O que resta dos grandes sonhos de um paÃs pequeno - Fonoteca ...
O que resta dos grandes sonhos de um paÃs pequeno - Fonoteca ...
O que resta dos grandes sonhos de um paÃs pequeno - Fonoteca ...
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Tudo nela<br />
era raro,<br />
começando<br />
pelo “nome<br />
estranho e até<br />
<strong>de</strong>sagradável,<br />
pseudónimo<br />
sem dúvida”,<br />
escreveu <strong>um</strong><br />
crítico. Foi esse<br />
o jogo<br />
(pertencer,<br />
não-pertencer)<br />
<strong>que</strong> ela jogou<br />
toda a vida<br />
Livros<br />
<strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> para contar esta história,<br />
apesar <strong>dos</strong> r<strong>um</strong>ores <strong>de</strong> <strong>que</strong> os her<strong>de</strong>iros<br />
<strong>de</strong> Lispector controlam tudo o <strong>que</strong><br />
sai. Moser <strong>de</strong>smente: “Todo o mundo<br />
me falava isso, mas felizmente esse<br />
problema não apareceu.” Diz <strong>que</strong> há<br />
“a família” e há Paulo, filho <strong>de</strong> Lispector,<br />
<strong>de</strong>tentor <strong>dos</strong> direitos. “Paulo enten<strong>de</strong>u<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>que</strong> eu era <strong>um</strong>a<br />
pessoa muito séria e <strong>que</strong> estava a fazer<br />
<strong>um</strong>a coisa <strong>que</strong> era <strong>um</strong>a missão <strong>de</strong> divulgação<br />
muito gran<strong>de</strong> da obra <strong>de</strong>la<br />
fora do Brasil.”<br />
As suas origens judaicas, por exemplo,<br />
são <strong>um</strong> <strong>dos</strong> aspectos mais sublinha<strong>dos</strong><br />
no livro. “Não havia nada <strong>que</strong><br />
Clarice Lispector <strong>de</strong>sejasse mais do<br />
<strong>que</strong> reescrever a história do seu nascimento”,<br />
escreve Moser. “Sua reputação<br />
é <strong>de</strong> ter sido <strong>um</strong> tanto mentirosa.”<br />
Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sousa admite <strong>que</strong><br />
esse mistério “faz parte da complexida<strong>de</strong><br />
da figura, esse jogo <strong>de</strong> revelação<br />
e ocultação” <strong>que</strong> Clarice alimentava.<br />
Ela foi “sempre muito consciente do<br />
seu papel e <strong>de</strong>ssa encenação”.<br />
Nesse jogo <strong>de</strong> sombras, a fuga da<br />
Ucrânia é <strong>um</strong> <strong>dos</strong> <strong>gran<strong>de</strong>s</strong> temas da<br />
sua vida. Moser foi a Tchechelnik<br />
comprovar a cena da violação da mãe<br />
<strong>de</strong> Clarice e <strong>um</strong>a crença, contada pela<br />
autora, <strong>de</strong> <strong>que</strong> a gravi<strong>de</strong>z po<strong>de</strong><br />
curar <strong>um</strong>a mulher <strong>de</strong> <strong>um</strong>a doença<br />
venérea. Foi <strong>de</strong> al<strong>de</strong>ia em al<strong>de</strong>ia à procura<br />
da resposta. O estupro era <strong>um</strong>a<br />
das polémicas <strong>que</strong> a família não <strong>de</strong>ixaria<br />
passar, mas Paulo Lispector <strong>de</strong>ixou:<br />
“Não houve nada <strong>de</strong> absolutamente<br />
censurado. Paulo levou bronca<br />
da família por<strong>que</strong> permitiu <strong>que</strong> isso<br />
fosse publicado.”<br />
Suspensa n<strong>um</strong>a vírgula<br />
Quando “Perto do Coração Selvagem”<br />
foi publicado em 1943, Lispector iniciava<br />
<strong>um</strong>a obra “ao contrário do <strong>que</strong><br />
FOTOGRAFIAS DE “CLARICE FOTOBIOGRAFIA”, DE NADIA BATTELLA GOTLIB<br />
era a or<strong>de</strong>m dominante, e nesse sentido,<br />
<strong>um</strong>a obra <strong>de</strong>sterritorializadora da<br />
tendência da literatura brasileira sobre<br />
a terra, o lugar, o ufanismo brasileiro”,<br />
explica Carlos Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sousa. Clarice<br />
rompe “com o mo<strong>de</strong>lo do romance<br />
nor<strong>de</strong>stino” e cria “<strong>um</strong>a obra estranha<br />
a todas essas referências”.<br />
Tudo nela era raro, começando pelo<br />
“nome estranho e até <strong>de</strong>sagradável,<br />
pseudónimo sem dúvida”, escreveu<br />
<strong>um</strong> crítico. Foi esse o jogo (pertencer,<br />
não-pertencer) <strong>que</strong> ela jogou toda a<br />
vida. “Tenho a certeza <strong>de</strong> <strong>que</strong> no berço<br />
a minha primeira vonta<strong>de</strong> foi a <strong>de</strong> pertencer,<br />
por motivos <strong>que</strong> aqui não importam,<br />
eu <strong>de</strong> alg<strong>um</strong> modo <strong>de</strong>via estar<br />
sentindo <strong>que</strong> não pertencia a nada e a<br />
ninguém”, escreveu Clarice.<br />
Clarice era assim: <strong>um</strong> animal em bruto<br />
como Joana <strong>de</strong> “Perto do Coração<br />
Selvagem”, e domesticada como a Lídia<br />
do mesmo romance, vivendo nessa<br />
“Os livros <strong>de</strong>la estão<br />
à venda no metrô<br />
<strong>de</strong> São Paulo. Com<br />
quatro reais, n<strong>um</strong>a<br />
máquina, você<br />
compra <strong>um</strong> livro <strong>de</strong>la<br />
como <strong>que</strong>m compra<br />
<strong>um</strong>a coca-cola”<br />
Benjamin Moser<br />
intensa contradição <strong>de</strong> ser mulher, feminina,<br />
esposa e mãe, e <strong>de</strong> ser rebel<strong>de</strong>,<br />
livre, no limiar da loucura, na explosão<br />
mística <strong>dos</strong> encontros com Espinosa,<br />
comendo a barata como G.H. <strong>de</strong> “A<br />
Paixão segundo G.H.”.<br />
Quando publica “Perto do Coração”<br />
é <strong>um</strong>a “mulher à frente do seu<br />
tempo”, a sua linguagem “é tão diferente,<br />
tão estranha”, diz Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
Sousa, <strong>que</strong> “não houve <strong>um</strong> único mês<br />
em 1944 <strong>que</strong> não saísse <strong>um</strong>a crítica<br />
ao romance”. Tudo estava ali na novida<strong>de</strong><br />
“do fragmento, do interior, do<br />
feminino”.<br />
Essa estranheza na língua é tão<br />
gran<strong>de</strong> <strong>que</strong>, ainda hoje, conta Moser,<br />
os revisores da Cosac Naify, a editora<br />
brasileira da biografia, “tentaram corrigir<br />
o português da Clarice. São pessoas<br />
<strong>que</strong> trabalham com linguagem,<br />
acham <strong>que</strong> ela escreve português errado.<br />
O <strong>que</strong> é, <strong>de</strong> facto, verda<strong>de</strong>. Ela<br />
própria diz isso, mas ela escreve do<br />
jeito <strong>que</strong> <strong>que</strong>r, é <strong>um</strong>a escolha.”<br />
No fundo, Clarice é isto: “Não, não,<br />
nenh<strong>um</strong> Deus, <strong>que</strong>ro estar só! E <strong>um</strong><br />
dia virá, sim, <strong>um</strong> dia virá em mim [...],<br />
eu romperei to<strong>dos</strong> os nãos <strong>que</strong> existem<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim, provarei a mim<br />
mesma <strong>que</strong> nada há a temer, <strong>que</strong> tudo<br />
o <strong>que</strong> eu for será sempre on<strong>de</strong> haja<br />
<strong>um</strong>a mulher com meu princípio.” Ou<br />
ainda: “Basta me c<strong>um</strong>prir e então nada<br />
impedirá o meu caminho até a<br />
morte-sem-medo, <strong>de</strong> qual<strong>que</strong>r luta e<br />
<strong>de</strong>scanso me levantarei forte e bela<br />
como <strong>um</strong> cavalo novo.”<br />
Na edição brasileira o título é apenas<br />
“Clarice,”. Nessa vírgula, há <strong>um</strong>a<br />
vida <strong>que</strong> se suspen<strong>de</strong>. A vírgula está<br />
lá por<strong>que</strong> “Clarice é <strong>um</strong> assunto tão<br />
gran<strong>de</strong>, <strong>que</strong> nunca vai ser <strong>um</strong> Clarice<br />
ponto final, vai ser Clarice vírgula por<strong>que</strong><br />
não pretendia, nem pretendo,<br />
dizer a última palavra sobre ela.”<br />
Curiosamente, também o seu livro<br />
“Uma aprendizagem, ou o livro <strong>dos</strong><br />
prazeres” (1969) começa com <strong>um</strong>a<br />
vírgula e termina com dois pontos.<br />
Em Clarice, “nada está por acaso: a<br />
pontuação dá-nos a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> contínuo,<br />
<strong>de</strong> estar-entre, estar no meio”, explica<br />
Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sousa.<br />
Hoje, diz Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sousa, Clarice<br />
“tem to<strong>dos</strong> os ingredientes para ser<br />
<strong>um</strong>a escritora <strong>de</strong> culto”. Em 100 anos,<br />
diz Moser, “Lispector vai ser <strong>um</strong> nome<br />
como Eça <strong>de</strong> Queirós, <strong>que</strong> até a<br />
criança na al<strong>de</strong>ia vai saber”.<br />
Ípsilon • Sexta-feira 2 Abril 2010 • 21