Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado ... - Cursinho do XI
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<strong>Memórias</strong> <strong>Póstumas</strong> <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong>, <strong>de</strong> <strong>Macha<strong>do</strong></strong> <strong>de</strong> Assis<br />
--HÁ DE LEMBRAR-SE, disse-me o alienista, daquele famoso maníaco ateniense, que<br />
supunha que to<strong>do</strong>s os navios entra<strong>do</strong>s no Pireu eram <strong>de</strong> sua proprieda<strong>de</strong>. Não passava <strong>de</strong> um<br />
pobretão, que talvez não tivesse, para <strong>do</strong>rmir, a cuba <strong>de</strong> Diógenes; mas a posse imaginária<br />
<strong>do</strong>s navios valia por todas as dracmas da Héla<strong>de</strong>. Ora bem, há em to<strong>do</strong>s nós um maníaco <strong>de</strong><br />
Atenas; e quem jurar que não possuiu alguma vez, mentalmente, <strong>do</strong>us ou três patachos, pelo<br />
menos, po<strong>de</strong> crer que jura falso.<br />
--Também o senhor? perguntei-lhe.<br />
--Também eu.<br />
--Também eu?<br />
--Também o senhor; e o seu cria<strong>do</strong>, não menos se é seu cria<strong>do</strong> esse homem que ali está<br />
sacudin<strong>do</strong> os tapetes à janela.<br />
De fato, era um <strong>do</strong>s meus cria<strong>do</strong>s que batia os tapetes, enquanto nós falávamos no jardim, ao<br />
la<strong>do</strong>. O alienista notou então que ele escancarara as janelas todas <strong>de</strong>ste longo tempo, que<br />
alçara as cortinas, que <strong>de</strong>vassara o mais possível a sala, ricamente alfaiada, para que a<br />
vissem <strong>de</strong> fora, e concluiu: --Este seu cria<strong>do</strong> tem a mania <strong>do</strong> ateniense: crê que os navios são<br />
<strong>de</strong>le; uma hora <strong>de</strong> ilusão que lhe dá a maior felicida<strong>de</strong> da Terra.<br />
CAPÍTULO CLV / REFLEXÃO CORDIAL<br />
--SE O ALIENISTA tem razão, disse eu comigo, não haverá muito que lastimar o Quincas<br />
Borba; é uma questão <strong>de</strong> mais ou <strong>de</strong> menos. Contu<strong>do</strong>, é justo cuidar <strong>de</strong>le, e evitar que lhe<br />
entrem no cérebro maníacos <strong>de</strong> outras paragens.<br />
CAPÍTULO CLVI / ORGULHO DA SERVILIDADE<br />
QUINCAS BORBA divergiu <strong>do</strong> alienista em relação ao meu cria<strong>do</strong>.-- Po<strong>de</strong>-se, por imagem,<br />
disse ele, atribuir ao teu cria<strong>do</strong> a mania <strong>do</strong> ateniense, mas imagens não são idéias nem<br />
observações tomadas à natureza. O que o teu cria<strong>do</strong> tem é um sentimento nobre e<br />
perfeitamente regi<strong>do</strong> pelas leis <strong>do</strong> Humanitismo: é o orgulho da servilida<strong>de</strong>. A intenção <strong>de</strong>le<br />
é mostrar que não é cria<strong>do</strong> <strong>de</strong> qualquer.--Depois chamou a minha atenção para os cocheiros<br />
<strong>de</strong> casa gran<strong>de</strong>, mais empertiga<strong>do</strong>s que o amo, para os cria<strong>do</strong>s <strong>de</strong> hotel, cuja solicitu<strong>de</strong><br />
obe<strong>de</strong>ce às variações sociais da freguesia, etc. E concluiu que era tu<strong>do</strong> a expressão daquele<br />
sentimento <strong>de</strong>lica<strong>do</strong> e nobre, -- prova cabal <strong>de</strong> que muitas vezes o homem, ainda a engraxar<br />
botas, é sublime.<br />
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