PETER JOSYPHTradutor de Cormac McCarthyem Portugal, passou uma tarde ajogar uma variante de “pool”(“check pool”) – em Knoxville,2008 – com Jim Long (amigo deinfância de McCarthy, o J-Bone de“Suttree”) para aprender asregras e melhor traduzir essaspassagensPaulo Faria “A leitura atenta,quase microscópica, a que atradução obriga dá-nos acesso aaspectos do texto que permanecemnecessariamente esbatidosaquando da leitura ‘normal’ (pormuito atenta que seja) de umaobra literária”veio a traduzir. E a relação que tinhacom as obras saiu a ganhar doposterior trabalho de tradução. Cristi<strong>na</strong>Rodriguez completa a ideia: “Arelação que se tem enquanto leitor édiferente da de tradutor. Enquantoestamos a traduzir, palavra a palavra,vamos descobrir coisas a todo o momento.Quando lemos é uma coisamais de passagem. Na tradução temosde sentir toda a frase, <strong>parar</strong> muitomais, ultrapassar as dificuldades.”Também Salvato Telles de Menezesnão tem dúvida: a relação com umautor que já lhe era caro, como CabreraInfante, sai fortalecida quandoo traduz: “Há quase um contacto físicoque se estabelece com o texto,como se os nossos dedos tocassemas palavras origi<strong>na</strong>is para as transportar,com a delicadeza ou com a violênciaque impõem, para a nossa língua.”O devoto da obra de McCarthy,Paulo Faria, que traduziu tambémKerouac, Orwell ou DeLillo, diz quea sua paixão literária só ganhou contornosavassaladores quando o traduziu.“A leitura atenta, quase microscópica,a que a tradução obrigadá-nos acesso a aspectos do texto quepermanecem necessariamente esbatidosaquando da leitura ‘normal’(por muito atenta que seja) de umaobra literária.”E é deste contacto privilegiado, daobservação microscópica e da conexãoquase física com o texto origi<strong>na</strong>l,que se criam ligações profundíssimasentre estes trabalhadores da palavrae os objectos do seu trabalho.Não só são pessoas que amam profundamenteaquilo que trabalham,como têm ainda espaço para amarmais. Porque o trabalho de um tradutorproporcio<strong>na</strong>, não raras vezes,descobertas e surpresas impagáveis.“Em quinze anos de actividade comotradutor, não me recordo de tertraduzido um autor que tivesse lidoanteriormente,” diz-nos Jorge Fallorca,que é um exemplo perfeito do quea tradução oferece a quem a faz.“Mas, por exemplo, quando traduzium do Piglia, fui comprar o Piglia todo.Quando traduzi a ‘Estrela Distante’,comprei o Bolaño todo.”E Fallorca não só é um exemploperfeito, como é um exemplo muitofeliz do que são estas descobertasatravés da tradução. “Tenho tido asorte de me terem enriquecido coma descoberta de autores através datradução. Só me dão coisas boas. Àsvezes parece que os escolhem a dedo.Tosca<strong>na</strong>, Piglia, Bioy Casares, Vila-Matas, Bolaño.”Roberto Bolaño foi também umadas descobertas mais fasci<strong>na</strong>ntes quea tradução proporcionou a ArturGuerra e Cristi<strong>na</strong> Rodriguez. Começaramlogo pelo monumental “2666”.Artur ia muitas vezes para um anexo,separado da casa onde vivem e trabalham,por forma a estar mais concentrado.“Às vezes ele vinha de láum bocado transfigurado,” diz-nosCristi<strong>na</strong>. “Já não conseguia ver tantohorror junto.”Referem-se à quarta parte do livro,“A Parte dos Crimes”, que é uma interminávelenumeração de cadáveresencontrados e do estado em que estão.Apesar do horror, Bolaño foi umadescoberta felicíssima para o casal.“A descoberta como tradutor, sendoa primeira, é fasci<strong>na</strong>nte. No caso doBolaño foi, porque não pude ler asmil e tal pági<strong>na</strong>s antes de começar atrabalhar,” diz-nos Artur. E Cristi<strong>na</strong>teve “pe<strong>na</strong> de não puder pôr de ladoa faceta de tradutora para o poder lerape<strong>na</strong>s como leitora.”Margarida Vale de Gato teve a sortede encontrar a obra, que não conhecia,de Henri Michaux, “extraordináriopoeta.” Já para Salvato, foi adescoberta de Camilo José Cela, que,“talvez devido a preconceitos de juventude,”nunca tinha lido antes, quese revelou das mais felizes dádivas doseu trabalho de tradutor. “Foi muitoimportante para mim perceber o extraordináriopeso temático e históricoe a riqueza de modelos <strong>na</strong>rrativosque a obra de Cela apresenta.”Quando sai a favaInevitavelmente, no meio de tantacoisa boa que vão descobrindo ou redescobrindo,quase todos os tradutoresacabam por ter em mãos, em algummomento da sua vida, um trabalhomenos bom, com o qual têm maisdificuldade em criar laços.“Já traduzi coisas menores,” diznosPaulo Faria. “Aquilo que é aparentementefácil de traduzir, a prosapedestre e sem alma de certos escritores,tor<strong>na</strong>-se penoso ao fim de poucotempo.”Quando trabalhava exclusivamentecomo tradutora literária, MargaridaVale de Gato também teve de traduzirtextos menos bons, por não ter alter<strong>na</strong>tivamas também por ter feito “algumasescolhas más.” E, <strong>na</strong>turalmente,a diferença em relação aos autorescom que mais se identifica, sente-seprofundamente: “É essencial a empatia<strong>na</strong> tradução literária. E claro quese servem mal os autores quando nãose gosta especialmente deles.”Para Artur Guerra e Cristi<strong>na</strong> Rodriguez,mais do que a qualidade literáriados autores, é difícil encarar certasideologias (questão que surge maisem livros de não ficção). “Quando háuma tese, uma ideologia, com a qualnão nos identificamos, custa-nos maisa traduzir. O tradutor não tem de estarimplicado nisso, claro, mas custa-nosmais.”O caso de Fallorca será, provavelmente,uma excepção que não encontrafacilmente par. Ter traduzido ape<strong>na</strong>sautores que ainda não tinha lidoe ter descoberto em todos obras dequalidade é um feliz acaso que nãoacontece a todos.Muitos, ainda assim, têm o privilégiode traduzir quase exclusivamenteautores de que gostam e com os quaisé fácil estabelecer empatia. Daí queestas pessoas sejam trabalhadoresfelizes, que amam o que fazem e nãotrocam este trabalho por nenhumemprego.Os tradutores têm algo em comumcom os árbitros de futebol. Quantomenos se der por eles, melhor nosparece o seu trabalho. “O trabalho dotradutor é pôr o autor em evidência edeixarmo-nos a nós, tradutores, <strong>na</strong>sombra. E esse trabalho de humildadeé que é difícil,” diz-nos Cristi<strong>na</strong> Rodriguez.Só que a sombra de que fala deviaexistir ape<strong>na</strong>s no texto. Não deviareflectir-se no esquecimento em quetão facilmente cai o trabalho tão importante,e tão difícil, destas pessoas.Não devia ser quase impossível,como é, encontrar o nome do tradutorde uma obra no site das livrariasonline ou no próprio site das editoras.Artur Guerra, no fi<strong>na</strong>l da nossa conversa,citou Saramago. É curioso otrabalho que tiveram de fazer para olivro recentemente editado “José Saramago,Nas Suas Palavras”, que compilaentrevistas, discursos e textosafins do Nobel português. Muitos destestextos vieram de jor<strong>na</strong>is e revistasestrangeiros, que Artur e Cristi<strong>na</strong> tiveramde traduzir. Mas muitas destasdeclarações de Saramago terão sidofeitas em português e traduzidas posteriormentepara a língua das publicaçõesem que saíram. Ou seja, tiveramde traduzir para português, palavrasque provavelmente foram ditasem português. E acrescentaram aoleque de autores traduzidos, um nomede peso que, de certeza, nuncaimagi<strong>na</strong>ram vir a verter para português:José Saramago.Se Saramago, citado por ArturGuerra, fechou <strong>na</strong> perfeição a nossaconversa, fechará também este artigo:“Os escritores fazem as literaturas<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is e os tradutores fazem a literaturauniversal. Sem os tradutores,nós os escritores não seríamos <strong>na</strong>da.Estaríamos conde<strong>na</strong>dos a viver fechados<strong>na</strong> nossa língua.”28 • Sexta-feira 3 Dezembro 2010 • Ípsilon
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