11.09.2013 Views

Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado ... - Cursinho do XI

Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado ... - Cursinho do XI

Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado ... - Cursinho do XI

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong>, <strong>de</strong> <strong>Macha<strong>do</strong></strong> <strong>de</strong> Assis<br />

Uma vez produzi<strong>do</strong> o efeito essencial, isto é, uma vez cessada a privação, torna o organismo<br />

ao esta<strong>do</strong> anterior, ao esta<strong>do</strong> indiferente. Supõe que tens aperta<strong>do</strong> em <strong>de</strong>masia o cós das<br />

calças; para fazer cessar o incômo<strong>do</strong>, <strong>de</strong>sabotoas o cós, respiras, saboreias um instante <strong>de</strong><br />

gozo, o organismo torna à indiferença, e não te lembras <strong>do</strong>s teus <strong>de</strong><strong>do</strong>s que praticaram o ato.<br />

Não haven<strong>do</strong> nada que perdure, é natural que a memória se esvaeça, porque ela não é uma<br />

planta aérea, precisa <strong>de</strong> chão. A esperança <strong>de</strong> outros favores, é certo, conserva sempre no<br />

beneficia<strong>do</strong> a lembrança <strong>do</strong> primeiro; mas este fato, aliás um <strong>do</strong>s mais sublimes que a<br />

filosofia po<strong>de</strong> achar em seu caminho, explica-se pela memória da privação, ou, usan<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

outra fórmula, pela privação continuada na memória, que repercute a <strong>do</strong>r passada e<br />

aconselha a precaução <strong>do</strong> remédio oportuno. Não digo que, ainda sem esta circunstância,<br />

não aconteça, algumas vezes, persistir a memória <strong>do</strong> obséquio, acompanhada <strong>de</strong> certa<br />

afeição mais ou menos intensa; mas são verda<strong>de</strong>iras aberrações, sem nenhum valor aos<br />

olhos <strong>de</strong> um filósofo.<br />

--Mas, repliquei eu, se nenhuma razão há para que perdure a memória <strong>do</strong> obséquio no<br />

obsequia<strong>do</strong>, menos há <strong>de</strong> haver em relação ao obsequia<strong>do</strong>r. Quisera que me explicasses este<br />

ponto.<br />

--Não se explica o que é <strong>de</strong> sua natureza evi<strong>de</strong>nte, retorquiu o Quincas Borba; mas eu direi<br />

alguma cousa mais. A persistência <strong>do</strong> benefício na memória <strong>de</strong> quem o exerce explica-se<br />

pela natureza mesma <strong>do</strong> benefício e seus efeitos. Primeiramente há o sentimento <strong>de</strong> uma boa<br />

ação, e <strong>de</strong>dutivamente a consciência <strong>de</strong> que somos capazes <strong>de</strong> boas ações; em segun<strong>do</strong><br />

lugar, recebe-se uma convicção <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong> sobre outra criatura, superiorida<strong>de</strong> no<br />

esta<strong>do</strong> e nos meios; e esta é uma das cousas mais legitimamente agradáveis, segun<strong>do</strong> as<br />

melhores opiniões, ao organismo humano. Erasmo, que no seu Elogio da Sandice escreveu<br />

algumas cousas boas, chamou a atenção para a complacência com que <strong>do</strong>us burros se coçam<br />

um ao outro. Estou longe <strong>de</strong> rejeitar essa observação <strong>de</strong> Erasmo; mas direi o que ele não<br />

disse, a saber que se um <strong>do</strong>s burros coçar melhor o outro esse há <strong>de</strong> ter nos olhos algum<br />

indício especial <strong>de</strong> satisfação. Por que é que uma mulher bonita olha muitas vezes para o<br />

espelho, senão porque se acha bonita, e porque isso lhe dá certa superiorida<strong>de</strong> sobre uma<br />

multidão <strong>de</strong> outras mulheres menos bonitas ou absolutamente feias? A consciência é a<br />

mesma cousa; remira-se a miú<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> se acha bela. Nem o remorso é outra cousa mais<br />

<strong>do</strong> que o trejeito <strong>de</strong> uma consciência que se vê hedionda. Não esqueças que, sen<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> uma<br />

simples irradiação <strong>de</strong> Humanitas, o benefício e seus efeitos são fenômenos perfeitamente<br />

admiráveis.<br />

CAPÍTULO CL / ROTAÇÃO E TRANSLAÇÃO<br />

HÁ EM CADA EMPRESA, afeição ou ida<strong>de</strong> um ciclo inteiro da vida humana. O primeiro<br />

número <strong>do</strong> meu jornal encheu-me a alma <strong>de</strong> uma vasta aurora, coroou-me <strong>de</strong> verduras,<br />

restituiu-me a lepi<strong>de</strong>z da mocida<strong>de</strong>. Seis meses <strong>de</strong>pois batia a hora da velhice, e daí a duas<br />

semanas a da morte, que foi clan<strong>de</strong>stina, como a <strong>de</strong> D. Plácida. No dia em que o jornal<br />

amanheceu morto, respirei como um homem que vem <strong>de</strong> longo caminho. De mo<strong>do</strong> que, se<br />

file:///C|/site/livros_gratis/bras_cubas.htm (127 of 133) [10/8/2001 17:07:30]

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!