33A TERRA E OS HOMENS DA BEIRA INTERIOR NOS RELATÓRIOS MÉDICOSLOCAIS DOS INÍCIOS DO SÉCULO XIXMaria Adelaide Neto Salvado *A 26 de Outubro de 1812 foi publica<strong>da</strong> uma Portaria de grande alcance social. Tinha por título Portariaprovidenciando a bem <strong>da</strong> Saúde Pública (1) e nela se encontram explicita<strong>da</strong>s as intenções de actuação emmatéria de Saúde Pública do então Princípe D. João, futuro D. João VI.Essa actuação procurava fun<strong>da</strong>mentar-se nas reali<strong>da</strong>des do país total, através duma legislação que desseresposta pronta e eficaz às necessi<strong>da</strong>des reais e aos problemas concretos dos portugueses de há cerca de200 anos em matéria de saúde, fosse qual fosse o ponto que habitassem.O modo de conseguir concretizar tais fins, numaépoca em que as comunicações eram difíceis e asinformações demora<strong>da</strong>s, explicita-o a Portaria emtermos claros e pragmáticos: “Cumpre coligir em umponto central as observações dos Facultativos sobreas enfermi<strong>da</strong>des que grassam em ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>sterras do Reino, suas causas, tratamento, e meiosde as evitar, ou remediar (...) não só para quepublicando-se as ditas observações por via <strong>da</strong>impressão possam os Médicos e Cirurgiões adiantaros seus conhecimentos em benefício <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>demas para que sua Alteza, informando-se dos ditosfactos, dê oportunamente as providências quedependem <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de civil”.Duma forma concisa e igualmente pragmáticaaponta a Portaria o caminho para materializar estasintenções. Todos os provedores <strong>da</strong>s Comarcas doReino ficavam pela respectiva Portaria intimados aenviar à Intendência <strong>da</strong> Polícia <strong>da</strong> Corte e Reino, até15 de Dezembro, desse ano de 1812, uma relaçãoexacta dos médicos e cirurgiões quer dos HospitaisCivis, quer <strong>da</strong>s Casas dos Expostos, Cadeias ou dosPartidos <strong>da</strong>s Câmaras.Todos esses médicos eram obrigados a,mensalmente, e até ao dia 15, remeterem aosProvedores <strong>da</strong>s Comarcas <strong>da</strong> área onde exerciamuma relação <strong>da</strong>s doenças que haviam tratado duranteo mês anterior, indicando não só as suascausas prováveis, como também o tratamento queverificassem ter conseguido melhores resultadospara a sua cura. Essas relações mensais eram,posteriormente, envia<strong>da</strong>s pelos Provedores <strong>da</strong>sCâmaras à Intendência Geral <strong>da</strong> Polícia que as dirigiapor sua vez à Secretaria de Estado dos Negócios doReino para publicação no Diário de Coimbra.Era, pois, a Intendência Geral <strong>da</strong> Polícia o pontocentral onde as informações de todo o Reino secoligiam, e o Diário de Coimbra o órgão oficial dedivulgação <strong>da</strong>s informações em matéria de SaúdePública.Procura de consonância entre quem legisla emmatéria de saúde e quem pratica a medicina, permutade experiências e de informações entre o CorpoMédico do Reino sem distinção nem elitismos delugares, possibili<strong>da</strong>de de abertura e comunicaçãoentre povoações mais isola<strong>da</strong>s geograficamente eoutras que, pela posição, mais perto estariam <strong>da</strong>sinovações e <strong>da</strong>s novi<strong>da</strong>des - rica e sobretudo degrande actuali<strong>da</strong>de é a matéria desta Portaria de 12de Outubro de 1812.E importa desde já realçar que os Relatórios ou,melhor, as Contas, como na época se designavam,nos proporcionam, hoje, a perto de 200 anos dedistância, informações preciosas que tocam umagama varia<strong>da</strong> de aspectos que vão desde ameteorologia às condições sociais e económicas devárias regiões portuguesas, <strong>da</strong>s atitudes <strong>da</strong>spopulações perante a vi<strong>da</strong> e a morte, às inovações<strong>da</strong> ciência médica nessa primeira metade do séculoXIX.É sobre algumas <strong>da</strong>s Contas escritas por doismédicos que pelos anos de 1815 a 1817 exerciam asua acção na Beira Interior (mais concretamente, naregião de Alpedrinha e I<strong>da</strong>nha-a-Nova) que iremoscentrar a nossa atenção.Nessas Contas se pormenorizam informaçõesacerca <strong>da</strong>s condições atmosféricas desses anosdistantes. Assim, pelos Relatórios de Jorge Gasparde Oliveira Rolão (2) , médico do Partido de Alpedrinha,ficamos a saber ter sido pouco quente o Verão de1816 e ameno o mês de Janeiro de 1817 “sem chuvassucessivas, ventos fortes e frios e nevões de muitosdias’’.Foi esta contínua ameni<strong>da</strong>de climática de estaçõespouco marca<strong>da</strong>s que não permitiu, nas palavras domédico de Alpedrinha, “mu<strong>da</strong>nça nos movimentos
34<strong>da</strong>s máquinas animais pelo estado mu<strong>da</strong>do <strong>da</strong>estação invernosa”, tornando raras, nesse Janeirode 1817, as moléstias de “fluxão” próprias <strong>da</strong> quadrainvernosa: catarros, pleurises e peripnemoniasbiliosas.Estas doenças atacavam particularmente aspessoas que tinham contraído as doenças então maisfrequentes nos estios quentes <strong>da</strong> Beira Interior:carbúnculos, desinterias, sezões, inflamações dofígado. Ora, a ameni<strong>da</strong>de do Verão de 1816,diminuindo o número de doenças desgastantespróprias dessa estação, alia<strong>da</strong> à continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong>ameni<strong>da</strong>de climática do Inverno, foi, segundo JorgeRolão, a causa <strong>da</strong> rari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s doenças típicas <strong>da</strong>estação invernosa no Janeiro de 1817.Os efeitos perniciosos sobre a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s plantas esobre a agricultura, que a ausência de chuvas e astemperaturas eleva<strong>da</strong>s provocaram, são referi<strong>da</strong>s porJorge Rolão na conta de Fevereiro. A prematura‘’desenvolução dos gomos’’ <strong>da</strong>s árvores de fruto, asecura dos campos ‘’definhando’’ os cereais e a“ervagem necessária para a sustentação dos gados’’,a dificul<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ‘’roteação <strong>da</strong>s terras’’ - são aspectosque, na conta de Fevereiro, Jorge Rolão evidencia,considerando-os uma ameaça de ‘’carestia geral’’.A actuali<strong>da</strong>de destas ilações económicas, adescrição <strong>da</strong>s implicações na Natureza deste quadroclimático dos primeiros meses de 1817, tãoestranhamente semelhantes ao deste ano de 1989,evidenciam, penso, o contributo valioso que estesRelatórios médicos oferecem para o estudo <strong>da</strong>smutações cíclicas do clima.No entanto, o aspecto que hoje importa realçar é o<strong>da</strong> relação directa entre as condições atmosféricase a saúde dos Homens, que, em várias passagens<strong>da</strong>s Contas dos médicos <strong>da</strong> Beira Interior de 1817,aflora com alguma frequência.Assim, na Conta de Fevereiro do médico deAlpedrinha, são descritas, com pormenor, ascondições atmosféricas senti<strong>da</strong>s nesse mês e, emespecial, releva<strong>da</strong>s as temperaturas singularmentealtas que se verificaram. Escreveu Jorge Rolão a esterespeito: “Quase em todo ele a temperatura foi igualou superior à própria <strong>da</strong> Primavera”, concluindo que“a natureza animal parece ter folgado com o géniomacio do mês não havendo moléstias irmãs, e emnúmero, como acontece quando são filhas <strong>da</strong>influência duma quadra qualquer, faltando até aspróprias desta, pois que apenas têm aparecidoligeiros catarros’’.Já na Conta de Abril, desse mesmo ano, JorgeRolão reflecte acerca dos efeitos <strong>da</strong>s grandes amplitudestérmicas diurnas e <strong>da</strong> instabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>temperatura nos termos seguintes: ‘’A diferença detemperatura em quase todos os dias de manhã enoite compara<strong>da</strong> para a do meio dia era de 6 e maisgraus. Dias nublados 9, nublados sem nuvens 6, comtrovões e relâmpagos 4, com saraiva<strong>da</strong>s 2 e no últimoos granizos eram volumosos, duros, muito bastos earremeçados com ímpeto. Este mês produziu tantoscatarros que parecia uma epidemia’’.Curiosa é também outra passagem desta Contade Abril em que se referencia uma série de malessofridos nesse mês pelas gentes <strong>da</strong> região deAlpedrinha: “Dor nos órgãos superiores, dores nosmúsculos torácicos, cefalagias intensas’’, malesacerca dos quais Jorge Rolão esclarece que, emborativesse mitigado pelos métodos normais, não sedesvaneceram de todo, ‘’por isso que era constantea quali<strong>da</strong>de atmosférica, que os produzia, eperpetuava’’.Numa outra passagem, esta <strong>da</strong> Conta de Fevereiro,há uma reflexão extremamente curiosa acerca <strong>da</strong>srelações <strong>da</strong>s condições atmosféricas com asdoenças que, julgo, merecerá relevância especial.Escreve Jorge Rolão: “Como o Verão de 1816 fossequente e seco, apareceram raríssimas sezões e jáalgumas esquinências; o Outono assemelhou-se àestação precedente e a moléstia começou a fazersemais geral, tomando a vez <strong>da</strong>s sezões. Supusque a secura junto com o calor deveria produziraquela substituição epidémica, mas esta não deveriater carácter contagioso; (...) devendo por isso atribuirseo grande número de tais doentes àqueladisposição atmosférica e nunca a contágio (...);porém mudei de parecer vendo entranhar-se aepidemia pelo decurso do Inverno, no qual as chuvasdefendiam já a secura <strong>da</strong> atmosfera do aleivo de sercom causa dela, e observando de mais que amoléstia corria a todos na família, onde tinha entrado,escolhendo principalmente aqueles que mais seavizinhavam ao doente, tive que era contagiosa fosseou não fosse envia<strong>da</strong> por uma <strong>da</strong><strong>da</strong> constituição <strong>da</strong>atmosfera ou por algum quid incógito e heterogéneoque nela voltejasse”.Vin<strong>da</strong> <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong>de com Hipócrates, seu precursor,a relação entre as condições atmosféricas e asaúde dos Homens mantém-se como uma on<strong>da</strong> defundo no decorrer dos tempos e é amplamente aceite(como o comprovam os Relatórios) pelos médicos
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