mas propriedade de instituições<br />
econômicas, culturais, políticas.<br />
A própria arquitetura urbana, que era historicidade cristalizada através<br />
dos edifícios e monumentos antigos, que se impunha de forma quase<br />
espontânea contra o processo de varrimento do espapo urbano como território<br />
de convivência social, experimenta um reaproveitamento tornando-se pura<br />
estética de comunicação e publicidade: "a arquitetura está na armação, na<br />
geometria, no espaço-tempo dos vetores e a estética da armação dissimula-se<br />
nos efeitos especiais da máquina de comunicação".(Virilio, 1980, p.74-5) E<br />
também a publicidade ordena a arquitetura e a realização de superobjetos:<br />
Beaubourg, Les Halles, La Villette são literalmente monumentos ou<br />
antimonumentos publicitários (Baudrillard, 1981, p.118).<br />
Mudando-se sua importância como espaço de exercício de cidadania, de<br />
poder político, da organização, as cidades tornam-se agora territórios-suporte,<br />
gigantescos painéis de poluição publicitária, do grafite vândalo, da miséria<br />
estética. Em Manhattan, o prazo de fixação da imagem arquitetônica foi<br />
estabelecido para 12 anos. Mas o fenômeno não é apenas norte-americano.<br />
Berlim foi durante mais de 40 anos uma cidade simulacro, totalmente<br />
reconstruída apenas para servir de propaganda de uma visão de mundo que<br />
visava bombardear o projeto socialista oriental.<br />
Mas o despovoamento urbano ocorre também com a rapidez dos<br />
transportes e dos sistemas de comunicação que acabaram por banir das<br />
cidades todos os locais por onde as pessoas poderiam circular. As grandes<br />
cidades não prevêem espaço para o pedestre, como é o caso de Brasília, e os<br />
trens subterrâneos fazem da cidade um espaço em que pessoas transitam<br />
invisivelmente. Na rapidez de mobilização de um ponto a outro está a marca de<br />
uma progressiva desertificação urbana.<br />
A rua passa a ser apenas espaço de trânsito e da velocidade, cuja<br />
função é negar o ambiente. Quem atravessa as ruas com seus veículos em<br />
velocidade não a sente mais como espaço social, mas apenas como trajeto. A<br />
rua não registra o ambiente, ela nega-o e o exclui. As ruas, como a cidade,<br />
passam a ser o espaço dos ratos onde a população desapareceu.<br />
Os equipamentos eletrônicos criam com este esvaziamento uma "nova<br />
relação de comunicação" em que as pessoas dentro de suas casas, diantes de<br />
sistemas eletrônicos, podem ligar-se aos centros de comércio, aos bancos, às<br />
informações culturais bem como a outras pessoas realizando à distância aquilo<br />
que no passado marcava a comunicação face-a-face. Neste sentido, a própria<br />
figura do vizinho transforma-se, passando a ser, como qualquer outro, uma<br />
figura desconhecida e estranha. É uma presença que apesar da proximidade<br />
física distancia-se anos-luzes de nós, haja vista a volta que faz todo o sistema<br />
de comunicação para que cheguemos a ele. Assim, como o telefonema, que<br />
parte de nós, chega à central para depois ser reconduzido pelos cabos até o<br />
vizinho do lado, da mesma forma toda a sistemática de comunicação supõe<br />
necessariamente o enredamento de todos num sistema complexo para o qual a<br />
metáfora da sideralização parece ser a mais pertinente. Cada pessoa como<br />
22
estrela brilhante que se comunica pela luz com outras, mas que está<br />
infinitamente distante delas.<br />
1.3. O novo status do saber<br />
O impacto da plena expansão da técnica e da tecnologia na sociedade<br />
ocorre de forma intensiva no campo do saber e da ciência. Tanto quanto o<br />
âmbito estético-expressivo, que perdeu as referências, os padrões da validade,<br />
os critérios modernistas com o desenvolvimento técnico, da mesma forma, a<br />
esfera cognitiva é checada em sua natureza última.<br />
Com o fim dos grandes códigos e da razão abstrata, a ciência passa a<br />
viver segundo critérios, regras, normas e principalmente legitimações<br />
particulares, reduzidas e localizadas. O desenvolvimento da técnica e a<br />
multiplicação dos sistemas eletrônicos (hardware) alteraram radicalmente a<br />
circulação do conhecimento. O saber, diferente do século XIX, que tinha seu<br />
espírito simbolizado pela Bildung, pelo conhecimento autônomo, independente<br />
das imposições econômicas e políticas, voltado à administração pública e à<br />
moral e que se colocava como instância de avaliação e de juízo acima do<br />
social, realizador (ou possibilitador) da "epopéia da emancipação", cede espaço<br />
ao saber puramente operatório, destituído de poder, sem troca com o social e<br />
incorporado às atividades econômico-empresariais.<br />
A ênfase agora recai nos meios e não mais na especulação e investe-se<br />
na otimização das performances. A velha ciência substitui seus critérios de<br />
avaliação e de identidade anteriores. Especialmente as ciências sociais, diante<br />
da crise de significação e validade, passam a fabricar seus objetos, simulamnos<br />
ou perdem-se na busca histérica da causalidade, na procura de<br />
responsabilidade ou na "impaciência do saber" (Lyotard), apontando para a<br />
angústia da sobrevivência destes próprios saberes.<br />
A trama enciclopédica deixa de ser objeto do investimento intelectual. O<br />
ensino tende ao aprendizado técnico-prático e as universidades cada vez mais<br />
formam competências para repassar saberes específicos e formados à la carte,<br />
tornando os professores meros instrutores da operacionalidade técnica.<br />
O novo saber, marcado pela expansão técnica em todos os campos,<br />
resgata a legitimação agora somente através do consenso dos próprios<br />
pesquisadores, a saber, pela paralogia: é aceito pela comunidade científica da<br />
área aquilo que é simplesmente plausível. O saber maior, que orientava uma<br />
ética, uma política, uma filosofia, é substituído pela simples crença que é o que<br />
passa a regulá-lo. Conforme Hassan (1988, p.36), vai-se do "poder ser" ao "há<br />
de ser verdade" e a sociedade torna-se uma sólida trama de confiança.<br />
2. Meios de comunicação<br />
A técnica ocupa o lugar da comunicação humana introduzindo um novo<br />
modelo comunicacional. Trata-se agora de uma forma de comunicação numa<br />
sociedade que não sabe mais se comunicar consigo mesma e em que a coesão<br />
é contestada, os valores desagragam-se e os símbolos mais usados não<br />
servem mais para unificar (Sfez, 1988, p.16).<br />
23
É uma comunicação aplicada a uma realidade em que as pessoas já não<br />
mais se olham, se tocam, se sentem, se falam. Mais além, ela não mais<br />
funcionando como intermediação (ponte) entre o mundo e os lares, é, ela<br />
própria, produção livre de conteúdos, fábrica de estórias. O fenômeno da autoreferencialidade<br />
está nos jornais cuja notícia são eles mesmos, nas televisões<br />
que focalizam, falam, tratam, polemizam consigo mesmas. São os media<br />
narcisos, nos quais o único referente para a transmissão pública são suas<br />
próprias maquinações e fabricações.<br />
Em outro plano, as formas de comunicação implodem os conceitos de<br />
esfera pública e esfera privada. As redes de comunicação do passado, isto é,<br />
as que se articulavam no interior das instituições sociais, eram marcadas pela<br />
privacidade, pelo espaço íntimo e do sagrado. O homem enquanto pai, citoyen<br />
ou bourgeois era quem defendia a relação entre público e privado. No<br />
momento em que a comunicação invade todas as esferas do social, ela anula,<br />
através de sua "obscenidade"(v. adiante: 2. A Informação), a privacidade, a<br />
intimidade e o mistério, rompendo a antiga esfera auto-suficiente e autônoma<br />
do privado. Ela alimenta-se exatamente da vida íntima e do fato de tornar<br />
público este universo.<br />
2.1. O processo televisivo<br />
2.1.1.. A visão<br />
Entre todos os sentidos humanos, o que recebeu maior investimento<br />
estético, o que foi mais explorado politicamente e mais seduzido do ponto de<br />
vista econômico foi, sem dúvida alguma, a visão. A começar pela expressão<br />
artística da pintura, que representava de forma analógica a ordenação do<br />
mundo e das idéias do Período Renascentista, continuando até os<br />
desdobramentos de que a visão passou a ser objeto a partir da invenção da<br />
fotografia e, mais recentemente, na reprodução eletrônica, o olhar sempre<br />
esteve em posição privilegiada.<br />
O século XV foi marcado pelas representações estético-visuais do<br />
centralismo-perspectivista, opositor do precedente policentrismo, do<br />
deslocamento visual, do ritmo e do movimento das expressões artísticas da<br />
Idade Média tardia. Antecipava o racionalismo e desenvolvia uma arte mais ou<br />
menos similar ao desenvolvimento do capitalismo, à sua rigidez, ao seu cálculo.<br />
Expressões dessa época são Da Vinci, Galileu, Maquiavel e Duerer.<br />
Mais tarde, na Alta Renascença, ganha corpo a tendência de retorno ao<br />
movimento, mas agora trata-se de um "movimento na rigidez", como aquilo que<br />
se move quando colocado sobre trilhos. A época de Ticiano é que dá destaque<br />
ao primeiro plano, como ocorre no teatro, e também é a primeira manifestação<br />
de a imagem assumir o caráter de mercadoria e deixar de ser sagrada.<br />
Autonomiza-se o território separado de registro e sincroniza-se com a produção<br />
de bens em seu movimento externo. É o período em que o olho<br />
descorporificado de Deus é substituído pelo do monarca.<br />
O surgimento da Era Burguesa caracteriza-se pelo início da mobilidade<br />
da perspectiva. A imagem vista de uma carruagem já não é mais a que um<br />
24
homem parado vê numa tela ou num afresco, em que as figuras representam o<br />
movimento. A carruagem marcará o início do desaparecimento do espaço<br />
intermediário, do atrofiamento da distância entre centro e periferia. Agora é o<br />
observador que caminha e a paisagem transforma-se à medida que ele a<br />
percorre.<br />
Da mesma forma que o trem, que se expande também nesta época, temse<br />
aqui a quebra da aura da cena. Pela primeira vez, a velocidade do percurso<br />
do observador passa a reduzir a capacidade informativa do que ele vê. A<br />
diminuição da percepção tem a ver com a própria capacidade imaginativa.<br />
Quanto menos se vê, menos se imagina. A forma de apreciar a paisagem<br />
através do movimento tem a ver diretamente com o declínio do tempo de<br />
retenção da imagem na memória.<br />
Este desenvolvimento só será interrompido com a descoberta da<br />
fotografia, que recupera novamente a capacidade de o homem observar uma<br />
cena parada. A fotografia é o ponto culminante da reprodução centralperspectivista,<br />
é a restituição da experiência intensiva com o mundo, retorno<br />
daquilo que o trem havia liquidado, isto é, a intimidade, o espaço intermediário e<br />
a proximidade do primeiro plano.<br />
A fotografia de certa forma faz ressurgir a aura da paisagem destruída<br />
pelo trem. Saindo da paisagem, a aura desloca-se para o funcionamento, para<br />
o mecanismo de reprodução.<br />
O processo de industrialização em seus desdobramentos com a técnica,<br />
que cada vez mais avança sobre os espaços da vivência humana, deixa<br />
transparente - através da imagem e da forma como ela realiza a desintegração<br />
da unidade e o fim da perspectiva - a mudança de orientação das visões de<br />
mundo, que levou à destituição dos monarcas e de supressão de Deus. A<br />
técnica acaba com o "ponto central no mundo", que levará mais tarde os<br />
homens a questionar o próprio sentido da metafísica e de sua existência<br />
enquanto seres com estruturas estáveis, enraizadas ou culturalmente<br />
consolidadas.<br />
Por meio da reprodução eletrônica, a segunda natureza do homem deixa<br />
de ser a cidade, a arte, a linguagem, para ser a própria técnica. Esta passa a<br />
simular o processo de comunicação: comunicação de quem agora já não tem<br />
mais nada a dizer.<br />
O olhar do homem, que antes da sofisticação dos sistemas de<br />
comunicação voltava-se a seu ambiente, ao outro, à natureza, centra-se agora<br />
num objeto técnico puro, no funcionamento de sua estrutura, no olhar fascinado<br />
a uma representação sem fundo.<br />
A reprodução eletrônica da imagem traz consequências que têm a ver<br />
com a debilitação e a subutilização dos sentidos. Em primeiro lugar, o próprio<br />
olhar torna-se limitado. Pelo fato de a imagem não estar mais parada mas<br />
ilusoriamente em movimento através dos sinais eletrônicos, a possibilidade de o<br />
homem parar sobre cada imagem - como na fotografia - e observá-la em<br />
detalhes, com profundidade, explorando cada espaço, cada ângulo, cada<br />
perspectiva, esvai-se. O movimento da imagem substitui o do olhar exaustivo<br />
da imagem. O volume de cenas que se intercalam, se trocam e se somam<br />
toma o lugar de uma única cena cujo tempo de observação original agora<br />
25
distribui-se em diversas cenas. O olhar da era das altas tecnologias é dispersão<br />
e cintilação.<br />
Com o desenvolvimento do fotograma em movimento (cinema) e no<br />
presente, com mais intensidade, através da imagem eletrônica, cada vez mais<br />
as imagens sobrepõem-se e constróem por si mesmas a realidade visual<br />
imaginária do receptor; cada vez menos as palavras são utilizadas para criar<br />
uma representação simbólica das coisas.<br />
Consequência é o processo de dislexia, a dificuldade progressiva de<br />
compreender o que se lê, pela dificuldade correlata de se representar. Antes, as<br />
imagens poderiam ser substituídas por palavras, criando relações conceituais,<br />
teóricas, intelectuais sobre as coisas que eram vistas. Hoje, as imagens<br />
substituem-se a si mesmas, deixando qualquer possibilidade de vinculação<br />
mais densa com um conteúdo conceitual, com uma profundidade de reflexão ou<br />
pensamento.<br />
A reprodução eletrônica das imagens fabrica, em oposição a um<br />
imaginário cultural herdado ou constituído através de outros media, um<br />
conjunto próprio de imagens, criação exclusiva, fabricação encerrada no próprio<br />
universo do meio. Com a imagerie, criam-se as imagens sem suporte,<br />
desenvolve-se um certo tipo de produção do imaginário através da máquina,<br />
que já pode dispensar a participação do homem. Assim o resume Edmund<br />
Couchot: "Uma imagem numérica é uma mensagem reduzida a números. O<br />
computador trabalha esses números e formas, visualiza os resultados por meio<br />
de um aparelho de vídeo ou de uma impressora. Pode-se assim reduzir uma<br />
imagem por meio da pura elaboração de dados... Não é preciso mais basear-se<br />
num modelo, num objeto real ... Partindo dos dados de um objeto dado, o<br />
computador pode produzir uma quantidade quase infinita de imagens. A<br />
imagem numérica não é mais a transposição de um modelo determinado, não é<br />
mais a reprodução mais ou menos exata de um original, uma duplicata ópticoquímica<br />
como a fotografia, é uma imagem com possibilidades infinitas".<br />
(Couchot, 1985, p.124).<br />
Já ultrapassamos o processo em que o simulacro devora seu modelo.<br />
Praticamente nesta fase eletrônica o modelo já perde totalmente sua<br />
necessidade de existência. O próprio sistema fabrica multiplicidades cada vez<br />
mais diversas e distintas de imagens. Este momento é radical: a partir de agora<br />
a produção de imagens deixou de ser uma característica essencialmente<br />
humana. Os sistemas eletrônicos substituem os homens inclusive nesta<br />
produção infinita de cenas, de objetos, de formas que outrora caracterizavam a<br />
experiência estética ou a experimentação artística em geral. O homem já passa<br />
a ser um componente dispensável em todo este processo. O sistema, ele<br />
próprio, pode produzir as formas de imagens e também de arte.<br />
Com o final da antropomorfia da forma e a criação de formas sempre<br />
novas, temos um processo de permanente metamorfose, que já não tem mais<br />
nada a ver com um original, como foi dito, nem com uma referência a um<br />
sujeito, que garantiria a própria lógica da criação. As imagens é que se alteram<br />
de forma arbitrária e livre como num caleidoscópio, com a única diferença de<br />
que nelas aqui se instala um processo criativo original.<br />
Da mesma forma, sistemas eletrônicos radicalizam a liquidação da<br />
geografia, iniciada pela rapidez do movimento com o trem e depois com os<br />
26
transportes mais rápidos, especialmente os urbanos e aéreos. Se a extensão<br />
física territorial tornou-se um componente cada vez menos importante na era<br />
eletrônica, a integração dos meios de comunicação torna a vivência territorial<br />
um fenômeno absolutamente imaginário. Já não se mora em um determinado<br />
lugar, diz Vincent Descombes, mas ocupa-se um espaço. As pessoas que<br />
estão próximas não são os vizinhos, não há mais vizinhança localizada. Os<br />
lugares são exceção do espaço. Isso porque, através dos sistemas de<br />
comunicação, cada local é alcançável por qualquer outro; nenhum deles tem o<br />
status da origem e da meta, pois institui-se uma circulação de comunicados em<br />
todas as direções.<br />
2.1.2. A televisão<br />
A televisão constitui o ponto de ruptura entre o universo sociológico<br />
marcado pelas metanarrativas, os discursos da emancipação, do homem<br />
atuante, da possibilidade de explicar e administrar o real, por um lado, e o<br />
mundo das técnicas e da hiperrealidade, por outro. Quando se fala de televisão,<br />
pensa-se em algo que transcende o aparelho em si, a relação e mesmo a<br />
materialidade dos sistemas de transmissão. A televisão é muito mais do que a<br />
simples transmissão em cadeias locais, regionais ou nacionais de programas de<br />
jornalismo e entretenimento para uma sociedade. Ela faz parte de um<br />
"gigantesco e exteriorizado sistema nervoso eletrônico, amplificando<br />
tecnologicamente todos os nossos sentidos e desenvolvendo funções<br />
sensóreas em forma processada de imagens e sons mutantes ... Ela devolve<br />
nossa própria angústia com signos simulados e hiperreais de vida". (Kroker,<br />
1988, p.277).<br />
É portanto um universo que transcende em muito as programações das<br />
emissoras. É todo um mundo. Ela não é nem a tela nem o telespectador, mas<br />
um "complexo espaço virtual entre ambos" (Baudrillard).<br />
O predomínio da televisão a partir dos nos 60 significou não só que ela<br />
passou a se destacar diante das demais formas de comunicação mas também<br />
a dominá-las e submetê-las. Estas, a partir do predomínio da televisão, entram<br />
em declínio e perdem a identidade. O cinema é o exemplo mais flagrante deste<br />
processo, mas a crise também invadiu o teatro, o rádio e o jornal. Os demais<br />
meios de comunicação tornaram-se cópias da televisão; passaram a imitar sua<br />
linguagem, seu ritmo e sua dinâmica. A televisão impõe à sociedade uma<br />
velocidade de leitura, uma rapidez na decodificação de imagens visuais e uma<br />
forma de apreender o real baseada apenas neste jogo de trocas simultâneas de<br />
cenas e da construção de uma narrativa e de uma dramaturgia muito<br />
específicas.<br />
Por ser todo um universo, por encerrar em si toda uma complexidade de<br />
sistemas de prestígio, projeção e publicidade, todas as coisas que escapam do<br />
seu campo ou que não são por ela absorvidos tornam-se necessariamente<br />
periferia, margem de todo um sistema, produtos de segunda ordem. O que<br />
escapa da TV, sendo periferia, não tem registro, "não tem importância".<br />
A televisão, no entender de Kroker, não é reflexo da sociedade, nem da<br />
forma mercadoria, tampouco reprodução de ideologia. É a sociedade que é seu<br />
reflexo; ela é o mundo real da economia e da sociedade (Kroker, 1988, p.268).<br />
27
Em vez de ser reflexo da forma mercadoria, a televisão é a expressão viva e<br />
mais acabada desta. Em vez de ser reprodução de ideologias, ela é a própria<br />
ideologia, aponta o autor canadense. Ela é, por um lado, exteriorização de<br />
nossos sentidos, na forma como MacLuhan interpreta os meios como nossos<br />
prolongamentos em relação ao mundo exterior, e ao mesmo tempo<br />
interiorização, desejo simulado como disposições programadas.<br />
2.1.3.. O tempo televisivo<br />
A televisão joga com a categoria do tempo operando-o de forma própria<br />
e independente dos conceitos cronológicos usuais. É um tempo artificial e<br />
manipulado. Diferente do congelamento fotográfico da imagem, a televisão, ao<br />
contrário, é um tempo de permanente fluidez. Nada pára, tudo circula a<br />
velocidades vertiginosas e alucinantes, de tal forma que a sucessão de cenas<br />
constitui um novo reordenamento da existência visual, agora segundo novos<br />
parâmetros, a saber, tecnológicos.<br />
Há na televisão a abolição dos diferentes tempos com a supressão da<br />
consciência do atrofiamento do presente: "só o simultâneo é o verdadeiro<br />
presente" (G. Anders, 1956, p.134). Trata-se do tempo da tecnologia, marcado<br />
por um sequenciamento de cenas e de interrupções que seguem uma lógica<br />
própria, segmentada; tempo visual que se sobrepõe a um tempo real e impõese<br />
de fato como o único tempo.<br />
2.1.4. A densidade televisiva<br />
A televisão é o veículo por excelência da pós-modernidade. Ela não<br />
conhece estruturas permanentes, densidades, aprofundamentos, investimentos<br />
intensivos, enraizamentos no social, no cultural, no histórico. Nela tudo é como<br />
que "chapado". É o primeiro medium cultural em toda a história a apresentar "a<br />
realização artística do passado como colagem estruturada junto com<br />
fenômenos equiimportantes e simultaneamente existentes, amplamente<br />
divorciados da história geográfica e material" (Taylor, cf. Harvey, 1988, p.61).<br />
É uma forma de liquidificador geral, que mistura as mais diferentes<br />
matérias e submete-as todas a um mesmo tipo de tratamento ou<br />
"branqueamento", tornando-as absolutamente inóquoas. É um sistema de pura<br />
fascinação, que as pessoas acionam para funcionar durante todo o tempo e<br />
que fica falando em geral para si mesma. Requena diz que sua fala é<br />
incessante e vazia, são estribilhos que se repetem, falando todo o tempo, não<br />
cessando de falar para nada dizer.<br />
2.1.5. A linguagem<br />
Na televisão, o que se fala está fora de qualquer contexto externo mas,<br />
acima de tudo, a maneira como a televisão se apresenta é como monólogo e,<br />
como mencionado, auto-referente. Nas suas "representações", o real<br />
desaparece completamente e é sua desintegração que aparece pelo processo<br />
eletrônico do medium.<br />
28
A TV, no entender de Umberto Eco, perdeu sua transparência. Não<br />
"passa" mais nada. Ela própria é que constrói o espetáculo, acabando de vez<br />
com a separação entre a ficção e jornalismo. O jornalismo é o seu melhor<br />
produto ficcional. A televisão não tem mais contacto com o mundo exterior e no<br />
que ela apresenta e fala é ela própria o grande personagem.<br />
Em Simulacros e simulações, Baudrillard aponta o exemplo do filme<br />
"Síndrome da China" em que a televisão entra numa central nuclear e provoca<br />
um acidente. Mas não é só aí que tais fatos acontecem. É conhecido o<br />
fenômeno de que no Brasil as passeatas não se constituam até a chegada dos<br />
cinegrafistas da televisão. Só quando estes põem suas máquinas a postos e<br />
começam a filmar é que se compõem os movimentos de protesto, dissolvendose<br />
logo em seguida, no momento em que as câmeras são desligadas. Da<br />
mesma forma, em recentes quebra-quebras da cidade de São Paulo, os<br />
manifestantes em vez de fazer reivindicações de caráter social, portavam faixas<br />
dizendo "Queremos a imprensa".<br />
E neste produzir constante de fatos jornalísticos, ela produz também<br />
fatos culturais, econômicos, políticos e mesmo históricos: "nossa realidade<br />
passou pelos media. Inclusive os acontecimentos trágicos do passado"<br />
(Baudrillard). Para este autor, já não dá mais para verificá-los e compreendêlos,pois<br />
depois de serem retrabalhados por intermédio da televisão, acabaramse<br />
todos os instrumentos de sua inteligibilidade. Assim, desapareceram as<br />
condições de se julgar e avaliar os efeitos ou os crimes cometidos na história<br />
passada, de vez que todas as provas, todos os dados a respeito já sofreram um<br />
amplo processo de mutilação e de produção de modelos e de simulacros, de tal<br />
forma que põem em dúvida qualquer demonstração ou prova a favor de<br />
qualquer tese.<br />
Mais ainda, dentro de seu caráter de absoluto tratamento de superfície<br />
de todos os fatos , mesmo os componentes hoje mais radicais da cena política,<br />
as formas de terrorismo, são ao mesmo tempo criticados e enaltecidos pelo<br />
medium. No mesmo momento em que desenvolve a pregação moral contra<br />
eles, a televisão demonstra, pela sua forma não verbal, através do show de<br />
imagens, o espetacular de todo o circo sádico do terror.<br />
Nas produções dramáticas revela-se também o caráter implosivo que<br />
possui a televisão diante dos fatos da cultura. Para Requena, a telenovela é a<br />
"hipertrofia cancerígena do relato"(p.122), onde ocorre o esgotamento das<br />
eleições narrativas e um prolongamento doentio da trama original. A televisão,<br />
em vez de reproduzir a narrativa como classicamente se conhece, através de<br />
uma curvatura (em que de um drama originalmente instalado ocorrem seus<br />
desdobramentos até que o fato chegue a uma certa consecução), joga com os<br />
desdobramentos narrativos segundo a maior ou menor oscilação de seu público<br />
telespectador. Assim, não se desenvolvendo desta forma, como curva, a<br />
telenovela segue a forma de sinuosidades que sobem e descem durante o<br />
desenvolvimento de meses ou até anos, produzindo-se, então, subtramas da<br />
trama principal e provocando-se, de forma patológica, um desvio de<br />
desenvolvimento que passa a ser associado à forma cancerígena.<br />
Isto tem como consequência a implosão da cultura narrativa.<br />
Construindo-se um vício de narrativas "defeituosas" estimula-se o desinteresse<br />
29
do telespectador em relação aos desdobramentos e construção sequencial da<br />
trama, investindo-se, ao contrário, em sua demolição.<br />
Conforme Dieter Prokop, os modelos dramatúrgicos da televisão<br />
trabalham com extremos de questionamento e reconstrução da ordem na<br />
sociedade. Para estes produtos, sejam eles telenovelas, séries criminais, filmes<br />
de aventuras ou histórias de família usa-se de esquemas simplificados e de<br />
fácil assimilação para construir formalmente as tramas. (Prokop, 1986). Prokop<br />
fala em esportividade, em agilidade formal, em fantasia-clichê, em signos como<br />
componentes específicos da televisão para a montagem de seus dramas.<br />
Ocorre que por força da influência e da dominação da televisão sobre outros<br />
meios, também o cinema e, de certa forma, o teatro passaram a usar da mesma<br />
maneira estes componentes formais, simplificados, para obter fácil<br />
entendimento público e imediata resposta mercadológica.<br />
Para exemplificar, Prokop cita Brecht: "Para melhor chegar ao mercado,<br />
uma obra de arte, que seja expressão adequada de uma personalidade na<br />
ideologia burguesa, precisa ser submetida a uma operação específica que a<br />
dissocia de seus elementos. Os elementos chegam, de certa forma, isolados no<br />
mercado" (Brecht,1931). Prokop comenta que isso não se aplica apenas às<br />
obras de arte mas a qualquer obra que faça parte do universo televisivo.<br />
De acordo com Brecht, as obras feitas segundo as próprias leis, "são<br />
divididas, desmontadas em seus elementos aproveitáveis: essa desmontagem<br />
das obras de arte pode ocorrer, em primeiro lugar, segundo as mesmas leis do<br />
mercado que as dos carros que se tornaram inutilizáveis, com os quais já não<br />
se pode andar e que então são desmontados em suas unidades menores<br />
(metais, assentos de couro, lâmpadas etc.) e assim se vendem " (Brecht, 1931).<br />
Apesar desse "processo industrial" de criação de bens culturais de<br />
consumo para as massas, não há nenhuma garantia de que essa colcha de<br />
retalhos, que reúne peças de "sucesso garantido", retorne com o êxito<br />
esperado. A fórmula do sucesso público é e será sempre uma incógnita para<br />
todos os programadores de comunicação.<br />
2.2. A Informação<br />
Nos media em geral, mas com maior destaque na televisão, a<br />
informação ganha um caráter de "obscenidade". É o êxtase de tudo devassar, a<br />
ânsia de tornar demasiado visível e transparente, de eliminar qualquer regra<br />
restritiva de princípios.<br />
Paul Virilio faz uma interessante comparação entre o processo de<br />
iluminação da cidade de Paris e o desenvolvimento simultâneo do próprio<br />
Iluminismo, que não só etimologicamente é a ela próximo, bem como revela um<br />
novo tipo de espírito que se instalou na França a partir da Revolução Francesa<br />
e de seu caráter, em certos aspectos, bárbaro. As Luzes significaram para ele o<br />
terror da devassidão. A investigação policial (violação de correspondência na<br />
revolução) pretendia "esclarecer" o espaço privado como havia-se<br />
anteriormente iluminado o teatro, as ruas, as avenidas, o espaço público (Virilio,<br />
1988,p.78).<br />
30
Tratava-se da exposição de cabeças decapitadas, da invasão de<br />
palácios e hotéis, da fixação de nomes de habitantes na porta dos imóveis, da<br />
profanação de lugares de culto e conventos, da exumação de mortos. Nada<br />
mais era sagrado, nada mais poderia ser inviolável. É o terror da revolução, o<br />
vandalismo que antecede o terror instituído propriamente dito, a barbárie que se<br />
num momento tinha a ver com a iluminação da aristocracia, por outro,<br />
associava-se à própria ideologia do Iluminismo, a de colocar potentes holofotes<br />
em todos so espaços que demonstravam qualquer aspecto de obscuridade,<br />
penumbra, mesmo discreto sombreado.<br />
A intenção de tudo explicar, prever, controlar, administrar supunha que<br />
nada mais pudesse ficar fora de seu alcance e ninguém mais do que o próprio<br />
jornalismo atuou para executar esta tarefa, na medida que já não encontrava<br />
mais obstáculos numa prática que se tornou obstinada em vasculhar todos os<br />
espaços privados na busca de uma difusão pública, num pretenso interesse da<br />
própria sociedade.<br />
Foi o jornalismo que deu início à demolição da esfera privada, que<br />
embaralhou aquilo que era pertencente ao controle exclusivo dos indivíduos,<br />
dos cidadãos e o fez domínio de um interesse discutivelmente público. Por isso,<br />
são os meios de comunicação o "estágio obsceno da informação" (Baudrillard,<br />
l983, p.3). Excesso de informação é eletrocução; produz curto-circuito contínuo<br />
em que o indivíduo queima seus circuitos e perde suas defesas (idem, l988).<br />
Ao comentarmos a reprodução eletrônica, falou-se da mudança que<br />
representou a época dominada pelas técnicas, de que o olhar do homem ao<br />
seu meio, à sua natureza, ao seu próximo, tornava-se agora o olhar ao objeto<br />
técnico, um olhar passivo. O exemplo disso, apontado por Freier, estava nas<br />
notícias: as imagens mudam e o olhar permanece. Foi nisso o que o<br />
telejornalismo inovou: trouxe uma sucessão rápida de cenas, de imagens, de<br />
matérias marcadas pelo princípio do êxtase e da atividade ligeira e imediata.<br />
Introduziu o show de impactos sobre impactos que pela perseverança<br />
desgastou a atenção dos assistentes, até os tornarem mesmo indiferentes a<br />
essa notícia. O telejornal na era da velocidade eletrônica é cintilação da<br />
rapidez, da cor, do impacto e as notícias funcionam aí como puros álibis,<br />
personagens secundários da cena.<br />
2.3. Rock<br />
O rock é a trilha sonora da pós-modernidade. Hoje, a produção<br />
fonográfica do rock é mais um espetáculo de ficção do que de fato de uma<br />
produção conjunta "artística", em que concorrem diversos intérpretes. Steve<br />
Connor acredita que todo o terreno da música de rock é pós-moderno; também<br />
Arthur Kroker, para quem o rock significa êxtase, decadência e também o<br />
fenômeno mais flagrante das formas atuais de esquizofrenia.<br />
É interessante a descrição que Mark Poster faz da virtualidade que é<br />
hoje o som do rock e seu caráter ficcional.Por um lado, a questão da gravação<br />
do rock. Esta se dá num espaço de absoluta simulação da copresença.<br />
Nenhuma das pessoas que fazem parte do "conjunto" de fato está presente.<br />
Cada uma mora e grava num lugar diferente. Um técnico junta todas as partes<br />
da mesma música e constrói a unidade em laboratório, fazendo o equilíbrio e o<br />
31
alanceamento dos instrumentos. A partir disso, constata-se que a performance<br />
na verdade é uma cópia que não tem original, que só existe enquanto objeto<br />
de pura reprodução. Trata-se da mostra de algo que jamais ocorreu. A<br />
gravação de rock é, portanto, um fenômeno de ficção.<br />
Por outro lado, o próprio audiófilo também penetra neste mundo de<br />
modelos e simulações de forma equivalente, através da obsessão pela<br />
recaptura da linguagem musical. Trata-se de uma espécie da construção da<br />
hiperfidelidade, ou seja, de tentar encontrar um som que seja mais fiel do que o<br />
fiel; é onde o audiófilo quer discernir instrumentos, separar vozes de<br />
instrumentos, vozes isoladas dentro de um coral, além de tentar também<br />
controlar o próprio ambiente da cena, buscando administrar as oscilações da<br />
eletricidade, isolar a sala, sentar-se no centro dos altofalantes e procurar aquilo<br />
que Poster chama de "utopia auditorial", em que fundem-se na mesma cena<br />
sujeito e objeto. O sujeito desloca-se da sua vinculação, da sua impregnação a<br />
um certo solo, o lugar lhe escapa; ele flutua suspenso entre pontos de objetividade"(Poster,1990,p.11).<br />
É a expressão mais clara de que também o som<br />
pode ser interpretado como "som virtual".<br />
3 - Teoria em ruinas<br />
3.1. Velhas teorias da comunicação<br />
Retomando o esquema de Lucien Sfez, das três visões de mundo e das<br />
três metáforas da comunicação (representação-expressão-confusão, máquinaorganismo-Frankenstein),<br />
encontramos os modelos de análise e explicação dos<br />
processos de comunicação da primeira metade deste século, majoritariamente<br />
associados à bola de bilhar (meios de comunicação vistos como<br />
representação), assim como aqueles que propuseram o quadro teórico, entre os<br />
anos de 1950 a 1970, mais familiarizados com a metáfora da criatura.<br />
Na visão de mundo marcada pela representação, impera a dualidade<br />
cartesiana e a separação radical entre o homem e seu objeto. O homem<br />
domina a máquina e está com ela para seus fins. Os primeiros estudos sobre<br />
meios de comunicação endossam este modo de interpretar o social. São os<br />
modelos teóricos da visão aristocrática das massas (Charcot, Le Bon, Tarde),<br />
assim como aqueles orientados a uma perspectiva de administração,<br />
organização, controle e sobmissão das massas através dos meios de<br />
comunicação. A ênfase é a de reforçar a função daquele que no processo de<br />
comunicação assume a posição do emissor.<br />
Os primeiros estudos de comunicação dos anos 30 seguem a<br />
perspectiva empírico-behaviourista ou empírico-funcionalista, na qual a relação<br />
dos homens com os meios de comunicação baseava-se na fórmula reduzida do<br />
estímulo-resposta. Para alguns pensadores, a psicologia de Pavlov servia de<br />
fundamento para se analisar os problemas da comunicação "de massa" (por<br />
exemplo, Serge Tchakhotine). Em outros, contudo, o receptor é passivo e<br />
hipnotizável e a comunicação centra-se num processo de três componentes<br />
(emissor, mensagem, receptor, ou E-M-R). A interação ocorre através do<br />
comportamento baseado em estímulos e a psicologia experimental fornece a<br />
base epistemológica para as análises.<br />
32
É também o mesmo tipo de investigação que servirá de base para os<br />
administradores aplicarem a social engeneering sobre as massas, ou seja, as<br />
estratégias que visavam interferir no comportamento coletivo através dos meios<br />
massivos.<br />
As principais questões levantadas pela velha teoria da comunicação<br />
eram a da manipulação, da persuasão, da formação de opinião, da análise dos<br />
efeitos, da influência da comunicação e da mudança de comportamentos. O<br />
princípio aristocrático de avaliar como se manifesta a massa, como se esta<br />
fosse animal de laboratório, para interferir de forma pontual em alguns<br />
aspectos e com vistas à obtenção do resultado esperado, era o fundamento e a<br />
razão neste tipo de estudos<br />
Nos anos 50, com o desenvolvimento da cibernética, ocorre um novo<br />
desdobramento teórico das teorias empírico-funcionalistas de comunicação,<br />
vistas agora como um processo mecânico, mensurável matematicamente,<br />
separável em termos de unidades de informação e perfeitamente manipulável<br />
como um dado da física. Os conceitos de entropia, feed-back, bit fazem parte<br />
deste novo espírito.<br />
Paralelamente, entretanto, ainda no campo do empíreo-funcionalismo,<br />
desenvolvem-se novas correntes que começam a analisar o processo da<br />
comunicação a partir de outros componentes, como os intermediários (no<br />
mecanismo de recepção), e o próprio receptor. Para esses pensadores,<br />
especialmente de tradição norte-americana, a chamada "mensagem" da<br />
comunicação é uma categoria secundária nos estudos de fenômenos de massa<br />
e de complexos de comunicação atuando sobre estas. Igualmente assumem<br />
uma posição crítica em relação aos seus predecessores, que se centravam no<br />
papel do emissor, afirmando que os efeitos produzem-se independente de uma<br />
intencionalidade do emissor e devem ser analisados na forma como estas<br />
informações são decodificadas pelo receptor. Lazarsfeld e Katz representaram<br />
aqui uma corrente importante nos estudos de comunicação norte-americanos,<br />
na medida que trabalharam os mecanismos políticos e sociais a partir desse<br />
componente situado no outro extremo do processo de comunicação, a saber,<br />
os intermediários. A teoria do two step flow of communication nomeava os<br />
líderes de opinião como figuras que realizavam uma espécie de decodificação<br />
da mensagem para pequenos grupos e através disso propiciavam, segundo<br />
eles, sua melhor apreensão das mensagens.<br />
Da mesma forma, no agenda setting (Mark Comb), acreditava-se que<br />
no processo de comunicação figuras intermediárias do mecanismo, como<br />
editores e programadores, funcionavam como "sistemas de re-tratamento da<br />
mensagem e de orientação e classificação da recepção por parte das pessoas".<br />
Mais recentemente, especialmente depois dos anos 60, talvez por força<br />
da persistência de fenômenos inexplicados pelas primeiras teorias que<br />
investiam na importância do emissor, assim como pelas mais recentes, que<br />
passavam a dedicar interesse também no papel de papel de componentes<br />
específicos do receptor, desenvolveram-se teorias que buscavam interpretar o<br />
destinatário como o elo principal de toda a cadeia de comunicação. Para esta,<br />
não há só a mensagem mas toda uma atmosfera em que a mensagem está<br />
inserida, que deve ser estudada para explicar o sucesso ou não das formas de<br />
comunicação. Para estes o receptor é, de fato, o criador de mensagens.<br />
33
Em todas estas teorias permancece o sentido da representação: os<br />
meios de comunicação traduzem o mundo e a "mensagem", uma vez enviada,<br />
atinge seu objetivo e é novamente reenviada. O movimento permanece<br />
absolutamente íntegro de ponta a ponta.<br />
A partir de meados dos anos 50, desenvolve-se na França o<br />
estruturalismo, que em termos de análise de comunicação provocará o<br />
surgimento e o desdobramento da semiologia, originalmente criada por<br />
Ferdinand de Saussure. Para a semiologia, a metáfora agora é outra, trata-se<br />
da criatura. Aqui opera-se uma mudança radical no entendimento do processo<br />
de comunicação e uma relativização daqueles componentes que haviam sido<br />
autonomizados dentro do modelo explicativo da bola de bilhar. Segundo esta<br />
nova perspectiva, o homem perde sua importância e há uma imperiosidade,<br />
uma sobredeterminação do todo, importando mais conhecer-se o mecanismo<br />
global de funcionamento e não separadamente seus componentes. A quebra de<br />
um processo de comunicação em fragmentos, realizada pelas formas de<br />
teorias expostas anteriormente, ou seja, a separação de emissorcanal(mensagem)-receptor,<br />
significava uma concessão ao modo positivista de<br />
traduzir o real. Agora, a perspectiva é de uma captação orgânica deste mesmo<br />
processo. Em vez de privilegiar emissor ou receptor será exatamente a<br />
"mensagem" que estará no centro do interesse.<br />
Quem manda, o que manda, o que recebe, como recebe, são perguntas<br />
secundárias para esta orientação. Aqui, não é certo que qualquer um fale<br />
qualquer coisa a qualquer outro; trata-se agora, principalmente, da questão da<br />
linguagem. O sujeito não existe enquanto unidade independente, empiricamente<br />
subtraído de uma totalidade, mas está submetido a uma lei maior que é a do<br />
significante. Tampouco as condições histórico-sociais têm grande peso na<br />
interpretação do texto. Restitui-se às coisas seu direito à superfície, desaparece<br />
o sujeito da ação, só vale agora o texto.<br />
Esta nova forma de interpretação da comunicação encara que homens<br />
estão no mundo e devem a ele se adaptar. A linguagem precede os indivíduos<br />
e estes pouco interferem nos seus desdobramentos e no seu processo de<br />
desenvolvimento. Os meios de comunicação fazem parte do universo assim<br />
como o universo está inserido nos meios de comunicação. Ele é sua expressão.<br />
Por fim, o terceiro grande núcleo teórico de comunicação provém da<br />
chamada "Escola de Frankfurt", cujos pensadores principais, além dos<br />
clássicos Walter Benjamin e Berthold Brecht, são Theodor W. Adorno, Max<br />
Horkheimer, Herbert Marcuse e Juergen Habermas. Esta escola despreza tanto<br />
o modelo positivista dos norte-americanos, preocupados apenas com o<br />
rendimento e a administração da comunicação social em grande escala, quanto<br />
a ênfase linguística dos estruturalistas. Para eles, como bons hegelianos,<br />
importa o todo complexo expressivo formado pela comunicação, as novas<br />
estruturas de poder daí derivadas e a anulação do pensamento crítico. (Esta<br />
orientação teórica será mais extensamente apresentada na Terceira Parte, "A<br />
esquerda hegeliana").<br />
34
3.2. Nova teoria da comunicação<br />
Mas tanto o modelo baseado na representação como o baseado na<br />
expressão, a metáfora da bola de bilhar como a da criatura, correspondem a<br />
uma visão ultrapassada dos processos de comunicação. Referem-se a uma<br />
época em que nos estertores da modernidade ainda se poderia acreditar na<br />
independência do homem, da sua ação no social e da possibilidade de uma<br />
intervenção real e efetiva neste mesmo social (primeira forma), assim como no<br />
império de estruturas cujo efeito seria perceptível através de um centro de<br />
sentido (segunda forma). A nova era que se descortinou a partir da expansão<br />
dos meios técnicos de comunicação e informação e através da virada que<br />
estes provocaram em relação ao domínio do homem, fazendo-o fixar-se na<br />
posição de um mero componente deste contexto, exigiu uma completa<br />
reformulação e reordenação dos estudos de comunicação.<br />
Mesmo os conceitos até recentemente válidos, já não poderão mais ser<br />
usados, já que se referem a uma realidade não mais existente. Para Umberto<br />
Eco, deve-se rever tudo que foi feito nos anos 60 e 70 e os professores devem<br />
esquecer o conhecimento adquirido até então, porque uma espécie de<br />
"neocomunicação" impôs-se ao mundo. Naquela época, diz Eco, acreditava-se<br />
que os meios de comunicação eram cópias das relações de poder, o emissor<br />
era centralizado, tinha um plano político, suas mensagens eram reconhecíveis e<br />
os destinatários, vítimas da destruição ideológica. Bastava ensinás-los a "ler" as<br />
mensagens. A partir desta visão de mundo desenvolveu-se todo um trabalho<br />
político e de engajamento das correntes de oposição para fazer com que as<br />
"massas populares" executassem uma "leitura crítica" da comunicação,<br />
praticassem uma "contracomunicação" e interferissem no processo<br />
comunicacional fazendo com que a coisa invertesse seus pólos. Isto, contudo,<br />
logo demonstrou-se inútil. A revolução da nova era era de natureza<br />
absolutamente distinta.<br />
A partir dos anos 80 entra em declínio o investimento na cultura popular,<br />
na emancipação do receptor e na apropriação dos meios técnicos com vistas à<br />
formação de uma consciência dos dominados. É o momento em que a<br />
comunicação inverte seu papel e perde o sentido de contato com o mundo,<br />
ponte ou janela que liga indivíduos a fatos. O cenário que o telespectador<br />
descobre é o de sua própria natureza arcaica, pré-televisiva e do próprio<br />
destino solitário da eletrônica.(Eco,1984,p.200).<br />
A metáfora agora é a do monstro que, criado pelo homem, o ameaça, e a<br />
visão de mundo, a do curto-circuito da representação-expressão, da confusão.<br />
Desaparecido o sujeito, é o objeto que marca agora os limites da<br />
individualidade e determina suas qualidades; o homem passa a existir pela<br />
técnica. Em relação à comunicação, ela entra numa espiral delirante e<br />
tautológica, onde o excesso produz exatamente a perda da informação. No<br />
tautismo (neologismo criado por Sfez, que funde a um só tempo tautologia e<br />
autismo no uso das tecnologias avançadas de computação e comunicação), a<br />
sociedade diz "eu sou a sociedade". Da mesma forma, também os meios de<br />
comunicação, abolindo a transparência, dizem simplesmente "eu sou a<br />
televisão". Fabricam os dados exteriores, e os eventos, mesmo os reais, já<br />
nascem falsos, são pré-montados em laboratórios, como cenas<br />
35
cinematográficas, organizadas em estúdios com jogos de luz apropriados,<br />
posição dos atores pré-estudada e um texto já conhecido.<br />
3.3. Os conceitos da Era Frankenstein<br />
3.3.1. A circularidade<br />
A circularidade da comunicação anula a existência efetiva das<br />
extremidades na relação de comunicação, conhecidas do modelo empíricofuncionalista<br />
emissor-mensagem-receptor, que estava impregnado da<br />
suposição de um eu fortalecido e de um sujeito autêntico. Na circularidade, a<br />
cultura deixa de ser um componente de um processo social maior para ser um<br />
mecanismo que provoca a "inflagem" de toda a sociedade, tornando-se<br />
"sociedade cultural" e a cultura o medium que sintetiza toda esta mesma<br />
sociedade. Como uma rede, não há começo nem fim, mas múltiplos<br />
ajuntamentos e caminhos complexos.<br />
Quando a televisão faz enquetes em praça pública para conhecer a<br />
"opinião do povo" sobre um acontecimento, um governante, um fato econômico<br />
novo, o que se ouve das pessoas é a reprodução linear daquilo que a própria<br />
comunicação emitiu. Desse conjunto de opiniões, os programadores de<br />
televisão irão formar novamente a opinião sobre a massa, que a receberá<br />
novamente e as reproduzirá mais uma vez. Cria-se o circuito tautológico, em<br />
que as mensagens não passam de meras senhas em que todos se reconhecem<br />
e que na verdade operam de maneira puramente ritual. Nada de fato se<br />
comunica, nada de fato é transmitido, nada muda as posições ou opiniões<br />
existentes. Isso porque, em realidade, não existem essas posições ou opiniões,<br />
mas a aceitação e a livre circulação de todas elas ao mesmo tempo.<br />
A circularidade da mensagem é ainda bombardeada por um novo<br />
componente, que é seu efeito multiplicativo. A mensagem torna-se também<br />
inteiramente inóqua exatamente pela sua própria "obesidade", pelo fato de que<br />
todos os sistemas de comunicação inflacionam o espaço com uma quantidade<br />
fantástica, extraordinariamente grande de mensagens que pelo seu próprio<br />
volume tornam a comunicação inviável. A massa de informações, a<br />
diversidade, a velocidade, a obsessão de falar, trazer, comentar, argumentar,<br />
pôr e colocar dados e em todas as direções cria um universo alucinante de<br />
dados, em que cai por terra qualquer possibilidade de formação de fato de<br />
opinião. Quando um jornal coloca, em relação a um fato, duas opiniões<br />
diametralmente opostas e ao mesmo tempo fundamentadas em dados e<br />
informações confiáveis, o receptor não confia em nenhuma delas exatamente<br />
porque se anulam e a conclusão é só uma: o aumento das informações leva à<br />
desinformação.<br />
3.3.2. Superfície<br />
A hermenêutica, como processo intelectual e científico, entra em declínio<br />
porque o signo deixa de ser lastreado por alguma carga útil ou gravidade. A<br />
época, ao contrário, é da relatividade total, da comutação, da aleatoriedade, da<br />
simulação. Não há correspondência necessária entre significante e significado;<br />
36
ao contrário, os signos intercambiam-se entre si sem nenhuma permuta com o<br />
real. É o próprio princípio da simulação já mencionado, em que se misturam<br />
verdadeiro e falso, real e imaginário; os acontecimentos não perdem o sentido<br />
mas são precedidos pelos modelos. Os modelos é que compõem de fato o<br />
quadro das cenas e dispensam absolutamente a existência do original.<br />
O declínio da hermenêutica torna possível ver o real como império das<br />
aparências. O manifesto e superficial volta-se sobre a "ordem profunda" para<br />
anulá-la. É o espaço do jogo e das cartadas, da "paixão pelo desvio" contra a<br />
pesquisa do sentido escondido. O que é sedutor no texto é sua aparência.<br />
(Baudrillard, 1979,p.20)<br />
A partir disso, a nova investigação dos processos de comunicação<br />
afirma que as visões de mundo, os estilos de vida, as vivências repassadas<br />
pelos media não são derivações de qualquer maquinação conteudística, de<br />
qualquer jogo com a mensagem, de qualquer sentido latente, que estaria por<br />
trás dos componentes da comunicação, mas, ao contrário, são elaboradas<br />
através do jogo de formas, do modo de produção que impõe esta visão de<br />
mundo e estas idéias. Assim, por exemplo, a total neutralização das notícias de<br />
um noticiário de televisão não se dá pela notícia em si senão pelo jogo de<br />
anulação recíproca dos fatos no seu sequenciamento de exposição. Na forma<br />
de intercalar notícias sérias com notícias amenas, de jogar com a mágica das<br />
cores e do espetáculo, de ilustrar, editar, sequenciar, cortar, introduzir um ritmo<br />
de alta velocidade nas cenas que se intercambiam, em todos esses<br />
procedimentos puramente formais do processo de comunicação é que se<br />
implanta o mecanismo de pasteurização das mensagens. Tudo é possível<br />
passar na televisão e nada de fato provoca qualquer efeito no receptor.<br />
Para Baudrillard, a ciência eliminou a sedução, substituiu-a pela<br />
profundidade e pela interpretação, instituindo aí o terrorismo e a violência da<br />
interpretação (1979,p.76). Trata-se, no caso da hermenêutica, do fato de que a<br />
atribuição de sentido é o mesmo que forçar o fato a uma teoria pré-concebida.<br />
É uma forma de mutilação, é a pilhagem da história com fins particularistas, a<br />
pilhagem do inconsciente com fins de interpretação psicanalítica, a pilhagem da<br />
cultura com fins de massificação e a pilhagem do agir humano para submetê-lo<br />
a uma moral, uma norma, um princípio exterior. Em todos estes casos, a<br />
permanente obsessão pela domesticação, pela castração, pela eliminação dos<br />
riscos, pela submissão de tudo o que aparece à ordem da razão e da<br />
explicação.<br />
Na época da metafísica, desnudar as aparências era uma forma usada<br />
para fazer resplandecer a verdade de Deus. Junto com o declínio do<br />
pensamento marcado pela dualidade falso/verdadeiro, manifesto/latente,<br />
executa-se a liquidação de todas as formas de desmascaramento, de<br />
desvendamento ideológico, de depuração daquilo que parecia estar obnubilado<br />
para, então, aparecer a verdade da coisa. Em todos os casos, o princípio de<br />
que a forma como os fatos aparecem é a negação de como eles de fato são.<br />
Em todos os casos, a tentativa de negar a verdade da evidência para fazer com<br />
que os fatos se dobrem a uma verdade outra, externa ao fenômeno, de<br />
natureza ética, política ou filosófica, legitimada por uma verdade divina,<br />
revolucionária ou puramente abstrata. A crise da hermenêutica leva consigo o<br />
fim do próprio sentido, já que o sentido remete, também ele, a uma visão<br />
37
exterior do próprio fenômeno. Tem sentido aquilo que se coadunava com a<br />
maneira prévia de como o cientista ou o filósofo viam o mundo.<br />
Caem por terra, portanto, os conceitos de conteúdo e de mensagem<br />
como manifestações que estão escondidas, por trás, obscurecidas, pela<br />
linguagem manifesta. A análise da mensagem, a análise de conteúdo<br />
buscavam exatamente através do instrumental semiológico encontrar ligações,<br />
construções inconscientes, formas internas de um discurso não-expresso para<br />
trazê-las à luz. O campo então ficava aberto a todas as formas possíveis de<br />
especulação, já que tudo é válido e portanto pode se submeter a critérios<br />
múltiplos de julgamento. As chamadas "leituras ideológicas" de um texto, de<br />
uma pintura, de um filme, de uma peça teatral, de um livro, de um programa de<br />
televisão, todas elas remetem a essa tentativa de violentar o real impondo-lhe<br />
um sentido, que o pesquisador achava mais correto.<br />
Da mesma forma, o conceito de discurso, que remetia a uma<br />
concatenação superior das falas e à sua submissão a toda uma lógica<br />
precedente, reduzia todas manifestações à mera expressão dessa própria<br />
ordem, dessa visão de mundo. O pesquisador violentava o real e o distorcia<br />
para impor-lhe a significação que era da sua própria metanarrativa.<br />
3.3.3. Autonomia do objeto<br />
Na nova teoria desaparece a polarização dominante/dominado, que está<br />
na mesma ordem da polarização emissor/receptor. É novamente Umbero Eco<br />
quem declara que nas novas formas de comunicação eletrônica não há mais<br />
um poder sozinho, um poder centralizado, uma destinação ideológica da<br />
mensagem. Se existe uma circularidade na comunicação, se ocorre o que se<br />
chama "sedução circular" é porque então ninguém mais manipula ninguém, não<br />
há mais persuasão, não há mais influência deliberada, nem a capacidade de<br />
indivíduos interferirem radicalmente no comportamento de outros através do<br />
uso deliberado dos meios de comunicação.<br />
Em suma, o componente intencional nos efeitos da comunicação<br />
extingue-se. As novas formas de manifestação dos meios de comunicação<br />
remetem a outro tipo de funcionamento, assim como também a uma nova forma<br />
de se considerar a questão do poder. (No item II, se retomará novamente a<br />
discussão sobre o caráter do poder na nova sociedade).<br />
A forma como Baudrillard, por exemplo, encara o fenômeno das massas<br />
justifica uma tal acepção de poder. Para ele, estas não são boas nem más<br />
condutoras do político; nelas tudo dilui, são ao mesmo tempo passividade e<br />
espontaneidade selvagem, não guardam nenhum sentido e neutralizam toda<br />
cena e o discurso político. O poder não manipula e tampouco as massas são<br />
enganadas. Absorvem a energia do social mas não a refratam; absorvem<br />
signos mas não os digerem; nunca participam: são boas condutoras de fluxos<br />
mas de todos os fluxos, boas condutoras de informação mas de qualquer<br />
informação.<br />
Seu comportamento, portanto, é algo que não pode ser previsto, préprogramado,<br />
administrado, controlado ou definido pelos indivíduos, Estados ou<br />
formas de "poderes" socialmente localizáveis. O que marca seu comportamento<br />
é, contrariamente, o da absoluta imprevisibilidade.<br />
38
Daí porque não de poder mais falar de uma "cultura de massas" já que<br />
esta significaria algo de residual, que atribuiria um caráter ontológico às<br />
próprias massas, ou seja, conduziria à idéia de que no fundo elas encerram um<br />
certo comportamento, uma certa forma de se opor à dominação, uma certa<br />
estratégia intrínseca e inerente de insubmissão. Adorno e Horkheimer<br />
rejeitavam a seu tempo o conceito de cultura de massas exatamente porque<br />
este supunha uma certa autonomia da massa na criação das formas culturais; a<br />
crítica que faziam, contudo, era de que a cultura industrialmente produzida é<br />
que não era a da massa, deixando de qualquer forma, o espaço para uma<br />
cultura à margem, externa a todo o processo de industrialização, que as<br />
manteria ainda intacta. Este era o equívoco de seu pensamento, ou seja, o<br />
investimento naquilo que estaria no âmago da própria massa, princípio que<br />
posteriormente veio fundamentar toda uma ideologia política e uma estratégia<br />
de recuperação da "cultura popular".<br />
Os termos indústria cultural ou industrialização da cultura perdem<br />
também sentido porque supõem a atuação deliberada - da mesma forma como<br />
no contexto anterior - "manipuladora" de uma matéria prima original,<br />
relativamente "pura" para a produção de mercadorias genéricas, difusas, de<br />
ampla aceitação popular. Ou seja, está se tratando novamente com agentes<br />
que alteram, falsificam, danificam, popularizam produtos de uma cultura<br />
autêntica quando a lógica, ao contrário, é nitidamente distinta: cria-se, produzse,<br />
desenvolvem-se bens, objetos culturais numa sociedade dada mas seu<br />
resultado é algo absolutamente imprevisível.<br />
Há autonomia dos objetos em relação a seus criadores. São os objetos<br />
que provocam efeitos e têm repercussão perante a sociedade como fatos<br />
absolutamente inesperados, e não seus autores, já que sua precedência nos<br />
remeteria novamente à concepção de um sujeito criador.<br />
Em que categoria, então, num mundo de desaparecimento do sujeito<br />
coletivo, do papel histórico, da ação política com vistas a um fim<br />
ideologicamente procurado, inserir as ações individuais, pequenas, restritas<br />
daqueles que vêem sentido no trabalho, na divulgação, no debate de idéias, na<br />
rejeição ao mundo caótico e sem eixo da era técnica ?<br />
39
Fora do território e das práticas minimalistas, que ingenuamente visam<br />
reconstruir em laboratório mundos irremediavelmente perdidos, o pequeno ato<br />
individual e de grupos reduzidos, orientados contra a barbárie da destruição de<br />
qualquer razão, o império das imagens, a onipresença da ruina, reclama sua<br />
legitimidade. E com razão. No passado, o ato político compreendia-se como<br />
curvatura em que ações de indivíduos, grupos ou classes somavam-se para<br />
construir um movimento que iria irromper numa realidade dada e provocar a<br />
alteração do status quo. Era a revolução. Poder-se-ia supostamente planejá-la,<br />
organizá-la e ver sua realização. Hoje, entende-se que o mecanismo foi<br />
desconectado, a primeira parte divorciou-se da segunda: homens e grupos<br />
ainda lutam por idéias e princípios mas apenas no sentido de "somar", de juntar<br />
muita gente para que, pelo volume, as coisas mudem. Já não há mais o "fazer a<br />
revolução" mas o "provocar as coisas". Provocar no sentido de "incitar", de<br />
cutucar, de trabalhar para que ocorram mudanças pura e simplesmente. O<br />
outro lado, o do controle dos efeitos, perdeu-se: ninguém pode afirmar no que<br />
vai dar, quais serão os resultados, o que esperar disso. O objeto impõe-se<br />
como autonomia.<br />
Se antes o homem estava sobre um cavalo, conduzindo-o a seu destino<br />
("a teleologia"), hoje ele - consciente de sua insignificância - vê que suas ações<br />
no máximo servem para provocar a fera. A partir de alterações provocadas e de<br />
mudanças ocorridas, voltam outra vez os agentes para novas provocações. É<br />
no jogo indeterminado, imprevisível, aleatório que se constituem hoje as "ações<br />
socialmente relevantes". É a forma também como Lyotard descreve o agir: agese<br />
com golpes e contra-golpes, realizando mudanças nas relações de força,<br />
apenas pela agonística dos "jogos de linguagem".(Lyotard, l979,p.30).<br />
Assim, ao que parece, inscreve-se a ação política, mesmo daqueles que<br />
publicamente, mas de forma crítica, denunciam a existência de um mundo sem<br />
esperanças. A esperança da utopia desapareceu; a pequena estatura humana<br />
vê, talvez agora com muito mais maturidade, seus limites reais, mas também a<br />
dimensão verdadeira de seu agir. Isto pode também ser interpretado como<br />
avanço.<br />
3.3.4. Movimento<br />
Na nova teoria da comunicação, assim como na nova forma de<br />
ordenação do social como um todo, as lógicas que se impõem são marcadas<br />
basicamente pelo movimento, velocidade, rapidez, crescimento, expansão,<br />
divisão, multiplicação e os efeitos destes processos acelerados sobre todas as<br />
coisas. No passado, especialmente na modernidade, as lógicas voltavam-se<br />
para o estável, o fixo, o permanente, o contínuo, o que se mantinha<br />
estruturado, o que ficava consolidado. O estável, que remetia à ontologia e às<br />
concepções do Absoluto, cede lugar na era da técnica ao móvel, dinâmico, ao<br />
que está em permanente mutação, subdivisão, clonagem, fractalização,<br />
espectralização, sideralização.<br />
40<br />
II - HISTÓRIA, TEMPO, POLÍTICA
1. Fim da história<br />
O chamado "fim da história" está intimamente associado à crise dos<br />
metarrelatos, cuja legitimação, especialmente no caso do saber, fundamentavase<br />
em um componente ético, político ou - como no caso de Schleiermacher -<br />
filosófico. As ciências existiam como práticas orientadas à "emancipação do<br />
sujeito em direção à liberdade" ou ao processo de desalienação e<br />
desrepressão. Dentro desta lógica, a história significava o desdobramento<br />
progressivo, positivo, ascendente das conquistas da humanidade em direção a<br />
uma sociedade marcada pela realização da Idéia, da utopia ou do socialismo.<br />
A substituição elementar do paraiso cristão dar-se-ia pela projeção de<br />
um "paraiso possível na Terra". O componente místico-religioso nessa ideologia<br />
não era ocasional, já que a própria ideologia da religião cristã previa também<br />
um caminhar da humanidade em direção à sua própria salvação e redenção. Só<br />
que neste caso, em vez de realizar a utopia no plano extra-terreno, a história<br />
propunha-se a dar aos homens uma consecução material, concreta, real e<br />
possível nos quadros da própria sociedade.<br />
O declínio do conceito de história ocorre na mesma proporção em que<br />
entra em decadência a concepção unitária de totalidade, de teleologia ou de<br />
finalismo, quando a história deixa de ter sentido como processo único para o<br />
qual caminha toda a humanidade, esfacelando-se em múltiplas "histórias".<br />
Exemplo da erosão desta unicidade são os meios de comunicação, cujos<br />
diversos "centros de histórias" multiplicam-se desordenadamente.<br />
Mas também as idéias e os conceitos que recheiam a contrução histórica<br />
perdem sua densidade. Harvey dá exemplo de Ragtime, de E. L. Doctorow,<br />
em que, segundo ele, não há mais representação do passado histórico mas<br />
"representação" de nossas idéias e estereótipos sobre aquele passado. De fato,<br />
nossa experiência com filmes históricos e de ficção científica realizados nos<br />
anos 20 e 30 não revelam nada sobre aquele passado, menos ainda sobre o<br />
futuro magicamente projetado; ao contrário, demonstram apenas o imaginário<br />
daquela época.<br />
No livro Die Provinz des Menschen, Elias Canetti apresenta em forma<br />
ficcional o salto de um período histórico para um período ahistórico: "Uma idéia<br />
dolorosa, a de que a partir de um determinado ponto preciso do tempo a história<br />
deixaria de ser real. Sem se dar conta, a totalidade do gênero humano teria de<br />
repente perdido a realidade. Tudo o que teria acontecido após já não seria mais<br />
de forma nenhuma real, mas já não poderíamos perceber isso. Nossa tarefa e<br />
dever no presente seria descobrir esse ponto e enquanto não o tivéssemos ele<br />
estaria prestes a perseverar na destruição atual".<br />
Para o escritor, sem que os homens tivessem se dado conta, teria<br />
ocorrido um desaparecimento incrível: tudo aquilo que havia marcado o<br />
passado, a memória, a vivência, a historicidade impregnada nas coisas, nos<br />
gestos, nas palavras, teria desaparecido como num passe de mágica. Talvez a<br />
humanidade, demasiadamente envolvida e inundada pelas mensagens da<br />
comunicação, não teria tido chance de perceber este ponto e quando se deu<br />
conta a história já tinha ido embora.<br />
41
Algo aconteceu que mudou radicalmente nas consciências a concepção<br />
de passado; algo introduziu-se de forma que o passado tenha se tornado uma<br />
categoria fictícia, imaginária e mesmo "fabricada". Os homens já não têm a<br />
lembrança, o relato, a narrativa de que fala Walter Benjamin mas teriam agora<br />
modelos prontos, terminados, fabricados em série de representações do<br />
passado e estas se sobreporiam às imagens realmente vividas.<br />
O fim da história tem como consequência a dilaceração de tudo o que<br />
outrora fazia parte do repertório dos pesquisadores. A começar pela arquitetura,<br />
cujo historicismo tornou-se a "canibalização aleatória de todos os estilos do<br />
passado e o jogo de alusão estilística casual"(Jameson,1984,p.77ss).<br />
Posteriormente, nas demais "ciências humanísticas modernas" a história<br />
passou a ser vista como um espaço em que operava-se um abandono do<br />
sentido de continuidade e memória e o desenvolvimento da prática usurpatória,<br />
já apontada também por Eco quando fala da passadização da cultura norteamericana,<br />
em que a falsificação da memória é construída através de uma<br />
visão tendenciosa do passado.<br />
Desaparece a "manipulação de classe com fins de imposição de uma<br />
verdade ideológica, de manter a "alienação" dos dominados, de sonegar<br />
informações relevantes e institui-se a manipulação aleatória e livre de tudo.<br />
Todos os objetos tornam-se peças disponíveis, adaptáveis a qualquer intenção,<br />
meros componentes arbitrariamente organizáveis para a intenção da<br />
construção artificial. Manipula-se para alterar e adulterar o passado, fazendo<br />
com que sujeitos retrospectivamente e após a morte transformem seus atos e<br />
feitos, como também no uso presente desses mesmos dados, que passam a<br />
sofrer uma livre e arbitrária utilização para os mais diversos fins. O uso<br />
indiscriminado do passado, ao mesmo tempo que desmorona a possibilidade de<br />
reconstrução histórica e de recuperação de documentos e fontes, altera<br />
também o próprio sentido da antiga historicidade.<br />
Desconectados do sentido da agregação factual (tendendo a um futuro<br />
previsível ou desejável), os fatos políticos e culturais presentes, de repercussão<br />
macro-social, passam a repercutir não mais linearmente mas agora em todas as<br />
direções, difusamente. Tudo isso não deixa de provocar uma sensação de<br />
vazio pelo "desaparecimento do sentido". Os atos políticos rompem com o<br />
sentido maior, as ações coletivas não conseguem mais capitalizar maciçamente<br />
as pessoas (agora dispersas, não mais reunidades num projeto), nada mais<br />
repercute como expressão de uma tendência. É a "velha história" que, apesar<br />
de extinta, excita ainda o imaginário dos vivos. A nostalgia do passado<br />
alimenta o espírito "retrô" do presente.<br />
Para um realidade eletrônica e saturada de técnica, que expurga o<br />
passado e a memória, mas também a historicidade, a política e a guerra, os<br />
homens precisam buscar novamente no passado, longínquo como recente, os<br />
objetos que ainda estão carregados de uma certa dose de emocionalidade, de<br />
realidade e sentido para ocupar um espaço presente esvaziado, congelado e<br />
sem orientação alguma. As reconstruções de guerras, de lutas, de períodos<br />
marcados por fortes rivalidades, conflitos que orientavam o agir, passam a ser o<br />
contraponto de um presente ainda não inteiramente assimilado, aceito.<br />
A pós-modernidade é fundamentalmente uma reordenação das noções<br />
de espaço e tempo. A uma compressão da categoria espaço opera-se um<br />
42
investimento maciço na categoria tempo. Tempo não como tempo da história<br />
ou passado, tempo de envelhecimento, mas dinâmica. (A compressão do<br />
espaço, o fim da geografia já foram expostos na Segunda Parte: "A<br />
transformação da cidade". Aqui interessa o investimento na categoria "tempo").<br />
2. O tempo<br />
O tempo é o vetor dominante da cultura técnica e das tecnologias de<br />
comunicação. Ter tempo, ganhar tempo, obter o melhor tempo, são hoje<br />
marcas de uma cultura da alta velocidade. A rapidez impõe-se como<br />
necessidade e a circulação de bens e mercadorias torna-se alucinante. As<br />
experiências, as atividades, as vivências condensam-se cada vez mais, sendo<br />
possível viver mais intensamente (isto é, quantitativamente muito mais<br />
experiências) que se vivia no passado.<br />
O tempo está diretamente vinculado à linguagem da televisão e dos<br />
media eletrônicos, pois é o seu determinante rítmico. É derivação e causa da<br />
rapidez das imagens, do declínio da leitura e da superficialização de toda a<br />
voda social. O que realizam os sistemas de comunicação e em especial a<br />
televisão é a redução da experiência à presentificação total do cotidiano.<br />
A técnica paralisa e os sistemas de informação esvaziam toda a<br />
pulsação vital dirigida que estaria associada anteriormente ao processo<br />
histórico. Opera-se uma estratégia de petrificação ou congelamento do<br />
presente por um mecanismo da própria perpetuação desse presente.<br />
Para Raulet, as imagens numéricas da TV já não conhecem mais nem<br />
antes nem depois; o tempo pára de criar continuidade da experiência, as<br />
imagens seguem-se umas às outras como momentos arbitrários, captações<br />
cambiáveis de momentos que que já não respeitam nenhuma hierarquia<br />
cronológica.<br />
Visto de outra forma, a dinâmica da alta velocidade e de ritmo alucinante<br />
do processo comunicacional, especialmente da televisão, faz com que mesmo<br />
as informações relativas ao passado tornem-se excessivas e por isso<br />
redundantes e esvaziadas."As sociedades que nada mais esperam de um<br />
acontecimento futuro e que acham cada vez menos confiança na história,<br />
enterram-se atrás de suas tecnologias prospectivas, atrás de seus estoques de<br />
informação e nas imensas redes alveoladas da comunicação, onde o tempo foi<br />
liquidado pela circulação pura. Essas gerações jamais despertarão de seus<br />
sarcófagos subterrâneos". (Baudrillard, 1985, p.15).<br />
A noção de tempo, portanto, que impera nesta nova era não tem mais<br />
nada a ver com a sequência passado-presente-futuro, marcante<br />
fundamentalmente para a periodização do Iluminismo, exatamente porque para<br />
este a trajetória da humanidade poderia ser sintetizada em um antes (processo<br />
que se desenrolou), uma agora (sua interferência radical), para a construção<br />
de uma realidade que estaria por vir.<br />
O mundo marcado pela técnica, ao contrário, refuta todo este<br />
ordenamento da lógica social. Não há passado porque a história, como grande<br />
empresa humana, foi extinta, assim como não há futuro exatamente porque a<br />
demolição da utopia do vir-a-ser, do destino ou de um projeto tornaram<br />
43
impossível a construção de uma realidade para além desta. Tal fato encontra<br />
nos indivíduos um correspondenrte homólogo, que é o que se verá na próxima<br />
parte do texto, a saber, a condição esquizofrênica do homem nesta era.<br />
3. A política<br />
Antes do período moderno, a política definia-se como atos e vontades<br />
do soberano. Eram os inúmeros jogos, artifícios, golpes, astúcias de que fala<br />
Maquiavel e que correspondem a uma concepção do agir político como<br />
teatralização diante dos demais membros da sociedade. A era moderna vai<br />
abrir, com a liquidação dos monarcas ou o esvaziamento de seu poder político,<br />
a fase da representação. Instala-se o conceito de povo como soberano, de<br />
vontade popular, de representatividade, de delegação, de opinião pública. É a<br />
fase de ouro da cena política, em que os governados acreditam na<br />
possibilidade de os governantes agirem em seu nome, na viabilidade de<br />
construção de um estado fundado na democracia de uma transparência política.<br />
Na nova fase política (fim da modernidade), esta dissolve-se por ser<br />
incorporada pelo sistema de comunicação ou as próprias instituições políticas<br />
tornam-se meios de comunicação.<br />
Nossa época é marcada pelo desaparecimento ou perda de importância<br />
das instituições intermediárias que configuravam o quadro político do século<br />
passado e da primeira metade deste século; opinião pública, esfera pública,<br />
sindicatos entram em progressivo descrédito assim como conceitos de<br />
cidadania e direito. O desaparecimento do espaço público, o fim das grandes<br />
mobilizações de massa como formas de ostentação política, a crise da<br />
demonstração política ocorrida através da estetização fascista, o declínio dos<br />
sindicatos, dos movimentos ideológicos, todos estes fatos convergem para a<br />
ruptura dos componentes mediadores instalados entre o povo e seus<br />
governantes.<br />
Fim da representação, fim das instituições intermediárias e também fim<br />
do homem político. Com a expansão e absorção dos media, os políticos<br />
tornam-se atores destes sistemas com peso e importância pequena. São<br />
substituídos por técnicos nas tomadas de decisões e as definições políticas<br />
escapam ao seu controle porque são determinadas por pareceres de<br />
especialistas, estudos específicos e investigações externas ao debate<br />
propriamente político. Ao mesmo tempo, o cenário clássico da política tornou-se<br />
espaço de micropolíticas de lobbies e de vantagens marginais e oportunistas.<br />
A política na era das altas tecnologias é o território sem a dimensão das<br />
grandes mudanças, das radicais alterações. Ou então: sem a interferência ativa<br />
dos atores, partidos e organizações. As transformações espetaculares da<br />
história de certos países, de regimes inteiros ocorreu como estravazamento<br />
explosivo sem liderança, como explosão incontrolável, como fantástica violência<br />
das coisas. Desaparecem os atores e, como lembra Virilio, as mães da Praça<br />
de Mayo são uma demonstração de que os verdadeiros atuantes, de fato, estão<br />
ausentes. Da mesma forma, em São Paulo, a descoberta de ossadas de<br />
antigos inimigos do regime vem para comprovar que no momento de<br />
esvaziamento da política só os fantasmas de uma política desaparecida é que<br />
conseguem exercer o papel de atores.<br />
44
Em lugar dos esquemas duais, das relações de classes e de dominação,<br />
impõe-se agora a dominação da máquina, impessoal, exercida pela técnica,<br />
como fruto do mais avançado da "racionalização com vista a fins" de que falava<br />
Max Weber. A ela estão todos igualmente submetidos. Altera-se,<br />
correspondentemente, agora também o status dos "condenados da Terra". Os<br />
que eram marginalizados e que poderiam, no princípio socialista, capitalizar um<br />
potencial de revolução e de destruição do sistema (pobres, negros, velhos,<br />
minorias étnicas, sexuais, sociais etc), são puramente "denegados" já enquanto<br />
conceito: deixam de existir, não interessam ao sistema, são sua "parte maldita",<br />
não há mais quem advogue em seu favor.<br />
Dentro do mesmo raciocínio, o inimigo na acepção clássica também<br />
desaparece. A Guerra do Golfo, no início de 1991, deu exemplos disso: ali o<br />
inimigo é apenas uma abstração, uma idéia, um "mal indefinido". Saddam<br />
Hussein é somente a materialização oportuna, bode expiatório deste inimigo<br />
abstrato: o desvio, a fuga de rota, o desequilíbrio estrutural, o entrave de<br />
funcionamento.<br />
Por isso, a solução é técnica, clínica, cientificamente calculada, e o<br />
inimigo, erro de produção, falha do sistema. O campo que ingressamos é o da<br />
transpolítica, não o das "anomias" durkheimnianas mas das anomalias,<br />
aberrações sem consequência. (Baudrillard, 1978, 1983). O grande divisor de<br />
águas também aqui são os meios de comunicação. Eles tornam-se o novo<br />
palco da política. Primeiro, enquanto unidades de produção de informações<br />
para grandes massas e como sistema que engloba todos os componentes da<br />
vida social e os reinterpreta segundo seus próprios modos de ver e trabalhar;<br />
toma o lugar do palanque público e como "palanque eletrônico" é para onde<br />
convergem todos os discursos políticos clássicos.<br />
Os políticos falam para os media na esperança de que estes repassem<br />
sua imagem para o grande público e o façam de forma benevolente. A ação,<br />
portanto, deste "componente intermediário" é decisiva. Política reduz-se a mera<br />
publicidade. Diante das câmeras, os políticos não discutem, não trocam<br />
opiniões, não tratam de programas, estratégias, linhas de ação de governo; não<br />
tratam de ações, alterações pequenas ou grandes a serem empreendidas mas<br />
tornam-se componentes de um grande processo publicitário em que funcionam<br />
frases de impacto e jogadas espetaculares, em que interessa levar o público ao<br />
êxtase e à fascinação, num jogo em que devem ser tão ou mais espetaculares<br />
que os próprios homens de televisão. Os critérios, portanto, são agora de<br />
agilidade, habilidade e boa presença no vídeo.<br />
Como desapareceram os temas da política, não há mais necessidade<br />
que o homem político realize atos ou programas que tenham a ver com uma<br />
transformação ou o investimento na situação nacional. Isto fica com a<br />
programação do próprio aparelho administrativo e as estruturas que funcionam<br />
indiferentes aos sujeitos.<br />
Não dirigindo as políticas, as economias, as estratégias sociais mas<br />
funcionando apenas como álibis humanos diante de um sistema de<br />
racionalidade técnica, desprovido de poder, os homens não precisam de fato<br />
mais se comprometer com qualquer mudança substantiva.<br />
45
4. O Estado orbital<br />
Desaparecidas as instituições intermediárias, reduzido o papel do<br />
homem e das classes, a máquina estatal auto-regulada entra num ciclo "orbital".<br />
É a satelização, de que fala Baudrillard, em que o mundo do controle é dirigido<br />
a partir do sideral; o Estado como excrescência política não prevê a troca e<br />
produz pânico e terror; fim das intermediações e flutuação das<br />
responsabilidades.<br />
O comportamento deste tipo de Estado da era tecnológica é mais<br />
notório em questões como a ameaça nuclear, os atentados terroristas e nas<br />
situações internacionais e planetárias de guerra. A instância política decide a<br />
partir de informações distantes da opinião pública e elaboradas por equipes<br />
criadas especialmente para esse fim. Torna-se máquina decisória com<br />
retroalimentação própria.<br />
Mais recentemente, diante da própria transformação que sofreram os<br />
sistemas de comunicação, incluindo neles as redes de jornais, rádio, televisão e<br />
revistas, que passaram a ser sistemas auto-referentes, o próprio Estado tornase<br />
também meio de comunicação. Medium de comunicação, na era técnica,<br />
não se restringe mais à infra-estrutura e às instalações físicas dos próprios<br />
sistemas de comunicação, mas torna-se categoria genérica, abstrata e difusa. É<br />
pólo irradiador de informações e comunicados, buscando construir e difundir<br />
imagens e fantasias de si mesmos.<br />
Ultrapassando a situação em que o Estado era dependente dos media<br />
para sua projeção no campo internacional, hoje este tornou-se seu próprio<br />
medium. A Guerra do Golfo, mais uma vez, é o exemplo mais claro deste<br />
objetivo, numa situação em que as forças chamadas "aliadas" usaram-se de<br />
uma estratégia de informação muito diferente da utilizada pelos norteamericanos<br />
no Vietnã. Tratava-se agora de excluir toda influência crítica ou<br />
negativa dos media institucionalizados, retirando-se daí também parte de seu<br />
poder. O Estado - neste caso, o Pentágono - tornou-se o próprio medium,<br />
produzindo notícias, interferindo exclusivamente na forma de o mundo tomar<br />
conhecimento e formar sua opinião acerca do desenvolvimento da guerra. A<br />
guerra propriamente dita não foi de conhecimento de ninguém, já que o Estado<br />
como medium de comunicação, providenciou ele próprio a sua verdade.<br />
5. O "locus" do poder<br />
Se o poder no Estado transpolítico deixa de ser troca e é apenas<br />
violência do pânico e do terror, o poder propriamente dito não está menos ainda<br />
nos espaços institucionalmente definidos como tal.<br />
Já não se pode mais interpretá-lo como um território em que ele se<br />
encontra associado à figura do governante, como na época de Maquiavel;<br />
tampouco como multiplicação e difusão molecular, num conceito microfísico de<br />
Foucault. A nomeação, a qualificação do poder leva à sua própria anulação. O<br />
marxismo, no momento em que se tornou oficial e aceito pela academia, perdeu<br />
sua violência teórica e crítica. Da mesma forma, os partidos comunistas, uma<br />
vez autorizados e participantes da vida política esvaziam-se. O que não dizer<br />
então dos sindicatos e das grandes associações trabalhistas, como a AFL-CIO<br />
46
dos Estados Unidos, que pela sua oficialização não têm nenhuma força<br />
contestatória ou peso de desafio político. E assim ocorre também com as<br />
minorias: no momento em que se institucionalizam perdem sua agressividade e<br />
violência. Trata-se de cristalizações, petrificações, em diferentes exemplos da<br />
lógica de que a institucionalização é morte e a persistência enquanto<br />
movimento é o que mantém a pulsação vital.<br />
Tudo indica que o poder é algo flúido, deslocante, flutuante, transitório e,<br />
acima de tudo, indepentente do desejo, da manipulação, da administração, do<br />
controle dos agentes. Uma massa, por exemplo, pode alguns dias ou semanas<br />
antes de uma eleição inverter totalmente as expectativas das enquetes de<br />
opinião e surpreender com um resultado imprevisto ou com uma votação<br />
maciça em um candidato inesperado. Ela usa-se de uma forma de poder que<br />
não se acreditava estivesse concentrando, exatamente porque sua<br />
fragmentação supunha uma forma de não-poder. Mas no resultado da eleição<br />
constatou-se o uso de um poder através dos efeitos que provocou; nenhuma<br />
direção prévia as organizou e a massa impôs um "não" coletivo que se<br />
materializou num momento dado.<br />
Assim, o poder é algo que, por princípio, não aparece, ou melhor, só<br />
aparece em seus efeitos. Nunca está onde se convenciona situá-lo, como<br />
tampouco reduz-se às instituições que buscam fixá-lo, nomeá-lo ou localizá-lo.<br />
É algo de natureza muito mais abstrata, que não está necessariamente com<br />
aqueles que ocupam postos na administração ou nas grandes empresas ou na<br />
sociedade de forma geral.<br />
Um artigo na imprensa, uma matéria jornalística, uma declaração de uma<br />
figura eminente, um livro, um acontecimento no exterior, qualquer um desses<br />
fatos pode ter ou provocar um grande impacto na situação política, derrubar<br />
governos e alterar circunstâncias anteriores. Não porque seus autores o<br />
conseguissem intencionalmente ou munidos de algum poder, mas porque<br />
puderam, sem o perceber, captar uma aspiração coletiva e genérica e a<br />
transformar em um ato sintético de impacto. O poder apareceu através<br />
exatamente desse impacto.<br />
Da mesma forma que um produto cultural torna-se independente de seu<br />
autor uma vez que é posto no mercado ou ganhe difusão pública, este mesmo<br />
produto, por si próprio, pode ou não ter repercussões que redundem em alguma<br />
forma de poder. A intencionalidade do autor em nada pode alterar isto.<br />
A lógica da circularidade, em que os fatos são emitidos por sistemas e<br />
meios de comunicação e depois novamente refratados por uma massa de<br />
receptores e enviados de volta à televisão, formando o modelo de rotatividade,<br />
mina, como já mencionado, a idéia de manipulação e de influência determinada.<br />
Lyotard diz que em lugar da velha clássica unilateralidade na transmissão de<br />
mensagens há uma forma agonística de se jogar com a linguagem. "Os átomos<br />
são colocados em encruzilhadas de relações pragmáticcas mas também<br />
deslocados por mensagens que os atravessam num movimento perpétuo;<br />
quando percebe uma deslocação, cada parceiro sofre um golpe que suscita um<br />
contragolpe. Ôtomos realizam a estratégia e modificam a relação das<br />
respectivas forças. O que se pode fazer é agravar um deslocamento e até<br />
desorientá-lo para se obter um golpe inesperado" (1986,p.30).<br />
47
Estamos diante, portanto, neste exemplo, de uma lógica das irrupções<br />
repentinas, surpreendentes, das viradas espetaculares que não podem ser<br />
administradas como imaginava a velha teoria do poder. nem utilizadas como<br />
capital. Ninguém pode se considerar dono de uma irrupção repentina das<br />
massas, nem responsável consciente e deliberado por uma virada<br />
surpreendente em seu comportamento. O poder é conquistado casualmente<br />
por certos grupos, massas, organizações mas logo em seguida desaparece<br />
novamente. O fenômeno brasileiro das Diretas-Já, no início dos anos 80, em<br />
que houve grande mobilização popular nas ruas das grandes cidades, significou<br />
também uma forma de cristalização do poder nas mãos de uma massa, sem<br />
que isto pudesse ser atribuído a nenhum partido, de nenhum agente. As<br />
massas por si assumiram o direito do não e posteriormente, uma vez terminado<br />
o movimento, já não era mais possível rearticulás-la, exatamente por este<br />
caráter fluido do próprio poder, de não estar no lugar onde se desejaria que<br />
estivesse.<br />
III. O SER ENFRAQUECIDO<br />
1. Assassinato de Deus<br />
Nas páginas precedentes, a descrição feita da TV foi elucidativa para<br />
caracterizar o traço de "errância" do mundo atual (V. para isso: Primeira Parte,<br />
"O antiiluminismo"): a TV não dá uma versão dos fatos que transmite, ela os<br />
cria; não há um sentido falso alterando um autêntico. A questão do sentido é<br />
que já não se coloca. Tudo torna-se fábula.<br />
No capítulo anterior, da mesma forma, a história e os acontecimentos<br />
jornalísticos haviam se tornado fábula. No dia-a-dia dos media são construídas<br />
novas fábulas e o componente de verdade desses fatos (cenas de rua, choques<br />
violentos, flagrantes de cinegrafistas), como álibi da notícia, é usado para<br />
resgatar um indício de veracidade no mundo fictício. Na edição, as cenas<br />
"autênticas" embaralham-se, diluem-se, perdem-se, alteram-se como a cor dos<br />
objetos ao sofrer a mudança da fonte de luz: vale apenas seu componente<br />
formal para fazer parte imaginária de outro mundo.<br />
A auto-referencialidade dos meios de comunicação constrói diariamente<br />
novas estórias para que o público as apreenda. No mundo como fábula não há<br />
mais experiência autêntica, já que, como visto, a idéia de verdade e de<br />
autenticidade caem fora desta lógica.<br />
Em Habermas e Weber, igualmente, o fim da metafísica (Deus está<br />
morto, fim do interesse nas causas "últimas", mundo trabalhado como ficção)<br />
conduz à perda de sentido.<br />
Para o primeiro, o final da metafísica ocorre com a diminuição da<br />
respeitabilidade do sagrado. O sagrado, no passado, não estava nivelado à<br />
vida cotidiana, mas numa posição acima dos homens e sobrevivia de forma<br />
secularizada tanto na aura, através da arte, como nas tradições filosóficas e<br />
religiosas. O nivelamento começou com o desenvolvimento da racionalidade do<br />
mundo técnico e com ele ocorre o que Weber chama de "perda de sentido":<br />
desaparece a graduação da racionalidade entre o sagrado e o profano.<br />
48
O nível de racionalidade do sagrado sempre esteve abaixo da<br />
racionalidade da ciência cotidiana mas sua estrutura intelectual para ele sempre<br />
havia sido melhor. Havia um enraizamento do místico e do religioso de tal forma<br />
que suas orientações valorativas permaneciam impermeáveis às experiências<br />
dissonantes na esfera do cotidiano. A profanização da cultura burguesa faz<br />
desaparecer a "força irracionalmente vinculante" do místico e volatizou-se o<br />
núcleo de convicções básicas, culturalmente sancionadas, que não necessitava<br />
de argumentos. (Habermas,1981,p.499).<br />
A estrutura de comunicação da modernidade fez ruir as visões de mundo<br />
integradoras e socializadoras. Para Habermas, as ideologias eram respostas às<br />
frustrações modernas, à carência ou déficit do mundo vivido pela modernização<br />
social. Elas buscavas salvar os momentos expressivos ou prático-morais<br />
reprimidos ou pós-postos no padrão capitalista da racionalização.<br />
Eliminando-se os vestígios auráticos do sacro e volatizado este tipo de<br />
produção de imaginação criadora, que foram as imagens de mundo, a forma de<br />
entendimento torna-se tão transparente que a prática comunicativa cotidiana<br />
não garante mais espaço algum para o poder estrutural das ideologias. (idem,<br />
p.501).<br />
Parece, contudo, que o pensamento de Habermas não atinge o momento<br />
particularmente atual. Isso porque: (1) a religiosidade não parece ter<br />
desaparecido de fato; o que acontece é que ela abandona o campo das<br />
entidades metafísicas e volta-se aos "bezerros de ouro" da sociedade de<br />
consumo, num primeiro momento, e às possibilidades de usar os equipamentos<br />
eletrônicos e computadores, num segundo, que tornam-se, eles também,<br />
formas "mitificadas" de uma nova religiosidade.<br />
Por outro lado, (2) desaparece a força integradora das ideologias mas<br />
aparece a "força integradora das redes", agora sem nenhum conteúdo<br />
filosófico, político, mas marcada pela performance, pelo agir técnico<br />
operacional, pelo fascínio tecnológico, pela magia dos botões, alavancas e<br />
sistemas.<br />
A morte de Deus e o fim do sentido têm ainda mais um desdobramento.<br />
Arthur Kroker acha que ocorreu o assassinato de um Deus que de fato nunca<br />
existiu. O sujeito filosófico foi liquidado duas vezes. Primeiro, pelo<br />
desaparecimento da ontologia, como vimos até o momento, e depois, pelo<br />
"impossível conhecimento do assassino de um poder que não existe". A<br />
espécie humana, então, é objeto de uma dupla negação. Sua negação própria<br />
enquanto entidade que se acreditava substantiva, enraizada, com suas<br />
estruturas estáveis, e uma segunda, pela impossibilidade de localizar o<br />
detonador dessa própria liquidação da ontologia. Se Deus jamais existiu, como<br />
então imaginar seu assassino, já que matar algo que não existe é o mesmo que<br />
não matar? Logo, a humanidade esteve sempre envolta em um crime fictício, o<br />
que se matou foi apenas uma ilusão e ela se depara agora com uma "verdade"<br />
da natureza frágil, impotente, solitária diante de estruturas maiores e mais<br />
determinantes.<br />
Cai por terra, portanto, pelo visto até agora, o conceito platônicometafísico<br />
de homem enquanto estrutura fixa e consistente na cultura e na<br />
história. Ascende, ao contrário, o conceito de um homem enfraquecido como<br />
dizia Heidegger: "do ser como tal não resta mais nada, trata-se um ser que não<br />
49
tem mais nenhum enraizamento no tempo e no espaço, ou seja, um ser que<br />
não é mais "arbóreo" mas vagueante pelo globo sem mover o corpo, um ser<br />
rizotômico, nômade" (Deleuze/Guattari,1987).<br />
Já não existe mais a expectativa de um caráter pessoal<br />
(Personhaftigkeit), de um significado individual e de um sentido<br />
existencialmente dicisivo. O homem existe mas nada mais há por trás dele.<br />
2. Multiplicação e fracionamento infinito<br />
A unidade do sujeito está estilhaçada. As metáforas para tal descrição<br />
são diversas. Usa-se o clone, a fractalidade, o espelho que se quebra, o<br />
estilhaçamento ( cf. Baudrillard, l987a, l987b, l988).<br />
No primeiro caso, o sujeito da era informático-computacional é<br />
representado pelo clone: divide-se em múltiplos iguais é multiplicidade de egos<br />
como numa cultura biológica. Sua diferença é possível - e fabricada - ao infinito.<br />
A metáfora do espelho leva a um raciocínio analógico. O espelho foi<br />
usado por Jacques Lacan para caracterizar uma fase no desenvolvimento da<br />
criança em tenra idade em que ela antecipa imaginariamente a apreensão e o<br />
domínio da unidade corporal. A unificação opera-se com a identificação com a<br />
imagem do semelhante como forma total. É uma diferença interna que permite<br />
à criança, distinguindo seus limites, abrir-se à cena do imaginário e à<br />
representação. Portanto, a fase do espelho em Lacan é a fase constitutiva do<br />
ego, em que de um ser dividido, visto como composto por partes separadas,<br />
chega-se à concepção de um ser unitário.<br />
A nova sociedade produz no campo mais difuso e genérico a "quebra do<br />
espelho"; é a transparência do sujeito que explode em fragmentos, em que<br />
vemos refletir nossa imagem.<br />
O conceito de clone ou de multiplicação de idênticos significa a<br />
multiplicação sempre do mesmo e o abandono da lógica de transcendência; é a<br />
lógica horizontal da duplicação em oposição à anterior, vertical, da relação entre<br />
um enraizamento no espaço e no tempo e suas repercussões no abstrato.<br />
O efeito é o desaparecimento do outro. Não se tem mais a necessidade<br />
de ser, de falar, de apresentar, de mostrar-se para o outro. A referência agora é<br />
somente o si mesmo. Cada um desenvolve por si próprio suas imagens de si e<br />
do mundo que o odeia. O outro torna-se "bizarro, sem qualquer mistério"<br />
(Lipovetsky, l988, p.151). Já não choca mais, é-se absolutamente indiferente a<br />
ele. A lógica do clone significa que só há o assemelhar-se a si mesmo,<br />
encontrar-se em toda parte. São os sujeitos que sorriem para si próprios de que<br />
fala Baudrillard em América. Uma sociedade em que desaparecendo o outro<br />
só sobram os replicantes.<br />
Da mesma forma, o self projeta-se para si mesmo na forma do look<br />
(cenário de vestuário). São os indivíduos que têm obsessão de provar sua<br />
própria existência, tem angústia de se manifestar, de se exprimir publicamente,<br />
mas não de ocupar a rua de forma política. Igualmente as situações<br />
públicas,funcionam não mais para participantes observarem, apreenderem,<br />
conhecerem o que está sendo exposto. É o próprio grupo, o conjunto, a<br />
coletividade que funciona como demonstração material de sua própria<br />
50
existência. Participar nos acontecimentos sociais ou culturais passa a ser uma<br />
forma de sentir-se vivo, de provar a si mesmo que não se é defunto, matéria<br />
morta, fóssil...<br />
A existência já não é mais algo pressuposto, implícito,dado como<br />
necessariamente verdadeiro. Ela precisa de provas constantes e cada vez mais<br />
contundentes. No mundo fragmentado, a coletividade é o que fascina e o<br />
próprio aparecimento do coletivo que é emocionante. As pessoas vão para<br />
assistirem a si mesmas.<br />
Também as máscaras tornam-se a riqueza de facetas de cada um. Na<br />
descrição do sujeito fractal, Baudrillard afirma que o ser humano tornou-se uma<br />
sucessão de máscaras que se sobrepõem umas às outras e que, suprimida a<br />
última, só restam "células sem qualquer transcendência".<br />
3. A desestabilização dos sujeitos<br />
A grande transformação provocada pelo mundo marcado por nossos<br />
duplos tecnológicos, pelas máquinas que instituem uma nova ordem de<br />
organização da sociedade, um novo tipo de relacionamento: o sujeito se<br />
destabiliza, para voltar a se reestabilizar no mundo das tecnologias.<br />
O universo das tecnologias cria uma nova posição e um novo espaço de<br />
interação neste mundo. Se se era localizado num determinado espaço e na<br />
marca de um certo tempo cultural, as novas tecnologias redimensionam estes<br />
marcos, redispondo a questão do tempo e do espaço de forma absolutamente<br />
nova. Outrora se dizia que o homem mantinha uma relação de alienação com a<br />
máquina. Esta funcionava como sua negação, era aquilo que fazia com que o<br />
homem, através do trabalho, se envolvesse num processo de estranhamento<br />
de si mesmo. No mundo atual, ao contrário, o que ocorre é uma total<br />
interpenetração, um amalgamento entre os dois. O homem integra-se no<br />
universo eletrônico e passa a fazer parte de um grande circuito. Diz Lyotard,<br />
que na televisão os telespectadores não são mais consumidores, usuários ou<br />
sujeitos que "a fazem", mas peças componentes, intrínsecas, in put/out put,<br />
feed back e recorrência; só há transformação, troca de informação.<br />
No novo mundo, o homem situa-se como uma peça, um componente<br />
permanentemente atravessado, perfurado, penetrado pelas redes, pelos<br />
sistemas de comunicação no chamado "universo proxenético" (Baudrillard) e<br />
ao mesmo tempo encapsulado e retomado em relação a outros universos. A<br />
proxenética da informação é um complexo de fluxos e circuitos: é a proximidade<br />
de todos os lugares, a circularidade de questões e respostas, problemas e<br />
soluções, a condutibilidaede absoluta. Um universo marcado pelo domínio, pelo<br />
controle, pelo comando, em que o espaço vital humano reduz-se ao ecrã, o<br />
sujeito torna-se um operador, seu carro, cabine informatizada, e toda a vida<br />
exterior passa a ser vista como uma tela. Estamos falando da "encefalização<br />
eletrônica", um espaço é absolutamente distinto do da sociedade na<br />
modernidade.<br />
A proxenética da informação introduz esse novo conceito de<br />
proximidade, segundo o qual o homem já não é mais responsável pela<br />
produção de seus próprios limites. Para Jean Baudrillard, está aí exatamente o<br />
novo tipo de esquizofrenia, nesta demasiada proximidade de tudo, do ambiente,<br />
51
da inevitável promiscuidade das relações que se apoderam do indivíduo e de<br />
seu íntimo. Ele se torna aberto a tudo e é transparência absoluta . (Baudrillard,<br />
1990).<br />
Se no antigo mundo social a identidade (cruzamento de aspirações<br />
individuais com jogos sociais) era vista como algo fixo, marcado por uma<br />
posição na cultura, na sociedade, na história e no universo de valores, este<br />
mesmo cruzamento hoje é questionado, já que a identidade assume uma forma<br />
totalamente flutuante. Ela é troca constante de identidades diversificadas,<br />
variadas, sem conduzir a nenhum conflito existencial. Analisando as relações<br />
dos homens desta época com os computadores, Mark Poster constata que<br />
estes introduzem novas possibilidades de jogar com a identidade, removem<br />
antigos papéis sociais, desentabilizam hierarquias e mesmo dispensam o<br />
sujeito, deslocando-o no espaço e no tempo. Este pode ser qualquer pessoa e<br />
ninguém, pode inventar aleatória e ficticiamente qualquer conjunto de dados de<br />
identificação que na verdade não se é mais nenhum deles exatamente.<br />
O mesmo fato ocorre com a contraposição da modernidade entre ser<br />
alienado/ser consciente. O conceito de alienação supunha a possibilidade de<br />
seu oposto, um si mesmo coerente, não-fragmentado, voltado a um projeto ou à<br />
produção de um futuro. Na realidade das novas tecnologias, contrariamente,<br />
tem-se um ser fragmentado, não mais marcado pela alienação mas pela<br />
instabilidade esquizofrênica, que será vista mais adiante.<br />
Em vez de projetos e utopias, na nova era estamos diante de um "ser<br />
realizado": o indivíduo está realizado; suas dimensões heróica e utópica não<br />
têm mais para que existir, já que ele está operacionalizado, realizado. Isto<br />
marca o fim de tudo, o fim da metáfora do sujeito. O indivíduo tem tudo que<br />
deseja, e o que ele dispõe, o satisfaz; ele não tem mais necessidade de<br />
transcendência, de futuro, de sonho. Ele não tem mais a história projetiva.<br />
(Baudrillard, 1989). Como Nietzsche, em Assim falava Zaratustra, a terra<br />
tornou-se pequena e sobre ela pode saltitar o último homem, aquele que torna<br />
tudo pequeno.<br />
4. A nova esquizofrenia<br />
Mas a grande marca distintiva da mudança de era está na transformação<br />
radical da relação com o tempo e é isso que vai definir o caráter<br />
"esquizofrênico" do homem da nova era.<br />
A esquizofrenia em Lacan é descrita a partir da experiência da<br />
temporalidade, vista como sequência de três momentos distintos (passado,<br />
presente, futuro). O que assinala o caráter patológico é a ruptura dessas<br />
divisões, a vivência de passado como se fosse presente e o embaralhamento<br />
das categorias num conceito de presente perpétuo.<br />
Fredric Jameson estende ainda mais este conceito. Para ele, a quebra<br />
da temporalidade libera o presente de ações e intenções, que o centrariam e o<br />
tornariam espaço da práxis. Assim separado, ele absorve o sujeito com<br />
fantástica vivacidade; o poder do significante, neste isolamento do presente, é<br />
opressivo, tem intensidade extraordinária e forte carga afetiva.<br />
52
Em seu texto sobre o pós-modernismo e o capitalismo tardio, Jameson<br />
descreve a experiência de uma jovem esquizofrênica como paradigma do<br />
homem atual. Segundo o relato, uma jovem, que estava no campo, sai para dar<br />
um passeio e no momento em que passa por uma escola, ouve uma canção<br />
alemã. As crianças tinham aula de música. A jovem, então, pára para ouvi-la e<br />
aí apossa-se dela uma estranha sensação, difícil de descrever, um "sentimento<br />
incomodante de irrealidade". Ela sente que já não mais reconhece a escola e<br />
que esta se transforma em um barraco do período de guerra. As crianças que<br />
cantavam agora são prisioneiras e estão sendo forçadas a cantar, como se a<br />
escola e a criança, dizia ela, tivessem sido separadas do resto do mundo. Ao<br />
mesmo tempo, ela vê um campo de trigo, cujos limites não pode mais<br />
distinguir: a vastidão amarela brilhando ao sol e as crianças, presas nos<br />
barracos cantando, tomam-na com uma ansiedade fantástica, de tal forma que<br />
ela se põe a soluçar.<br />
O fato serviu para que o autor ilustrasse o tipo de embaralhamento de<br />
tempos que provoca a vivência patológica com as tecnologias na era atual. O<br />
presente do mundo, diz ele, o significante material coloca-se diante do sujeito<br />
com redobrada intensidade, associado a uma misteriosa carga afetiva, que, no<br />
caso da jovem, era de caráter negativo. Mas pode-se muito bem imaginar o<br />
sentido positivo de euforia, de alta intensidade intoxicatória ou alucinógena,<br />
provocada por este tipo de relação com o tempo.Para ele, o mundo perde a<br />
densidade e vira "pele lustrosa, visão estereoscópica, agitação de imagens<br />
fílmicas sem densidade".(Jameson,l984)<br />
Assim se configuraria, portanto, o "presente perpétuo" da era das novas<br />
tecnologias de comunicação. Em vez de passado/presente/futuro, coloca-se a<br />
diluição do passado num presente e a ausência de qualquer devir possível: só<br />
há um tempo, o da vivência do êxtase, da emoção, do entusiasmo, do impacto,<br />
do agora. É uma forma de trabalhar a cultura e os dados culturais, em que se<br />
investe tudo nessa fascinação do presente, na momentaneidade e no processo<br />
de cristalização do imediato. São os jogos de azar e vertigem que marcam essa<br />
nova relação do homem com o mundo e não mais o de competição e<br />
expressão, dentro da terminologia de Caillois.<br />
Sente-se, portanto, que não se trata apenas da alteração de alguns<br />
componentes, da transformação de aspectos ou da superação de uma visão<br />
modernista do mundo em direção a algo que seja pura e simplesmente seu<br />
aprofundamento e sua transformação. Estamos diante de uma total<br />
superposição de outro universo, de novas coordenadas de espaço e tempo e<br />
de uma nova posição do homem dentro deste novo universo. Antes, ele<br />
dominava a máquina, ou então, via-se num conjunto em que ele e a máquina<br />
eram ao mesmo tempo produto e produtor. Hoje, a situação é distinta. Ele é<br />
parte, componente, peça de um sistema complexo, amplo, universal de alta<br />
sofisticação tecnológica mas não só como terminal, que concecta com outros<br />
indivíduos ou com a própria máquina. Ele é esta rede, tela perfurada através do<br />
qual tudo passa e nada o transforma.<br />
Fora da rede, ele está isolado, fechado como em uma cápsula. É o que<br />
alguns autores chamam de "homem-bolha", conjunto de próteses e proteções<br />
que substituem as defesas biológicas naturais; complexo de assepsia total e<br />
eliminação de todos os germes, e, com isso, a eliminação do próprio caráter<br />
53
humano dos indivíduos. "O homem perde sua sombra, é iluminado e<br />
superexposto". (Baudrillard).<br />
Resta ainda a indagação sobre os destinos das angústias, do tédio e da<br />
melancolia, que marcavam o caráter da modernidade, especialmente no seu<br />
período de crise (final do século XIX) na presente sociedade em que aqueles<br />
valores tendem a desaparecer. De forma bastante prematura, o Teatro do<br />
Absurdo já havia apontado as marcas da tragédia do homem moderno: o vazio,<br />
o isolamento, a solidão e o desespero.<br />
Mas não só isso: o homem da nova era é indiferente, destrutivo, suicida.<br />
Indiferente porque nada mais o choca. A capacidade de se interessar pelo<br />
mundo externo declina com a perda de importância do outro e da realidade.<br />
Cínico em relação às estratégias e aos projetos de ação e intervenção, já que o<br />
declínio das ideologias e das utopias acabou com os projetos futuros, o sentido<br />
da ação política, a vontade de mudança.<br />
A indiferença deve-se também à ameaça radical de destruição do<br />
planeta, associada à falência do social e do ontológico. Recolhido na sua<br />
própria interioridade, voltado às ocupações eletrônicas que se fecham num<br />
sistema computadorizado, sem mais a cidade, o espaço geográfico, o vizinho,<br />
mas principalmente sem mais a crença religiosa, a convicção política, os ideais<br />
sociais, o homem se sente, como nunca, radicalmente só e entregue a sua<br />
própria miséria.<br />
Daí as emoções da era serem marcantemente emoções-limite, como o<br />
êxtase, o choque, a violência, a explosividade radical. Nietzsche falava no<br />
niilismo completo, de dois tipos de niilistas: os passivios, dirigidos pelo<br />
desespero de seus próprios instintos, e os suicidas, que preferiam o nada ao<br />
nada preferir.<br />
A marca do momento é de posturas radicais extremas, totais e a crise<br />
das formas modernistas como a representação artística, o conceito de<br />
literatura, de política, de jornalismo, de cultura como um todo. Daí a<br />
impossibilidade de existir a melancolia, a angústia, a dor no sentido como se<br />
tinha na modernidade.<br />
A nova era suprime os componentes da realidade filosófico-existencial,<br />
como se apaga um programa de computador, desaparecendo, inclusive, o<br />
universo em que tinha sentido a própria melancolia e angústia da época. O<br />
homem telemático não tem sequer o direito a essas sensações porque são<br />
categorias que já não fazem mais parte do seu mundo; só o tédio lhe resta<br />
como sensação de vazio existencial, tédio de tudo já ter sido visto, tédio de<br />
viver a vida como reprise interminável de sensações já sentidas, como espaço<br />
de onde não brota mais nenhum novo.<br />
E o conceito de "novo" que ainda se retém na era tecnológica é o da<br />
modernidade. Tem-se racionalmente como verdadeiro o declínio da arte, da<br />
política, da filosofia mas não se abre mão de seus critérios de valor, de seus<br />
princípios de funcionamento, de suas noções de sentido. É isso que marca<br />
também a total perda de referências de milhares, milhões de homens na<br />
atualidade, que já não conseguem mais identifica-se com o mundo atual e,<br />
menos ainda, trabalhar com seus parâmetros. É o que mantém uma relação de<br />
assincronia no sentido de Bloch (V. para isso: Marcondes, l988, cap.1), que<br />
54
torna os homens destes tempos simultanea e anacronicamente inseridos em<br />
várias épocas históricas; pessoas com cabeças dos anos 60 circulando<br />
livremente e se chocando com frequência com outras dos anos 80 ou 90. Essas<br />
"trombadas cronológicas" indicam o quanto confuso e indecifrável para a<br />
maioria ainda é o presente. Mais do que indecifrável, é insuportável sentir que<br />
seu tempo desapareceu repentinamente e as novas regras excluem qualquer<br />
retorno ao período precedente. As modas retrô, como visto, atendem a esse<br />
grande contingente dos inconformados com a pura e simples eliminação do<br />
"molde" de suas culturas pela nova era e com sua colocação à margem,<br />
completamente expurgados do novo social que se implantou. Excluindo-se os<br />
componentes espirituais e existenciais da vida, a angústia e o sofrimento não<br />
têm mais a que se referir.<br />
A angústia é componente do universo da modernidade. O homem da era<br />
tecnológica e informatizada já não encontra mais nenhum referencial para sua<br />
insatisfação além do tédio radical. Sequer a categoria da insatisfação ainda<br />
sobrevive. Os novos conceitos, extraídos da lógica da própria técnica<br />
(desarranjo, desajuste, obsolescência, quebra de funcionamento, colocação<br />
fora de uso, abandono, sucata) dão uma noção do novo caráter da crise<br />
existencial.<br />
IV. CULTURA PASTICHE E VAZIA<br />
1. Cultura do cinismo e da indiferença<br />
Juergen Habermas descreve a realidade social como o jogo entre duas<br />
esferas que se relacionam mutuamente: o sistema e o mundo vivido<br />
(Lebenswelt). Este segundo é o que é produtor de sentido e espaço das<br />
possibilidades de ação; encerra a esfera da vida privada assim como a da<br />
opinião pública. É o armazém do trabalho interpretativo de gerações<br />
precedentes, do culturalmente transmitido e linguisticamente organizado. É<br />
onde a tradição faz contrapeso aos desacertos da comunicação.<br />
O mundo vivido é o meio para a reprodução simbólica da vida assim<br />
como o horizonte formador de conceitos. No contacto com o "sistema" (todo<br />
estruturado segundo princípios funcionais de eficiência e desempenho), que<br />
submete a seus imperativos a forma de vida doméstica e autoregula-se a si<br />
próprio, o mundo vivido torna-se "colonizado". É aí que a reprodução simbólica<br />
entra em perigo, ocorrendo o empobrecimento da cultura prática comunicativa<br />
com a penetração da racionalidade no domínio da ação. A proposta do autor<br />
alemão, portanto, visualiza um conflito entre um sistema, enquanto<br />
organização, e um mundo que se comporta de forma relativamente imprevisível<br />
e que detém em si um componente "ativo" no processo social. Joga com<br />
elementos do passado para se afirmar no presente. Se ele é reprodução<br />
simbólica da vida, contém, por esse mesmo motivo, um componente de<br />
criatividade e de recuperação dos enquadramentos que o sistema busca<br />
continuamente lhe impor.<br />
A questão, portanto, para Habermas, está na diluição do nó que se<br />
encontra no processo comunicativo, quando o mundo vivido submete-se ao<br />
sistema. Uma vez desfeito este nó, os sujeitos potencialmente capazes podem<br />
55
desenvolver novas formas de comunicação e superar as tendências restritivas<br />
e uniformizantes do social.<br />
Habermas é um dos únicos autores da contemporaneidade que ainda<br />
prestigia a possibilidade de uma autonomia de indivíduos e de uma esfera de<br />
vida. Outras tendências teóricas vão no sentido de encarar cultura como uma<br />
totalidade e uma progressiva perda de significado e de importância dos<br />
indivíduos. É o caso, por exemplo de Fredric Jameson e de Eberardt Knoedler-<br />
Bunte.<br />
Para o primeiro, a prodigiosa expansão do cultural por todo o reino do<br />
social dá-se de tal maneira, que tudo na nossa vida social, desde o valor<br />
econômico e o poder estatal até as práticas e a própria estrutura do psiquismo,<br />
tornaram-se "culturais". Para o segundo, ocorre na atualidade uma situação em<br />
que a fantástica expansão do social na política, nas empresas e na economia<br />
criou uma nova ordem social, que poderia chamar-se "sociedade cultural".<br />
Uma sociedade cultural é uma realidade em que as diferentes esferas<br />
anteriormente autônomas (o econômico, o político, o social), mesclam-se num<br />
mesmo tipo de linguagem, a da cultura. Esta deixa de ser alguma coisa<br />
localizada no espaço acima do social para ser integrante da própria<br />
generalidade da vida em sociedade. Tudo é perpassado pelo componente<br />
"cultural", a cultura torna-se "matriz dominante de tudo", definindo bases<br />
inclusive das próprias identidades individuais.<br />
E de que cultura trata-se na sociedade da técnica ? Num primeiro<br />
momento, da chamada "cultura do vazio". O pensamento filosófico, a reflexão<br />
sobre os fundamentos, as origens, os conceitos e as significações do agir, do<br />
real, do sujeito ou mesmo de uma totalidade parecem perder o sentido;<br />
instaura-se o "cansaço da teoria". Não se tem mais a mesma paciência para<br />
ouvir discursos filosóficos ou críticas densas de processos sociais ou<br />
individuais. O princípio da prática, da ação, do movimento, da participação<br />
sobrepõe-se ao da reflexão, do questionamento, da investigação dos princípios.<br />
A ironia da cultura é marcada por componentes tais como o pastiche, a<br />
ridicularização, a nostalgia, o humor e a morte<br />
Quem chamou atenção para o caráter pastiche de nossa cultura foi<br />
Jameson. Neste modo cultural, desaparece o sujeito, o estilo pessoal, privado,<br />
particular, que diferenciava um autor na multidão. As formas de cultura pastiche<br />
ridicularizam os maneirismos, os exageros, a excentricidade mas de forma<br />
distinta do paródico, já que não há mais a motivação oculta deste, seu impulso<br />
satírico, sua graça, nem o sentimento latente da norma atrás de si. Pastiche é<br />
um mimetismo de outros estilos, uma mistura de tendências sem lei ou<br />
princípio, que não têm necessariamente relação consigo mesmas.<br />
Além do fim dos estilos pessoais, os da ridicularização dos maneirismos,<br />
faz parte do pastiche também a nostalgia. A cultura passa a e caracterizar-se<br />
pelo cultivo mórbido do que já passou. Não de trata só da ausência do<br />
componente histórico (visto no sub-item "História"); vive-se o passado por força<br />
da ausência geral e difusa de participação no presente, porque o momento<br />
presente, deslocando o referencial para o agir instrumental-operacional, destilou<br />
todos estes componentes da vida moderna de tal forma que a realidade perdeu<br />
muito de seu charme.<br />
56
A moda funciona como o modelo clássico desta circulação contínua de<br />
signos do passado. Ela é a própria ressurreição espectral de formas "que extrai<br />
frivolidade da morte e modernidade do déjà vu" (Baudrillard). É um tipo de<br />
carroussel do tempo em que os componentes, os estilos, as diferenças<br />
alternam-se de forma infinita recompondo-se em momentos distintos como<br />
caleidoscópios mas sem nenhuma inovação efetiva.<br />
Também são flagrantes na literatura as consequências da cultura<br />
pastiche. É o tempo do artificialismo dos personagens, da dificuldade cada vez<br />
maior de escrever e, na televisão - no produto narrativo das telenovelas - da<br />
produção da "deformação cancerígena do relato" (Requena). A literatura perde<br />
seu eixo preciso e vaga por territórios indeterminados, oscilantes e flutuantes.<br />
Em um mundo em que destituiu-se o herói e sua função épica resta somente<br />
uma pulverização dos atos sociais, dos agentes numa indiferença absoluta do<br />
mundo, do real, das circunstâncias.<br />
O comportamento das pessoas diante das novas formas culturais pósiluministas<br />
é marcantemente de "indiferença". Há como que uma humorização<br />
geral e trabalha-se tudo sem se levar nada a sério. É a cultura da leveza, do<br />
light, do sentido cômico na política, na publicidade, na literatura, nas ciências<br />
humanas, em suma, a produção social de cultura acaba por incorporar um<br />
desprezo cínico que circula no social de forma ampla.<br />
A "cultura do cinismo e da indiferença" é filha da era da chantagem e da<br />
ameaça de explosão do planeta. Após os incidentes históricos de 1945, a<br />
humanidade não mais voltou a ser a mesma; desapareceu a confiança no futuro<br />
e as perspectivas das massas, acirradas com a questão da Guerra Fria,<br />
tornaram-se ainda mais céticas.<br />
O desaparecimento do ontológico, do histórico, do sentido que os<br />
homens davam à vida leva também a que qualquer violência na atualidade<br />
dispa-se do caráter "ideológico". Diferente das violências no passado<br />
(marcadas especialmente pelo traço claramente social, reivindicatório, de luta<br />
de classes) não mais se refere a projetos a ela externos, tornando-se, ao<br />
contrário, violência pura.<br />
Baudrillard, interpretando os incidentes praticados pelos hooligans em<br />
competições esportivas, afirma que esta violência surge da tela, das imagens<br />
idênticas, da castração de todos os componentes explosivos dentro dos meios<br />
de comunicação. Seria produto da ausência de acontecimento, do vazio político<br />
e do silêncio da história. Se tudo isto está morto, o componente vivo que ainda<br />
soçobra neste território é o da violência pura em que espectadores agora<br />
invadem e tomam a cena. Passam a ser eles próprios o espetáculo de uma<br />
cultura veiculada pelos meios de comunicação que já é pura "cultura morta".<br />
57
Alguns monumentos da cultura morta podem ser visivelmente<br />
observáveis. Beaubourg é um dos casos sempre lembrados: reanimação<br />
artificial, "incinerador que absorve energia dos acontecimentos e os tritura"<br />
(Baudrillard). Mas cultura é também, além disso - e pelo que se expôs acima -<br />
sede insaciável de vivência contracenando com máquinas produzindo<br />
simulacros de experiência no campo da generalidade. No território de signos,<br />
que transitam livremente e em escala mundial, sobrevive, quase que por conta<br />
própria, um pulsar desesperado e incontrolável, assim como imprevisível e<br />
inadministrável, de um comportamento das massas.<br />
2. Coletividade interativa<br />
Outro conceito próximo é o da musealização do mundo. Os museus<br />
tornaram-se atração de massas e isto como decorrência da civilização técnica.<br />
Neles, o original deixa de ser o objeto a ser visto e a própria situação é que<br />
passa a encenar originalidade no observador. Se antes havia uma aura, que<br />
dotava a obra de arte de um brilho especial, hoje ela transferiu-se para toda a<br />
cena do museu, onde cultua-se exatamente aquilo que na vida cotidiana<br />
desapareceu, que é exatamente um conceito de vivência estética total.<br />
A coletividade fascina-se por si mesma, a performance é o componente<br />
principal. Cada um sente-se si próprio componente do conjunto que assiste. Na<br />
era eletrônica investe-se no "espírito interativo" em que o indivíduo pode se<br />
transportar à cena e dentro dela viver, inclusive com as mesmas tensões,<br />
angústias e emoções dos personagens originais.<br />
Uma marca clara, por exemplo, dos videogames - e que separa<br />
radicalmente a relação que hoje se tem com eles da que se tinha antes com a<br />
televisão, o cinema, a literatura, o teatro, a dança ou qualquer outra forma<br />
artística - é que neles as pessoas passam a "entrar nos jogos", a vivenciá-los, a<br />
estar ao lado dos heróis e a sofrer com eles os mesmos tipos de pressão, jogo<br />
emocional e angústia. O envolvimento é dentro da cena. Não se está mais<br />
numa posição cômoda e segura de quem apenas assiste, como nas formas<br />
clássicas de arte e comunicação em que, por mais força, emotividade e<br />
penetração que pudesse ter a representação, o espectador era sempre alguém<br />
que estava de um lado enquanto que os atores permaneciam do outro. A<br />
separação, apesar de não material, permanecia clara em todos os momentos.<br />
Aqui, o perigo está também no agir errado, inapropriado, indevido com a<br />
operação eletrônica. Um erro pode causar consequências e nisso o participante<br />
é responsável. Trata-se de uma mudança qualitativa excepcional.<br />
3. O corpo e a morte<br />
A culturalização geral da vida tem também seus desdobramentos nas<br />
formas de sexualidade, nas relações com o corpo e com a morte, pois a<br />
sociedade eletrônica, pela relação que cria com sistemas visuais, operacionais<br />
e interativos, trabalha essencialmente com o psiquismo. Se no chamado<br />
"mundo real" a sexualidade carregou-se de pânico - a chantagem com a aids,<br />
o desvio para práticas masturbatórias - na civilização eletrônica o princípio da<br />
abstratificação do sexo irá estender-se também para outras formas imateriais.<br />
Isso significa que as diferenciações sexuais tornam-se irrelevantes (inversão de<br />
58
estereótipos, sobreindexação artificial de signos distintivos para marcar o ocaso<br />
da diferenciação).<br />
Esta indiferenciação, iniciada nas lutas de emancipação feminina, que<br />
buscavam a equiparação ao homem (ao comportamento masculino) foi<br />
radicalizada pela cultura eletrônica. Ao corpo sexualmente igualado soma-se o<br />
corpo fisicamente reduzido, um corpo que, como em Kafka, torna-se um objeto<br />
estranho ao homem, uma barata.<br />
É uma tendência que foi originalmente apontada por MacLuhan, que via<br />
nos meios de comunicação formas de extensão dos membros e dos sentidos<br />
humanos. Hoje ela ganha importância na medida que os sistemas de<br />
comunicação funcionam como seus substitutos modernos, mais eficientes,<br />
chegam mais longe.<br />
A "mentalização" absoluta dos processos sociais tem a ver com um<br />
desinvestimento do componente físico do corpo. Isso se chocaria,<br />
naturalmente, com a chamada "cultura do narcisismo", o sobreinvestimento<br />
exacerbado na cultura física e/ou estética. Mas, ao contrário, neste caso, os<br />
indivíduos passam a buscar a recuperação nostálgica e fictícia daquilo que foi<br />
culturalmente desinvestido.<br />
Há perda de importância do corpo como espaço de sensações, trocas,<br />
toques, contacto, carícias - isto é, da "cultura para o outro' (para a vaidade, a<br />
inspiração sexual) - e sobreinvestimento nele como máquina, local de<br />
exercitação de "cultura" e transformação em máquina produtiva (equivalente de<br />
uma estrutura maquínica de funcionamento, rendimento, empenho). Corpo,<br />
como um prolongamento maquínico de um cérebro, reduzido a um componente<br />
de circuito eletrônico num processo de comunicação.<br />
A exclusão do componente especificamente humano/animal do espírito<br />
da perfeição técnica elimina, da mesma forma, a consideração da iminência da<br />
morte. Só seres vivos morrem, vivenciam o processo genético de nascimento,<br />
crescimento, multiplicação, envelhecimento e morte; as máquinas e/ou a visão<br />
de mundo maquínica só pode ver homens como equipamentos, sistemas de<br />
ação orientados a fins socialmente relevantes.<br />
Walter Benjamin dizia que há alguns séculos, na consciência de todos, a<br />
idéia de morte perdeu a onipresença e sua força plástica. A sociedade<br />
burguesa alcançou um efeito lateral: subtraiu de seus membros a visão do<br />
processo de morte.(Benjamin,1936,p.70)<br />
Em 1936, quando Benjamin escreveu esse texto, a humanidade ainda<br />
não havia testemunhado a experiência da chantagem atômica. Se naquela<br />
época a idéia de morte havia perdido sua força e sua presença plástica e se os<br />
homens, a visão de seu processo, hoje ela tornou-se onipresente mas com<br />
outro tipo de "força plástica": o trágico é vivenciado por todos mas a morte foi<br />
denegada, age-se como se ela não existisse, entrou no terreno da trivialidade.<br />
Quando a morte perde sua eficácia simbólica, seu efeito de choque, sua<br />
radicalidade sobre a vivência cotidiana, toda a cultura perde, ao mesmo tempo,<br />
o componente trágico (a seriedade). A banalização da morte evoca o<br />
comportamento irônico-humorístico, cínico, que se vê em todos os espaços<br />
outrora tidos como sérios (jornalismo, política, ciências).<br />
59
A recuperação do "ser para a morte"(Heidegger) ou a restituição do<br />
sentido trágico da experiência estão no plano do agir segundo um princípio de<br />
"continuidade no tempo". A civilização da técnica trabalha no sentido do<br />
empastelamento dessas noções. Viver o aqui e agora sobrepõe-se ao existir<br />
para um objetivo.<br />
O humor pós-moderno tem a ver com uma atitude cínica em relação a<br />
esses mesmos fins; toma-se a crise da modernidade, do Iluminismo, da razão<br />
como crise de qualquer possibilidade de ação orientada a fins socialmente<br />
relevantes. A confusão estabeleceu-se porque derrubado o paradigma deste<br />
sentido da ação, acreditou-se que haviam terminado todos os sentidos<br />
possíveis, o que é o mesmo que a barbárie.<br />
A barbárie contemporânea é mais desconfortante porque trabalha com<br />
situações, regras, comportamentos que transcendem os limites do conhecido e<br />
atuam num momento da pós-história. Enquanto não se tem os instrumentos e<br />
meios para se trabalhar esse novo, complexo, nebuloso enredamento de<br />
homens, instituições e idéias, tudo continuará a parecer um imenso amontoado<br />
paradoxal, indescritível e arrasador.<br />
4. O processo econômico<br />
As repercussões da nova forma de organização do social também<br />
fazem-se sentir no campo da economia. Componentes que outrora faziam parte<br />
de um quadro fixo, material, historicamente determinado das relações de<br />
produção entram hoje numa era de flutuações, oscilações livres,<br />
indeterminações, num quadro que poderia ser chamado de "orbitalização<br />
genérica".<br />
Isso já pode ser sentido pelo componente "informação" no processo<br />
econômico. De uma participação relativamente discreta no início da expansão<br />
capitalista, ela ascendeu rapidamente a status cada vez mais decisivos no<br />
processo produtivo. A ela se associa o papel atribuído à inteligência.<br />
No século XIX, a inteligência acoplava-se ao modo de produção,<br />
impondo uma "organização racional do trabalho", instituindo um processo de<br />
mensuração das operações necessárias à produção, criando uma equação de<br />
desempenho máximo e eliminando todos os resquícios de erros, imperfeições e<br />
retardamento que caracterizavam o componente humano nesse processo.<br />
A partir do início do século XX, ela desloca-se do trabalho e passa a<br />
atuar diretamente sobre o produto e a imagem de empresa, através de<br />
mecanismos como publicidade, marketing e formas de "relações públicas". É o<br />
momento em que o capitalismo expande-se em escala mundial, é combatido<br />
pela criação de Estados socialistas e por um forte movimento operário<br />
internacional.<br />
Apesar disso, sua expansão continua mais ou menos inalterada,<br />
atravessando guerras, chegando até o pós-guerra como uma organização que<br />
mesmo reduzindo a nada os componentes de um pensamento liberal,<br />
constituiu-se como forma econômica dominante, monopolista, cartelizada.<br />
Uma terceira fase do uso da inteligência no processo produtivo<br />
reconhece-se agora após o declínio das concorrências no mercado<br />
60
internacional, a fixação e a consolidação de grandes e macroempresas<br />
multinacionais, que passam a investir na inteligência para se firmarem como<br />
instituições sociais equiparando-se e, em alguns casos, substituindo o próprio<br />
Estado e demais instituições de amplo alcance. A inteligência industrial<br />
abandona agora o produto, passando ao trabalho de constituição de imagens<br />
abstratas dos serviços públicos que executa. Estes passam a ser o "benefício<br />
social" de sua existência enquanto empresa para a obtenção de lucro, quando o<br />
Estado retira-se progressivamente de cena.<br />
Trata-se de uma crescente volatização do objeto, no qual a inteligência<br />
investiu durante a expansão e consolidação do capital. Mesmo este, sofre um<br />
desdobramento mais ou menos similar, na medida em que também desacoplase<br />
do processo produtivo e passa a funcionar como componente abstrato de<br />
toda a produção. É o momento em que desprende-se do trabalho, da produção,<br />
da geração pura e simples do lucro para tornar-se uma espécie de lógica ou<br />
ordem hegemônica, difusa sobre todo o sistema.<br />
O processo é caracterizado por "circulação frenética", e os capitalis<br />
giram, proliferam, multiplicam-se apenas pelo fato de estarem circulando.<br />
(Baudrillard, 1986, p.18). Sobre nossas cabeças, capitais e demais<br />
componentes macro-sociais planetários escapam à nossa realidade. (idem). A<br />
economia como um todo torna-se orbital; a informação funciona como seu<br />
veículo preferencial. Ao lado disso, como já apontado, a própria cultura, que<br />
estava ancorada em processos sociais determinados, histórica e<br />
geograficamente situados, torna-se uma espécie de desdobramento social geral<br />
da estrutura do capital. Ela própria se torna seu "lado humanizado".<br />
O investimento maior das empresas já não está mais na qualidade, na<br />
marca, muito menos na utilidade de suas próprias mercadorias, mas<br />
exatamente na construção da abstração pura. A imagem publicitária, a imagem<br />
formada através do trabalho de marketing, de relações públicas orienta-se para<br />
a constituição de núcleos genéricos e difusos em torno do nome de empresa.<br />
Tudo sugere que a própria produção, pelo fato de funcionar por si mesma,<br />
independente da necessidade de novos investimentos, abre mão do interesse<br />
principal do grande capital para investir no plano do imaginário puro. É a<br />
engenharia de imagens, estilos, representações que passam, estes sim, a<br />
serem produtos propriamente.<br />
Mas o processo de volatização e de flutuação indeterminada não atinge<br />
somente o capital e a produção. O deslocamento do eixo de importância do<br />
homem para os sistemas técnicos tem seu reflexo também na própria estrutura<br />
da produção em que a robotização, a mecanização, a automação contribuem<br />
para que a estrutura industrial seja progressivamente assumida por organismos<br />
e equipamentos eletrônicos. É a máquina que funciona por si mesma. A<br />
metáfora aplica-se tanto à unidade produtiva propriamente dita como ao<br />
aparelho de Estado e demais instituições sociais.<br />
Trabalhar nesta unidade industrial deixa de ser, do ponto de vista do<br />
trabalhador, uma relação de reciprocidade em que um produtor precisa contar<br />
com uma parcela de mão-de-obra para dar conta do produto e o trabalhador<br />
necessita do pagamento das horas-trabalho efetivamente gastas (salário) para<br />
sobreviver. Trabalhar e receber salário tornam-se componentes místicos do<br />
sistema, espécie de ingresso, senha, para poder mesmo "entrar no mundo" do<br />
61
consumo e das mercadorias. O trabalho na era da técnica torna-se uma<br />
concessão.<br />
A trama que se cria na sociedade da técnica e da sofisticação eletrônica<br />
é tal que os elos que ligam indivíduos entre si passam a ser igualmente<br />
abstratos. Da mesma forma que não se tocam, não se sentem fisicamente,<br />
outros componentes do processos social de produção igualmente<br />
"espiritualizam-se". As operações financeiras são realizadas através de todo um<br />
conjunto de mecanismos abstratos e em geral puramente verbais; somas de<br />
dinheiro, trânsito, compra e venda de moedas, de bens financeiros executam-se<br />
plenamente e bem à distância. A moeda, que já havia perdido seu lastro<br />
material na equivalência ouro através do papel-moeda e depois mais ainda com<br />
o cheque, torna-se ainda mais abstrata nas operações com cartões de crédito<br />
eletrônicos e com transações em que o dinheiro praticamente não aparece.<br />
Apenas sua circulação é sentida. É um processo virtual exatamente porque de<br />
fato não existe mas demonstra seus efeitos.<br />
Esse mecanismo alucinante de girar no vazio atravessa todos os<br />
componentes da economia. Os entrelaçamentos das grandes corporações, o<br />
funcionamento autônomo da máquina produtiva, as formas de propriedade<br />
pulverizadas ou emaranhadas em múltiplas organizações que se entrecruzam<br />
dentro de um mesmo conglomerado demonstram, por sua vez, que o esquema<br />
antigo e original de um capitalista ou de uma família proprietária de uma<br />
empresa desaparece através da volatização de todo o regime de propriedade.<br />
As empresas como as instituições sociais clássicas tornam-se espécies de<br />
"bens comuns" apesar do regime de propriedade dita privada.<br />
O lucro sobrevive como condição inerente de todo o processo de<br />
produção mas dilui-se enquanto componente explosivo da relação capitaltrabalho.<br />
Torna-se um fato "natural", discretamente disseminado em todos os<br />
sistemas produtivos como uma espécie de componente necessário de sua<br />
própria existência. O valor, que originalmente encontrava-se agregado à própria<br />
mercadoria e que era mensurável pelas horas-trabalho despendidas e pela<br />
qualidade da mão-de-obra necessária à sua produção, da mesma forma como<br />
já se sentia época do capitalismo concorrencial, desagrega-se dos<br />
componentes materiais.<br />
Não haveria mesmo porque o processo produtivo manter-se preso a<br />
padrões materiais, a um enraizamento na cultura, na sociedade numa época em<br />
que as transformações sociais, a velocidade, a volatização, a abstratificação<br />
dos fatos através da informação revolucionaram radicalmente o quadro social.<br />
Também a economia torna-se muito mais estratosférica, virtual, imaginária,<br />
orbital, como uma espécie de sangue circulante num organismo planetário<br />
genérico e difuso, no qual os homens têm acesso indireto e periférico.<br />
O sistema gira, o fundo econômico internacional distribui-se por diversas<br />
economias do planeta e seu gerenciamento significa nada mais do que a<br />
confirmação da própria ordem internacional de poderes e privilégios, que se<br />
eterniza através do sistema técnico-informacional da atualidade. Tudo funciona<br />
como uma regra de dependência e interrelações múltiplas em que todos estão<br />
necessariamente envolvidos.<br />
O fato de algumas nações ascenderem e outras decaírem em sua<br />
posição dentro do sistema internacional não significa de forma alguma alteração<br />
62
importante no funcionamento desse sistema, mas um deslocamento, uma<br />
comutação de posições como as do jogo de xadrez que, em última análise,<br />
estão presas e submetidas a regras fixas e a limites espaciais determinados.<br />
63
PARA ONDE VAI O HOMEM<br />
1. Teorias e estratégias<br />
Terceira Parte<br />
1.1. Corrente histórico-humanista, voluntarista<br />
1.1.1. A esquerda hegeliana<br />
É a corrente a mais diretamente herdeira do pensamento iluminista, cujo<br />
marco teórico está na filosofia idealista clássica, especialmente em Kant, Hegel<br />
e Marx. A lógica dominante é a da dialética, o valor básico funda-se no<br />
humanismo e a perspectiva estratégica centra-se no sujeito histórico, capaz de<br />
atuar sobre o socius e alterar a situação histórico-social dada na direção da<br />
construção da utopia terrena. A proximidade com o pensamento religioso não é<br />
casual. Em Hegel, a realização da história está na consecução do princípio da<br />
Idéia. Marx opera o que chamou da "inversão hegeliana", quando ao desvirar<br />
Hegel, que estaria de ponta-cabeça, passa a afirmar que não é das idéias que<br />
surgem os desenvolvimentos histórico-sociais mas estes, ao contrário, é que<br />
produzem as idéias e o social, ou seja, a superestrutura.<br />
O traço religioso aparece ainda de outra forma, através das proposições<br />
históricas. A história aparece como "redenção", salvação de toda uma classe<br />
social oprimida e marginalizada, que vai encontrar seu paraíso na sociedade<br />
futura comunista. Os princípios filosóficos que orientam a ação e a ética deste<br />
tipo de visão de mundo são a alienação, a repressão, a dominação. O<br />
pensamento marxista desdobrou-se em duas vertentes principais que foram o<br />
materialismo dialético e o materialismo histórico. O primeiro, que encontrou sua<br />
experimentação e realização efetiva no plano da história soviética, estava<br />
muito mais voltado para a implantação de um Estado socialista e teve em Lênin<br />
seu representante mais importante. O segundo, em que a filiação em Hegel e à<br />
esquerda hegeliana é mais evidente, encontrou seu representante principal no<br />
jovem Lukács, que nos anos 20 desenvolve a oposição teórica à orientação<br />
socialista da ordotoxia soviética.<br />
Em Georg Lukács reaparecem os princípios filosóficos desenvolvidos por<br />
Marx em sua fase jovem e os conceitos mais próximos aos Manuscritos<br />
econômicos e filosóficos. Dele irão se desenvolver os estudos teóricos mais<br />
fecundos da intelectualidade européia de lingua alemã da primeira metade do<br />
século, a chamada Teoria Crítica da Sociedade, que, de um lado influenciada<br />
pelo pensamento de Freud e, de outro, pelo pensamento hegeliano, vai compor<br />
aquilo que mais tarde caracterizaria a crítica ao Iluminismo e aos<br />
desdobramentos da técnica, como a repressão e a dominação especialmente<br />
no pós-guerra.<br />
A época do pós-guerra foi marcante também para a "guinada" teórica do<br />
próprio Lukács, que passou a se alinhar de forma radical e ortodoxa ao<br />
pensamento stalinista, fato não acompanhado pelos seus originais seguidores.<br />
64
O pensamento marxista deste início da segunda metade do século teve<br />
como teóricos mais importantes, dentro da vertente humanista, além dos<br />
reminiscentes da Escola de Frankfurt, Jean-Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty<br />
e Henri Lefèbvre. Isso porque, a partir dos anos 50, na própria França iria se<br />
originar a ruptura dentro do pensamento teórico, inclusive entre os marxistas,<br />
dando origem ao pensamento estruturalista, que produziria seu próprio corpo de<br />
pensadores.<br />
De qualquer forma, os descendentes de Lukács terminariam como os<br />
teóricos de Frankfurt, sem deixar herdeiros. A esquerda freudiana, que teve<br />
como principais representantes nos anos 20 Bernstein, Reich, Fromm e<br />
Bernfeld (cf. estudo detalhado em Marcondes, 1988b), e que teve como figuras<br />
proeminentes nos anos 40 e 50, da mesma forma, os teóricos de Frankfurt,<br />
resultaria nos anos 70 e 80, numa nova corrente, já despida dos vícios da<br />
psicanálise da cultura e do consumo, ingênua ou incapaz para dar conta dos<br />
desdobramentos do capitalismo avançado de pós-guerra. Essa corrente é hoje<br />
liderada por Alfred Lorenzer. É ele que vai dividir nos anos 80 com Jacques<br />
Lacan a proeminência no cenário internacional da psicanálise de esquerda. Se<br />
a contemporaneidade tem dois seguidores fundamentais do pensamento de<br />
Freud, que souberam avançar e atualizar sua teoria, estes são Lorenzer e<br />
Lacan. Ao grupo de Lorenzer pertencem também Helmut Dahmer e Klaus Horn.<br />
Em relação aos representantes da Teoria Crítica, seu desenvolvimento<br />
iniciou-se a partir dos anos 30 na República de Weimar. Depois do exílio nos<br />
Estados Unidos e, mais tarde, de volta à Alemanha, seu pensamento<br />
concentrou-se na sociedade de pós-guerra e na expansão fantástica dos meios<br />
de comunicação e nas formas sofisticadas de repressão e domínio. A Teoria<br />
Crítica passou a trabalhar em profundidade conceitos como repressão,<br />
totalitarismo e mundo administrado. Desenvolveu estudos sobre a sociedade de<br />
consumo, as formas de manipulação e consciência manipulada. Criticou o<br />
posicionamento, na opinião de seus teóricos, submisso de toda uma grande<br />
faixa de classe média, que assumiria uma postura de "consciência feliz" dentro<br />
de sua ignorada infelicidade nas malhas de um sistema de dominação injusto e<br />
frustrante.<br />
No que diz respeito aos meios de comunicação, desenvolveram mais<br />
densa e amplamente a reflexão e a teorização sobre os novos processos de<br />
industrialização do bem cultural e de reificação da cultura, em que os objetos do<br />
homem passaram a se tornar seus senhores. Foram os primeiros a questionar,<br />
mesmo antes do desenvolvimento do estruturalismo, as possibilidades de um<br />
ego forte, como pretendia a psicologia do ego, especialmente de Karen Horney<br />
nos Estados Unidos, como sendo uma ilusão conciliatória do homem com o<br />
meio hostil.<br />
A rejeição ao desenvolvimento da técnica e seus desdobramentos como<br />
formas de opressão e de desconhecimento do homem enquanto tal seria<br />
realizada por Herbert Marcuse de forma radical. Se Adorno e Horkheimer<br />
haviam desenvolvido as teses mais contundentes da teoria crítica dos anos 40<br />
e 50, é no final dos anos 60 que a efervescência estudantil e política nas<br />
sociedades capitalistas mais avançadas destacariam a figura de Marcuse,<br />
especialmente em território norte-americano.<br />
65
Na Alemanha desponta também nessa época e pela primeira vez, o<br />
nome de Juergen Habermas, tido como um fruto tardio desta mesma escola e<br />
cujo desenvolvimento da fase madura correspondeu a uma ruptura com a<br />
tradição clássica desta mesma escola.<br />
Há que se considerar também, antes de se fazer um comentário mais<br />
intensivo da obra de Habermas, outra corrente alemã moderna - que teve sua<br />
produção marcada especialmente nos anos 70 e 80 em Berlim junto à revista<br />
Aesthetik und Kommunikation e cuja posição teórica rompe com o<br />
pensamento clássico de Frankfurt e de seus seguidores mais modernos,<br />
especialmente Oskar Negt, Alexander Kluge e Dieter Prokop - a saber, o grupo<br />
em torno de Eberhardt Knoedler-Bunte (já mencionado na Segunda Parte,<br />
"Coletividade interativa") cuja visão tende a uma nova captação do social como<br />
um processo que transcende um campo específico da realidade para se tornar<br />
uma dimensão que cobre e alinhava todas as demais definições do social. O<br />
conceito de sociedade cultural é a ruptura com os conceitos tornados<br />
clássicos pela Teoria Crítica, como indústria cultural, indústria da consciência<br />
(Hans Magnus Enzensberger).<br />
Mais ainda, esse grupo passa a refletir radicalmente as possibilidades<br />
individuais e coletivas numa realidade que passou a ter que conviver com a<br />
chantagem nuclear. Esta variável, de forma nenhuma secundária ou<br />
descartável, não estava presente nos teóricos de Frankfurt e não aparece com<br />
destaque na teoria de Habermas.<br />
1.1.2. A teoria de Juergen Habermas<br />
A proposta formulada pelo autor alemão, apresentada de forma muito<br />
resumida, significaria a recuperação da razão onde ela desviou seu<br />
desenvolvimento e a retomada da comunicação, ou seja, da fala, eliminando as<br />
barreiras que a impedem de se expandir plenamente. Para Habermas, a razão<br />
é um conceito que não está inutilizado do ponto de vista histórico e estratégico;<br />
deve-se encontrar uma maneira de melhor distribuí-la. Para isso é preciso que<br />
se repense as formas de uso da razão e as possibilidades de manifestação dos<br />
sujeitos na sociedade. Esse processo supõe uma nova estratégia que já não<br />
tem mais nada a ver com a filosofia da consciência - ou seja, a teleologia<br />
clássica cujos representantes principais eram Lukács e Adorno - tampouco com<br />
a filosofia do sujeito autoconsciente de Marx, que havia chegado a uma aporia.<br />
Para Habermas, a saída do dilema encontra-se na mudança do<br />
paradigma filosofico hegeliano clássico para o linguístico, o da ação<br />
comunicativa e do mundo vivido, articulado como sistema. A nova proposta<br />
epistemológica baseia-se em dois clássicos da sociologia não-marxista: Émile<br />
Durkheim e G.H. Mead.<br />
De Durkheim, Habermas extrai dois componentes fundamentais. O<br />
primeiro é o fato de que a integração social deve ser vista com o algo<br />
necessariamente associado à integração sistêmica. Não existe uma percepção<br />
de mundo subjetivo, próximo, marcado pelas relações sociais diretas e<br />
palpáveis, sem a vinculação deste com um processo maior, despersonalizado,<br />
impessoal. Em segundo lugar, de Durkheim Habermas extrai também a<br />
66
concepção de força do mundo sagrado. É deste mundo que se origina a<br />
autoridade moral das normas sociais. Por derivação, o autor alemão irá buscar<br />
exatamente aí uma espécie de "reserva cultural e tradicional dos indivíduos",<br />
que poderia torná-los capaz de fazer frente a uma imposição racionalizante e<br />
massificante de um sistema anônimo.<br />
De G. H. Mead, Habermas vai obter a estratégia comunicativa. É dele a<br />
idéia de que o discurso garante o processo de individuação. No processo<br />
comunicativo é que se instaura a possibilidade de espaços recíprocos de autoreprodução<br />
e de empatia. Uma comunidade ideal de comunicação é aquela<br />
onde há identidade de indivíduos no universal e no particular. A comunicação,<br />
portanto, pode funcionar, segundo ele, como uma espécie de ligação, mediação<br />
entre os interesses e as possibilidades individuais e sua realização no plano<br />
macro-social.<br />
Está nestes dois autores, portanto, a fonte para a construção de uma<br />
nova postura teórica, segundo ele, mais adaptada aos tempos atuais e que<br />
trabalha pela reconstituição de algo que ficou perdido no desenvolvimento da<br />
razão.<br />
Indo mais a fundo nas intenções de comunicação, Habermas interessase<br />
por lingüistas norte-americanos, em especial, Austin e Searle, e pela teoria<br />
dos atos da fala, que irá servir de suporte aos seus próprios projetos de<br />
comunicação. Esta teoria assinala que a fala é marcada por dois componentes<br />
básicos, o conteúdo proposicional e a força ilocucionária.<br />
A teoria argumentativa de Habermas tem dois planos distintos. Um, o da<br />
racionalidade comunicativa e outro, o dos próprios princípios da argumentação.<br />
A primeira refere-se a uma força racional-comunicativa vinculante, que advém<br />
de atos ilocucionários em virtude de um sistema de conexões com razões e<br />
na possibilidade de um reconhecimento intersubjetivo, baseado na convicção<br />
racional e não na força. Diz ele, que a dissolução do núcleo arcaico-normativo<br />
dá lugar a uma imagem de mundo, à universalização do direito e da moral e à<br />
aceleração dos processos de individuação.<br />
É possível através disso, portanto, que os indivíduos ainda se<br />
constituam como sujeitos. Para isso, é preciso que reconquistem a dimensão da<br />
comunicação, obtível por este conhecimento intersubjetivo de que fala o autor,<br />
a partir de um processo de entendimento mútuo em que os interlocutores<br />
reconheçam-se como indivíduos válidos e dignos da consecução do próprio<br />
projeto.<br />
Habermas é iluminista na medida em que vê o desmoronamento dos<br />
processos sagrados, sua "deslinguistização", como um mecanismo capaz de<br />
tornar os indivíduos, a partir daí, autônomos, e, por este meio, conquistarem um<br />
espaço de relevância no social. Sua teoria da argumentação é marcada por<br />
quatro requisitos de validade na linguagem e pelos objetivos que se deve<br />
considerar para o atingimento desses fins:<br />
A inteligibilidade (compreensão), definida como o conhecimento prévio<br />
anterior que os interlocutores devem possuir para obter entendimento; a<br />
verdade, ou a aceitação da validade do regime de verdade do sistema sóciocultural;<br />
a autenticidade, apresentada como a questão das "intenções dos<br />
atores", que devem coincidir com o que eles "realmente pensam". Aqui situa-se<br />
67
o problema ético da sinceridade e da retidão. Não há regras universais e os<br />
componentes do acordo são puramente convencionais.<br />
Por fim, a justiça, que trata da correção do ato da fala em relação ao<br />
contexto normativo. Os atores, neste caso, devem ter elementos para poder<br />
avaliar, discernir entre normal e patológico, real e imaginário, ser e aparência.<br />
Em todos esses princípios, a estragégia do autor, que representa a<br />
resposta alemã às exigências de uma ação dentro de uma sociedade<br />
caracterizada por influências radicais e altamente transformadoras das novas<br />
tecnologias de comunicação, está marcada pela esperança de um reeguimento<br />
da razão. Em algum ponto, o desenvolvimento da racionalidade desviou-se do<br />
caminho e tendeu à racionalidade com vista a fins (Zweckrationalitaet, de<br />
Weber), e ao desencanto universal.<br />
É preciso, segundo Habermas, recuperar a razão e isto se daria através<br />
do entendimento entre os homens. É a estratégia de bom senso, em que os<br />
agentes voltariam a repensar seus planos e projetos a partir de uma postura<br />
representada pela dotação de autonomia e capacidade de intervenção de<br />
homens historicamente localizados.<br />
1.2. Corrente estruturalista<br />
Originária da França de meados dos anos 50, a corrente estruturalista<br />
aparece como uma reação à visão humanista e voluntarista da história e dos<br />
processos sociais. Tenta corrigir a interpretação do mundo até então marcada<br />
pelo forte investimento no sujeito. Contrariamente, desloca o sujeito a um plano<br />
secundário e torna as estruturas o centro de referência das análises e<br />
interpretações. Instala a imperiosidade dessas mesmas estruturas e, segundo<br />
seu princípio, importa saber como a máquina, o mecanismo funciona.<br />
As corrente historicista tinha caráter genético, interpretava os fatos a<br />
partir de seu desenvolvimento e transformação, tomando por base uma postura<br />
evolucionista de inspiração dialética. Aqui, ao contrário, não vêm mais ao caso<br />
as determinações de natureza nem importam as projeções futuras mas apenas<br />
os componentes fixos, como eles são e estão.<br />
O estruturalismo tem origem na França e assinala uma ruptura no<br />
desenvolvimento intelectual, antes fortemente marcado pela tradição hegeliana<br />
( o responsável pela disseminação de Hegel na França havia sido Kojève, que<br />
na década de 30 passou seus conhecimentos a alunos como Klossowski,<br />
Bataille, Lacan, além de um significativo grupo de intelectuais de esquerda).<br />
Inicia-se com o ingresso de Claude Lévi-Strauss no College de France e,<br />
posteriormente, com a criação da revista Tel Quel, e seu desdobramento<br />
literário no Nouveau Roman de Alain Robbe-Grillet. Principais figuras dessa<br />
orientação teórica foram o próprio Lévi-Strauss, Rolan Barthes, Michel Foucault,<br />
o primeiro Jean Baudrillard, Louis Althusser e, de certa forma, Jacques Lacan.<br />
Se conforme os princípios literártios do Nouveau Roman, os objetos<br />
passavam a adquirir status de autonomia, o sujeito da ação desaparecia,<br />
operava-se uma recusa da continuidade cronológica clássica e descartava-se a<br />
metáfora antropológica, na psicanálise lacaniana, o homem deixava de ser o<br />
próprio centro, não organizava seu destino, que, ao contrário, era já traçado de<br />
68
antemão pelo Outro: o lugar organizado como teia estruturante do sujeito.<br />
Constituindo-se como sujeito dividido, o homem experimenta uma "perda<br />
essencial de si mesmo", cria uma máscara, passa a ser representado, traduzido<br />
em termos linguísticos.<br />
Lacan separa na história individual do infans um momento marcado pelo<br />
domínio do imaginário e outro, em que o infans acede ao mundo social dado<br />
através da linguagem, portanto, no território do simbólico. A partir daí, torna-se<br />
um sujeito "clivado", já que assume uma natureza que é dada externamente<br />
pelo Outro e guarda a instância do imaginário como um território perdido.<br />
As estratégias políticas e teóricas de filiação lacaniana investem no<br />
simbólico ou no imaginário. No primeiro, a figura mais conhecida do<br />
pensamento político é Louis Althusser, que tenta fazer uma fusão entre<br />
marxismo e psicanálise e colocar em prática seu projeto através de uma<br />
releitura d'O Capital, de Marx. Sua interpretação supõe a exclusão de todos os<br />
componentes historicistas que até então haviam composto a interpretação<br />
marxista européia, apresentando uma leitura interna do texto de Marx, de<br />
forma a justificar que este, na idade madura, não era mais hegeliano e havia<br />
mesmo rompido com Hegel, passando a analisar, a partir de então, nos moldes<br />
estruturalistas.<br />
Sua veemência maior está em deslocar a posição clássica do sujeito no<br />
marxismo; para ele, os homens não fazem a história, isto é, a história não é<br />
feita por homens singularmente situados mas por classes sociais ou, mais<br />
precisamente, pelas próprias "relações de produção". Seria ingênuo, dizia ele,<br />
acreditar que pelo trabalho de homens, através de sua força conjunta<br />
organizada e consciente, se pudesse revolver ou transformar a história.<br />
O erro de Althusser, entretanto, estaria na inexorabilidade da sociedade<br />
sem classes como desdobramento necessário da própria sociedade capitalista.<br />
Contra o fatalismo historicista de Lukács, que dizia que a sociedade de classes<br />
estava grávida de sua própria superação na sociedade sem classes, Althusser<br />
contraargumentava a implantação de uma sociedade socialista como uma<br />
estrutura que se sobrepunha à do capital.<br />
Outra derivação do pensamento lacaniano, agora através da exploração<br />
do imaginário, é de Félix Guattari e Gilles Deleuze, que tentam reencontrar a<br />
natureza humana através da investigação da condição psíquica pré-simbólica,<br />
isto é, do estágio do homem ainda não ocupado pelo discurso social e genérico.<br />
Esta fase é apreensível através do discurso do psicótico, cuja manifestação<br />
seria o puro inconsciente. O esquizofrênico, como um caso clínico de regressão<br />
à fase pré-simbólica, permitiria o pleno afloramento deste campo até hoje tão<br />
desconhecido e supreendente do imaginário.<br />
Mais genuinamente político dentro da escola lacaniana é Cornelius<br />
Castoriadis, que através da sua Instituição imaginária da sociedade propõe,<br />
superando os vícios e as formas ultrapassadas do marxismo clássico, uma<br />
releitura do social e do sujeito nele inserido. Para ele, a categoria fundamental<br />
desse próprio sujeito é a da autonomia. Através dela, "meu discurso deve tomar<br />
o lugar do discurso do Outro", ou seja, deste discurso estranho que está em<br />
mim e que me domina". (Castoriadis, 1975,p.124)<br />
69
Trata-se de dar condições ao homem para sobrepor-se ao discurso<br />
social e genérico ou a este "lugar estruturado como teia", para não se deixar<br />
dominar pelos fantasmas. Sobrevive, portanto, na estratégia estruturalista,<br />
especialmente nestes que acreditam no investimento no imaginário, a<br />
possibilidade de que homens concretos possam superar o conjunto maior<br />
apesar da força e da determinação deste sobre suas vidas.<br />
1.3. Corrente pós-moderna<br />
Embora derivado essencialmente do estruturalismo, o pós-modernismo<br />
rompe também com esse modelo. Não há mais sujeito que se autonomize mas<br />
a crença num homem enfraquecido, ainda que em alguns autores, passível de<br />
uma identidade.<br />
O modelo mais sintético desta visão de mundo está na Sociedade<br />
Frankenstein, já exposto no início da Segunda Parte (3º paradigma de Lucien<br />
Sfez) e no item "Teoria em ruinas: Nova teoria da comunicação".<br />
Há aqui tanto os estusiastas (norte-americanos) das novas tecnologias<br />
de comunicação e informação, dos computadores, da inteligência artificial, da<br />
capacidade de máquinas ocuparem o lugar de homens, como os críticos (em<br />
geral, europeus) da supremacia técnica.<br />
O "novo homem" é um tipo plenamente integrado à máquina. O exemplo<br />
mais esclarecedor está na cultura dos hackers nos Estados Unidos, os<br />
programadores cuja vida toda é orientada conforme a centralidade no<br />
computador. Cultura, filosofia, literatura, mundo de vida próprios os mantêm<br />
apartados do resto da sociedade mas ligados visceralmente à máquina.<br />
A Sociedade Frankenstein é marcada pelo investimento no superficial,<br />
na crença no imprevisível, no indeterminado. Instala-se a perda das referências<br />
filosóficas clássicas - datada da modernidade - na filosofia, na arte, na política,<br />
na história, nas ciências humanas, ficando em seu lugar uma precedência da<br />
técnica, um uso instrumental da ciência, o domínio amplo e genericamente<br />
abrangente dos meios de comunicação, que passam a recontar e a reordenar a<br />
história, a política e a cultura. Como já mencionado, o sujeito se fractaliza e o<br />
comportamento é cínico, indiferente, autocentrado. As fontes principais são<br />
Nietzsche, Heidegger e Weber.<br />
As estratégias deste terceiro tipo de paradigma são diferentes de autor<br />
para autor. Jean Baudrillard propõe a ressurreição do princípio do Mal (a ordem<br />
existe para ser desobedecida), a crença no gênio maligno das massas, dos<br />
objetos, da paixão. Para ele, toda estrutura que exorcisa sua negatividade corre<br />
o riso de reversão total; é no Mal que está a vida.<br />
A concepção de Mal aqui tem caráter difuso, genérico e destituído de<br />
conotação negativo-moral que geralmente lhe é atribuída. Por exemplo, a<br />
sedução. Esta investe contra o terror e a violência da interpretação, que<br />
marcaram não somente o princípio e as primeiras manifestações teóricofilosóficas<br />
do Iluminismo mas em particular a psicanálise a as ciências sociais<br />
contemportâneas. Tratava-se de fazer uma leitura do psíquico ou do social,<br />
conforme o caso, enquadrando-os dentro de uma lei maior, que dava ou não<br />
70
autoridade ao fato estudado, na medida em que correspondesse a este<br />
princípio da lei maior.<br />
Em oposição a isso, a estratégia da sedução aponta que a jogada<br />
verdadeira está no domínio das aparências; não há o campo das<br />
profundidades, não há o jogo entre uma aparência falsa e enganosa e uma<br />
essência que estaria em seu fundo, obscura, desonhecida. Não há a estratégia<br />
do desvelamento. É na aparência, ao contrário, que as coisas se dão e é só ela<br />
que contém as leis desses mesmos fatos. É o espaço do jogo, das cartadas, da<br />
paixão pelo desvio. (Ver, com mais detalhes, em: 3. Os conceitos da Era<br />
Frankenstein, 2. Superfície).<br />
Através deste procedimento, Baudrillard procura destituir de qualquer<br />
validade as tentativas de homens, classes, agrupamentos, nações, de<br />
controlar, de administrar os fatos, de tentar subordiná-los a visões de mundo,<br />
em suma, de a razão sobrepor-se aos fatos legitimando-os ou não conforme<br />
seus princípios. Ao contrário, os fatos em si ocorrem independente do desejo<br />
dos homens e têm dinâmica própria e incontrolável. São realizadores das<br />
"estratégias irônicas", não se subordinando às aspirações controladoras da<br />
razão e rindo-se de qualquer investida da dominação racional. São as massas,<br />
o objeto, a paixão.<br />
As massas realizam, de forma mais ou menos espontânea, sem direção<br />
ou programação externa, o humor silencioso, ludibriando as estatísticas, não<br />
desejando, delegando o exercício do poder, exercendo assim uma soberania<br />
passiva, opaca. Apesar dos políticos, dos meios de comunicação, dos estudos<br />
"científicos" de seu comportamento, elas mantêm-se incaptáveis,<br />
improgramáveis, imprevisíveis e por isso soberanas.<br />
Também o objeto, que os homens tentam apropriar e submeter às suas<br />
leis, exerce, segundo ele, também uma estratégia irônica, e se comporta<br />
independentemente em relação àquilo que lhe queiram imputar. Reage, rebelase,<br />
nega o homem e afirma-se enquanto autonomia cínica aos investimentos do<br />
aprisionamento e da domenticação.<br />
O saber científico não passa de uma construção fictícia e o homem<br />
investe seu objeto exatamente daquilo que ele lá quer ver. Imune a isso, o<br />
objeto trapaceia, vinga-se, "faz o jogo" do pesquisador, impondo no silêncio de<br />
sua superioridade, a sua vontade.<br />
A paixão está, como a sedução, no extremo oposto da pornografia e do<br />
erótico. Enquanto num só há o obsceno, o desvendamento frio, absoluto, o<br />
congelamento e a morte do sexo, no outro há a surpresa, o inefável, o<br />
inesperado, a ruptura da viciosidade e do esvaziado.<br />
Jean-François Lyotard, que primeiro sintetizou, difundiu e tornou moeda<br />
corrente universal a "condição pós-moderna", retoma, na obra seguinte,<br />
L'Inhumain, positivamente os destinos da modernidade. Se pós-modernidade<br />
havia sido o desmoronamento dos metarrelatos, o fim da possibilidade de uma<br />
ciência marcada ou legitimada por um discurso filosófico e político maior, cabe<br />
agora nesta obra, segundo ele, repensar as condições da própria modernidade.<br />
71
Pós-moderna aqui torna-se a reescrita das características reinvindicadas<br />
pela modernidade; não rompe com ela, já que é seu "fruto tardio". Nessa<br />
reescrita, exclui-se a pretensão de basear a legitimidade da ciência e da técnica<br />
no projeto de emancipação da humanidade. Para ele, há uma continuidade<br />
possível da modernidade através da "perlaboração" (Durcharbeiten), que é um<br />
trabalho sem fim e sem vontade. Não se está aqui sendo guiado por um<br />
conceito de meta; não obstante, sua perlaboração não deixa de ter finalidade.<br />
(Lyotard, l988,p.39). Ele coloca-se aqui naturalmente também contra a posição<br />
de Gianni Vattimo, que fundamenta a pós-modernidade dentro da postura<br />
nietzschena, como algo genuinamente distinto, ou seja, não como superação da<br />
modernidade já que "superação" era uma categoria da extinta modernidade.<br />
O projeto moderno, diz ele, diferente do mito, não funda sua legitimidade<br />
no passado mas no futuro. Não se trata de projetar a emancipação humana<br />
mas de projetar o futuro como tal. O que se tem aqui, assim, é uma recusa às<br />
propostas finalistas e humanistas que estavam embutidas no conceito de<br />
modernidade. Não há mais uma utopia a se atingir mas, mesmo assim, há um<br />
trabalho a se realizar com vistas a um futuro. Desaparece o apoio no passado,<br />
a força sustentadora dos pensamentos de outras épocas. A noção de projeto,<br />
associada a um fim histórico determinado, é deixada de lado em defesa de uma<br />
noção de "programação".<br />
Não obstante, outra corrente ganha cada vez mais corpo nas ciências do<br />
homem. Derivada diretamente dos centros de pesquisa mais avançados em<br />
"inteligência artificial" nos EUA, seus teóricos espelham fielmente os<br />
pressupostos de uma Sociedade Frankenstein em que as máquinas, por fim,<br />
substituirão o homem em tudo, inclusivwe no pensar e no agir. Os robôs, cada<br />
dia mais sofisticados, comporiam, segundo eles, uma geração de supermáquinas,<br />
cuja perfeição se sobreporia aos humanos.<br />
Contra esses "novos filósofos" argumenta Lucien Sfez com base no bom<br />
senso e no senso comum. Para ele, não se pode acreditar nem seguir as<br />
propostas futuristas dos teóricos da inteligência artificial - cuja intenção de<br />
programar o homem é fazer com que todas as atividades humanas tornem-se<br />
passos, estágios de um processamento eletrônico-cibernético -, pois jamais<br />
darào certo, exatamente por não considerar dois componentes absolutamernte<br />
humanos nas ações e nas decisões, o bom senso e o senso comum.<br />
É pelo bom senso que os indivíduos sabem selecionar no que é<br />
oferecido aquilo que lhes pode servir e deixar o resto às fantasias dos sábios,<br />
intelectuais e poderosos. A aliança homem-máquina-homem, mesmo<br />
momentânea e servindo ao bem-estar atual, pode muito bem ser denunciada<br />
enquanto tal.<br />
Por outro lado, é o senso comum que desafia as decisiões desses<br />
mesmos sábios. É aquele "não bem escandido" que está exatamente nos<br />
campos que fogem às programações, previsões e controles. A conversação<br />
ordinária, por exemplo, é o que põe obstáculo à linguagem artificial; é no<br />
exercício da língua e da fala que é possível a rejeição desse universo. Junto<br />
com a lingua falada e as instituições há o espaço para a interpretação como<br />
territórios em que se pratica o exercício da recusa pura e simples da<br />
submissão.<br />
72
Apesar da aparente semelhança, não há aqui nenhuma proximidade com<br />
a proposta da primeira estratégia, a habermasiana, de constituição de uma<br />
teoria do agir comunicativo. Lá buscava-se a restituição de um discurso racional<br />
por homens que se respeitassem como sujeitos, buscando pelo consenso<br />
formas comunicacionais contra a imperiosidade abstrata e burocrática do<br />
sistema. Aqui não há qualquer alusão à restituição da esfera pública, da<br />
racionalidade perdida, muito menos do projeto de modernidade. A lingua falada<br />
é a expressão mais viva da incontrolabilidade e da impossibilidade de<br />
transformação do homem em máquina ou da dominação da linguagem humana<br />
pela máquina.<br />
As instituições, elas também, marcam, na maneira como compreende<br />
Sfez, pontos de insubmissão dos indivíduos a esquemas de maquinização. Mas<br />
é na interpretação (entendida de forma muito peculiar) que o autor expõe mais<br />
nitidamente o campo desta rejeição pura. Por ela, o texto, diferente das formas<br />
clássicas de hermenêutica já criticadas anteriormente, já não vem mais em<br />
primeiro lugar, seguido de comentários, que o explicam até esgotá-lo. Não é um<br />
texto com referência interna e imóvel como uma torre de marfim mas interpretar<br />
é aqui um trabalho com renovação e repetição, retomada e retorno num<br />
mesmo movimento.<br />
Através da interpretação, o autor tenta resgatar a idéia do movimento<br />
sobre a cristalização, do vivo sobre o morto. Sfez critica Simon, da escola<br />
tautológica da Inteligência Artificial, por confundir símbolo com signo. Para este,<br />
ambos não passariam apenas de diferentes graus da mesma coisa.<br />
Contrariamente, Sfez argumenta que entre símbolo e signo há uma distância<br />
infinita, que é a mesma que separa regra de regulamento, dizer do dito e lei do<br />
contrato. Desaparecendo a distância, mergulhamos no mundo unidimensional.<br />
(Sfez, 1988,p.352-3).<br />
Ora, o símbolo - categoria menosprezada pelos "novos filósofos" - não é<br />
apenas duplicação do signos mas uma "reserva", através da qual o signo faz<br />
sentido; é a função simbólica o que assegura coesão a um mundo comum.<br />
Nas formas cada vez renovadas de acesso ao texto, exatamente<br />
também como negação da submissão à imagem, já que esta não remete a<br />
conceitos, vamos ver as possibilidades de uma contínua expansão e dilatação<br />
daquilo que é sistematicamente comprimido na sociedade da técnica.<br />
O retorno da palavra, da reflexão, do exercício intelectual coloca-se<br />
como estratégia viável para se fazer frente a uma sociedade que já liquidou o<br />
Iluminismo e ameaça com a destruição plena da razão através do império<br />
absoluto e totalitário das imagens.<br />
2.O oráculo de Freud<br />
No volume Neue Folge der Vorlesungen zur Einfuehrung in die<br />
Psychoanalyse (Nova série de lições sobre a Psicanálise), Sigmund Freud<br />
reúne entre os ensaios apresentados, um intitulado "A dilaceração da<br />
personalidade psíquica", datado do início dos anos 30. O ensaio termina com<br />
uma frase que se tornou posteriormente objeto de especulações teóricas entre<br />
intelectuais, visando interpretar o que Freud realmente havia dito. A frase no<br />
original é: "Who Es war, soll Ich werden"(Onde era o id, lá devo vir-a-ser).<br />
73
O contexto em que faz a afirmação é o da prática psico-terapêutica, cuja<br />
intenção é, segundo ele, reforçar o ego, torná-lo independente do superego e<br />
ampliar seu campo de percepção e, assim, aumentar sua organização de tal<br />
forma que possa apropriar-se de uma nova parte do id. Está claro, portanto,<br />
que se trata de um projeto cultural baseado no primado da razão (do eu<br />
racional). Esta deve estender seu território, domesticando ainda mais<br />
elementos do campo livre indomesticado, "puro", dando ao homem condições<br />
de ter mais controle sobre suas práticas irracionais, imprevisíveis e perigosas.<br />
A razão deve tornar-se senhora da natureza bruta.<br />
Aqui encontramos um Freud iluminista, que busca o domínio das forças<br />
cegas, a colocação do místico sob controle e a liquidação do anticientífico.<br />
Trata-se de domar o lado animal e submetê-lo à lógica do racional. Na<br />
linguagem de Platão, é o cavalo branco que passa a dominar o negro. De<br />
qualquer forma, tornar o ego independente do superego é o projeto da<br />
psicanálise que quer se livrar dos tradicionais fantasmas que incomodavam a<br />
mente dos homens, principalmente no final do século passado e no começo<br />
deste, em que a moral, a tradição, os valores conservadores sobrepunham-se<br />
incondicionalmente à vontade individual das pessoas. Caberia então à<br />
psicanalise fazer desabrochar um homem liberado de todos estes "senhores "<br />
que o escravizavam.<br />
Na década seguinte, Theodor W. Adorno já via a frase com suspeita.<br />
Dizia ele, que o mandamento continha algo de estoicamente vazio e inevidente:<br />
"O indivíduo preso à realidade, são, é tão pouco imune às crises como é, no<br />
econômico, aquele que troca seus negócios racionalmente. A consequência<br />
socialmente racional torna-se também individualmente irracional".(Adorno,<br />
1955).<br />
O contexto em que Adorno faz a crítica a Freud é o do ataque à<br />
psicologia do ego, especialmente definida por Karen Horney, que nos Estados<br />
Unidos obteve grande sucesso em sua intenção de construir um ego forte, cuja<br />
pretensão seria a de se sentir aliviado e não dominado pelas correntes sociais.<br />
Dava uma ilusão de soberania numa sociedade que o status da massa tendia<br />
cada vez mais a ser característica do homem moderno.<br />
A interpretação dada por Jacques Lacan seguiria um caminho distinto:<br />
"ali onde se estava, ali, como sujeito, devo vir-a-ser". O id aqui poderia ser<br />
substituído por um genérico Outro lacaniano e a categoria do eu tornava-se um<br />
atributo do sujeito, o qual o eu deve almejar. Em Lacan, além de eu (je) existe a<br />
categoria do "moi" que supõe um estágio ou uma situação de identidade<br />
controlada, dominada e negada pela onipresença do Outro.<br />
Cornelius Castoriadis tenta atualizar e recuperar a leitura lacaniana da<br />
frase de Freud, dizendo que o ego, a consciência e a vontade devem tomar o<br />
lugar das forças obscuras que em cada um dominam, agem e o fazem atuar.<br />
Consciência e vontade representam, para o autor grego, uma tentativa de<br />
"resgatar" o Lacan do (mal-) entendido estruturalista, recolocando-o dentro do<br />
hegelianismo das metas e dos fins. É a capacitação do sujeito pela consciência<br />
e pela intenção a superar o poder de uma totalidade sobre ele. Desaparece,<br />
aqui a idéia de que existe um mundo administrado, uma indústria cultural que<br />
se sobrepõe aos indivíduos isoladamente tornando-os massa. Diferentemente,<br />
74
existe um "moi" que ainda não despontou para a a possibilidade de sua<br />
transposição à categoria de um sujeito.<br />
Segundo a leitura de Peter Sloterdijk, Heidegger reinventaria a frase<br />
como: "Wo Man war, soll Eigentlichkeit werden", substituindo a palavra Es (o id)<br />
pelo termo Man, que significa em Heidegger o tipo marcado pelo ego fraco, fútil,<br />
vazio do homem-massa. Eigentlichkeit significaria, ao contrário, a possibilidade<br />
de realização do Dasein, do sujeito que transcende estas limitações, esta<br />
"pequenês" do homem moderno. Corresponde para ele àquela circunstância<br />
que exigimos quando construímos nossa existência (Dasein) num contínuo de<br />
consciência.<br />
A leitura de Sloterdijk remete novamente à possibilidade de um ego, de<br />
uma consciência, de uma vontade, como Castoriadis, só que aqui trata-se de<br />
trancender uma situação de submissão em que a máquina ocupa o lugar do<br />
homem. O elemento opressor, muda de figura e de caráter, assim como alterase<br />
a própria ordem da frase. Desaparece a categoria do Es, a instância nãocivilizada<br />
de cada um, e entra em cena a categoria de Man, o lado público, a<br />
mediocridade, o caráter médio e massa dos indivíduos.<br />
Finalmente, a discussão é novamente levantada, apesar de não ser<br />
citada a frase, por Sherry Turkle no seu livro O segundo eu (1984). Lá ela<br />
discute a contraposição entre homem e máquina como uma atualização da<br />
mesma questão colocada por Freud, de onde havia o id, lá o ego deve avançar<br />
mais (pág.265). Aqui, discutem-se as teorias da inteligência artifical e<br />
questiona-se o estatuto da razão, na medida em que o investimento progressivo<br />
e cada vez mais maciço neste campo chegou à produção destas máquinashomens,<br />
que seriam assim a quintessência da razão, o iluminismo em sua<br />
aberração trágica. Mais trágica ainda porque a razão escapa ao domínio e à<br />
esfera do homem e é incorporada pela máquina.<br />
O que sobraria do homem, portanto, na idade tecnológica? Se não pode<br />
concorrer, em termos de racionalidade, com a máquina e os sistemas técnicos,<br />
pois estes já demonstraram ser mais completos e insuperáveis, e sua<br />
tendência, a de dominar cada vez mais esses campos, à razão humana não<br />
resta outra saída senão conformar-se com seu status de inferioridade limitada e<br />
provisoriedade. Não é por aí, naturalmente, que a contenda será ganha.<br />
O caminho da reabilitação humana, sem dúvida, não é este, "sob o signo<br />
da razão", visto que esta já desloca-se para outro campo, não-humano. O<br />
homem só pode diferenciar-se da máquina, manter sua autonomia, sua<br />
identidade, sua diferença em relação ao componente técnico possuindo<br />
exatamente todos os atributos que a máquina nunca poderá ter, ou seja, a alma<br />
e o espírito. A máquina jamais poderá sentir dor, chorar, sofrer, apaixonar-se,<br />
ter reações emocionais, espirituais, inesperadas, mesmo cínicas, irônicas, pois<br />
são fatos que em tempo algum poderão ser representados, codificados,<br />
programados, traduzido para uma linguagem técnica dos computadores.<br />
Ir em busca do homem é reverter ou mesmo negar a frase freudiana. Já<br />
não se trata mais do Wo Es war soll Ich werden, na medida em que o Ich, a<br />
parte racional (pelo menos enquanto racionalidade de ações e decisões; nunca,<br />
naturalmente, enquanto bom senso ou senso comum), tornou-se privilégio da<br />
máquina e o homem como sujeito perdeu sua soberania, tornou-se um "ser<br />
emagrecido". Por outro lado, aquele campo que exatamente Freud buscava<br />
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ocupar cada vez mais pelas investidas do ego, o emocional-natural, é o que<br />
hoje aparece como a fonte única e mais segura para a nova identidade do<br />
homem na era eletrônica. Assim, a frase hoje precisa ser lida de outra maneira,<br />
a saber: Wo Es war, soll Es doch bleiben, onde estava o id (e aqui por id<br />
interpretamos a parte emocional, afetiva, irrealizável pelo sistema técnico), lá e<br />
exatamente lá é que ela deve permanecer.<br />
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