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O que resta dos grandes sonhos de um país pequeno - Fonoteca ...

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normais<br />

talento<br />

são ingleses, irmãos e gostam <strong>de</strong> futebol. Fizeram <strong>um</strong><br />

duplo, à sombra <strong>de</strong> Prince, Led Zeppelin e XTC. Mas não<br />

<strong>que</strong>riam “fazer o melhor disco do mundo”. João Bonifácio<br />

Peter e David Brewis cresceram em<br />

Sun<strong>de</strong>rland, on<strong>de</strong> ainda vivem e, como<br />

bons ingleses, adoram futebol.<br />

Vêm da “working-class”, certo, mas<br />

os pais “safaram-se bem aca<strong>de</strong>micamente”<br />

e “melhoraram <strong>um</strong> pouco a<br />

sua situação”. Pelo menos ao ponto<br />

<strong>de</strong> po<strong>de</strong>rem comprar instr<strong>um</strong>entos<br />

musicais para os filhos – <strong>que</strong> hoje têm<br />

32 (Peter) e 29 anos (David).<br />

Os instr<strong>um</strong>entos foram postos a<br />

funcionar em 2004, com a dupla a ser<br />

acompanhada por Andrew Moore.<br />

Nessa altura os Field Music tinham os<br />

seus anátemas: “Não estávamos n<strong>um</strong>a<br />

<strong>de</strong> rock, <strong>de</strong> Led Zeppelin ou <strong>de</strong> Cream,<br />

e resolvemos não nos meter nisso.<br />

Queríamos Penguin Cafe Orchestra<br />

e Brian Eno, mas com a ‘experiência’<br />

integrada na estrutura”.<br />

Se quiséssemos ser simplistas podíamos<br />

dizer <strong>que</strong> eram <strong>um</strong>a banda<br />

indie, mas Peter rejeita o epíteto:<br />

“Quisemos fazer <strong>um</strong>a<br />

<strong>de</strong>claração <strong>de</strong><br />

princípios, voltar a<br />

dar amor a essa i<strong>de</strong>ia<br />

<strong>de</strong> álb<strong>um</strong> enquanto<br />

álb<strong>um</strong> e não mero<br />

conjunto <strong>de</strong> canções”<br />

Peter Brewis<br />

“Nem se<strong>que</strong>r sabia <strong>que</strong> fazíamos música<br />

indie. Queríamos fazer boas melodias<br />

e boas harmonias, só isso. Mas<br />

agora <strong>que</strong>ríamos esticar a corda”.<br />

O “agora” refere-se a “Field Music”,<br />

terceiro longa-duração e primeiro em<br />

três anos. No interregno os manos<br />

formaram cada <strong>um</strong> a sua banda, após<br />

o <strong>que</strong> renovaram os Field Music com<br />

as entradas <strong>de</strong> Kev Dosdale e Ian Black,<br />

<strong>que</strong> substituem Andrew Moore.<br />

E a corda foi esticada, não só em<br />

termos estilísticos como em duração:<br />

<strong>um</strong> duplo álb<strong>um</strong> tão diversificado é<br />

coisa <strong>que</strong> já não se usa. Mais ainda: é<br />

coisa <strong>de</strong> melómanos com <strong>um</strong>a crença<br />

in<strong>de</strong>fectível no LP. Mas por trás <strong>de</strong>sta<br />

ambição está também algo <strong>de</strong> retorcido<br />

e perverso: a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir contra<br />

as regras da indústria e, n<strong>um</strong>a altura<br />

em <strong>que</strong> toda a gente lança faixas<br />

<strong>de</strong> mp3, produzir em massa.<br />

“Vamos ser honestos. Eu estou com<br />

32 anos e o David está com 29 – está<br />

a ficar <strong>de</strong>masiado tar<strong>de</strong> para o sucesso.<br />

Estamos n<strong>um</strong> ponto em <strong>que</strong> só<br />

<strong>que</strong>remos fazer o melhor disco do<br />

mundo. Ou o melhor <strong>que</strong> conseguirmos<br />

fazer. Não espero <strong>que</strong> muita gente<br />

compre – mas <strong>de</strong>viam”.<br />

Foi esta vonta<strong>de</strong> <strong>que</strong> já não se usa<br />

<strong>de</strong> “fazer o melhor disco do mundo”<br />

e a certeza <strong>de</strong> <strong>que</strong> ninguém ligaria<br />

peva ao <strong>que</strong> fizessem <strong>que</strong> estiveram<br />

na base <strong>de</strong> “Field Music”. “Queríamos”,<br />

justifica Peter, “<strong>de</strong>ixar <strong>um</strong> testemunho,<br />

algo diferente, algo forte,<br />

por<strong>que</strong> antes fazíamos discos pe<strong>que</strong>nos”.<br />

Os manos começaram a reparar<br />

<strong>que</strong> “hoje toda a gente faz canções e<br />

não álbuns”, pelo <strong>que</strong> resolveram fazer<br />

o oposto: “Quisemos fazer <strong>um</strong>a<br />

<strong>de</strong>claração <strong>de</strong> princípios, voltar a dar<br />

amor a essa i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> álb<strong>um</strong> enquanto<br />

álb<strong>um</strong> e não mero conjunto <strong>de</strong> canções.<br />

Os álbuns têm <strong>de</strong> encontrar <strong>um</strong><br />

mundo próprio e são esses os discos<br />

<strong>de</strong> <strong>que</strong> gostamos”.<br />

Deram por si a colocar <strong>que</strong>stões<br />

existenciais pertinentes, como “O <strong>que</strong><br />

é lançar <strong>um</strong> álb<strong>um</strong>?”. Sabiam <strong>que</strong><br />

<strong>que</strong>riam “<strong>um</strong> disco <strong>que</strong> fosse <strong>um</strong>a<br />

experiência”. Pon<strong>de</strong>ravam na melhor<br />

forma <strong>de</strong> “subverter a indústria”.<br />

Começaram a namorar com a i<strong>de</strong>ia<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong> disco duplo, mas os discos duplos<br />

têm a<strong>que</strong>le velho problema <strong>de</strong><br />

serem conota<strong>dos</strong> com o rock-progressivo,<br />

conceitos estrambólicos e capas<br />

ridículas. Mas <strong>de</strong>pois pensaram “nos<br />

discos duplos <strong>dos</strong> Beatles, no ‘Sign O’<br />

The Times’ do Prince”, e concluíram<br />

<strong>que</strong> “esses discos disparam para todo<br />

o lado”. “À superfície parecem não<br />

fazer sentido mas têm <strong>um</strong>a coerência<br />

interna <strong>que</strong> os une. Por isso não é o<br />

comprimento e a varieda<strong>de</strong> <strong>que</strong> os<br />

torna coerentes”.<br />

E foi aí <strong>que</strong> a i<strong>de</strong>ia se cristalizou:<br />

“Fazer <strong>um</strong> disco incoerente”. Fazer<br />

o disco funcionar “exactamente por<br />

não funcionar”.<br />

“Por norma tentamos fazer <strong>um</strong> todo<br />

coerente, tentamos <strong>que</strong> <strong>um</strong> disco<br />

funcione como <strong>um</strong> todo, <strong>de</strong>sta vez<br />

<strong>que</strong>ríamos <strong>um</strong> disco incoerente”. É<br />

com pena <strong>que</strong> Peter anuncia <strong>que</strong> falharam,<br />

por<strong>que</strong> “apesar da varieda<strong>de</strong>”<br />

o disco lhe soa a Field Music.<br />

“Field Music” “tem os seus temas,<br />

mas não é <strong>um</strong>a narrativa fechada”,<br />

como <strong>um</strong> “Lamb Lies Down On Broadway”,<br />

<strong>dos</strong> Genesis. É, acima <strong>de</strong> tudo,<br />

<strong>um</strong> disco <strong>de</strong> <strong>que</strong>m papou muita<br />

música e <strong>de</strong> <strong>que</strong>m mandou às malvas<br />

o bom gosto.<br />

“Neste disco resolvemos não negar<br />

o nosso amor pelo Jimmy Page”, diz<br />

Peter, comentando o impressionante<br />

número <strong>de</strong> riffs oleosos <strong>que</strong> percorre<br />

o disco. “Que posso dizer? Gostamos<br />

<strong>de</strong> punk e <strong>de</strong> groove. Gostamos <strong>dos</strong><br />

Wire e do Prince e da soul. E resolvemos<br />

pôr isso tudo no álb<strong>um</strong>”.<br />

Chega ao cúmulo <strong>de</strong> dizer <strong>que</strong> <strong>gran<strong>de</strong>s</strong><br />

influências foram bandas como<br />

Aerosmith ou Poison. “Nos anos 70<br />

faziam-se canções enormes <strong>que</strong> por<br />

vezes tinham graça”. Admite: gosta<br />

<strong>dos</strong> Poison. “Têm dois discos bonzinhos<br />

e alg<strong>um</strong>as canções muito boas”.<br />

Res<strong>um</strong>indo: “Queríamos divertir-nos<br />

e não <strong>que</strong>ríamos fingir <strong>que</strong> não nos<br />

divertimos”.<br />

Este tipo <strong>de</strong> admissão com o seu<br />

próprio mau gosto trouxe libertação<br />

à banda. Peter pára <strong>um</strong> pouco para<br />

reflectir sobre “Let’s write a book”,<br />

belíssimo tema <strong>de</strong> funk <strong>de</strong>slavado <strong>de</strong><br />

“Field Music” <strong>que</strong>, segundo diz, tem<br />

feito alg<strong>um</strong>as pessoas torcer o nariz.<br />

“Muita gente po<strong>de</strong> achar <strong>que</strong> é <strong>de</strong><br />

mau gosto. Mas temos prazer em tomar<br />

esses riscos. De qual<strong>que</strong>r modo<br />

ninguém compra os nossos discos,<br />

por isso não é assim <strong>um</strong> risco e tão<br />

gran<strong>de</strong>. E por não sê-lo pu<strong>de</strong>mos dizer<br />

‘Vamos ser funky’ e divertir-nos à<br />

gran<strong>de</strong>”.<br />

“Não <strong>que</strong>remos fazer <strong>de</strong> conta <strong>que</strong><br />

somos negros”, explica, “isso seria<br />

ridículo”. Por estes dias pensam em<br />

si próprios como “<strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong><br />

Hall & Oates”, dupla <strong>que</strong> produziu<br />

sucessivos êxitos (não obrigatoriamente<br />

<strong>de</strong> bom gosto) e <strong>que</strong> “faziam<br />

funk, mas muito muito branco”.<br />

Mas a imprensa não tem ido nesta<br />

cantiga. Tem elogiado o disco, tem-se<br />

atirado ao ar com o disco, e inevitavelmente<br />

tem-nos comparado com os<br />

XTC. “Não percebo bem a comparação,<br />

por<strong>que</strong> não ouvi mais <strong>que</strong> os dois<br />

primeiros discos. Nunca ouvi o ‘Skylarking’<br />

e nunca gostei muito do ‘Nonesuch’”,<br />

confessa Peter, <strong>que</strong> levou logo<br />

ali <strong>um</strong>a ensaboa<strong>de</strong>la. “Mas se as pessoas<br />

conseguem ouvir coisas <strong>que</strong> eu<br />

não consigo, isso é óptimo. Mas a minha<br />

opinião é a mais importante”, diz,<br />

<strong>de</strong>satando a rir. “Não, se quiserem<br />

dizer <strong>que</strong> é <strong>um</strong>a merda também po<strong>de</strong>m”.<br />

Quem ainda não tem muita opinião<br />

sobre o disco é o próprio Peter. “Só o<br />

acabei há seis meses. Temos <strong>um</strong>a<br />

i<strong>de</strong>ia do <strong>que</strong> estamos a fazer, mas é<br />

<strong>um</strong>a i<strong>de</strong>ia toldada pela ansieda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

fazer”.<br />

“Só agora” voltou a ouvir o disco.<br />

“Comprei <strong>um</strong> exemplar e gostei. Pensei<br />

‘Eu compraria isto’”. Perguntamos-lhe<br />

se o sucesso já chegou ao<br />

ponto <strong>de</strong> se disfarçar para comprar o<br />

seu disco. “Confesso: disfarcei-me<br />

para não ser reconhecido. Deixei crescer<br />

a barba e pus óculos <strong>de</strong> sol como<br />

o Joaquin Phoenix”. Desata a rir e <strong>de</strong>pois<br />

diz n<strong>um</strong> tom lamuriento verda<strong>de</strong>iramente<br />

cómico: “Honestamente:<br />

se eu fosse tão bonito quanto o Joaquin<br />

Phoenix ,não fazia música”.<br />

Da próxima vez <strong>que</strong> vos disserem<br />

<strong>que</strong> os músicos ingleses <strong>de</strong> talento são<br />

rufias arrogantes lembrem-se <strong>dos</strong><br />

Field Music.<br />

Ver crítica <strong>de</strong> discos págs. 49 e segs.<br />

Ípsilon • Sexta-feira 2 Abril 2010 • 23

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