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Untitled - História da Medicina

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36teve uma eresipela na cara e que, apesar <strong>da</strong> doençafazer progressos, não quis a dita mulher recorrer à<strong>Medicina</strong> senão quando se persuadiu de que iamorrer. As razões desta atitude explicita-as o médiconos seguintes termos: ‘’Pelo prejuízo que aqui hácontra todo e qualquer remédio no tempo <strong>da</strong>prenhez”.Este preconceito acabou, no mencionado caso, porser fatal, pois a doente, refere o Médico, trata<strong>da</strong> duranteoito dias intensamente com um cozimento debútua, quássia, casca de raiz de salsa hortense, ebagas de zimbro, no fim deles abortou e, três diasdepois, morreu.Um outro caso relatado pelo médico de Alpedrinhateve, no entanto, um desfecho mais feliz. Tratou-sedum caso de febre puerperal que se manifestou aseguir a fortes dores abdominais que sedesencadearam logo após o parto e que, no dizer domédico, ‘’as comadres pretenderam mitigar fazendolhebeber vinhos quentes com aromas’’. Só depoisde verifica<strong>da</strong> a ineficácia do tratamento <strong>da</strong>s“comadres’’, o médico foi chamado, mas desta vez,felizmente, ain<strong>da</strong> a tempo.Fenómeno de longa duração, neste interior <strong>da</strong>Beira, consiste na primazia atribuí<strong>da</strong> ao poder <strong>da</strong>comadre sobre a eficácia do médico. Até bem pertode nós, era ela, essa “velha suja, talha<strong>da</strong> em pedraenruga<strong>da</strong>, sem sorrisos nem lágrimas”, como tãobem a caracterizou Fernando Namora (5) , que possuíao privilégio de ser a primeira a “espreitar a entra<strong>da</strong>no mundo’’ de ca<strong>da</strong> novo ser.Parece, então, depreender-se que, na região deI<strong>da</strong>nha-a-Nova, era norma geral o recurso aoscui<strong>da</strong>dos <strong>da</strong> medicina somente quando a doençaatingia um grau de extrema gravi<strong>da</strong>de.Três casos, todos mortais, exemplificam este facto:o de uma mulher de 45 anos a quem nos fins deSetembro de 1816 se lhe suspendeu a menstruaçãoe “tendo começado logo a inchar’’ (lê-se no relatório)só recorreu à medicina em Janeiro de 1817, isto é,quatro meses depois; outro caso, este de um homemde 60 anos que só acudiu aos cui<strong>da</strong>dos médicos emAbril, num estado (esclarece o relatório) “já exauridode forças pela moléstia (pleuriz) que tinha tido nosfins de Fevereiro e <strong>da</strong> qual não se havia podidorestabelecer pela sua indigência”; e, finalmente, ocaso de uma mulher ataca<strong>da</strong> de tísica pulmonar queprocurou os cui<strong>da</strong>dos médicos somente oito mesesdepois de declara<strong>da</strong> a doença.Acerca deste último caso lê-se no relatório: “Vendoporém que não tinha conseguido melhoras nospoucos dias, que usou dos remédios, não quiscontinuar com eles, e desde então não tem tidotratamento algum. A moléstia tem feito progressosrápidos, e a diarreia, que apareceu, indica que estáchegado o termo fatal”.Um desencanto amargo perante a atitude <strong>da</strong>doente, a impossibili<strong>da</strong>de de actuação num tal casode aceitação fatalista <strong>da</strong> morte transparecem nestaslinhas do Relatório de I<strong>da</strong>nha-a-Nova de Março de1817. Situações duras de trabalho, descriçõespormenoriza<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s condições do tempoatmosférico, estratificação social de certas doenças,preconceitos relativos a determinados estados - sãoaspectos que afloram nestas Contas. Mas por elasperpassa, de igual modo, um desengano amargo,fruto <strong>da</strong>quilo a que hoje chamamos de ‘’peso <strong>da</strong>interiori<strong>da</strong>de” e que se materializava, nos princípiosdo século XIX, através <strong>da</strong>s diferenças marca<strong>da</strong>s entreas condições de trabalho deste Interior pobre eas povoações ricas doutras zonas.Parece-me ser essa a conclusão que se depreende<strong>da</strong> seguinte passagem <strong>da</strong> prosa do médico deAlpedrinha: “Nunca posso oferecer diárioscircunstanciados <strong>da</strong>s moléstias que trato, nemmesmo <strong>da</strong> vila em que resido, por ser distraído comvisitas fora. E, amargamente, compara a suaactuação com a dos que frequentam os grandeshospitais e que poucas vezes saem <strong>da</strong>s povoaçõesricas, em que praticam a medicina, ‘’podendocoordenar os sintomas, apresentando-os no mesmoquadro em que a natureza os coloca, e tirar efeitosdo tratamento estabelecido, deduções rigorosas, queverifica<strong>da</strong>s por observações repeti<strong>da</strong>s se tornammáximas sensacionais e quase teoremas na prática<strong>da</strong> <strong>Medicina</strong>’’.Será que o passar dos tempos apagou asdiferenças? Será que a interiori<strong>da</strong>de estará apenasno fundo de ca<strong>da</strong> um de nós, ou continuará ela apesar, no nosso trabalho e na nossa vi<strong>da</strong>, como umafatali<strong>da</strong>de para todo o sempre?Esperemos que esta região <strong>da</strong> Beira Interior,atenua<strong>da</strong>s as assimetrias, quer no campo <strong>da</strong><strong>Medicina</strong>, quer no <strong>da</strong>s outras áreas do Saber, setransforme efectivamente, com ou semregionalização, naquilo por que todos nós que aquivivemos tão fortemente ansiamos: uma terra que nãoreoudie os seus filhos, num lugar não de pas-sagem,mas de destino.NOTAS(1) - Nas transcrições do Diário do Governo surgi<strong>da</strong>sno nosso texto foi actualiza<strong>da</strong> a ortografia.(2) - “Relatório’’ de Janeiro de 1817, Diário de Coimbra,núm. LI, parte I, pp. 156 a 159.‘’Relatório’’ dos meses de Fevereiro, Março, Abril e Maiode 1817, Diário de Coimbra, num LVI, parte I, pp. 80 a 94.(3) - ‘’Relatório dos primeiros cinco meses de 1817”,Diário de Coimbra, núm. LVI, parte I, pp. 132 a 136.(4) - Fernando Namora, Retalhos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de um médico,Lisboa, Círculo de Leitores, 1975, p. 136.(5) - Fernando Namora, Ob. Cit., p. 18.* Docente na Escola Superior de Educação de CasteloBranco.

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