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O que resta dos grandes sonhos de um país pequeno - Fonoteca ...

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aMa<strong>um</strong>MedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

O Projecto Lazarus<br />

Aleksandar Hemon<br />

(traduzido por Isabel Alves)<br />

Civilização<br />

mmmmm<br />

Quando as tropas<br />

sérvias cercaram<br />

Sarajevo, em Abril<br />

1992 (terminou em<br />

Fevereiro <strong>de</strong> 1996,<br />

tornando-se assim<br />

no mais longo<br />

cerco da história da<br />

guerra mo<strong>de</strong>rna), o<br />

jovem bósnio Aleksandar Hemon (n.<br />

1964) estava <strong>de</strong> visita aos EUA. Viuse<br />

assim impedido <strong>de</strong> regressar à<br />

sua, então sitiada, cida<strong>de</strong> natal. Uma<br />

prevista estada <strong>de</strong> alguns meses na<br />

América tornou-se <strong>de</strong>finitiva. Três<br />

anos <strong>de</strong>pois, Hemon escreveu o<br />

primeiro conto em inglês, e em<br />

pouco tempo as suas histórias<br />

começavam a aparecer em<br />

publicações como a “Granta” ou a<br />

“The New Yorker”. Em 2000<br />

publicou o primeiro livro, “The<br />

Question of Bruno” (edição<br />

portuguesa na ASA, em 2003, “A<br />

Questão <strong>de</strong> Bruno”), e dois anos<br />

<strong>de</strong>pois “Nowhere Man – The Pronek<br />

Fantasies”, finalista do National<br />

Book Critics Circle Award. Com estas<br />

obras, tornou-se n<strong>um</strong> <strong>dos</strong> mais<br />

promissores autores norteamericanos<br />

(entretanto, adquiriu a<br />

nacionalida<strong>de</strong>).<br />

A confirmação chegou em 2008<br />

com “O Projecto Lazarus”, <strong>que</strong> foi<br />

finalista do National Book Award.<br />

Hemon baseou-se n<strong>um</strong>a história<br />

verídica acontecida há <strong>um</strong> século, a<br />

<strong>de</strong> Lazarus Averbuch, <strong>de</strong> 19 anos <strong>de</strong><br />

ida<strong>de</strong>, imigrante ju<strong>de</strong>u russo <strong>que</strong><br />

escapou, com a irmã, ao “pogrom”<br />

<strong>de</strong> Kishinev, na Páscoa <strong>de</strong> 1903, e<br />

<strong>que</strong> conseguiu chegar a Chicago,<br />

on<strong>de</strong> n<strong>um</strong>a manhã <strong>de</strong> 1908 foi morto<br />

a tiro pelo chefe da polícia local<br />

quando lhe tentava entregar, em<br />

mão, <strong>um</strong>a carta; a polícia pensou<br />

tratar-se <strong>de</strong> <strong>um</strong>a conspiração<br />

anarquista, o <strong>que</strong> provocou <strong>um</strong>a<br />

histérica onda xenófoba <strong>que</strong><br />

avassalou a cida<strong>de</strong>. Escreve Hemon:<br />

“A América estava obcecada com o<br />

anarquismo. (…) os pregadores<br />

patriotas arrazoavam<br />

acaloradamente contra os perigos<br />

pecaminosos da imigração<br />

<strong>de</strong>scontrolada, contra os ata<strong>que</strong>s à<br />

liberda<strong>de</strong> americana e ao<br />

cristianismo.” Mas “O Projecto<br />

Lazarus” é também a mo<strong>de</strong>rna<br />

história do narrador (obviamente<br />

autobiográfica), o imigrante bósnio,<br />

já nacionalizado norte-americano,<br />

Vladimir Brik, <strong>que</strong>, n<strong>um</strong>a tentativa<br />

<strong>de</strong>sesperada <strong>de</strong> dar sentido e <strong>de</strong><br />

or<strong>de</strong>nar a sua própria vida, preten<strong>de</strong><br />

escrever <strong>um</strong> romance baseado no<br />

inci<strong>de</strong>nte ocorrido com o jovem<br />

imigrante russo. Ambas as<br />

narrativas, separadas quase cem<br />

anos, são apresentadas em capítulos<br />

alterna<strong>dos</strong>, n<strong>um</strong> pretenso<br />

Aleksandar Hemon, bósnio <strong>de</strong> origem, já é <strong>um</strong><br />

<strong>dos</strong> mais promissores autores norte-americanos<br />

(entretanto, adquiriu a nacionalida<strong>de</strong>)<br />

hibridismo <strong>de</strong> géneros entre ficção e<br />

autobiografia, estabelecendo-se, no<br />

equilíbrio das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s <strong>dos</strong> dois<br />

imigrantes, <strong>um</strong> inesperado<br />

paralelismo. “A guerra contra o<br />

anarquismo era muito semelhante à<br />

guerra actual contra o terrorismo – é<br />

interessante constatar <strong>que</strong> os velhos<br />

hábitos nunca morrem.”<br />

Brik, o narrador, <strong>que</strong> vive a<br />

expensas da mulher americana com<br />

<strong>que</strong>m se casara, <strong>um</strong>a médica <strong>de</strong><br />

sucesso, recebe <strong>um</strong>a inesperada<br />

bolsa para escrever o livro sobre<br />

Lazarus. Por essa altura, ele<br />

encontra <strong>um</strong> antigo companheiro do<br />

liceu em Sarajevo, o enigmático<br />

fotógrafo Rora, <strong>um</strong> mitómano<br />

contador <strong>de</strong> estranhas histórias,<br />

como a do louco <strong>que</strong> durante o<br />

cerco corria pelas ruas <strong>de</strong> Sarajevo<br />

com <strong>um</strong> limão enfiado na boca, ou a<br />

da equipa feminina <strong>de</strong> “hó<strong>que</strong>i<br />

subaquático” da Moldávia. E, com o<br />

dinheiro da bolsa, ambos partem<br />

n<strong>um</strong>a viagem a Kishinev, <strong>que</strong> acaba<br />

por se prolongar pelo Leste Europeu<br />

(com retorno a Sarajevo) n<strong>um</strong>a<br />

espécie <strong>de</strong> périplo ao contrário do<br />

<strong>que</strong> cem anos antes Lazarus fizera,<br />

pois Brik “precisava <strong>de</strong> ver o <strong>que</strong><br />

não conseguia imaginar”. (Para<br />

reforçar o lado autobiográfico,<br />

Hemon realizou <strong>de</strong> facto esta viagem<br />

na companhia <strong>de</strong> <strong>um</strong> amigo<br />

fotógrafo, Velibor Bosovic – o livro é<br />

ilustrado com alg<strong>um</strong>as fotografias<br />

suas e outras <strong>dos</strong> arquivos da polícia<br />

<strong>de</strong> Chicago em <strong>que</strong> aparece o corpo<br />

<strong>de</strong> Lazarus Averbuch.) As <strong>de</strong>scrições<br />

vívidas da viagem – a par do<br />

ambiente da Chicago <strong>de</strong> 1908 – são<br />

das partes mais conseguidas do<br />

romance. (Na Ucrânia hospedam-se<br />

n<strong>um</strong> hotel-bor<strong>de</strong>l, o Centro <strong>de</strong><br />

Negócios Bukovina. São guia<strong>dos</strong> por<br />

<strong>um</strong> taxista louco atravessando<br />

cida<strong>de</strong>s <strong>que</strong> mais pareciam <strong>um</strong><br />

‘décor’ <strong>de</strong> filmes pós-cataclismo.<br />

Entram na Moldávia n<strong>um</strong>a<br />

camioneta em <strong>que</strong> to<strong>dos</strong> “cheiravam<br />

mal, eram feios, estavam bêba<strong>dos</strong> e<br />

eram apáticos”. A atmosfera <strong>de</strong><br />

vileza impregna toda a viagem.)<br />

Mas é a ressonância bíblica do<br />

nome Lazarus, o <strong>que</strong> ressuscitou<br />

para <strong>um</strong>a nova vida, <strong>que</strong> oferece a<br />

i<strong>de</strong>ia principal do romance. “Terá<br />

[Lazarus] tido <strong>de</strong> ‘<strong>de</strong>smemorar’ a<br />

sua vida anterior e começar do zero<br />

como <strong>um</strong> imigrante?” Aleksandar<br />

Hemon apresenta a emigração como<br />

<strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> morte seguida <strong>de</strong><br />

ressurreição, <strong>de</strong>pois do <strong>de</strong>sespero,<br />

das <strong>de</strong>silusões e das perdas. E,<br />

também no caso do narrador, essa<br />

morte metafórica foi necessária para<br />

<strong>que</strong> ele começasse finalmente a<br />

Litvínov: tem dignida<strong>de</strong> e bom<br />

senso, mas falta-lhe a chama <strong>que</strong><br />

atiça <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> paixão. O enredo,<br />

as características gerais <strong>dos</strong><br />

protagonistas, temas e enfo<strong>que</strong><br />

social até são comuns aos dois livros,<br />

mas a locomotiva emocional <strong>de</strong><br />

Tolstói é substituída em Turguénev<br />

por subtis esta<strong>dos</strong> <strong>de</strong><br />

intranquilida<strong>de</strong>.<br />

A constância <strong>de</strong> Turguénev<br />

permite-lhe aproximar-se das<br />

personagens principais como n<strong>um</strong><br />

passeio a pé pelas ruas <strong>de</strong> Ba<strong>de</strong>n.<br />

Enquanto elas não aparecem,<br />

atentemos na <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

florista (e não “floreira”, p. 17), <strong>que</strong><br />

diz bem da atmosfera social <strong>que</strong> as<br />

aguarda: <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ignorar o aceno<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong> cliente mal vestido, ela nem<br />

agra<strong>de</strong>ce a outro <strong>que</strong> lhe <strong>de</strong>u <strong>um</strong>a<br />

gorjeta generosa: “Vorochílov estava<br />

vestido com muita elegância, até<br />

mesmo com <strong>um</strong> certo refinamento,<br />

mas os olhos experientes da<br />

parisiense <strong>de</strong>tectaram logo nos seus<br />

mo<strong>dos</strong>, no seu ar, na própria<br />

maneira <strong>de</strong> andar, <strong>que</strong> trazia<br />

vestígios <strong>de</strong> <strong>um</strong> treino militar <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

novo, a ausência <strong>de</strong> <strong>um</strong> ‘chic’<br />

autêntico, puro sangue.”<br />

A atmosfera em <strong>que</strong> “F<strong>um</strong>o” irá<br />

mergulhar é a da aristocracia russa.<br />

E os seus encantos estão <strong>de</strong>stina<strong>dos</strong><br />

a excluir o protagonista Litvínov<br />

(educado na Europa Central, filho <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong> gran<strong>de</strong> proprietário, mas sem<br />

título <strong>de</strong> nobreza), como se adivinha<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início: “<strong>um</strong>a gargalhada<br />

geral chegou até aos seus ouvi<strong>dos</strong>.<br />

Não estavam a rir-se <strong>de</strong>le, mas do há<br />

muito aguardado Monsieur Verdier,<br />

<strong>que</strong> surgira subitamente na<br />

esplanada com <strong>um</strong> chapéu tirolês,<br />

<strong>um</strong>a blusa azul e montado n<strong>um</strong><br />

burro; mas o sangue subiu às faces<br />

<strong>de</strong> Litvínov, <strong>que</strong> se sentiu amargo<br />

(…) ‘Gente vulgar, <strong>de</strong>sprezível!’,<br />

murmurou.”<br />

Litvínov foi noivo da bela Irina (as<br />

páginas mais inspiradas do livro<br />

acontecem quando estão juntos) e<br />

foi abandonado por ela <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

Irina triunfar como <strong>de</strong>butante n<strong>um</strong><br />

baile a <strong>que</strong> só foi por insistência sua.<br />

O reencontro <strong>de</strong> ambos em Ba<strong>de</strong>n<br />

vem revelar a fragilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Litvínov.<br />

Quanto a Irina, o seu futuro<br />

estava esboçado antes <strong>de</strong><br />

conhecê-lo:<br />

“Era <strong>um</strong>a rapariga alta,<br />

bem constituída, com o<br />

peito <strong>um</strong> pouco chato e<br />

os ombros estreitos da<br />

juventu<strong>de</strong>, com a pele<br />

muito branca, raro<br />

na sua ida<strong>de</strong>, pura<br />

e suave como<br />

porcelana, com <strong>um</strong>a<br />

farta cabeleira loira,<br />

on<strong>de</strong> havia tufos escuros<br />

alternando com outros<br />

mais claros. As suas feições,<br />

refinadas, quase<br />

irrepreensivelmente<br />

regulares, não tinham<br />

ainda perdido<br />

completaescrever<br />

o livro <strong>que</strong> ambicionava e<br />

<strong>que</strong> iria or<strong>de</strong>nar a sua vida,<br />

incluindo o casamento. Por isso,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> visitar o cemitério <strong>de</strong><br />

Kishinev, diz: “Uma parte da minha<br />

vida acabou ali, entre a<strong>que</strong>les<br />

túmulos vazios; foi então <strong>que</strong><br />

comecei o meu luto.” O túmulo<br />

vazio é ao mesmo tempo sinal <strong>de</strong><br />

ressurreição e <strong>de</strong> perda.<br />

Como f<strong>um</strong>ar<br />

o encanto<br />

Se fosse <strong>um</strong> filme diríamos<br />

<strong>que</strong> “F<strong>um</strong>o” é <strong>um</strong>a produção<br />

<strong>de</strong> baixo orçamento, <strong>que</strong> aos<br />

<strong>gran<strong>de</strong>s</strong> prefere os pe<strong>que</strong>nos<br />

gestos. Rui Catalão<br />

F<strong>um</strong>o<br />

Ivan Turguénev<br />

(trad. Manuel <strong>de</strong> Seabra)<br />

Relógio d’Água<br />

mmmmn<br />

No seu “ranking”<br />

pessoal <strong>dos</strong><br />

<strong>gran<strong>de</strong>s</strong> escritores<br />

russos, Vladimir<br />

Nabokov, o<br />

professor, colocava<br />

Tolstói em<br />

primeiro lugar,<br />

Gógol em segundo,<br />

Tchékov em terceiro, e em quarto, já<br />

fora das medalhas, Ivan Turguénev<br />

(1818-1883). Mais lembrado por “Pais<br />

e Filhos” e “O Primeiro Amor”,<br />

“F<strong>um</strong>o” (1867) foi escrito quando<br />

Turgénev vivia entre Paris e Ba<strong>de</strong>n-<br />

Ba<strong>de</strong>n. É nesta cida<strong>de</strong> (<strong>que</strong><br />

Dostoievski disfarçou <strong>de</strong><br />

Roletemburgo em “O Jogador”) em<br />

<strong>que</strong> ocorre o dilema <strong>de</strong> Litvínov,<br />

dividido entre o <strong>de</strong>ver amoroso para<br />

com a sua noiva e a tentação <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

paixão antiga.<br />

Em comparação com “Anna<br />

Karenina” (1877) o lugar <strong>de</strong> “F<strong>um</strong>o”<br />

na história da literatura russa do<br />

século XIX é periférico, e assemelhase<br />

em muito ao<br />

lugar <strong>que</strong> Tatiana<br />

ocupa no<br />

coração do<br />

protagonista

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