<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong>, <strong>de</strong> <strong>Macha<strong>do</strong></strong> <strong>de</strong> Assis eu ali via era a con<strong>de</strong>nsação viva <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os tempos. Para <strong>de</strong>screvê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos <strong>de</strong>sfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos <strong>do</strong> <strong>de</strong>lírio são outros, eu via tu<strong>do</strong> o que passava diante <strong>de</strong> mim,--flagelos e <strong>de</strong>lícias, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> essa cousa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplican<strong>do</strong> a miséria, e via a miséria agravan<strong>do</strong> a <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>. Aí vinham a cobiça que <strong>de</strong>vora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas <strong>de</strong> suor, e a ambição, a fome, a vaida<strong>de</strong>, a melancolia, a riqueza, o amor, e to<strong>do</strong>s agitavam o homem, como um chocalho, até <strong>de</strong>struí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias <strong>de</strong> um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes <strong>de</strong> arlequim, em <strong>de</strong>rre<strong>do</strong>r da espécie humana. A <strong>do</strong>r cedia alguma vez, mas cedia a indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma <strong>do</strong>r bastarda. Então o homem, flagela<strong>do</strong> e rebel<strong>de</strong>, corria diante da fatalida<strong>de</strong> das cousas, atrás <strong>de</strong> uma figura nebulosa e esquiva, feita <strong>de</strong> retalhos, um retalho <strong>de</strong> impalpável, outro <strong>de</strong> improvável, outro <strong>de</strong> invisível, cosi<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, -- nada menos que a quimera da felicida<strong>de</strong>, -- ou lhe fugia perpetuamente, ou <strong>de</strong>ixava-se apanhar pela fralda, e o homem e cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão. Ao contemplar tanta calamida<strong>de</strong>, não pu<strong>de</strong> reter um grito <strong>de</strong> angústia, que Natureza ou Pan<strong>do</strong>ra escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei <strong>de</strong> transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, -- <strong>de</strong> um riso <strong>de</strong>scompassa<strong>do</strong> e idiota. --Tens razão, disse eu, a cousa é divertida e vale a pena, -- talvez monótona mas vale a pena. Quan<strong>do</strong> Jó amaldiçoava o dia em que fora concebi<strong>do</strong>, é porque lhe davam ganas <strong>de</strong> ver cá <strong>de</strong> cima O espetáculo. Vamos lá, Pan<strong>do</strong>ra, abre o ventre, e digere-me; a cousa é divertida? mas digere-me. A resposta foi compelir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os séculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gerações que se superpunham às gerações, umas tristes, como os Hebreus <strong>do</strong> cativeiro, outras alegres, como os <strong>de</strong>vassos <strong>de</strong> Cômo<strong>do</strong>, e todas elas pontuais na sepultura. Quis fugir, mas uma força misteriosa me retinha os pés; então disse comigo: "Bem, os séculos vão passan<strong>do</strong>, chegará o meu, e passará também, até o último, que me dará a <strong>de</strong>cifração da eternida<strong>de</strong>." E fixei os olhos, e continuei a ver as ida<strong>de</strong>s que vinham chegan<strong>do</strong> e passan<strong>do</strong>, já então tranqüilo e resoluto, não sei até se alegre. Talvez alegre. Cada século trazia a sua porção <strong>de</strong> sombra e <strong>de</strong> luz, <strong>de</strong> apatia e <strong>de</strong> combate, <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> erro e o seu cortejo <strong>de</strong> sistemas, <strong>de</strong> idéias novas, <strong>de</strong> novas ilusões; cada um <strong>de</strong>les rebentavam as verduras <strong>de</strong> uma primavera, e amareleciam <strong>de</strong>pois, para remoçar mais tar<strong>de</strong>. Ao passo que a vida tinha assim uma regularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> calendário, fazia-se a história e a civilização, e o homem, nu e <strong>de</strong>sarma<strong>do</strong>, armava-se e vestia-se, construía o tugúrio e o palácio, a ru<strong>de</strong> al<strong>de</strong>ia e Tebas <strong>de</strong> cem portas, criava a ciência, que perscruta, e a arte que enleva, fazia ora<strong>do</strong>r, mecânico, filósofo, corria a face <strong>do</strong> globo, <strong>de</strong>scia ao ventre da Terra, subia à esfera das nuvens, colaboran<strong>do</strong> assim na obra misteriosa, com que entretinha a necessida<strong>de</strong> da vida e a melancolia <strong>do</strong> <strong>de</strong>samparo. Meu olhar, enfara<strong>do</strong> e distraí<strong>do</strong>, viu enfim chegar o século presente, e atrás <strong>de</strong>les os futuros. Aquele vinha ágil, <strong>de</strong>stro, vibrante! cheio <strong>de</strong> si, um pouco difuso, audaz, sabe<strong>do</strong>r, mas ao cabo tão miserável como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros com a mesma rapi<strong>de</strong>z e igual monotonia. Re<strong>do</strong>brei <strong>de</strong> atenção; fitei a vistas ia enfim ver o último, -- último!; mas então já a rapi<strong>de</strong>z da marcha era tal, que escapava a toda a compreensão; ao pé <strong>de</strong>la o relâmpago seria um file:///C|/site/livros_gratis/bras_cubas.htm (10 of 133) [10/8/2001 17:07:29]
<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong>, <strong>de</strong> <strong>Macha<strong>do</strong></strong> <strong>de</strong> Assis século. Talvez por isso entraram os objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros per<strong>de</strong>ram-se no ambiente, um nevoeiro cobriu tu<strong>do</strong>,-- menos o hipopótamo que ali me trouxera, e que aliás começou a diminuir, a diminuir a diminuir, até ficar <strong>do</strong> tamanho <strong>de</strong> um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola <strong>de</strong> papel... CAPÍTULO VIII / RAZÃO CONTRA SANDICE JÁ O LEITOR compreen<strong>de</strong>u que era a Razão que voltava à casa, e convidava a Sandice a sair, claman<strong>do</strong>, e com melhor jus, as palavras <strong>de</strong> Tartufo: La maison est à moi, c'est à vous d'en sortir. Mas é sestro antigo da Sandice criar amor às casas alheias, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que, apenas senhora <strong>de</strong> uma, dificilmente lha farão <strong>de</strong>spejar. É sestro; não se tira daí; há muito que lhe calejou a vergonha. Agora, se advertimos no imenso número <strong>de</strong> casas que ocupa, umas <strong>de</strong> vez. Outras durante as suas estações calmosas, concluiremos que esta amável peregrina é o terror <strong>do</strong>s proprietários. No nosso caso, houve quase um distúrbio à porta <strong>do</strong> meu cérebro, porque a adventícia não queria entregar a casa, e a <strong>do</strong>na não cedia da intenção <strong>de</strong> tomar o que era seu. Afinal, já a Sandice se contentava com um cantinho no sótão. -- Não, senhora replicou a Razão, estou cansada <strong>de</strong> lhe ce<strong>de</strong>r sótãos, cansada e experimentada, o que você quer é passar mansamente <strong>do</strong> sótão à sala <strong>de</strong> jantar, daí à <strong>de</strong> visitas e ao lesto. --Está bem, <strong>de</strong>ixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista <strong>de</strong> um mistério... Que mistério? -- De <strong>do</strong>us, emen<strong>do</strong>u a Sandice; o da vida e o da morte; peço-lhe só uns <strong>de</strong>z minutos. A razão pôs-se a rir. -- Hás <strong>de</strong> ser sempre a mesma cousa... sempre a mesma cousa... sempre a mesma cousa... E dizen<strong>do</strong> isto, travou-lhe <strong>do</strong>s pulsos e arrastou-a para fora; <strong>de</strong>pois entrou e fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumas súplicas, grunhiu algumas zangas; mas <strong>de</strong>senganou-se <strong>de</strong>pressa, <strong>de</strong>itou a língua <strong>de</strong> fora, em ar <strong>de</strong> surriada, e foi andan<strong>do</strong>... CAPÍTULO IX / TRANSIÇÃO E VEJAM AGORA com que <strong>de</strong>streza; com que arte faço eu a maior transição <strong>de</strong>ste livro. file:///C|/site/livros_gratis/bras_cubas.htm (11 of 133) [10/8/2001 17:07:29]
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