REVISTA PORTUGUESA DE CIRURGIA CARDIO-TOR áCICA E VASCULARfrequentemente acompanha esta patologia, é o resultado ouda rotura das anastomoses protésico-arteriais para o interiordo tubo digestivo ou do sangramento dos bordos da lesãoulcerada e perfurada. Nas fístulas paraprotésicas, é possívelequacionar a possibilidade de a hemorragia digestiva podertambém estar relacionada com a actuação das enzimas pancreáticasproteolíticas sobre os poros da prótese de dacron,tornando-a permeável ao sangue, de forma intermitente.Cerca de 0,36% a 1,6% de todos os doentes submetidosa cirurgia reconstrutiva da aorta abdominal vêm adesenvolver esta complicação num período de tempo muitovariável; pelo menos 36% dos doentes desenvolvem-na após5 anos. 3 Esta patologia cursa com taxas de mortalidademuito elevadas, que chegam a atingir os 50%, e que nãose modificaram de forma significativa nas últimas décadas,continuando a constituir um desafio nas áreas do diagnósticoe da terapêutica. 4O caso clínico que se descreve ilustra estes desafiose, na sua vertente terapêutica, permite uma discussãosobre as várias alternativas para a resolução dos problemasdo âmbito vascular (manutenção, substituição ou remoçãoda prótese aórtica; preservação da circulação pélvica e dosmembros inferiores; soluções para o eventual problema docoto aórtico) e do foro relativo à lesão duodenal.Caso clínicoDoente do sexo masculino, de 77 anos de idade,que recorreu ao Atendimento Médico Permanente do Hospitaldo Luz devido a um quadro de dor abdominal difusaem cólica, sensação de enjoo e melenas, sem aumento datemperatura cutânea. Este quadro doloroso, que mais umavez se agravara, acompanhava o doente nos últimos seismeses, razão pela qual, no início desse período, tinha realizadouma tomografia computorizada (TC) abdominal e pélvicaque não foi adequadamente valorizada.Entre os antecedentes pessoais, salientava-se umaintervenção cirúrgica prévia para tratamento de um aneurismada aorta abdominal 11 anos antes e uma cirurgia derevascularização coronária três meses antes, esta última jádepois de estarem presentes as queixas referidas.Nesta apresentação, o doente encontrava-se emagrecido,descorado, com ruídos hidroaéreos presentes ecom um abdómen doloroso à palpação profunda, mas semdor à descompressão. Os pulsos femorais, popliteus e distaiseram palpáveis e de amplitude normal. As análises laboratoriaisrevelaram uma hemoglobina de 7,3 g, leucócitos24x109/L com 84% de neutrófilos, proteína C reactiva de11 mg/dL; os valores referentes à função renal e hepáticaestavam normais. O ecocardiograma não mostrou alteraçõessignificativas.Foi efectuada uma nova TC abdominal e pélvica (Fig1) que, para além do intenso infiltrado inflamatório peri--protésico que já era evidente no exame anterior, realizadoseis meses antes, revelava uma presença gasosa em torno daprótese; a terceira e quarta porções do duodeno estavam emgrande proximidade com a prótese aórtica. Para completara investigação diagnóstica, o doente foi ainda submetido aendoscopia digestiva alta (Fig. 2) que evidenciou a presençade uma úlcera de fundo nacarado entre a terceira e a quartaporções do duodeno, com volumoso coágulo aderente ecom pequena hemorragia em toalha, compatível com a suspeitaimagiológica de fístula aorto-duodenal.Figura 1Imagens de TC após administração de contraste. À esquerda arco duodenal em contacto com o aneurisma inflamatório (seta 1), colecçãoinflamatória (seta 2). À direita abcesso do psoas esquerdo238 Volume XVIII - N.º 4
REVISTA PORTUGUESA DE CIRURGIA CARDIO-TOR áCICA E VASCULARFigura 2Endoscopia digestiva alta. Hemorragia em toalha.Face ao diagnóstico de FAES num doente que seapresentava estável do ponto de vista hemodinâmico, foiprogramado o tratamento cirúrgico para o dia seguinte.A intervenção cirúrgica durou cerca de 10 horas e decorreusem imprevistos, tendo o doente sido transfundido com400 mL de sangue recolhido no cell-saver, 1200 mL de concentradode eritrócitos e 680 mL de plasma. Do ponto devista técnico, o procedimento cirúrgico efectuado pode serdividido em três etapas:- Primeira etapa - revascularização pélvica e dosmembros inferiores através de um bypass axilo--bifemoral, utilizando prótese de politetrafluoroetileno(PTFE) com 8 mm de diâmetro;- Segunda etapa - remoção da prótese previamenteimplantada de dacron em posição aorto--aórtica e encerramento do coto aórtico;- Terceira etapa - tratamento da olesão duodenal.A primeira etapa teve por objectivo garantir a circulaçãopélvica e dos membros inferiores. Foi realizada no inícioda intervenção, e não no fim, para evitar o período de isquemiarelativamente prolongado que ocorreria na sequênciada remoção da prótese aórtica, seguida dos procedimentosnecessários ao encerramento do coto aórtico e ao tratamentoda lesão duodenal.A segunda etapa foi efectuada através de uma laparotomiaxifo-púbica. Após a libertação das aderências entreas ansas intestinais, foi laqueada a veia renal esquerda,isolada a aorta abdominal imediatamente acima das artériasrenais e isoladas ambas as artérias ilíacas comuns; emseguida, procedeu-se à clampagem da aorta supra-renal ede ambas as artérias ilíacas comuns; foi aberto longitudinalmenteo retroperitoneu sobre o processo inflamatório queenvolvia a prótese aórtica; foi identificada a prótese e umaperfuração do duodeno entre D3 e D4 com cerca de 3 cmde diâmetro (Fig. 3). A prótese aórtica foi removida na suatotalidade e o coto aórtico proximal encerrado através deuma laqueação simples com fio de seda e o remanescente,distal a esta laqueação, reforçado com uma sutura contínuade polipropileno (Fig. 4 e 5). Seguiu-se a remoção do clampFigura 3Figura 4Lesão duodenal relacionada com a FAES, após remoção daprótese aórtica.Imagem intra-operatória. Coto aórtico após laqueaçãosimples com fio de seda; em seguida, o segmentoremanescente e distal a esta laqueação foi reforçadoatravés da sutura de polipropileno.Volume XVIII - N.º 4239