Toque de MidasEm “My Beautiful Dark Twisted Fantasy” Kanye Westprova que há poucos como ele: estrela incontestada, esteta arrojadoe, contraditório até à medula, voz da consciência negra enquantocresce como ícone transversal. É o mais próximo que temosde um Midas da pop. Mário LopesKanye West, megalómano, fotografadocomo Cristo ensanguentado, coroade espinhos esfacelando-lhe a testa.Kanye West, egocêntrico, interrompendodiscursos em directo televisivo:“‘I’mma let you finish’”. KanyeWest, tipo transparente, a falar emdirecto com o mundo a toda a hora.Editou o seu álbum de estreia, “CollegeDropout”, em Fevereiro de 2004,o mesmo mês em que foi lançado oFacebook: e ei-lo a escrever freneticamenteno blogue e no twitter nomesmo tom com que fala, ou seja, emmaiúsculas e a carregar nos pontosde exclamação, ei-lo a lançar <strong>na</strong> suapági<strong>na</strong> de Facebook, coisa <strong>na</strong>turalpara ele, crescendo de ansiedade paranós, canções e projectos de cançõesque formariam aquilo que conhecemoshoje como “My BeautifulDark Twisted Fantasy”.É o seu quinto álbum, é a quintavez que não falha, e é mais que isso.Kanye West a dis<strong>parar</strong> em todas asdirecções – contra os que o invejam,contra os que o detestam, contra oracismo latente <strong>na</strong> sociedade america<strong>na</strong>,contra a ditadura do politicamentecorrecto, contra si próprio.Mas não só contra. “My Beautiful DarkFantasy” é todo a favor: é o hip hopcomo corpo sobre o qual tudo seconstrói (samples dos King Crimsone dos Mojo Men, guitarras à Funkadelic,coros de tragédia grega, orquestraçõesopulentas e até o folkye BonIver a juntar-se à criação, até EltonJohn a tocar uma pia<strong>na</strong>da). É um épicocom herói óbvio no centro, rodeadode conspiradores como Jay-Z,Rihan<strong>na</strong>, RZA ou Swizz Beatz, escritocomo <strong>na</strong>rrativa de vitória pessoal ecomo manifesto estético lançado aomundo: “Is hip hop just a euphemismfor a new religion? The soul music forthe slaves that the youth is missing?This is more than just my road to redemption”– as rimas são de “Gorgeous”,mas o tom está espalhado portodo o álbum. Um álbum onde KanyeWest, que era mais “Cosby Show” que“puto de rua” quando começou a produzirpara Jay-Z no início da década,prova, uma vez mais e por fim, quepoucos mais haverá como ele, hoje,capazes de ser estrela pop incontestada,esteta arrojado e, contraditórioaté à medula, voz da consciência negra,fiel às raízes, que atira versos como“What’s a black beatle anyway? Ablack roach” enquanto cresce comoícone absolutamente transversal.Nos seus fatos impecáveis – classeMarvin Gaye em corpo de puto-génio,birrento mas irresistível -, Kanye Westé o tipo que disse um dia não existir<strong>na</strong>da mais “bling” que tocar em frentea uma orquestra, é o tipo que tevea lata de afirmar, ao primeiro álbum,“como poderiam seu eu e desejar seroutra pessoa?”, e que poucos anosdepois, ciente do prazer que temosem ver os ídolos em queda, provocava:“Se eu fosse mais convencido edeixasse as coisas rolar, a minha vidaseria mais fácil, mas vocês não se divertiriamtanto: a minha miséria é ovosso prazer”. Disse-o em 2006 <strong>na</strong>“Rolling Stone” em que surgiu retratadoenquanto Cristo, e a frase explicamuito do que construiu este extraordinário“My Beautiful Dark TwistedFantasy”.É impossível contê-loJay-Z é o CEO do hip hop, um dadoadquirido que não nos desaponta,mas que também falha em surpreender.Eminem tornou-se um “realityshow” de si próprio, que ressurgiuregurgitando o mesmo de há dezanos. Lil Wayne é a nova esperança,o som das ruas erguendo-se com talento,irreverência e clamor até aotopo. E Drake, oposto elegante deWayne, parece a caminho da grandeza.Mas Kanye West é outro campeo<strong>na</strong>to.É impossível contê-lo. Quer sermaior que Michael Jackson, quer sero maior artista do seu tempo e é-lheindiferente que vejam como ridículoenunciar algo desse calibre. Um homemde objectivos: “Ter canções quesejam respeitadas em todo o lado, teralgum tipo de influência <strong>na</strong> cultura emudar o som da música, e inspirarartistas em ascensão a remar contraa maré”. E um homem com certezas:“Se dissesse que ainda não conseguitudo isso, estaria a entrar numa modéstiade merda à Hollywood, e issoé simplesmente estúpido”.Este não era Kanye West hoje, noano 2010 em que edita “My BeautifulDark Twisted Fantasy”, álbum quevem sendo recebido com justo clamoronde quer que chegue, álbum editadodepois de Kanye West ter passado pelaprovação de perceber que, afi<strong>na</strong>l,existia a possibilidade, a mera possibilidade,de não ser um Midas pósmoderno.Acontece que “My BeautifulDark Twisted Fantasy” prova quesim, Kanye é o mais próximo que temos,hoje, de um Midas da pop. Alguémque transformou a insegurançae o falhanço em fermento de grandeza.Hoje, sabemo-lo. O ano passado,porém, o cenário parecia diferente.Em Setembro de 2009, invadiu opalco dos MTV Music Awards, quandoTaylor Swift recebia um prémio. Interrompeua jovem teen-idol da countrye deixou-a com beicinho estarrecidoenquanto elogiava o vídeo deBeyoncé, também nomeada. Foi asegunda invasão de palco de KanyeWest.Três anos antes, <strong>na</strong> mesma MTV,os protagonistas foram os francesesJustice e os ingleses Simian, vencedorescom “We are your friends”: “Touchthe sky”, o vídeo com que Kanyeconcorrera, devia ter ganho “porquecustou um milhão de dólares, tem aPamela Anderson” e, último argumento,“eu salto sobre penhascos emerdas assim”.Quando editou o primeiro álbum,“College Dropout”, em 2004, disseque qualquer publicação que não lheatribuísse nota máxima perderia credibilidade.Mas a verdade é que foidifícil encontrar uma que não o considerasseobra de destaque. E, em2006, depois da explosão perante oolhar surpreendido e divertido dosJustice e Simian, tornou-se próximoe fã do duo francês. Em 2009, porém,tudo foi diferente. A sua megalomaniadeixou uma criança chamada TaylorSwift à beira das lágrimas, Kanye Westtornou-se paródia viral – o youtubeestá recheado de variações do seu“I’mma let you finish, but...” - e atéBarack Obama, o Presidente queapoiara, o apelidou de “cretino” pelaexplosão em directo.E depois, chegou o Presidente anterior,George W. Bush, a recordarpolémicas mais antigas. Em 2005,Kanye fugiu ao guião de um programade recolha de fundos para os desalojadospelo Katri<strong>na</strong> e lançou às câmaraso famoso: “George W. Bush nãogosta de negros”. Bush, ele que passoupelo 11 de Setembro e as duasguerras que se seguiram, consideroua acusação um dos momentos “maisrepug<strong>na</strong>ntes” da sua presidência.Mau <strong>na</strong> modéstia,bom no restoQuando afirmou que queria “mudaro som da música” e “influenciar a cultura”,estávamos no fi<strong>na</strong>l de 2006.Tinha dois álbuns editados e o segundo,“Late Registration” (2005), tor<strong>na</strong>ra-ouma força do hip-hop. O rapperda classe média, que gostava de usarNão é um homemdo seu tempo ape<strong>na</strong>spela música quefaz - também o épela forma como age.Como é habitualno hip hop,a autobiografiaé a sua arte - masde forma agudizadapólos rosa e que tinha como ícone umurso de peluche, nos antípodas dosdurões do bling e dos revólveres como50 Cent, impusera no mainstreamalgo novo, de novo: um hip hop repletode referências às suas raízessoul, equilibrado entre o activismodos activistas da palavra, de Gil Scot-Heron ao amigo Common, que produziuem “Be”, mas atento aos si<strong>na</strong>iscontemporâneos e com um sentidolúdico irrepreensível. O MC e produtorque tinha como bandas preferidasos Franz Ferdi<strong>na</strong>nd e os Killers, quecitava os Portishead como referênciapara as suas orquestrações, e LoiusVuitton como símbolo de estilo, estabeleceuum corte. Construiu-se a simesmo: “Não sou especialmente talentosoem <strong>na</strong>da excepto <strong>na</strong> minhahabilidade para aprender. É isso quefaço. É para isso que aqui estou”, diziaao “Guardian” em 2005.Acto contínuo, perguntavam-lheem que é que era mau. E West pensoue pensou até dar uma não respostaelucidativa: “Vá lá, pá! É a perguntamais difícil que já me fizeram”. KanyeWest é mau <strong>na</strong> modéstia. Tudo o restoaprendeu rápido e muito bem.Com “Graduation”, de 2007, tornoua sua música mais abrangente emenos categorizável, transformandoo hip hop em marcha de sintetizadores.Depois, qual Marvin Gaye digital,editou o pessoalíssimo “808s & Heartbreak”(2008), álbum de pop sintética,alieníge<strong>na</strong>, com voz processadapor Auto-Tunes, e passou com distinçãoo arrojado gesto artístico. Agora,depois de Taylor Swift e de Obama,quando o homem que parecia incapazde falhar, mesmo que lançasse as“boutades” mais egocêntricas, pareciatransformar-se em paródia, ouvimo-loem “My Beautiful Dark TwistedFantasy” e ouvimo-lo dis<strong>parar</strong> algocomo “I went from the favourite tothe most hated” sabendo que já viroua situação em seu favor.Claro que os episódios Obama,Taylor Swift e Bush são insignificânciasno seu percurso musical. MasKanye West não é tão declaradamenteum homem do seu tempo ape<strong>na</strong>spela música que faz - também o é pelaforma como age. Como é habitualno hip hop, a autobiografia é a suaarte - mas de forma agudizada. Transformao palco mediático em zo<strong>na</strong> deacção e a sua música em destilaçãodo quadro mental que habita.O resto? O resto é um talento insaciável,tão grande quanto a sua megalomania,e a crença i<strong>na</strong>balável deque sim, será o maior artista do seutempo. Com “My Beautiful Dark TwistedFantasy”, está no bom caminho.Ver crítica de discos págs. 39 e segs12 • Sexta-feira 3 Dezembro 2010 • Ípsilon
Perguntaramlheem que éque era mau.E West pensoue pensou atédar uma nãorespostaelucidativa:“Vá lá, pá!É a perguntamais difícilque já mefizeram”Ípsilon • Sexta-feira 3 Dezembro 2010 • 13