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Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado ... - Cursinho do XI

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<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong>, <strong>de</strong> <strong>Macha<strong>do</strong></strong> <strong>de</strong> Assis<br />

Para que negá-lo? eu estava estupefacto. A clareza da exposição, a lógica <strong>do</strong>s princípios, o<br />

rigor das conseqüências, tu<strong>do</strong> isso parecia superiormente gran<strong>de</strong>, e foi-me preciso suspen<strong>de</strong>r<br />

a conversa por alguns minutos, enquanto digeria a filosofia nova. Quincas Borba mal podia<br />

encobrir a satisfação <strong>do</strong> triunfo. Tinha uma asa <strong>de</strong> frango no prato, e trincava-a com<br />

filosófica serenida<strong>de</strong>. Eu fiz-lhe ainda algumas objeções, mas tão frouxas, que ele não<br />

gastou muito tempo em <strong>de</strong>struí-las.<br />

--Para enten<strong>de</strong>r bem o meu sistema, concluiu ele, importa não esquecer nunca o princípio<br />

universal, reparti<strong>do</strong> e resumi<strong>do</strong> em cada homem. Olha: a guerra, que parece uma<br />

calamida<strong>de</strong>, é uma operação conveniente, como se disséssemos o estalar <strong>do</strong>s <strong>de</strong><strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />

Humanitas; a fome (e ele chupava filosoficamente a asa <strong>do</strong> frango), a fome é uma prova a<br />

que Humanitas submete a própria víscera. Mas eu não quero outro <strong>do</strong>cumento da<br />

sublimida<strong>de</strong> <strong>do</strong> meu sistema, senão este mesmo frango. Nutriu-se <strong>de</strong> milho, que foi planta<strong>do</strong><br />

por um africano, suponhamos, importa<strong>do</strong> <strong>de</strong> Angola. Nasceu esse africano, cresceu, foi<br />

vendi<strong>do</strong>; um navio o trouxe, um navio construí<strong>do</strong> <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira cortada no mato por <strong>de</strong>z ou<br />

<strong>do</strong>ze homens, leva<strong>do</strong> por velas, que oito ou <strong>de</strong>z homens teceram, sem contar a cor<strong>do</strong>alha e<br />

outras partes <strong>do</strong> aparelho náutico. Assim, este frango, que eu almocei agora mesmo, é o<br />

resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma multidão <strong>de</strong> esforços e lutas, executa<strong>do</strong>s com o único fim <strong>de</strong> dar mate ao<br />

meu apetite.<br />

Entre o queijo e o café, <strong>de</strong>monstrou-me Quincas Borba que o seu sistema era a <strong>de</strong>struição da<br />

<strong>do</strong>r. A <strong>do</strong>r, segun<strong>do</strong> o Humanitismo, é uma pura ilusão. Quan<strong>do</strong> a criança é ameaçada por<br />

um pau, antes mesmo <strong>de</strong> ter si<strong>do</strong> espancada, fecha os olhos e treme; essa predisposição é<br />

que constitui a base da ilusão humana, herdada e transmitida. Não basta certamente a a<strong>do</strong>ção<br />

<strong>do</strong> sistema para acabar logo com a <strong>do</strong>r, mas é indispensável, o resto é a natural evolução das<br />

cousas. Uma vez que o homem se compenetre bem <strong>de</strong> que ele é o próprio Humanitas, não<br />

tem mais <strong>do</strong> que remontar o pensamento à substância original para obstar qualquer sensação<br />

<strong>do</strong>lorosa. A evolução, porém, é tão profunda, que mal se lhe po<strong>de</strong>m assinar alguns milhares<br />

<strong>de</strong> anos.<br />

Quincas Borba leu-me daí a dias a sua gran<strong>de</strong> obra. Eram quatro volumes manuscritos, <strong>de</strong><br />

cem páginas cada um, com letra miúda e citações latinas. O último volume compunha-se <strong>de</strong><br />

um trata<strong>do</strong> político, funda<strong>do</strong> no Humanitismo; era talvez a parte mais enfa<strong>do</strong>nha <strong>do</strong> sistema,<br />

posto que concebida com um formidável rigor <strong>de</strong> lógica Reorganizada a socieda<strong>de</strong> pelo<br />

méto<strong>do</strong> <strong>de</strong>le, nem por isso ficavam eliminadas a guerra, a insurreição, o simples murro, a<br />

facada anônima, a miséria, a fome, as <strong>do</strong>enças; mas sen<strong>do</strong> esses supostos flagelos<br />

verda<strong>de</strong>iros equívocos <strong>do</strong> entendimento, porque não passariam <strong>de</strong> movimentos externos da<br />

substância interior, <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s a não influir sobre o homem, senão como simples quebra da<br />

monotonia universal, claro estava que a sua existência não impediria a felicida<strong>de</strong> humana.<br />

Mas ainda quan<strong>do</strong> tais flagelos (o que era radicalmente falso) correspon<strong>de</strong>ssem no futuro à<br />

concepção acanhada <strong>de</strong> antigos tempos, nem por isso ficava <strong>de</strong>struí<strong>do</strong> o sistema, e por <strong>do</strong>us<br />

motivos: 1.° porque sen<strong>do</strong> Humanitas a substância cria<strong>do</strong>ra e absoluta, cada indivíduo<br />

<strong>de</strong>veria achar a maior <strong>de</strong>lícia <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em sacrificar-se ao princípio <strong>de</strong> que <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>; 2.°<br />

porque, ainda assim, não diminuiria o po<strong>de</strong>r espiritual <strong>do</strong> homem sobre a Terra, inventada<br />

unicamente para seu recreio <strong>de</strong>le, como as estrelas, as brisas, as tâmaras e o ruibarbo.<br />

Pangloss, dizia-me ele ao fechar o livro, não era tão tolo como o pintou Voltaire.<br />

file:///C|/site/livros_gratis/bras_cubas.htm (108 of 133) [10/8/2001 17:07:30]

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