17.05.2016 Views

Chicos 45

e-zine literária de Cataguases - MG

e-zine literária de Cataguases - MG

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

<strong>Chicos</strong><br />

14 de maio 2016<br />

<strong>45</strong><br />

Prosa e Verso<br />

em Cataguases<br />

1


<strong>Chicos</strong><br />

N. <strong>45</strong><br />

Maio 2016<br />

e-zine de literatura e ideias<br />

de Cataguases – MG<br />

Um dedo de prosa<br />

Esta é a nossa edição <strong>45</strong>.<br />

Recebemos alguns e-mails indagando: Quem é o “simpático velhinho”<br />

da primeira página? Ele é Chico Cabral, para nós editores<br />

desta e-zine, o maior poeta de Cataguases. Esta publicação<br />

leva este nome em homenagem a ele, ao Chico Peixoto da Verde<br />

e outros tantos <strong>Chicos</strong> que nos marcaram aqui em Cataguases.<br />

Ronaldo Cagiano abre esta edição. Publicamos uma seleta de<br />

sua poesia.<br />

Álvaro Antunes é um tradutor de grandes autores de obras riquíssimas<br />

e complexas. Publicamos um poema de Leopardi traduzido<br />

por ele.<br />

Quem esteve em Cataguases, há pouco tempo, foi o poeta Iacyr<br />

Anderson Freitas, tivemos uma bela tarde de ótima conversa e<br />

muita poesia.<br />

Emerson Teixeira Cardoso tirou da estante mais uma preciosidade<br />

de Manoel Bandeira e apresentamos para vocês outra crônica<br />

do livro Flauta de papel.<br />

Em homenagem aos acontecimentos de Brasília e a posse do<br />

terceiro vice sem voto depois do fim da ditadura publicamos o<br />

conto Suje-se gordo! de Machado de Assis.<br />

O Antônio Jaime continua a compartilhar conosco um dos relatos<br />

de viagens mais interessantes que já lemos.<br />

Em Clips - Os livros lançados pelos amigos da e-zine têm espaço.<br />

Divirtam-se!<br />

Os <strong>Chicos</strong><br />

Capa - Foto Vicente Costa<br />

Editores<br />

Emerson Teixeira Cardoso<br />

José Antonio Pereira<br />

Fotografia<br />

Vicente Costa<br />

Ilustrações<br />

Altamir Soares<br />

Colaboradores desta edição<br />

Antônio Jaime Soares<br />

Eltânia André<br />

Cláudio Sesín<br />

Leo Barbosa<br />

Luiz Ruffato<br />

Ronaldo Brito Roque<br />

Ronaldo Cagiano<br />

Fale conosco em:<br />

cataletras.chicos@gmail.com<br />

Visite-nos em:<br />

http://chicoscataletras.blogspot.com/<br />

Chico Cabral — 18.11.1930 - 0.08.2014<br />

2


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Sumário<br />

RONALDO CAGIANO<br />

O ritmo das coisas e outros poemas 04<br />

ÁLVARO ANTUNES<br />

“O Infinito” de Leopardi 17<br />

LEO BARBOSA<br />

Solo 18<br />

CLÁUDIO SESÍN<br />

Notícia e outro poema 19<br />

LUIZ RUFFATO<br />

Sobre De mim já nem se lembra 20<br />

ELTÂNIA ANDRÉ<br />

Sobre Para fugir dos vivos 21<br />

MAURÍCIO VIEIRA<br />

A Educação pelo Verso 22<br />

ANDRÉ DI BERNARDI<br />

A Caligrafia torta da vida 24<br />

JOSÉ ANTONIO PEREIRA<br />

Poesia no quintal 25<br />

EMERSON TEIXEIRA CARDOSO<br />

Santa Terra . 26<br />

LUIZ RUFFATO<br />

Lendo os clássicos 27<br />

EMERSON TEIXEIRA CARDOSO<br />

Conversa de poeta 28<br />

JOSÉ ANTONIO PEREIRA<br />

De como deixei de ler jornais 30<br />

RONALDO BRITO ROQUE<br />

Brasil Global 32<br />

JOSÉ ANTONIO PEREIRA<br />

Talvez? Talvez... 34<br />

MANUEL BANDEIRA<br />

O Estrangeiro 35<br />

MACHADO DE ASSIS<br />

Suje-se Gordo! 36<br />

ANTONIO JAIME SOARES<br />

Europoraí 38<br />

CLIPS<br />

Alguns livros... 51<br />

3


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Ronaldo Cagiano<br />

Nasceu em Cataguases, MG. Depois de longo período em<br />

Brasília mora atualmente em São Paulo, SP.<br />

Publica, regularmente, artigos e criticas literárias em diversos<br />

jornais e revistas do país e do exterior. Entre os vários já<br />

publicados destacam-se: Palavra Engajada (poesia 1989)<br />

Exílio (poesia 1990) Palavracesa (poesia 1994) Canção dentro<br />

da noite (poesia 1999) Dezembro indigesto (contos 2001)<br />

Concerto para arranha-céus (contos 2004) Dicionário de pequenas<br />

solidões (contos 2006) O sol nas feridas (poesia 2011)<br />

Moenda de silêncios (novela em parceria com Whisner Fraga<br />

2012).<br />

O r i t m o d a s c o i s a s<br />

O s o l a c e s o e m m e u s o l h o s<br />

f e r e a e s t r a n g e i r a g e s t a ç ã o d o s v a z i o s .<br />

H á t e m p o d e m a i s n o s r e l ó g i o s d a c i d a d e :<br />

e t e r n i d a d e c o m s e u s c u p i n s d e a ç o<br />

v a r a n d o n o s s a s e n t r a n h a s<br />

p a r a o t r i u n f o d o i m p o n d e r á v e l .<br />

E s t a m o s p u r g a n d o a e x i s t ê n c i a<br />

c o m e s s e s p o n t e i r o s i n s o l e n t e s<br />

c o n d e n a n d o - n o s a u m d e s t i n o d e e s t á t u a s<br />

o u a n e n h u m a l e m b r a n ç a n o s o b i t u á r i o s .<br />

P e d r a d e n t r o d o t e m p o ,<br />

a m o r t e , c o m o a m ó ,<br />

i m p õ e o r i t m o d a s c o i s a s :<br />

p a c i e n t e m e n t e n o s e s f a r i n h a ,<br />

g r ã o s d e n a d a n u m p o m a r d e b a c t é r i a s .<br />

4


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Residência provisória<br />

V i a j e i m u n d o s ,<br />

M a s a i n d a n ã o m e ( r e ) c o n h e ç o :<br />

d u r o é o t r a j e t o p o r d e n t r o .<br />

R e g i s t r o d e u m p e r c u r s o i n a c a b a d o :<br />

o s a m o r e s q u e d e i x e i e m c a d a p r a ç a .<br />

A s s o l a s d o s a p a t o i n t a c t a s<br />

R e s u m e m o m u i t o q u e n ã o a n d e i :<br />

o c a n s a ç o d e e x i s t i r i n t e r d i t a o r e c o n h e c i m e n t o<br />

d o f u t u r o .<br />

E s c r a v o d a s o l i d ã o e l e t r ô n i c a<br />

n e s s a e r a d e p a s t o r e s m e r c e n á r i o s ,<br />

e m q u a n t o s m e d i v i d o<br />

p a r a m e t o r n a r i n t e i r o ?<br />

A s f o t o s n a p a r e d e m e d e s m e n t e m :<br />

e s s e r i o q u e m e l e v a<br />

s a b e m a i s d o q u e n ã o v i u .<br />

A p e l e d a s o l i d ã o n ã o e n v e l h e c e :<br />

i n ú t e i s a s p l á s t i c a s , n e n h u m b i s t u r i<br />

r e d u z i r á o s e u i m p é r i o :<br />

e l a r e v e r b e r a n d o p e l o s c a n t o s<br />

s e u c a n t o d e c i s n e d a i n u t i l i d a d e e x i s t e n c i a l .<br />

A t é q u a n d o c o n s e g u i r e i u n i r a s d i s s i d ê n c i a s ?<br />

5


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

So(m)bras<br />

E s c u t o o m e u r i o ;<br />

é u m a c o b r a<br />

d e á g u a a n d a n d o<br />

p o r d e n t r o d e m e u o l h a r .<br />

M a n o e l d e B a r r o s<br />

V e j o o r i o q u e p a s s a<br />

e m C a t a g u a s e s<br />

– é o m e s m o v á r i o r i o<br />

q u e ( e s ) c o r r e e m m i m :<br />

e d u c a n d o - m e p e l a s e n c o s t a s<br />

c o m l i ç õ e s d e c h e i a s<br />

e ú m i d a c a r t i l h a d e e n f a d o s .<br />

O e x e m p l o d a á g u a q u e f ( l ) u i ,<br />

c o m s u a i m p e s s o a l i d a d e e i n c o n c r e t u d e<br />

c r a v a - m e u m s e r t ã o n a s e n t r a n h a s .<br />

E u m a c ú m u l o d e p e d r a n a s v í s c e r a s<br />

e m b r e n h a n a a l m a t a n t o s e u s .<br />

E s s a s o m b r a , e s s a s s o b r a s<br />

b ó i a m i n d i g e n t e s , c o m o u m f e t o<br />

e m p l a c e n t á r i a c l a n d e s t i n i d a d e .<br />

6


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Rio do sono<br />

R i o , p o r q u a n t o t e m p o m a i s ?<br />

D o n i z e t e G a l v ã o<br />

R i o q u e l a v ( r ) a - m e :<br />

t ú m u l o d e a n z ó i s<br />

n o m e i o d a c o r r e n t e<br />

c o m s u a s p l a c e n t a s g i g a n t e s<br />

f a z e n d o n a s c e r e m m i m<br />

u m m a r d e o f e r e n d a s .<br />

N o o v á r i o d e s s e l e i t o<br />

d o r m e e n t r e a r e i a s e x a u s t a s<br />

o m e n i n o - n á u f r a g o<br />

q u e u m d i a f o i d e v o r a d o<br />

p o r c a r d u m e s d e s o n h o s .<br />

O c h ã o s o b e s s a s á g u a s<br />

m e a f a g a<br />

( o u m e a f o g a )<br />

e n t r e m e r c ú r i o , b a u x i t a e m i a s m a s ,<br />

m a s a s u p e r f í c i e t r ê m u l a<br />

a p r e ( e ) n d e n o m e u s i l ê n c i o<br />

a s l i ç õ e s d e s e p e r d e r n o s o c e a n o s .<br />

O s r i o s d e m i m m e l e v a m<br />

m a s n ã o l i m p a m<br />

a r u g o s a p o e i r a d o s m e u s a n o s .<br />

7


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Resquícios<br />

E o r i o r e m o n t a s e u c u r s o ,<br />

d o b r a s u a s v e l a s , r e c o l h e s u a s i m a g e n s<br />

e s e i n t e r n a e m s i m e s m o .<br />

O c t a v i o P a z<br />

N a s á g u a s d o v e l h o r i o<br />

n a v e g a m b a r c o s d a i n f â n c i a<br />

q u e l a n c e i r u m o à s e s t r e l a s .<br />

A h , c o m o d ó i s a b e r<br />

q u e o m e n i n o a i n d a s o b r e v i v e<br />

n a e s p e r a i n f u n d a d a d o s s o n h o s .<br />

S o b r e o b e i r a l d a p o n t e<br />

q u e a t r a v e s s a a c i d a d e ,<br />

p e r c o - m e n o e s p e l h o q u e m e e s p i a<br />

e d i v i s o o u t r a s m i r a g e n s .<br />

O n d e a n c o r e i a e s p e r a n ç a ?<br />

E e m q u e p o n t o n a u f r a g o u a u t o p i a ?<br />

I n d a g o à s n o v a s t o r r e n t e s ,<br />

m a s o m u r m ú r i o d o l e i t o i m u n e a o s m e u s a p e l o s<br />

d e n u n c i a o i m p o n d e r á v e l q u e h á n a s c o i s a s .<br />

V o l t o - m e p a r a a r e t a g u a r d a d e f a s t i o s ,<br />

m e u s o l h o s t e s t e m u n h a m r u g a e m o f o<br />

e e m t o d o o c a n t o a l g o d e d u z q u e o t e m p o ,<br />

e s s e m a r a d i a n t e d a s r e m o t a s á g u a s ,<br />

e n g o l i u a m i n h a h i s t ó r i a .<br />

8


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

M o s a i c o<br />

O r i o n ã o e s t á d i a n t e d e ti .<br />

E s t á a l é m . V i a j a .<br />

H i l d a H i l s t<br />

N a v e l h a p o n t e<br />

d e C a t a g u a s e s ,<br />

b e l v e d e r e e n t r e m o n t a n h a s<br />

v i s l u m b r o u m a l â m i n a m o r d a z<br />

n a i n c o n t i d a f u g a c i d a d e d a s<br />

á g u a s d o R i o P o m b a .<br />

O l e i t o q u e e s c o r r e i n e x o r á v e l<br />

d i a n t e d o s m e u s o l h o s ,<br />

c a r r e g a h i s t ó r i a s & c a n s a ç o s<br />

n u m a r e t r o v i a g e m s e m t a m a n h o<br />

d i a n t e d o m e n i n o p e r p l e x o<br />

q u e a t u d o e s g a r ç a<br />

c o m i n q u i r i ç ã o o u p r a n t o .<br />

A c i d a d e , a s p e s s o a s , o v á r i o t e m p o<br />

s ã o r e m o t a s c i n t i l a ç õ e s d e a n t a n h o ,<br />

m a s a i n d a p e r d u r a<br />

n o m o f o d a s a m u r a d a s<br />

n o s v e t u s t o s o i t i z e i r o s d a r u a<br />

n o s t r i l h o s d a v e l h a e s t a ç ã o<br />

a o f i c i n a d e s o n h o s<br />

q u e h i b e r n a n o r i g o r<br />

d e t a n t o s ( d e s ) c a m i n h o s .<br />

9


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

I m a g e m v i r t u a l<br />

N ã o i n t e r r o g u e s o p o e t a .<br />

Q u e s a b e o r i o d e s u a s á g u a s ?<br />

A n d e r s o n B r a g a H o r t a<br />

S o b r e o b e i r a l d a v e l h a p o n t e<br />

d e C a t a g u a s e s<br />

c o n t e m p l o á g u a s a n d a r i l h a s<br />

m i r a n d o o l e i t o d e a n t a n h o :<br />

l â m i n a q u e m e d i s s e c a<br />

p a r a u m l ú c i d o r e c o n h e c i m e n t o .<br />

O r i o q u e , i n e x o r á v e l , m e e s c a p a ,<br />

c a r r e g a a n t i g a s h i s t ó r i a s<br />

r u m o a o m a r d a s u t o p i a s :<br />

r e e n c o n t r o n a s c a t a r s e s .<br />

N e s s e i t i n e r á r i o q u e s e r p e n t e i a<br />

p o r a n t i g a s p a r a g e n s ,<br />

l a n ç o b a r c o s s e m r u m o<br />

p a r a o r e s g a t e d o q u e f ( l ) u i<br />

n o e s p e l h o p r o v i s ó r i o<br />

d o s m e u s a n o s .<br />

10


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

R i o a n t i g o<br />

. . . o r i o é e m m i m .<br />

A d é l i a P r a d o<br />

N e s s a s á g u a s a n d a r i l h a s<br />

d o v e l h o e e s c a l d a d o r i o<br />

q u e s e r p e n t e i a p e l a m i n h a c i d a d e<br />

( o u p e l a m i n h a v e i a ? )<br />

d e b r u ç o - m e n u m e s p e l h o i n s o s s o :<br />

h i s t ó r i a s q u e v ã o e v ê m<br />

e n t r e e x p u r g o s d o q u e n ã o f u i .<br />

11


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

R i b e i r ã o M e i a P a t a c a<br />

D o i s r i o s r i m a m a m i n h a v i d a ( . . . ) .<br />

D o i s r i o s : m e u s c i n c o s e n t i d o s .<br />

L i n a T â m e g a d e l P e l o s o<br />

R e g a t o s e e x i l a n d o<br />

o u s e e x a u r i n d o<br />

a o s t r a n c o s e b a r r a n c o s ,<br />

c e d i ç a a r t é r i a ,<br />

m a n a n c i a l j á n ã o .<br />

S a f r a d e ( d ) e s g o ( s ) t o s ,<br />

l i x e i r a d e n ó s ,<br />

m u n í c i p e s c r i m i n o s o s<br />

q u e f a z e m o s d e s s a s á g u a s<br />

a c a n t o a d a s e r p e n t e ,<br />

q u a n d o<br />

c h u v a a n u n c i a d a<br />

d e f l a g r a r á o v i r t u a l d e s a s t r e<br />

( o u d e l í r i o p l u v i o m é t r i c o )<br />

d o t e m p o & s u a s m ú l t i p l a s r a z õ e s .<br />

L e i t u r a d o r i o :<br />

e n c h e n t e , r e s p o s t a h e m o r r á g i c a<br />

d a n a t u r e z a .<br />

12


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Reflexões sobre um ribeirão<br />

S a b e r q u e n o s p e r d e m o s c o m o o r i o<br />

E q u e p a s s a m o s r o s t o s c o m o á g u a .<br />

J o r g e L u i s B o r g e s<br />

Q u e h o m e n s h ã o d e n a s c e r<br />

à s m a r g e n s d o a n t i g o r i o ,<br />

s e a p e n a s h á u m l e i t o<br />

o n d e s ó p u l s a m<br />

c a r d u m e s d e s o l i d ã o ?<br />

E u n ã o p o s s o t e i n v o c a r<br />

( s o l e n e o u a n g u s t i a d o ) ,<br />

r i b e i r ã o M e i a P a t a c a :<br />

p o r o n d e c o r r i a s i n c ó l u m e<br />

u m o u t r o r i o p e r c o r r e<br />

t r a z e n d o s i n a i s e s t r a n h o s ,<br />

d a d o r q u e o s h o m e n s p l a n t a r a m<br />

e m s u a c a l h a i n d e f e s a .<br />

D e o u t r a s o r t e ,<br />

n o u t r o s t e m p o s & p a r a g e n s<br />

e s t a v e i a e s p a l h o u b o a t o s<br />

d e o u r o e d i a m a n t e s .<br />

H o j e , c a n s a d o e c o m m á g o a s ,<br />

r e c e p t á c u l o d e h o r r o r e s ,<br />

t u a s m a r g e n s r e d e s e n h a d a s ,<br />

t e u l e i t o a s s o r e a d o d e p r u r i d o s ,<br />

r e m e t e m - n o s a u m t e m p o<br />

d e f a u n a e f l o r a e s g o t a d o s<br />

e i n v a s õ e s d e l e t é r i a s .<br />

E s s e r i o g u a r d a m e m ó r i a s<br />

q u e o p r o g r e s s o c a m u f l o u :<br />

p e r t i n a z t e s t e m u n h a<br />

d e l u t a s e d e s v a r i o s ,<br />

d u t o d e m i s e r á v e i s f u l i g e n s ,<br />

v e i a a b e r t a a o i n s a n o p r o g r e s s o .<br />

R i o q u e c o r r e e m m i m ,<br />

e s p a l h a n d o .<br />

13


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Maria Fumaça<br />

À Luiz Ruffato<br />

C o n t r a o s i l ê n c i o m i n e r a l<br />

d o s t r i l h o s q u e s e r p e n t e i a m<br />

p e l o s c o n t r a f o r t e s d a m i n h a i n f â n c i a<br />

a i n d a i r r o m p e a v e l h a “ M a r i a F u m a ç a ”,<br />

a n i m a l m e t á l i c o e i n c a n d e s c e n t e<br />

q u e d e f l o r a v a o s c a m i n h o s s i l e n c i o s o s<br />

e n t r e h i s t ó r i a s d e c h e g a r e p a r t i r<br />

n e s s a M i n a s v e l h a d e g u e r r a .<br />

Q u e d e s t i n o s s ã o e s s e s - P o n t e N o v a ,<br />

U b á , M i r a í , M a r d e E s p a n h a , R e c r e i o ,<br />

P a l m a , T r ê s r i o s – i n d i z í v e i s p a r a g e n s<br />

d e u m a v i a g e m à m a r g e m d e m i n h a l i n h a i n t e r i o r ?<br />

A p l a t a f o r m a d a v e l h a e s t a ç ã o<br />

a i n d a g u a r d a o c h e i r o d e f u l i g e m<br />

d o e x p r e s s o e n f u m a ç a d o<br />

a b a t i z a r o s d o r m e n t e s<br />

c o m f l u i d o s d e l o n g í n q u a s p l a g a s<br />

q u e o s v a g õ e s i m p o n e n t e s t r a z i a m .<br />

( A h , o n d e a n d a r á o v e l h o G a b r i e l M e l i d o<br />

a t a n g e r s o l e n e m e n t e o t e l é g r a f o<br />

e a n u n c i a n d o , n o b a d a l a r d e u m p r e s s u r o s o s i n o ,<br />

m a n o b r a s , c o m b o i o s e e m b a r q u e s ? )<br />

A q u e l e t r e m<br />

( c o m o u m a i m e n s a s e r p e n t e a t a l h a n d o<br />

a c r e s c e r d i a n t e d o s m e u s o l h o s )<br />

a i n d a a p i t a d e n t r o d e m i m ,<br />

r a s g a n d o a s o l i d ã o f e r r o v i á r i a<br />

d o s m e u s i n ú t e i s c a n s a ç o s ,<br />

n e s s a e r a d e a s f a l t o s , i n f o r m á t i c a e d e l i n q ü ê n c i a s .<br />

14


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Exílios<br />

Para Armin Mobarak<br />

A c i d a d e s e p e r d e e m s e u s p r ó p r i o s l a b i r i n t o s :<br />

p e l a s s e r p e n t e s d e p e d r a e a s f a l t o<br />

c o r r e p r e s s u r o s o u m r i o d e a n i m a i s m e t á l i c o s<br />

N ã o h á m a i s l u g a r p a r a o s h o m e n s .<br />

A n ô n i m o s , c o m o a r e i a n a a m p u l h e t a ,<br />

v a m o s e m b u s c a d a u t ó p i c a P a s a r g a d a .<br />

e n q u a n t o a h i s t ó r i a n o s a t r a v e s s a c o m o u m r a i o .<br />

C o m o u m v e n t r e , a m e t r ó p o l e o r i e n t a l ,<br />

g u a r d a o d e s c o n h e c i d o<br />

e n a s u a i n t a n g í v e l s o l i d ã o g e o m é t r i c a<br />

e x i l o - m e n o s l a b i r i n t o s d o s b a z a r e s<br />

o n d e f l o r e s c e m c a t e d r a i s d e a u s ê n c i a s<br />

e u m f l u x o d i v e r g e n t e d e h o m e n s e m u l h e r e s<br />

q u e n ã o c o n h e c e m o o u t r o l a d o d o m u n d o .<br />

O t e m p o , e n x a m e d e b a c t é r i a a n o s r o e r ,<br />

m e l e v o u a m u n d o s q u e s o n h e i u m d i a :<br />

D e C a t a g u a s e s a I s f a h a n<br />

d e B r a s i l i a a T e e r ã ,<br />

q u a n t o d e m i m v a i f i c a n d o n e s s e s c a m i n h o s<br />

c o m s u a o r f a n d a d e d e m a r g e n s .<br />

Q u a n d o c o n t e m p l o<br />

o s p i c o s n e v a d o s d a s m o n t a n h a s<br />

A l b o r z<br />

o u r e i v i n d i c o o s l o n g o s c a m i n h o s d e P e r s é p o l i s , S h i r a z e B u -<br />

r u j e r d<br />

o s b a r c o s d a i n f â n c i a ,<br />

q u e l a n c e i n o r i o P o m b a r u m o a o i n s o n d á v e l ,<br />

r e s s u s c i t a m n a s á g u a s d o Z u y a n d é ,<br />

p r i s i o n e i r o s d o v e n t o , c a t i v o s d a g e o g r a f i a .<br />

( T e e r ã , 2 7 / 5 / 2 0 0 7 )<br />

15


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Álvaro Antunes<br />

Álvaro A. Antunes nasceu em Além<br />

Paraíba, mora e trabalha no Reino Unido desde<br />

1989. É tradutor e professor de ciência da computação<br />

na Universidade de Manchester.<br />

Nos anos 80, em Além Paraíba Minas Gerais,<br />

com os amigos Carlos Moura, Marilene<br />

Moura, Antônio Jaime e Clinton Mota criaram a<br />

Interior Edições.<br />

Sua primeira publicação foi Os papéis<br />

de Aspern, de Henry James, em 1984; seguida<br />

de A caça ao turpente, de Lewis Carroll,<br />

também de 1984. Em 1985, Cantos de Giacomo<br />

Leopardi - primeira tradução integral - elogiadíssima<br />

na ocasião. Finalmente, Tudo que restou,<br />

de Safo, em 1987. Todas obras traduzidas<br />

por Álvaro Antunes. Todas as artes gráficas<br />

das publicações da pequena e atrevida editora<br />

de Além Paraíba foram criadas pela designer<br />

Regina Fernandes<br />

Álvaro publicou, também, uma tradução<br />

de The Seafarer (Ezra Pound), no Suplemento<br />

Literário de MG.<br />

Numa homenagem ao tradutor e seus amigos,<br />

estamos publicando um poema extraído de<br />

Cantos de Leopardi.<br />

Giacomo Leopardi<br />

Leopardi nasceu em Recanati, região central<br />

da Itália, em 29 de junho de 1798 e morreu<br />

em Napoli, a 14 de junho de 1837, é um escritor<br />

de precocidade prodigiosa: produziu desde os<br />

10 anos de idade, em italiano e latim, o que<br />

chamou “Libretti puerili”, aos 11 anos, escreveu<br />

seu primeiro soneto “La morte di Ettore”. Passou<br />

a viver na vasta e rica biblioteca paterna e<br />

em curto espaço de tempo passou a dominar o<br />

grego, o hebraico, o inglês, o francês e o espanhol,<br />

mantendo contato com um mundo dois<br />

mil anos mais velho que o seu sem sair de sua<br />

pequena cidade. Compôs então obras de caráter<br />

filológico e ensaios, passou para as traduções<br />

até se descobrir poeta.<br />

16


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

O Infinito<br />

Sempre amei este morro tão deserto<br />

E esta sebe que por todo lado<br />

Do último horizonte o olhar me veda.<br />

Mas sentando e mirando, intermináveis<br />

Ares lá além daquela, e sobre-humanos<br />

Silêncios, profundíssima quietude,<br />

Eu no pensar me finjo; onde por pouco<br />

Meu peito não se assusta. E como o vento<br />

Entre estas plantas ouço arfar, aquele<br />

Infinito silêncio a esta fala<br />

Vou comparando: e me revém o eterno,<br />

E estações que morreram, e a presente<br />

E viva, e o seu rumor. E assim eu nesta<br />

Imensidade afogo o pensamento:<br />

E neste mar é doce o meu naufrágio.<br />

Sempre caro mi fu questo ermo colle<br />

e queste siepe, che da tanta parte<br />

dell’ultimo orizzonte il guardo esclude.<br />

Ma sedendo e mirando, interminati<br />

spazi di là da quella, e sovrumani<br />

silenzi, e profondissime quiete<br />

io nel pensier mi fingo; ove per poco<br />

il cor non si spaura. E come il vento<br />

odo stormir fra queste piante, io quello<br />

infinito silenzio a questa voce<br />

vo comparando; e mi sovvien l’ eterno<br />

e le morte stagioni e la presente<br />

e viva, e il suon di lei. Così tra questa<br />

Nota<br />

Álvaro Antunes põe uma nota de rodapé, explicando<br />

que o “finjo” do sétimo verso: significa<br />

“imagino”.<br />

immensità s’annega il pensier mio;<br />

e il naufragar m’ é dolce in questo mare.<br />

17


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Leo Barbosa<br />

Escritor e professor de Literatura e Lingua Portuguesa em<br />

João Pessoa, é autor, dentre outros de "Lutos diários" ( Poesia,<br />

Ed. Patuá, SP, 2013) e "Confesso estar vivendo" (Prosa, Ed.<br />

Ideia, PB, 2016).<br />

S O L O<br />

A solidão me ensina<br />

Que é possível viver<br />

Cultivando um jardim para si,<br />

Mas que não há regimento<br />

De vitórias nem contemplação<br />

Alheia.<br />

Os amores-perfeitos murcham<br />

Se apenas têm olhares individualizados<br />

E os copos-de-leite são de vacas<br />

estéreis.<br />

Se comigo-ninguém-pode<br />

É porque não me suporto<br />

É porque não tenho raízes.<br />

18


<strong>Chicos</strong> 44<br />

Cláudio Sesín<br />

Cláudio Luis Sesín nasceu em Villa Dolores, Velle Viejo, passou<br />

sua infância e cresceu em Pomán, Província de Catamarca,<br />

Argentina.. Publicou entre outros La Barbárie (1993) e El círculo<br />

de fuego (1997) e em 2008 El libro de los poemas casuales<br />

(2008), em edição bilíngue espanhol-português.<br />

Noticias<br />

Ayer leí em el periódico<br />

que lo mejor está por venir.<br />

Es curioso,<br />

anoche nevó<br />

a lo largo de la Cordillera,<br />

y essa ventisca inquieta,<br />

cerraba<br />

hasta los últimos postigos<br />

del verano passado<br />

Si<br />

Este día es hermoso<br />

y tenemos derecho a la alegría.<br />

Hoy compré el pan aún tibio,<br />

no como el que esperaba allá em mi pueblo,<br />

sino como esse regalo indefenso,<br />

se desarma.<br />

19


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Luiz Ruffato<br />

Nasceu em Cataguases MG, reside em São Paulo SP. Entre<br />

tantas obras de sua autoria destacam-se: Eles eram muitos cavalos,<br />

de 2001, ganhou o Troféu APCA oferecido pela Associação<br />

Paulista de Críticos de Arte e o Prêmio Machado de Assis da<br />

Fundação Biblioteca Nacional. Esse livro o tornou um escritor<br />

reconhecido no país. Em 2011 concluiu o projeto Inferno Provisório,<br />

com a publicação do romance Domingos Sem Deus,<br />

iniciado com Mamma, son tanto Felice em 2005, composto por<br />

cinco livros sobre o operariado brasileiro.<br />

Luiz Ruffato ocupa um lugar especial na<br />

literatura brasileira. Eles eram muitos cavalos<br />

tornou-se um romance cultuado, que registrou<br />

numa prosa incomum as muitas vozes da cidade<br />

de São Paulo.<br />

O projeto Inferno provisório, saga composta<br />

de cinco volumes, tem poucos paralelos nas<br />

nossas letras: ambicioso, vasto e singular,<br />

acompanha por décadas a trajetória de vários<br />

personagens de classe média baixa. De mim já<br />

nem se lembra trata de assuntos caros ao autor:<br />

a família, o tempo, a memória. Mais uma<br />

vez, Ruffato irá transformar um pequeno episódio<br />

familiar em oportunidade para falar de<br />

seu país e de sua sociedade. Ao abrir uma pequena<br />

caixa encontrada no quarto da mãe falecida,<br />

a caixa na qual ela “abrigara seu coração<br />

esfrangalhado”, o narrador se depara com um<br />

maço de cartas cuidadosamente atadas por um<br />

cordel. Escritas pelo irmão, vitimado por um<br />

acidente automobilístico, e dirigidas à mãe,<br />

essas cinquenta cartas reconstituem um passado:<br />

ao mesmo tempo que ilustram as mudanças<br />

políticas, econômicas e culturais durante a<br />

ditadura militar brasileira, convidam o leitor a<br />

espreitar a memória de uma família com<br />

“olhos derramando saudades”.<br />

Neste livro, o autor recupera a antiga tradição<br />

do romance epistolar, transfigurando-a - em<br />

vez de uma troca de correspondência ordenada<br />

cronologicamente, em De mim já nem se lembra<br />

há apenas uma voz, no espaço e tempo imprecisos<br />

da ausência.<br />

DE MIM JÁ NEM SE LEMBRA<br />

Autor: Luiz Ruffato<br />

Editora: Companhia das Letras (144 p., R$34,90)<br />

TRECHO:<br />

"No quarto, escancarei o guarda-roupa: pendurados<br />

em cabides de arame, desolados vestidos<br />

abraçavam-se pânicos, compreendendo<br />

que aquela a quem um dia haviam servido, essa<br />

não regressaria jamais. E pus-me à tarefa,<br />

antes que, apavorado, recuasse. Não dobrei<br />

saias e blusas, camisola e calça-comprida: enfiei-as<br />

maquinalmente em duas bolsas de napa<br />

(...). Surpreendi-me com o mínimo de suas coisas<br />

– eu, que julgava sabê-la. Bateei gavetas,<br />

surgiram lenços-de-cabeça e intimidades, lençóis<br />

e cobertas, toalhas e documentos, fotografias,<br />

lembranças. Sob a cama-de-casal, uma pequena<br />

e ignorada caixa retangular de madeira.<br />

Puxei-a (...) e, ao abri-la, interromperam-se os<br />

preparativos da pachorrenta segunda-feira: ali,<br />

minha mãe abrigara seu coração esfrangalhado."<br />

20


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Eltânia André<br />

Nasceu em Cataguases, Minas Gerais, hoje vive em São Paulo. Autora<br />

dos livros de contos Meu nome agora é Jaque ( Ed. Rona,<br />

BH, 2007) e Manhãs Adiadas (Prêmio ProAC da Sec. de Cultura<br />

de SP 2011, Dobra Editora, SP, 2012).<br />

Para fugir dos Vivos é seu primeiro romance.<br />

Para Fugir dos Vivos<br />

A l g u n s r o m a n c e s n o s f a z e m m a i s<br />

c o n s c i e n t e s d e n o s s a c a p a c i d a d e d e<br />

m e r g u l h a r n a s h i s t ó r i a s . E x i s t e m t e x -<br />

t o s q u e n o s p r e n d e m e n o s d e s p e r t a m<br />

u m i n t e r e s s e m a i o r , a d e l í c i a s e f a z<br />

m a i s p r e s e n t e , m e s m o p r a z e r d e<br />

q u a n d o a i n d a é r a m o s j o v e n s . A q u e l e<br />

i n s t a l a d o e m u m p a s s a d o d i s t a n t e e<br />

q u e a c a b o u t r a n s f o r m a n d o - s e e m h á -<br />

b i t o , o d a l e i t u r a . L e r P a r a F u g i r d o s<br />

V i v o s , d e E l t â n i a A n d r é , f o i p a r a m i m<br />

r e c u p e r a r o u n i v e r s o m u i t a s v e z e s<br />

p e r d i d o d e s t a s e n s a ç ã o , a d e m e r g u -<br />

l h a r e m u m m u n d o n o v o , f r u i r , f r u i r ,<br />

q u e r e r q u e o t e m p o s e a r r a s t e , a s p á -<br />

g i n a s n ã o c h e g u e m a o f i m .<br />

Ta n t o n o L i v r o U m c o m o n o L i v r o d o<br />

M i g u e l e n t r a m o s n a i n t i m i d a d e d o s<br />

n a r r a d o r e s , o n d e o s d o i s i r m ã o s f i -<br />

l h o s d e I s m á l i a , a M a r i a C o m p r i d a ,<br />

c o m s u a s u n h a s d e a r r a n h a r p e s a d e -<br />

l o s , e d o c o v e i r o F o n s e c a e s e u c h a -<br />

p é u a s s u s t a d o r , m e r g u l h a m n o p a s s a -<br />

d o à s m a r g e n s d o r i o P o m b a , l u g a r<br />

o n d e n a s c e r a m , e d e s f i l a m t r i s t e z a s<br />

q u e h a b i t a m o n o t u r n o d e s u a s a l m a s .<br />

A l i , d e c e r t a f o r m a , m o r r e m u m p o u -<br />

c o t o d o s o s d i a s , v í t i m a s d a s r u d e z a s<br />

d e u m a e d u c a ç ã o e m q u e o s i l ê n c i o<br />

s e m p r e s e f a z i n c a p a z d e t r a z e r t e r -<br />

n u r a s . A f a l t a d e d e l i c a d e z a p r e s e n t e<br />

é c o r t a n t e c o m o a n a v a l h a M o n s e r r a t<br />

P o u , q u e o f i l h o m a i s v e l h o g a n h a r i a<br />

d o b a r b e i r o .<br />

E l á c r e s c e m v í t i m a s d e i n j u s t i ç a s ,<br />

c a s t i g o s , m ã o s p e s a d a s . E , q u a n d o<br />

r e c o r d a m o s u c e d i d o , s e n t e m a i n d a a<br />

m á g o a p r e s e n t e , m e s m o q u e d i s t a n -<br />

t e s , a f a s t a d o s , v i v e n d o f o r a d a l i ,<br />

a d u l t o s .<br />

A o e n t r a r m o s e m c o n t a t o c o m a s<br />

p e r s p e c t i v a s d e c a d a u m d e l e s , p o d e -<br />

m o s o b s e r v a r a d i v e r s i d a d e p s i c o l ó g i -<br />

c a d o h u m a n o . O s d o i s r e c u p e r a n d o<br />

s u a s d o r e s d e s l o c a d o s e t r i s t e s , n a<br />

r á p i d a v i s i t a d e d e s p e d i d a .<br />

N a s p a l a v r a s b e m e s c r i t a s d a a u t o r a<br />

d e s t a c a m - s e a l g u m a s p r e c i o s i d a d e s .<br />

C o m o n o m o m e n t o e m q u e o m e n i n o<br />

r e c o r d a u m a s u r r a : a r r e p i o s p e r c o r r e -<br />

r a m o m e u c o r p o , o s p e l o s e r i ç a d o s<br />

p e l a l e m b r a n ç a t r a z e m à t o n a t o d o o<br />

a f e t o d a q u e l e i n s t a n t e c o m a e f i c á c i a<br />

d e v a s t a d o r a d e u m c â n c e r . M e t á s t a s e<br />

n a a l m a .<br />

N e m s e m p r e a n o s s a a r m a é o q u e a<br />

m e m ó r i a g u a r d a .<br />

Editora Patuá<br />

Livro: Para fugir dos vivos<br />

Autor: Eltânia André<br />

Gênero: Romance<br />

Número de Páginas: 192<br />

Formato: 16x23<br />

Preço: R$ 38,00 + frete<br />

http://www.editorapatua.com.br<br />

R i c a r d o R a m o s F i l h o<br />

21


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Mauricio Vieira<br />

Escritor brasileiro, reside em Paris, é autor do livro de poemas<br />

“Arvoressências” (Ed. De Cultura, 2012).<br />

A Educação pelo Verso<br />

Na Flipoços deste ano, tive o prazer e a<br />

sorte de assistir à palestra do poeta e professor<br />

Antônio Carlos Secchin, que interpretou um poema<br />

de viés biográfico de João Cabral. Notoriamente<br />

avesso ao lirismo e a rompantes autobiográficos,<br />

João Cabral entretanto revelou no poema<br />

“A Descoberta da Literatura”, do livro A Escola<br />

das Facas, de 1980, o menino franzino que<br />

era, que lia romances de cordel para os trabalhadores<br />

do engenho da família em Pernambuco,<br />

sem o conhecimento e para o desgosto da<br />

Casa-Grande.<br />

A palestra do professor Secchin, divulgando<br />

detalhes da vida de João Cabral, me auxiliou<br />

a conhecer mais sobre a vida que o poeta, para<br />

quem a intimidade era uma pedra, se permitiu<br />

revelar. Estas pequenas revelações biográficas,<br />

por este que é um dos maiores estudiosos de<br />

sua obra, se de pouco impacto no conjunto da<br />

obra do poeta, que assim o queria, serviram para<br />

humanizar o poeta que encontra no mineral<br />

sua musa, que descreve o gozo durante o ato sexual<br />

como a mineralização dos corpos. Pequenas<br />

anedotas sobre a vida de Cabral tiveram<br />

função similar àquela que, num outro plano,<br />

a dona de casa busca ao ver um reality<br />

show, ou ao folhear uma revista de fotografias<br />

de pessoas famosas. Este é um desejo comum a<br />

todos, de trazer os deuses para a terra para nos<br />

igualarmos a eles. João Cabral, encerrado em<br />

pequenos fatos ou opiniões que chegam aos<br />

nossos ouvidos por vezes já com um viés negativo,<br />

e que somente servem para confirmar uma<br />

opinião por nós formada anteriormente, tornouse<br />

um outro João Cabral, interessante, instigante,<br />

através desta seleção de dados biográficos,<br />

extremamente sutil e bem humorada, oferecida<br />

pelo professor Secchin, que tomou o cuidado<br />

não de vulgarizar ou escancarar a vida do poeta.<br />

Quebrada esta primeira barreira, o professor<br />

nos ofereceu um poema, que se tivesse<br />

sido abordado no início da sua palestra, poderia<br />

ter encontrado resistências, sobretudo daqueles<br />

como eu, que achavam sua obra um tanto árida.<br />

Cabral não gostava de música, havia reiterado<br />

o professor Secchin. Isso eu já sabia, e me<br />

ajudava a afirmar que não era poeta para<br />

mim. Mas a forma como o professor utilizou<br />

este fato serviu, pelo contrário, para me deixar<br />

curioso e me oferecer uma pergunta. Se antes<br />

eu nem me dava ao trabalho de perguntar, agora<br />

eu já olhava na direção oposta. O que o poeta<br />

que se autodenomina o anti-lírico, que escreveu<br />

uma anti-lira em homenagem ao lírico Manuel<br />

Bandeira por seus 80 anos, que torcia o nariz<br />

para as letras de música de Vinicius de Moraes,<br />

segundo Cabral um talento desperdiçado, que<br />

poderia ter sido o maior poeta brasileiro, pode<br />

oferecer a alguém que se posiciona no campo<br />

oposto, um poeta lírico, que fala de árvores, um<br />

22


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

O poema nos remete à infância do menino<br />

“franzino” que se juntava aos de “letra analfabeta,”<br />

que lhe “traziam conspirantes/para que os<br />

lesse e explicasse/um romance de barbante” e<br />

que não temia ser visto pela Casa-Grande como<br />

um traidor das estruturas sociais. Ele, um “filho<br />

-engenho”, não poderia ficar contando histórias<br />

de cordel àqueles que são “muitas vezes meliantes”.<br />

Seu sentimento de superioridade, revelado<br />

pelo fato de constatar que as histórias eram sempre<br />

muito parecidas, que “nada ou pouco variassem/nos<br />

crimes, no amor, nos lances,/e soassem<br />

como sabidas/de outros folhetos migrantes,” era<br />

sublimado pelo sentimento de igualdade ao sentar-se<br />

com eles à volta da “roda morta de um<br />

carro de boi”.<br />

O poema evoca a curiosidade e ousadia do<br />

menino, de atravessar as barreiras sociais, invisíveis<br />

mas palpáveis, para sentar-se, com aqueles<br />

que seriam seus supostos inferiores sociais, e ao<br />

redor daquela távola redonda partilhar fábulas<br />

em redondilha maior que não ser veriam deslocadas<br />

em meio ao conjunto de lendas arturianas.<br />

O poema contrapõe o orgulho do menino<br />

que percebe que “sem querer, imantara todos<br />

ali, circunstantes,” à humildade de querer ser<br />

apenas “puro alto-falante”. Contrapõe o medo<br />

de ver-se confundido com o gigante com a coragem<br />

supracitada. O poema finalmente contrasta<br />

João, o menino, que descobre a literatura, e Cabral,<br />

o homem, que descobre ou revela elementos<br />

biográficos que por sua própria escolha havia<br />

encoberto.<br />

O poema é ato humanizador, que quebra<br />

barreiras, une opostos, e que a aula dada pelo<br />

professor Secchin nos permitiu vislumbrar de<br />

forma mais clara. Neste poema de opostos unidos,<br />

de filho-engenho e cassacos do eito<br />

(trabalhadores do engenho), de medo e coragem,<br />

de orgulho e humildade, de oposição entre estruturas<br />

métricas de cordel com rimas muito mais<br />

complexas do que as esperadas num cordel, em<br />

suma, a oposição cordel e literatura, tudo isto se<br />

senta à volta daquela “roda morta/de um carro<br />

de boi, sem jante” (aro da roda). São opostos,<br />

que se educaram pelo verso, ou poderíamos dizer,<br />

pelo inverso.<br />

O menino, suposto traidor de sua classe, e<br />

os trabalhadores, estão unidos pela aventura no<br />

corpo do poema, que só ao final é cerceado por<br />

parênteses, para descrever a interrupção abrupta<br />

da aventura pela revelação ali sim de um traidor<br />

do arranjo anterior, e para marcar o contraste<br />

entre a roça, arena da aventura do menino fora<br />

de sua esfera social e também da aventura ficcional<br />

tão aguardada pela gente do campo, e a Casa<br />

-Grande, onde o poema adquire um tom de reprovação<br />

à afronta do menino e às narrativas<br />

descritas naquele meio “próprio dos cegos de<br />

feira”. Note-se que apesar de todos estes opostos,<br />

e mesmo com o parêntese que marca a troca<br />

para o tom de reprovação, não há estrofes no poema.<br />

Ele é uma só coluna ininterrupta de opostos<br />

atraídos.<br />

A palavra “imantara” assim transcende o<br />

poema. Os temas do poema estão todos aglutinados<br />

graças a esta imantação. Aqueles que ouviram<br />

o professor Secchin também ficaram imantados,<br />

graças à sua interpretação, da escola humanista,<br />

tão avessa a polarizações. Foi uma lição<br />

para vencer os espaços por nós criados e que<br />

nos distanciam, e que atualmente se observa de<br />

forma histérica no cotidiano. Lembrei-me de<br />

meu professor no senior year na high school, que<br />

pela simples leitura de poemas de Yeats, Eliot,<br />

cummings e Frost, sem o auxílio de teorias, nos<br />

auxiliava na descoberta da literatura. A aula<br />

magna do professor Secchin me remeteu ao menino<br />

franzino que tinha aulas com nerds mas tocava<br />

baixo em bandas com gente que preferia as<br />

drogas, que sem ser gay escreveu um artigo no<br />

jornal da high school defendendo o direito de<br />

um rapaz gay se candidatar a ser Homecoming<br />

Queen. Esta aula me fez Cabralino e seguir lírico,<br />

ser pedra e seguir árvore, e assim sendo vencer<br />

os vãos que criam os opostos, para ser mais<br />

carne.<br />

23


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

André Di Bernardi<br />

André Di Bernardi nasceu em Belo Horizonte. Também Jornalista,<br />

Autor de A hora extrema (1994), prêmio Álvares de Azevedo, promovido<br />

em 2006 pela Academia Mineira de Letras. água cor (1997),<br />

e longes pertos e algumas árvores (2002) É quase noite no coração daquelas<br />

águas (2009) e esse bicho sou eu (2015).<br />

O poeta mineiro Ronaldo Cagiano acaba de lançar,<br />

pela Editora Patuá, Eles não moram mais aqui, uma<br />

reunião de 16 contos escritos ao longo dos últimos sete<br />

anos, inéditos em livros. Alguns deles foram premiados<br />

em concursos e outros foram publicados em diversos jornais<br />

e revistas literárias, inclusive no exterior. Trata-se do<br />

17° livro na carreira do autor. Segundo o também poeta e<br />

professor Leo Barbosa, que assina a orelha do livro,<br />

“Cagiano imprime uma atmosfera na qual os cenários<br />

das narrativas se unem na tentativa de percorrer os sentimentos<br />

e as emoções do narrador e das personagens”.<br />

Ronaldo Cagiano usa e abusa de paradoxos. Timorato,<br />

cheio de escrúpulos diante de sua matéria, diante da<br />

vida, ele ilumina de sombras o seu texto. Os contos são<br />

escritos diante de feridas abertas. Tantas e repetidas vezes,<br />

sabe-se que é – quase – impossível vencermos a existência,<br />

quando há apenas a constatação de um caminho<br />

sem volta. Certos escritores carregam corações distorcidos.<br />

E dentro deles cabem histórias.<br />

A extensa, a obesa dor de uma separação, a distância<br />

dos filhos; a morte de uma delas, o mistério de uma cidade<br />

em construção; a rotina; a espera por um Natal digno.<br />

Somos literalmente tragados diante do fluxo furioso da<br />

vida. Existe um “definitivo breu sob a mudez da noite”.<br />

Cagiano não adorna com firulinhas o seu estilo bruto,<br />

profundo, de ver e dizer as coisas. É sempre questionável<br />

uma literatura feita tão somente de afagos e delícias.<br />

Os textos de Cagiano são cabulosos. Mas devagar com o<br />

andor do pensamento. São cabulosos, no que esse signo<br />

traz de mistério, um mistério muito embora desagradável,<br />

pois sugere que tudo é cru. Nem a poesia suporta o<br />

peso de tanta violência, o abandono de tanto descaminho.<br />

Alguns encontram na literatura uma espécie de descanso,<br />

de placidez digna de jardins dominicais. Outros<br />

A Caligrafia torta da vida<br />

acabam descortinando uma série de tormentas e tormentos,<br />

numa luta de espadas, um pensar profundo, enquanto<br />

todos os personagens gritam. O livro de Cagiano serve<br />

bem para os mais aflitos. As mãos, as palavras, tentam<br />

moldar um barro, tentam, seguindo uma caligrafia torta,<br />

reincidente de erros e garranchos, encolher as sombras.<br />

O que querem os personagens do livro? O que tanto<br />

sonham? Por que tantos corações em chamas? Viventes,<br />

tudo clama por existir, este “anseio de fabulosa extensão”.<br />

Cagiano é também um escritor refinado, dotado de<br />

uma sensibilidade voltada para agruras e verdades adornadas<br />

de criminosos espinhos. Em Eles não moram mais<br />

aqui, ele dialoga com grandes nomes da literatura, como<br />

Clarice Lispector, Nuno Ramos, Mário Faustino, Marçal<br />

Aquino e James Joyce, entre outros. A cada conto surgem<br />

epígrafes desconcertantes, como são desconcertantes<br />

todos os textos. É quase impossível lê-los de forma<br />

contínua. É preciso um tempo, entre cada página, para<br />

tomarmos fôlego.<br />

Existem parques, carrosséis, roda-gigantes, existem<br />

dias de sol e domingos de festa. Mas Ronaldo Cagiano<br />

preferiu para si e a para todos a fúria, a insuficiência da<br />

“má vontade do tempo”. Existem litígios prontos, guardados<br />

nas mais singelas intenções. Tantas vezes as coisas,<br />

o fluxo de tudo estanca diante do mistério de grandezas<br />

efêmeras, diante da força e do cinismo do imponderável,<br />

esta seta de espinhos escondida nas dobras, nos<br />

desvãos de todo pensamento vestido de medos e coturnos.<br />

Cagiano descobre dores diante de um Deus estranho:<br />

vivemos “uma espécie de orfandade de pai vivo”.<br />

Cagiano escreve com as unhas, escreve olhando nos<br />

olhos da noite, desafiando a maldade estúpida. O autor<br />

esculpe, acerta, dignifica, ressalta a humanidade extrema<br />

de seus personagens, mãe, velhos, crianças moribundas,<br />

fanáticos, doidos e doidivanas. Cagiano também fala, ele<br />

também se rende, contrafeito, a um renitente deslumbramento<br />

(este outro mistério), como no conto “Buscas” e<br />

“mar de dentro”, quando faz um relato profundo, lírico,<br />

buscando a superfície como buscam a superfície os melhores<br />

náufragos. São ilhas,<br />

raquíticas miragens que<br />

afrontam um turbilhão de<br />

breus. E “esta eternidade<br />

permanente no olhar”.<br />

Estado de Minas-25.03.2016<br />

24


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

José Antonio Pereira<br />

Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A casa da Rua Alferes e<br />

outras crônicas (2006) e autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).<br />

Poesia no quintal<br />

Era preciso estar aqui<br />

para tocar<br />

o que resta ainda desta tarde,<br />

com seus quintais, suas casas,<br />

e a mesma e sempre inútil<br />

revelação.<br />

... de que o que ilumina é a poesia.<br />

Ao cair de uma tarde de sábado, em agosto de<br />

2015, recebemos Yacyr em Cataguases, para<br />

um papo sobre sua poesia. Lá estávamos, eu,<br />

Enzo Menta, Leonardo Campos, Emerson Teixeira<br />

e o casal Maria e Rogério Torres no simpático<br />

quintal da Hippie.<br />

Iacyr já era conhecido por alguns do grupo,<br />

por mim não. Dele, dera-me conta, pelos elogios<br />

à poesia Ronaldo Cagiano. Pelas mãos do<br />

Cagiano, veio a mim Trinca dos Caídos e nele,<br />

logo de cara, Luiz Ruffato diz: Do poeta Iacyr<br />

Anderson Freitas sabemos o que aguardar.<br />

Portanto, meu primeiro contato com o poeta<br />

foi pela prosa. E que prosa! Mas o nosso sábado<br />

era só de poesia.<br />

Recentemente, numa conversa lá no Clube de<br />

Leitura Nossas Causas, Rogério Torres nos<br />

narrava a epopeia dele por Portugal para falar<br />

de poesia. Tamanho esforço nas condições em<br />

que ele se encontrava, inferi que Iacyr, em algum<br />

canto d’alma, quer seguir os caminhos de<br />

Murilo Mendes. Caminhos geográficos é claro.<br />

Porque sua poesia além da voz própria,<br />

ombreia em qualidade com a do lisboeta do<br />

Paraibuna. Talvez nem ele saiba, mas uma<br />

força estranha o atrai para alguma quinta<br />

portuguesa e entre os sabores do bacalhau,<br />

dos azeites, dos vinhos, o fumegante aroma de<br />

uma Tripa do Porto, os sedutores doces de<br />

conventos e com saudades de sua Patrocínio<br />

ponha-se a germinar poemas sobre a Mata Mineira.<br />

Estas conexões geográfico-afetivas fazem-me<br />

lembrar de Amilcar de Castro que<br />

num documentário afirmava mais ou menos:<br />

– Juiz de Fora é a Lisboa mais próxima do<br />

quintal da minha casa.<br />

Poetas são assim mesmo, vivem ruminando<br />

saudades. No entanto, não nos enganemos<br />

com os poetas, como bem diz Fernando Pessoa:<br />

“o poeta é um fingidor...” eles tingem a<br />

verdade com outra cor. Só que entre as dobras<br />

de seus versos, que aparentemente falam<br />

do passado, eles alargam nossas mentes para<br />

o futuro. Em suas abstrações solidificam nossas<br />

almas para o duro concreto do dia a dia. A<br />

poesia dele é de quem sabe extrair das palavras<br />

mais do que ritmo e forma. É legítimo<br />

herdeiro dos nossos grandes Murilo Mendes,<br />

Carlos Drummond, só pra formarmos um triangulo<br />

de mineiros. Se, caro leitor, tem dúvidas<br />

disto, dê uma olhadinha na nossa edição<br />

anterior, melhor ainda: dê um mergulho na<br />

obra de Yacyr Anderson Freitas.<br />

25


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Emerson T. Cardoso<br />

Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles (2001) poesia,<br />

coautor de A casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006).<br />

Traduziu O retorno do nativo de Thomas Herdy. Sempre ativo<br />

em publicações literárias. Iniciou-se em Estilete (1967), mimeografado,<br />

editor/fundador do Delirium Tremens (1983) e Trem<br />

Azul (1997).<br />

.<br />

Santa Terra<br />

fuzila um vendaval pelos meus cabelos desgrenhados.<br />

alucinantes berros açoitam-me<br />

sensivelmente. da súbita manifestação dos<br />

sentidos, surge uma ganancia violenta de<br />

desdobramentos. dos milhões de poros<br />

partem chamas enfurecidas. prevalece a fôrça<br />

atômicacde visões novas - existência metamorfoseada<br />

de objetividades supersuper...<br />

meu corpo galga o caminho incerto<br />

de infinitos, deixando atrás de si sua marca<br />

de febre. dá-se uma sequência de choques<br />

espaciais num frêmito estarrecedor: pedações<br />

de astros cruzam-se e desaparecem rumo<br />

às galáxias... é um turbilhão – a mente<br />

insiste positiva nas idéias futuras; caminhos<br />

e caminhantes que se interceptam. nôvo<br />

mundo: instantânea transformação no universo:<br />

observa-se dia a dia o fenômeno dos<br />

insetos/prodígios que nunca dormem; se<br />

acomodam nas subcamadas - parecem inativos,<br />

mas são, na verdade, destruidores incansáveis,<br />

ocultos como estão seu trabalho é<br />

contínuo... o sol sapeca! - deixa o sol sapecar!!!<br />

- mas aí nasce sempre a suspeita do<br />

explosão atômica!!! - por que não vulcânica???<br />

o que pode acontecer com modificações<br />

explosivas ninguém percebe... deixem<br />

pelos menos os olhos permanentementes<br />

abertos... mãos estendidas à própria natureza<br />

cansada... no ar, música eletrizante e<br />

inatuante contra fôça poderosa. luta-se como<br />

mãos, pés, dentes, braços, pernas, queixo,<br />

cara, paalvra a palavrão, e muito ódio...<br />

conclusão imperiosa a que se chega - : preciso<br />

destruir ou ser destruído! um último e<br />

definitivo salto: um grito enorme na maplidão<br />

e a certeza de estar no caminho certo de<br />

conclusões. e abrirão afirmativamente os<br />

gênios as suas insatisfações, ao meu, ao seu,<br />

no dêle, ao nosso, ao dêles, de todos os lados...<br />

todos empunhando milhões de espadas<br />

e bombásticas de conscientização em<br />

massa pra entrar na enxurrada apoteótica<br />

que virá. mas um outro salto fica sendo necessário<br />

- : onde quebraremos nossas discenções<br />

– no mundo nôvo, no paraíso achado,<br />

na fonte de irradiações da nova ERA? -<br />

quem beber das côres que gotejarão no outro<br />

mundo terá um colorido especial dentro<br />

de si... quem dormir nas sombras dos novos<br />

baobás terá o sono das estrê-las... quanta<br />

bobagem!<br />

não diremos mais nem menos... mas estaremos<br />

aí mesmo pra entrar na dança –<br />

nossa receita: dividamos irmãmente a hóstia,<br />

pra ficarmos puros, integrais e salvos na<br />

muralha santa da loucura...<br />

e. t. cardoso.............<br />

Estilete Ano I n° 2 - Junho - 1968<br />

26


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Luiz Ruffato<br />

Nasceu em Cataguases MG, reside em São Paulo SP. Entre tantas<br />

obras de sua autoria destacam-se: Eles eram muitos cavalos, de 2001,<br />

ganhou o Troféu APCA oferecido pela Associação Paulista de Críticos<br />

de Arte e o Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca<br />

Nacional. Esse livro o tornou um escritor reconhecido no país. Em<br />

2011 concluiu o projeto Inferno Provisório, com a publicação do<br />

romance Domingos Sem Deus, iniciado com Mamma, son tanto Felice em<br />

2005, composto por cinco livros sobre o operariado brasileiro.<br />

Lendo os Clássicos<br />

O coração é um caçador solitário (1940)<br />

Car son McCuller s (1917 -1967) - Estados Unidos<br />

Tradução: Marcos Santar rita<br />

São Paulo: Abril, 1984, 316 páginas<br />

Não gosto do título - soa piegas, promovendo assim<br />

uma falsa impressão acerca de um livro que é<br />

tão denso, corajoso e profundo, que às vezes torna-se<br />

difícil acreditar que tenha sido escrito por uma jovem<br />

de apenas 23 anos. A narrativa transcorre nos anos<br />

imediatamente anteriores ao início da II Guerra<br />

Mundial e tem como cenário uma pequena cidade industrial<br />

de um estado pobre, violento e racista do<br />

sul dos Estados Unidos (a Geórgia natal da autora,<br />

talvez, ou o vizinho Alabama). O romance<br />

descreve os encontros e desencontros entre personagens<br />

inesquecíveis: o enigmático Biff Brannon, dono<br />

de um restaurante popular; a sonhadora adolescente<br />

Mick Kelly; o enigmático surdo-mudo John Singer;<br />

o confuso agitador Jake Blount; o médico negro<br />

socialista Dr. Benedict Copeland e sua filha,<br />

a empregada doméstica Portia... Todos esses, e mais<br />

aqueles que os cercam, homens e mulheres, brancos<br />

e negros, jovens e velhos, fadados à solidão,<br />

à incompreensão, à frustração. Só dois aspectos me<br />

desagradam nessa quase obra-prima: alguns erros de<br />

composição* (principalmente relativos ao tratamento<br />

do tempo transcorrido) e a opção por caracterizar a<br />

fala dos negros pobres por meio da reprodução<br />

de erros gramaticais (ao invés de recriá-la artisticamente),<br />

provocando um estranhamento desnecessário.<br />

* Abaixo, dois exemplos:<br />

1) O surdo-mudo Spiros Antonapoulos é internado<br />

em um asilo para loucos numa cidade distante 300<br />

quilômetros do cenário da história. O narrador comenta,<br />

à pág. 181, que "fazia mais de um ano já" que o<br />

fato transcorrera, para na pág. 194 escrever que "já<br />

faz cinco meses e vinte um dias"...<br />

2) À pág. 282, o narrador anota: "A viagem era longa.<br />

Pois, embora a distância (...) fosse de pouco menos de<br />

trezentos quilômetros, o trem desviava-se para pontos<br />

muito afastados do caminho e parava longas horas<br />

em determinadas estações durante a noite". Logo<br />

à pág. 287, quando o personagem está voltando desta<br />

viagem, vai escrito: "Chegou à estação dois minutos<br />

antes do trem partir e mal teve tempo de arrastar sua<br />

bagagem para dentro e arranjar uma poltrona. (...) À<br />

meia-noite, puxou a cortina da janela e deitou-se no<br />

assento. (...) Nessa posição, quedou-se num estupor<br />

de madorna por cerca de doze horas. O condutor teve<br />

de sacudi-lo quando chegaram".<br />

Avaliação: Muito bom<br />

Carson McCullers<br />

Carson McCullers (19 de fevereiro de 1917, Columbus, Georgia – 29 de setembro<br />

de 1967, Nyack, New York) foi uma escritora estado-unidense de nome de nascimento<br />

Lula Carson Smith.<br />

h t t p : / / l e n d o o s c l a s s i c o s l u i z r u f f a t o . b l o g s p o t . c o m . b r /<br />

27


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Emerson T. Cardoso<br />

Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles (2001) poesia, coautor<br />

de A casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O retorno<br />

do nativo de Thomas Herdy. Sempre ativo em publicações literárias.<br />

Iniciou-se em Estilete (1967), mimeografado, editor/fundador do<br />

Delirium Tremens (1983) e Trem Azul (1997).<br />

Conversa de poeta<br />

Volto a falar de Manuel Bandeira,<br />

um dos maiores poetas brasileiros<br />

do século que passou e mestre da<br />

crônica. Esta faceta do poeta que tinha<br />

uma estrela para a vida inteira foi ignorada<br />

pelos editores e de certa forma<br />

negligenciada pelo seu autor que só a<br />

partir de certo período de vida resolveu-se<br />

pela publicação delas — São<br />

uma raridade que só recentemente<br />

apareceram, num volume, Seleta em<br />

Prosa, apanha da s em edições dos<br />

anos 50 e 60. . Reunidas aqui a diable<br />

constitui um retrato da vida literária<br />

do Rio até essa data: Destaque para<br />

as figuras de Camus, Ferreira Gullar,<br />

Murilo Mendes, e até comentários sobre<br />

futebol aproveitando a conquista<br />

do campeonato mundial pelo nosso escrete<br />

com direito à injunções políticas<br />

surpreendentes. Bandeira as considerava<br />

simples bate papo com os amigos,<br />

mas compreendia que significavam<br />

acima de tudo o registro de fatos que<br />

morreriam com ele se não os publicassem.<br />

Na impossibilidade de discorrer<br />

sobre todos escolhemos aqui alguns<br />

que julguei interessante apresentandoos<br />

em fragmentos.<br />

Vamos a eles:<br />

Camus<br />

Bandeira conta que foi assistir a<br />

uma conferência sua, ele que sempre<br />

foi avesso a esses expedientes, a “esses<br />

corre-corres de pessoas que querem<br />

tomar o cheiro dos famanazes em trânsito”.<br />

Lá foi. Mas ao ver a multidão<br />

resolveu bater em retirada e concluiu:<br />

Jamais o vi falar em público.”<br />

A oportunidade viria tempos depois<br />

na casa de Maria da Saudade de Cortesão.<br />

Lá se reuniam escritores brasileiros<br />

amigos dele (cerca de vinte) entre<br />

tantos, claro, Murilo Mendes. Foi a<br />

própria anfitriã que colocou-o ao lado<br />

de Camus para que conversassem um<br />

pouco.<br />

“Eu estava arrasado. Disse. “Esses<br />

almoços em restaurantes me cansam<br />

muito”. “A mim também”, respondeu.<br />

“O senhor deve estar exausto de tanta<br />

homenagem.” E ele: “Estou doente. Eu<br />

resisti à guerra, resisti à Resistência,<br />

não resisti à América do Sul”.<br />

Um detalhe: Camus, a exemplo de<br />

Bandeira, também esteve tuberculoso<br />

na juventude. Camus deu-lhe seu telefone<br />

privado em Paris, insistindo para<br />

que Bandeira o procurasse lá na França.<br />

“Não havia nele nada daquela detestável<br />

personalidade que é uma celebridade<br />

itinerante. Era um homem da<br />

rua, um simples homem dando a outro<br />

um pouco de sua substância espiritual.<br />

“Um ano depois, conclui Bandeira,<br />

estive em Paris. Ele estava ausente.<br />

Agora é o desastre...Deixo nestas pobres<br />

linhas a minha saudade do homem<br />

Camus, tão simples, tão simpático,<br />

tão despretensioso na sua glória<br />

mundial.”<br />

Futebol<br />

“Nesta hora de sol puro... ouço<br />

o canto enorme do Brasil.”<br />

Nada a ver com o momento sóciopolítico<br />

que estamos vivendo. Valeu-se<br />

o poeta destes belos versos de Ronald<br />

de Carvalho nos bravos anos de 1958 –<br />

período aparentemente promissor afinal<br />

estávamos comemorando a conquista<br />

de nosso primeiro campeonato<br />

mundial de futebol e Bandeira (como<br />

todo brasileiro aliás) dizia-se envolvido<br />

até a alma com o escrete nacional<br />

que brilhava frente a ingleses, galeses,<br />

suecos e quejandos.<br />

“Na verdade, o que eu fazia questão<br />

era primeiro sovássemos os russos para<br />

que eles não ganhassem o campeonato<br />

e não fossem, assim atribuir a vitória<br />

ao regime político soviético. “<br />

Desabafou.<br />

28


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Se é verdade que já existissem os critérios<br />

de esquerda e direita, poderíamos<br />

concluir, que a essas alturas teríamos<br />

mais que um craque genial na extrema<br />

direita.<br />

Coisas da política<br />

E mais adiante:<br />

Tenho 62 anos de residência no Rio<br />

e nunca vi nas ruas afluências do povo<br />

como a que encheu o centro da cidade<br />

para saudar os nossos campeões de futebol.<br />

Vale lembrar que até então apenas<br />

um brasileiro tinha se destacado igualmente<br />

no esporte: Ademar Ferreira dos<br />

Santos, campeão olímpico no salto triplo.<br />

E o arremate:<br />

Não vão agora os nossos governantes<br />

desfazer com as mãos o que os campeões<br />

fizeram com os pés.<br />

Onanismo<br />

Nunca se pôs tanta beleza no solitário<br />

gesto.<br />

Temos aqui Bandeira comentando<br />

Livro Geral, de Pena Filho e já saudando<br />

uma geração nova de pernambucanos<br />

como João Cabral de Melo Neto,<br />

Carlos Moreira e Carlos Pena Filho.<br />

Originalíssimos estes versos de Retrato<br />

Breve do Adolescente.<br />

“E aquele mais do que nunca<br />

herói do sonhar em vão<br />

foi dormir com todas elas<br />

nas curvas da própria mão.”<br />

Concreticismo<br />

Bandeira diz que Rubem Braga contou<br />

o número de palavras que compõe o<br />

texto integral do recente livro de Ferreira<br />

Gullar,113. E acrescentou humoristicamente:<br />

“O poeta poderia ter sido<br />

mais conciso se não tivesse a mania de<br />

repetição.” segundo o cronista estas<br />

113 palavras, pela repetição, não dizem<br />

nada.<br />

“Não sendo o homem de rua um leitor<br />

comum, se o sentido exato do poema<br />

lhe escapa, quem o poderia entender<br />

fora dos arraiais do concretismo”<br />

Bandeira afirmava que Gullar era<br />

um dos nossos melhores poetas moços<br />

e inteligentíssimo, chegando mesmo a<br />

pedir que o ajudasse a compreendê-lo.<br />

Gullar: “Esta poesia mostra o tempo<br />

como uma fruta aberta: tempo e espaço<br />

de si mesmo.”<br />

A certa altura Bandeira é quem diz:<br />

“A poesia concreta pode ser que seja<br />

uma maluqueira e até que não seja poesia.<br />

Mas que está despertando interesse,<br />

está.”<br />

Saint-Hilaire<br />

Bandeira discorreu admiravelmente<br />

sobre Saint-Hilaire, que esteve por<br />

aqui por volta de 18816, destacando a<br />

sua comoção diante das estátuas de<br />

Congonhas do Campo. Informa-nos,<br />

inclusive, que teria sido o francês o<br />

descobridor do Aleijadinho.<br />

“Não quis deixar Congonhas sem visitar<br />

a igreja de Bom Jesus, que é para<br />

esta região o que é para a Itália Nossa<br />

Senhora do Loreto [...]”<br />

Saint-Hilaire dizia-se surpreso de<br />

encontrar no seu trabalho tanto vigor<br />

aliado a tanta ciência de expressão em<br />

artista perdido em sertão remoto, tão<br />

afastado aos grandes centros de cultura.<br />

Sua leitura principal: A Bíblia.<br />

A certa altura conclui: “Aprendeu os<br />

elementos essenciais da técnica. O gênio<br />

fez o resto.”<br />

Do sábio francês acrescenta Bandeira:<br />

Quase morreu envenenado com mel<br />

de vespa lechiguana em território das<br />

Missões. Mas não foram infrutíferas<br />

essas jornadas pelo sertão. De volta à<br />

França havia catalogado 700 espécies<br />

novas de plantas, cerca de 200 pássaros,<br />

1600 insetos àquela altura desconhecidos<br />

dos europeus.<br />

De volta à França, com a saúde bastante<br />

debilitada teria dito: “Feliz de<br />

mim se me for permitido lançar os primeiros<br />

fundamentos da flora do Brasil<br />

Meridional e se puder não ficar inútil<br />

para a Ciência.”<br />

Não era este, esse ou aquele Murilo<br />

Explica Bandeira referindo-se a Murilo<br />

Mendes ao atender a um telefonema<br />

deste em seu apartamento. Do outro<br />

lado da linha a excelência em pessoa:<br />

– Alô?<br />

– 220832. Quem fala?<br />

– Murilo.<br />

– Que Murilo?<br />

– Mendes.<br />

“Era, diz, D Murilo, Murilo Medina<br />

Celi Monteiro Mendes, por quem há<br />

anos vinha curtindo grandes saudades.”<br />

Murilo em Roma dá nome à crônica<br />

que revela de modo inequívoco os fortes<br />

laços de amizade e a admiração entre<br />

os dois altíssimos poetas. Murilo<br />

era então figura ilustre na vida literária<br />

da capital italiana, traduzido inclusive<br />

por Ungaretti.<br />

Eis uma prova:<br />

Telefono di pachi<br />

telefonomo lamenti<br />

incontri inutili<br />

noia e rimorsi<br />

Ah! chi il conforto<br />

telefonerá<br />

La Rugiada pura<br />

E la vettura di Cristallo<br />

Salve Murilo, Camus, Selecionado<br />

brasileiro de 1958 (belos tempos!)<br />

E retornando o discurso de Bandeira<br />

repitamos com ele: “Viva o Recife e seu<br />

rio com os seus cais de auroras e os<br />

seus poetas!”<br />

29


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

José Antonio Pereira<br />

Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A casa da Rua Alferes e outras crônicas<br />

(2006) e autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).<br />

De como deixei de ler jornais<br />

Por estes dias, em que o país mergulhou na enésima<br />

crise política de sua história, conversava<br />

com um primo curitibano. Temos visões e concepções<br />

diferentes, mas nos respeitamos e por<br />

ele tenho um enorme carinho. Sou um democrata<br />

forjado na adversidade da ditadura, por isto prezo,<br />

e muito, a diversidade e a liberdade. Como<br />

ele, meu filho Gabriel formou-se em comunicação<br />

social. Um velho amigo formado nos anos<br />

setenta, sempre me dizia: “Zé, se você fizer um<br />

curso de jornalismo, nunca mais você lê jornal”.<br />

Falta honestidade e equilíbrio nos pauteiros e<br />

pautados das redações, na narrativa de pauta<br />

única que a imprensa brasileira vem construindo.<br />

O episódio da demissão da jornalista Barbara<br />

Gancia pelo Johnny Saad mostra a quantas anda<br />

a liberdade de expressão, nas redações. Liberdade<br />

mesmo, é só nas ruas. Estamos todos carentes<br />

da boa e velha poesia. Ela está ausente dos atos<br />

e da vida do mundo todo. Isto nos desumaniza,<br />

imbeciliza e surgem os diabólicos donos das verdades.<br />

Aprendi, com o linguista Gilberto Scarton: “Que<br />

a leitura nos permite uma reação ao texto, levando-nos<br />

a concordar ou discordar, decidir sobre a<br />

veracidade ou a distorção dos fatos, desmantelando<br />

estratégias verbais e fazendo a crítica dos<br />

discursos - atitudes essenciais ao estado de vigilância<br />

e lucidez de qualquer cidadão; que a escrita<br />

é um instrumento de luta pessoal e social,<br />

que, quando as pessoas não sabem ler e escrever<br />

adequadamente, surgem homens decididos a fazê-lo<br />

por elas e para elas. Por isso a linguagem<br />

constitui a ponte ou o arame farpado mais poderoso<br />

para dar passagem ou bloquear o acesso ao<br />

poder”.<br />

O velho amigo, meu filho e o grande Gilberto<br />

Scarton me fizeram trocar definitivamente a realidade<br />

falseada da mídia pela ficção realista da<br />

literatura.<br />

Na literatura, foi Graciliano<br />

Ramos e suas dolorosamente<br />

cruéis e<br />

sinceras Memórias do<br />

Cárcere, que despertou<br />

em mim o interesse pelo<br />

memorialismo. Quem<br />

solidificou este interesse<br />

foi o juiz-de-forano<br />

Pedro Nava.<br />

30


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Ele produziu a obra memorialística mais importante<br />

da literatura brasileira. É um mergulho no<br />

inconsciente coletivo brasileiro. Seu livro Baú de<br />

ossos, segundo Otto Lara Resende, sozinho<br />

“funda toda uma cultura” deu-me o que toneladas<br />

de jornais nunca darão. Há muito tempo o<br />

amigo Emerson Teixeira Cardoso, o Toquinho,<br />

sugeriu-me ler Pedro Nava, o que recomendo a<br />

todos. Ele tem gosto pela temática e seus autores;<br />

é capaz de, com entusiasmo, falar-nos de<br />

coisas como o ambiente pecaminoso e sem escrúpulos<br />

dos internatos masculino de Balão Cativo<br />

e Chão de ferro do Pedro Nava e do O Ateneu<br />

de Raul Pompéia. Segundo Toquinho a fieira de<br />

autores é grande, vem desde Visconde de Taunay<br />

que escreveu sobre os absurdos e atrocidades da<br />

Guerra do Paraguai. Até mesmo Machado de Assis<br />

com Memórias póstumas de Brás Cubas e<br />

Memorial de Aires, nos permitem andar pela história<br />

tanto quanto obras como Itinerário de Pasárgada<br />

de Manuel Bandeira; Um homem sem<br />

profissão: Sob as ordens de mamãe de Oswald de<br />

Andrade; A idade do serrote de Murilo Mendes;<br />

Viagem no tempo e no espaço, de Cassiano Ricardo.<br />

A literatura ensinou-me muito mais do que vários<br />

professores que passaram pela minha vida e<br />

olhe que muitos eram ótimos. Mostraram-me as<br />

diversas realidades do país. A realidade de Itaobim,<br />

onde nasceu meu pai, a de Cataguases, onde<br />

nasci, e a de Curitiba, onde nasceu meu primo<br />

(só para ficar entre nós), são distintas e até divergentes,<br />

são poucas as convergências. As visões<br />

de Brasil serão sempre diferentes. Nossos<br />

espasmos democráticos não resistem às mesquinharias<br />

de nosso anacronismo político, eles teimam<br />

em não evoluir, turbinados por uma histórica<br />

e resiliente burrice. Mesmo porque os detentores<br />

do poder não querem mudar nada. Não dá<br />

para ficar preso neste discurso do sim-não, certo<br />

-errado, black-white. Isto é reducionismo. A nossa<br />

diversidade é enorme. Somos enquanto raça:<br />

brancos, pretos, amarelos e mestiços. Até os gêneros<br />

não cabem mais no binário masculinofeminino.<br />

Infelizmente a mídia monocórdica retrata<br />

uma realidade filtrada, é só o que o dono da<br />

pauta quer que o leitor veja. E o leitor só compra<br />

o que repete seu olhar. Não gostam de ser confrontados<br />

com o novo, o diferente. Preferem, como<br />

bem dizia Raul Seixas: "ter aquela velha opinião<br />

formada sobre tudo".<br />

Eu não quero viver dentro deste círculo.<br />

31


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Ronaldo Brito Roque<br />

Nasceu em Cataguases MG, mora atualmente no Rio de Janeiro<br />

RJ. É autor de Duplo Sentido através da Kindle Store e Romance<br />

Barato (2010) entre outros.<br />

Brasil Global<br />

U l t i m a m e n t e t e n h o m e<br />

s e n t i d o t ã o s o z i n h o q u e m e d á<br />

v o n t a d e d e i r a q u a l q u e r l u g a r<br />

o n d e h a j a m a i s d e q u a t r o p e s s o a s ,<br />

q u a l q u e r m u v u c a q u e o f e r e ç a a<br />

r e m o t a p o s s i b i l i d a d e d e c o n h e c e r<br />

g e n t e n o v a e f a z e r u m a s f o t o s m a -<br />

n e i r a s . J á f i z c u r s o s d e c e r â m i c a<br />

e p e r c u s s ã o . J á e s t i v e e m m i s s a s<br />

e e m b a i l e s - f a n q u e . J á a c o m p a -<br />

n h e i f u n e r a i s d e g e n t e q u e e u n ã o<br />

c o n h e c i a . T u d o p e l o d e s e j o d e<br />

t r o c a r a l g u n s o l h a r e s e s o r r i s o s ,<br />

t a l v e z p a l a v r a s , s e n t i r u m p o u c o<br />

d e c o n t a t o h u m a n o , d e s i m p a t i a ,<br />

d e r e m i s s ã o . S e a l g u é m p e d i r m e u<br />

t e l e f o n e , t a l v e z e u c h e g u e a t e r<br />

u m p e q u e n o o r g a s m o . P a r a e v i t a r<br />

e s s e v e x a m e , p r o c u r o n ã o m e d e -<br />

m o r a r e m n e n h u m a s s u n t o . T e n t o<br />

d i z e r t u d o q u e p e n s o e m c i n c o o u<br />

s e i s p a l a v r a s . N i n g u é m m e e s t r a -<br />

n h a . A f i n a l , v i v e m o s n u m m u n d o<br />

d e c i n c o o u s e i s p a l a v r a s . M a i s<br />

q u e i s s o é d i s c u r s o , é t a g a r e l i c e ,<br />

é t e s e d e m e s t r a d o .<br />

M o r o n u m a c i d a d e g r a n d e<br />

q u e , c o m o t o d a c i d a d e g r a n d e , e s -<br />

t á c h e i a d e p r o t e s t o s e m a n i f e s t a -<br />

ç õ e s p o p u l a r e s . U m d i a m e t o q u e i<br />

q u e p r o t e s t o s s ã o ó t i m o s r e f ú g i o s<br />

c o n t r a a s o l i d ã o . V o c ê f i c a c e r c a -<br />

d o d e g e n t e , g r i t a a s m e s m a s f r a -<br />

s e s , t r o c a a l g u n s o l h a r e s , d e p o i s<br />

s e m p r e r o l a u m c o n v i t e p a r a u m<br />

c h o p e o u p a r a o u t r o p r o t e s t o s u -<br />

p o s t a m e n t e m a i s i n t e r e s s a n t e .<br />

N u m p r o t e s t o é m a i s f á c i l p u -<br />

x a r a s s u n t o . V o c ê l ê o s c a r t a z e s e<br />

s a b e m a i s o u m e n o s o q u e a s p e s -<br />

s o a s q u e r e m q u e s e d i g a . A s s i m<br />

s o b r a m e n o s c h a n c e p a r a d e c e p -<br />

ç ã o . P r o t e s t o é u m a f o r m a d e c o -<br />

d i f i c a r e o r d e n a r o c o m p o r t a m e n -<br />

t o h u m a n o , q u e , s e d e i x a d o a o<br />

a c a s o , a c a b a s e n d o a p e n a s b a r u -<br />

l h o , d e s e n t e n d i m e n t o , c a o s , e o<br />

q u e p o d e s e r p i o r : s o l i d ã o .<br />

C e r t o s á b a d o m e b a t e u a q u e l a<br />

a n g ú s t i a e n j o a d a , e v a s c u l h e i a<br />

i n t e r n e t e m b u s c a d e u m p r o t e s t o<br />

p a r a p r e e n c h e r o d i a . H a v i a u m<br />

p e l o s d i r e i t o s d o s h o m o s s e x u a i s ,<br />

o q u e a c h o s ú p e r l e g a l , d o u a m a i -<br />

o r f o r ç a , m a s d e i x e i p a s s a r , p o r -<br />

q u e p r e f i r o n ã o d a r a i m p r e s s ã o<br />

d e s e r u m d e l e s . O u t r o e r a p e l o s<br />

d i r e i t o s d o s n e g r o s , o q u e t a m -<br />

b é m a c h o m u i t o j u s t o , c o n c o r d o ,<br />

c l a r o q u e c o n c o r d o , m a s a m a i o -<br />

r i a d o s n e g r o s m o r a n a z o n a n o r t e<br />

e n ã o d á p a r a m a r c a r n a d a d e p o i s<br />

d o p r o t e s t o . A l é m d i s s o , e l e s c o s -<br />

t u m a m g o s t a r d e p a g o d e , e e u t e -<br />

n h o m e d o d e c h e g a r n u m p r o t e s t o<br />

d e s s e s e t e r q u e o u v i r p a g o d e o u<br />

r e g u e o u a l g u m t i p o d e m ú s i c a<br />

q u e n ã o t e n h a n a d a a v e r c o m i g o .<br />

C o n t i n u e i p r o c u r a n d o , e a c h e i<br />

u m a c o i s a i n t e r e s s a n t e . U m a m a -<br />

n i f e s t a ç ã o p e l o s d i r e i t o s d o s e s -<br />

t u d a n t e s d e m e d i c i n a . E l e s s ã o d e<br />

c l a s s e a l t a e c o s t u m a m g o s t a r d e<br />

u m a m ú s i c a m a i s s e n s a t a . O p r o -<br />

b l e m a é q u e a s m e n i n a s d e m e d i -<br />

c i n a n ã o d ã o m u i t o p a p o p a r a<br />

m i m . E l a s e s t ã o a t r á s d e c a r a s<br />

m a i s r i c o s , e e u s o u s ó u m p r o -<br />

g r a m a d o r c o m u m q u a r t o - e - s a l a e<br />

u m C e l t a 2 0 1 0 . N ã o s o u m a i s n e -<br />

n h u m m o l e q u e , s e i o q u e a s m u -<br />

l h e r e s p r o c u r a m .<br />

E u j á e s t a v a d e s i s t i n d o q u a n -<br />

d o u m a m a n c h e t e m e s u r p r e e n -<br />

d e u .<br />

I m i g r a n t e s p o r t u g u e s e s l u t a m<br />

c o n t r a o p r e c o n c e i t o d o s b r a s i l e i -<br />

r o s . P r o t e s t o o c o r r e r á n a p r a ç a<br />

F e r n a n d a M o n t e n e g r o , h o r a t a l ,<br />

e t c .<br />

32


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

E u n ã o s ab i a q u e p o r t u g u e s e s t a m -<br />

b é m f a z i a m p r o t e s t o . E l e s s ã o m u i t o<br />

p a c a t o s , n ã o c o s t u m a m e n t r a r e m b r i g a<br />

n e m p a r a s a l va r a m ã e . F i q u e i m e p e r -<br />

g u n t a n d o s e a m a n i f e s t a ç ã o i a t e r g e n t e<br />

s u f i c i e n t e , s e i a e n c h e r p e l o m e n o s<br />

u m a r u a , s e i a h a v e r p r o b l e m a c o m a<br />

p o l í c i a . E a s j o ve n s p o r t u g u e s a s ? S e r á<br />

q u e e l a s d a r i a m a t e n ç ã o a u m p o b r e<br />

p r o g r a m a d o r, q u e m o r a va d e a l u g u e l e<br />

d i r i g i a u m C e l t a 2 0 1 0 ?<br />

E u p r e c i s a va a r r i s c a r. P e g u e i o c a -<br />

r a n g o e f u i .<br />

N o c a m i n h o l e m b r e i q u e e u n ã o<br />

g o s t a va d e f a d o . M a s o s p o r t u g u e s e s<br />

c o s t u m a m m i g r a r s e m s u a m ú s i c a , e n -<br />

t ã o t u d o b e m . J á l i e m a l g u m l u g a r q u e<br />

e l e s s ã o o s g r a n d e s c o n s u m i d o r e s d e<br />

m ú s i c a b r a s i l e i r a . O s b r a s i l e i r o s p r e f e -<br />

r e m o r o q u e , e d e i x a m o s g ê n e r o s n a c i -<br />

o n a i s p a r a p o r t u g u e s e s e t u r i s t a s , n u n-<br />

c a e n t e n d i p o r q u ê .<br />

C h e g a n d o n a p r a ç a , f i q u e i s i m -<br />

p l e s m e n t e e n c a n t a d o . A m a i o r i a e r a d e<br />

j o ve n s , e e l e s j á d o m i n a va m a s g í r i a s<br />

b r a s i l e i r a s . A s g a r o t a s e r a m b o n i t i -<br />

n h a s , a p e s a r d e m a g r e l a s , e n ã o t i n h a m<br />

b u ç o , c o m o e u h a v i a p e n s a d o . B u ç o t a l -<br />

v e z s e j a c o i s a d e e s p a n h o l a . O s c a r t a -<br />

z e s e r a m f á c e i s d e c o m p r e e n d e r. A s f r a -<br />

s e s , f á c e i s d e r e p e t i r, e x a t a m e n t e c o m o<br />

e u g o s t o . Pa r a m e u a l í v i o , e s t a va m o u -<br />

v i n d o Jo r g e B e n j o r. C h e g u e i n u m g r u -<br />

p i n h o e f a l e i :<br />

— S o u b r a s i l e i r o , m a s a p o i o a c a u -<br />

s a d e vo c ê s . Q u e r o p a r t i c i p a r d o p r o -<br />

t e s t o .<br />

F u i r e c eb i d o c o m p a l a v r a s c a l o r o -<br />

s a s . A l g u n s b a t e r a m p a l m a s q u e l o g o s e<br />

m u l t i p l i c a r a m p e l o r e s t o d o g r u p o . E n -<br />

t u s i a s m a d o , b r a d e i a l g u m a s f r a s e s q u e<br />

e u t i n h a l i d o n o s c a r t a ze s . G a n h e i m a i s<br />

p a l m a s e g r i t o s d e a p r o va ç ã o . M e s e n t i<br />

a c o l h i d o . T ive a i m p r e s s ã o , o u e s p e r a n -<br />

ç a , d e q u e l og o f a r i a a m i g o s . U m a l o i r a<br />

m e d e u u m c a r t a z e m e e x p l i c o u o t r a -<br />

j e t o q u e o g r u p o f a r i a a t é a p r a ç a C á r -<br />

m e n M i r a n d a . F i q u e i f e l i z e m d e s c o b r i r<br />

q u e t a m b é m h a v i a l o i r a s p o r t u g u e s a s .<br />

N a s c a l ç a d a s l a t e r a i s , a l g u m a s g a r o t a s<br />

t i n h a m t i r a d o a s c a m i s a s e d e i x a va m o s<br />

g a r o t o s e s c r e ve r e m e m s u a s b a r r i g a s .<br />

P e l o t a m a n h o d o s q u a d r i s , e r a m b r a s i -<br />

l e i r a s q u e t i n h a m a d e r i d o a o p r o t e s t o<br />

p o r s i m p a t i a . O s j ov e n s p o r t u g u e s e s ,<br />

a g i t a d o s c o m o c r i a n ç a s , a c ab a r a m e s -<br />

c r e ve n d o f r a s e s c o n f u s a s , c o m o<br />

“ Po r t u g a l é a q u i ” e “A l í n g u a é n o s s a<br />

p á t r i a ” .<br />

E n q u a n t o e u c a m i n h a va , c o m c a r -<br />

t a z e m p u n h o , a l g u m a s p e s s o a s v i e r a m<br />

m e a b r a ç a r e t i r a r f o t o s . P e l o j e i t o d e<br />

f a l a r, p e r c e b i q u e t a m b é m e r a m b r a s i -<br />

l e i r o s .<br />

P o s e i g e n t i l m e n t e , m a s n ã o f i q u e i<br />

m u i t o t e m p o c o m e l e s . E u p r e c i s a va<br />

c o n h e c e r p e l o m e n o s u m a g a j a a u t ê n t i -<br />

c a . T i n h a q u e h a v e r u m p a r d e s e i o s<br />

e u r o p e u s n a q u e l a s a l a d a h u m a n a . P e -<br />

r a m b u l e i a t e n t o , a t é a v i s t a r u m a m o r e -<br />

n a f r a n z i n a , c o m u m ve s t i d o l o n g o e<br />

m e i a s c o b r i n d o a s c a n e l a s . S ó p o d i a s e r<br />

e s t r a n g e i r a . M e a p r ox i m e i l e n t a m e n t e ,<br />

f a l e i e m vo z a l t a a f r a s e q u e e s t a va n o<br />

c a r t a z d e l a : “ Po r u m B r a s i l g l o b a l ! ”<br />

E l a m e o l h o u c o m s i m p a t i a , s o r r i u .<br />

A p e s a r d o b a r u l h o , c o n s e g u i m o s t r o c a r<br />

a l g u m a s p a l a v r a s . Po r t u g a l j á d e s a p a r e -<br />

c i a d o s e u s o t a q u e , e m b o r a r e s i s t i s s e<br />

b r a va m e n t e n a s s o b r a n c e l h a s e n a r i n a s .<br />

E l a c o m e n t o u q u e g o s t a va m u i t o d e<br />

I ve t e S a n g a l o . Pa r a n ã o c o m p r o m e t e r<br />

a q u e l e s p r i m e i r o s m o m e n t o s , f i n g i s a -<br />

b e r o q u e e r a I ve t e S a n g a l o . C h e g a n d o<br />

n a p r a ç a d e d e s t i n o , f a l e i q u e e u a d o r a -<br />

va c o m i d a s p o r t u g u e s a s , c o m o p a l m i t o<br />

e q u e i j o p a r m e s ã o . E l a p e r g u n t o u o<br />

q u e e r a p a l m i t o . A d o r e i s e u s e n s o d e<br />

h u m o r. Pe d i p a r a t i r a r u m a f o t o , e e s -<br />

p e r e i q u e e l a d i s s e s s e a l g o c o m o<br />

“ c o m p a r t i l h a n o m e u Fa c eb o o k . ” M a s<br />

e l a n ã o d i s s e n a d a . E r a d a s t í m i d a s .<br />

“ N ã o q u e r q u e e u p u b l i q u e n o s e u Fa -<br />

c eb o o k ? ” , p e r g u n t e i , a n s i o s o . “ P o i s ,<br />

c l a r o . E u e s t a va a p o n t o d e l h o d i ze r ” ,<br />

r e s p o n d e u m i n h a b i s a v ó . E , e n q u a n t o<br />

e l a s o l e t r a va s e u n o m e , c h e g u e i a s e n -<br />

t i r u m a p e q u e n a v e r t i g e m . N a q u e l e t u r -<br />

b i l h ã o d e s o m e f ú r i a , a l g u m a c o i s a s u -<br />

b i t a m e n t e f e z s e n t i d o . A i m p e r t i n e n t e<br />

r e a l i d a d e f i n a l m e n t e s e p a r e c e u c o m<br />

u m d o s m e u s s o n h o s , e i s s o a t o r n o u<br />

m a i s f a n t á s t i c a e m a i s r e a l .<br />

N a q u e l e m e s m o d i a , a p o r t u g u e s i -<br />

n h a c o n h e c e u m e u C e l t a 2 0 1 0 . S e m a n a s<br />

d e p o i s , f o i a ve z d o m e u q u a r t o - e - s a l a ,<br />

d e o n d e p e d i m o s u m a p i t s a d e p a l m i t o .<br />

D e s c o b r i q u e p a l m i t o n u n c a f o i u m a<br />

i g u a r i a p o r t u g u e s a . D e s c o b r i q u e a<br />

c e r ve j a b r a s i l e i r a p o d i a d e i x a r u m a r a -<br />

p a r i g a i n t i m a m e n t e t r o p i c a l . S ó m e s e s<br />

m a i s t a r d e f u i d e s c o b r i r q u e e l a n ã o<br />

p r e c i s a va c a s a r c o m i g o p a r a t e r u m v i s -<br />

t o d e p e r m a n ê n c i a . F i q u e i c o n f u s o e<br />

d e c e p c i o n a d o . N o f u n d o n u n c a e n t e n d i<br />

c o n t r a q u ê o s p o r t u g u e s e s r e a l m e n t e<br />

p r o t e s t a va m . M a s c l a r o q u e i s s o n ã o<br />

t e m a m e n o r i m p o r t â n c i a .<br />

E u p r o t e s t a va c o n t r a a s o l i d ã o . Po r<br />

u m m o m e n t o ve n c i .<br />

33


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

José Antonio Pereira<br />

Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A casa da Rua Alferes e<br />

outras crônicas (2006) e autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).<br />

Talvez? Talvez...<br />

Sempre frequentavam aquele bar.<br />

Todos que queriam ser vistos, notados, para isto<br />

marcavam presença naquele lugar. Elas desfilavam<br />

seus últimos modelos, o corte do cabelo,<br />

a cor nova do batom, qualquer novidade<br />

que fosse, era lá que era estreada. Naquele<br />

dia vinham, como sempre, tagarelando as fofocas<br />

da turma. Era assim desde os tempos de<br />

colégio. Sílvia e Helena eram inseparáveis. Siamesas!<br />

Algumas línguas maledicentes insinuavam<br />

existir algo mais entre elas. Não davam a<br />

mínima. Chegaram para o que chamavam de<br />

chopinho básico, tomar uma bebidinha, fofocar,<br />

flertar com alguém disponível, e quem sabe<br />

até descolar um par para a noite. – Se fosse<br />

um amante a moda antiga? Suspira Sílvia.<br />

Sempre assim, era quase um ritual; Helena<br />

queria sentar-se às mesas da calçada e Sílvia<br />

mais discreta, preferia sentar-se no interior do<br />

bar. Helena acabava sucumbindo ao olhar pedinte<br />

da amiga, ela além de frágil, sabia usar<br />

isto para chantagear a amiga. Ainda de pé,<br />

procuram a mesa ideal, um rapaz de violão em<br />

punho, quase sussurra, numa voz macia e anasalada,<br />

... Já conheço os passos dessa estrada.<br />

Sei que não vai dar em nada. Já conheço as pedras<br />

do caminho. E sei também que ali sozinho<br />

... Aquele timbre intimista que a bossa<br />

nova consagrara, mexe com Sílvia; sua expressão<br />

muda. Rapidamente seu rosto enrubesce e<br />

os olhos umedecem. – Pronto! Vai começar o<br />

chororô, né Sílvia? Vamos lá pra fora!<br />

Sentam-se na mesa mais distante do som.<br />

A música é abafada pelo barulho das conversas<br />

e risadas dos frequentadores. Sílvia torna-se<br />

séria, num cacoete nervoso, tira e põe o anel<br />

do dedo sem parar. – Até hoje, você não resolveu<br />

isto Sílvia! Helena fala de forma dura, mas<br />

sabe que a amiga já mergulhara para dentro de<br />

si mesma. É seu passado. – Como esquecer o<br />

momento mais intenso da minha vida. Com a<br />

voz já carregada de tristeza, Sílvia mais uma<br />

vez vai repetir para a amiga sua história de<br />

amor. Helena provocativa, nem deixa ela iniciar<br />

aquela laudatória cantilena tantas vezes repetida,<br />

cantarola; - Simpre que te pregunto.<br />

Que cuándo, como y donde. Tu siempre me<br />

respondes. Quizás, quizás, quizás... Aquilo<br />

irrita Sílvia, a raiva guilhotina o quase choro.<br />

– Pôrra Helena, deixa de ser covarde.<br />

34


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Manuel Bandeira<br />

Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho nasceu em Recife,<br />

19.04.1986 e faleceu no Rio de Janeiro, 13.10.1968. Poeta, crítico<br />

literário e de arte, professor de literatura e tradutor brasileiro.<br />

Tem-se que Bandeira faça parte da geração de 1922 da literatura moderna<br />

brasileira, sendo seu poema Os Sapos o abre-alas da Semana de<br />

Arte Moderna de 1922. Com escritores como João Cabral de Melo Neto,<br />

Paulo Freire, Gilberto Freyre, Clarice Lispector e Joaquim Nabuco,<br />

entre outros, representa o melhor da produção literária do estado<br />

de Pernambuco.<br />

Haroldo de Campos, poeta da “transcriação”<br />

O Estrangeiro<br />

A c a m p a i n h a t o c o u , a b r i a p o r t a ,<br />

e s t a v a a l i u m r a p a z d e b l u s ã o , q u e s e<br />

i n c l i n o u n u m â n g u l o d e 4 5 g r a u s e f o i<br />

d i z e n d o q u e e r a u m p o e t a d a A m é r i c a<br />

e s p a n h o l a , a n a c i o n a l i d a d e n ã o<br />

i m p o r t a v a , c o n h e c i a t o d a m i n h a o b r a e<br />

d e s e j a v a c h a r l a r u m p o u c o . Q u e<br />

m a ç a d a ! p e n s e i . E e x p l i q u e i - l h e q u e n o<br />

m o m e n t o n ã o s e r i a p o s s í v e l , e u e s t a v a<br />

c o m v i s i t a s ( n ã o e r a<br />

p r á t i c a v e l i n t r o d u z i r n o c o l ó q u i o<br />

e l e m e n t o t ã o h e t e r o g ê n e o ) . — M a s v o l t e<br />

o u t r o d i a . N ã o d e o i x e , p o r é m , d e<br />

t e l e f o n a r a n t e s , a v i s a n d o - m e . N o v o<br />

c u m p r i m e n t o d e 4 5 g r a u s e o<br />

e s t r a n g e i r o p a r t i u s e m m a i s p a l a v r a .<br />

N o d i a s e g u i n t e , a b r i a p o r t a p a r a<br />

s a i r , l á e s t a v a o r a p a z . — P o r q u e n ã o<br />

t e l e f o n o u , c o m o p e d i ? E l e b a l a n ç o u a<br />

c a b e ç a , t r i s t e , m a s r e s o l u t o , c o m o<br />

q u e r e n d o s i g n i f i c a r q u e a q u e l e<br />

e x p e d i e n t e b u r g u ê s e r a c o i s a a b a i x o d e<br />

s u a d i g n i d a d e d e p o e t a e b o ê m i o . — Dêm<br />

e t r ê s m i n u t o s . T r ê s m i n u t o s d e<br />

r e l ó g i o !<br />

D e i - l h e o s t r ê s m i n u t o s U m a l á b i a<br />

i n f e r n a l . O e s t r a n h o v i s i t a n t e f a l u o - me<br />

d e m e u s v e r s o s c o m p e r f e i t o<br />

c o n h e c i m e n t o d e c a u s a . V i r o u p e l o<br />

a v e s s o o m e u “ Ú l t i m o p o e m a ” ,<br />

c o m e n t o u a t r a d u ç ã o d o “ T o r s o d e<br />

A p o l o ” , d e R i l k e , r e f e r i u - s e c o m<br />

e n t u s i a s m o a u m a j o v e m p o e t i s a<br />

c u b a n a , C a r i l d a O l i v e r L a b r a , c o n h e c i a<br />

t o d o o m u n d o n a A m é r i c a , f a l o u d e<br />

N e r u d a , d e L e o n d e G r e i f f , d e c o r o n e l<br />

U r t e c h o , m o s t r o u - m e n o t í c i a s d e<br />

c o n f e r ê n c i a s s u a s e m B e l é m d o P a r á . . .<br />

— Q u a n d o c h e g o u a o R i o ?<br />

— O n t e m m e s m o .<br />

— Q u a n t o t e m p o v a i s e d e m o r a r ?<br />

— N ã o s e i .<br />

— D e q u e v i v e ?<br />

— D e m e d i c â n c i a . T e m s i d o<br />

a s s i m e m t o d a p a r t e , s e r á a q u i t a m b é m .<br />

Q u a n d o t e n h o f o m e , e n t r o n u m<br />

r e s t a u r a n t e e p e ç o c o m i d a . U m , d o i s ,<br />

t r ê s r e c u s a m , o q u a r t o m e a t e n d e .<br />

Q u a n d o m e r e g a l a m o n d e d o r m i r ,<br />

d u r m o e m c a m a . S e n ã o , p a s s o a n o i t e<br />

a n d a n d o : t e n h o u m a s a ú d e d e f e r r o ,<br />

p o s s o a n d a r 2 5 q u i l ô m e t r o s s e m s e n t i r<br />

f a d i g a . C o m e r , d o r m i r n ã o s ã o<br />

p r o b l e m a s p a r a m i m . O s p r o b l e m a s d a<br />

v i d a s ã o o u t r o s .<br />

D e s p e d i u - s e s e m p e d i r n a d a .<br />

P e r g u n t e i - l h e s e a c e i t a v a d i n h e i r o p a r a<br />

o j a n t a r . O “ s i m ! ” a l e g r e e e n é r g i c o<br />

c o m q u e r e s p o n d e u j á e r a o s e u<br />

a g r a d e c i m e n t o . A p e r t o u a m i n h a m ã o e<br />

a n t e s q u e e u c h a m a s s e o e l e v a d o r ,<br />

d e s c e u a s e s c a d a s c o m o u m a b a l a .<br />

E m F l a u t a d e P a p e l *<br />

* L i v r o d e c r ô n i c a s d e 1 9 5 7 , o n d e M a n u e l<br />

B a n d e i r a n a p á g i n a 7 a d v e r t e : “ A s<br />

m i n h a s C r ô n i c a s d a P r o v í n c i a d o<br />

B r a s i l , c u j a e d i ç ã o , q u e é d e 1 9 3 6 , s e<br />

a c h a v a d e h á m u i t o e s g o t a d a , n ã o<br />

m e r e c e r i a m r e i m p r e s s ã o : a l g u m a c o i s a<br />

d e l a s f o i a p r o v e i t a d a e m o u t r o s l i v r o s ,<br />

c o m o , p o r e x e m p l o , o q u e s e r e f e r i a a<br />

O u r o P r e t o e a o A l e i j a d i n h o ; m u i t a<br />

o u t r a p e r d e u a o p o r t u n i d a d e . D e c i d i ,<br />

p o i s , r e e d i t a r a p e n a s o q u e n e l a s m e<br />

p a r e c e u m e n o s c a d u c o , j u n t a n d o - l h e<br />

n u m e r o s a s c r ô n i c a s e s c r i t a s<br />

p o s t e r i o r m e n t e , a m a i o r i a p a r a o<br />

J o r n a l d o B r a s i l . . . . ”<br />

35


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Machado de Assis<br />

Joaquim Maria Machado de Assis, cronista, contista, dramaturgo,<br />

jornalista, poeta, novelista, romancista, crítico e<br />

ensaísta, nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 21 de junho<br />

de 1839. Filho de um operário mestiço de negro e português,<br />

Francisco José de Assis, e de D. Maria Leopoldina Machado<br />

de Assis, aquele que viria a tornar-se o maior escritor do país<br />

e um mestre da língua, perde a mãe muito cedo e é criado<br />

pela madrasta, Maria Inês, também mulata, que se dedica ao<br />

menino e o matricula na escola pública, única que frequentará<br />

o autodidata Machado de Assis.<br />

Haroldo de Campos, poeta da “transcriação”<br />

Suje-se Gordo!<br />

Uma noite, há muitos anos, passeava eu com<br />

um amigo no terraço do Teatro de São Pedro de Alcântara.<br />

Era entre o segundo e o terceiro ato da peça<br />

A Sentença ou o Tribunal do Júri. Só me ficou o título,<br />

e foi justamente o título que nos levou a falar da<br />

instituição e de um fato que nunca mais me esqueceu.<br />

— Fui sempre contrário ao júri, — disse-me aquele<br />

amigo, — não pela instituição em si, que é liberal,<br />

mas porque me repugna condenar alguém, e por<br />

aquele preceito do Evangelho; "Não queirais julgar<br />

para que não sejais julgados". Não obstante, servi<br />

duas vezes. O tribunal era então no antigo Aljube,<br />

fim da Rua dos Ourives, princípio da Ladeira da<br />

Conceição.<br />

Tal era o meu escrúpulo que, salvo dois, absolvi todos<br />

os réus. Com efeito, os crimes não me pareceram<br />

provados; um ou dois processos eram mal feitos.<br />

O primeiro réu que condenei, era um moço limpo,<br />

acusado de haver furtado certa quantia, não<br />

grande, antes pequena, com falsificação de um papel.<br />

Não negou o fato, nem podia fazê-lo, contestou<br />

que lhe coubesse a iniciativa ou inspiração do crime.<br />

Alguém, que não citava, foi que lhe lembrou esse<br />

modo de acudir a uma necessidade urgente; mas<br />

Deus, que via os corações, daria ao criminoso verdadeiro<br />

o merecido castigo. Disse isso sem ênfase,<br />

triste, a palavra surda, os olhos mortos, com tal palidez<br />

que metia pena; o promotor público achou nessa<br />

mesma cor do gesto a confissão do crime. Ao<br />

contrário, o defensor mostrou que o abatimento e a<br />

palidez significavam a lástima da inocência caluniada.<br />

Poucas vezes terei assistido a debate tão brilhante. O<br />

discurso do promotor foi curto, mas forte, indignado,<br />

com um tom que parecia ódio, e não era. A defesa,<br />

além do talento do advogado, tinha a circunstância<br />

de ser a estréia dele na tribuna. Parentes, colegas<br />

e amigos esperavam o primeiro discurso do rapaz, e<br />

não perderam na espera. O discurso foi admirável, e<br />

teria salvo o réu, se ele pudesse ser salvo, mas o crime<br />

metia-se pelos olhos dentro. O advogado morreu<br />

dois anos depois, em 1865. Quem sabe o que se perdeu<br />

nele! Eu, acredite, quando vejo morrer um moço<br />

de talento, sinto mais que quando morre um velho...<br />

Mas vamos ao que ia contando. Houve réplica do<br />

promotor e tréplica do defensor. O presidente do tribunal<br />

resumiu os debates, e, lidos os quesitos, foram<br />

entregues ao presidente do Conselho, que era eu.<br />

Não digo o que se passou na sala secreta; além de<br />

ser secreto o que lá se passou, não interessa ao caso<br />

particular, que era melhor ficasse também calado,<br />

confesso. Contarei depressa; o terceiro ato não tarda.<br />

Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo,<br />

parecia mais que ninguém convencido do delito<br />

e do delinqüente. O processo foi examinado, os quesitos<br />

lidos, e as respostas dadas (onze votos contra<br />

um); só o jurado ruivo estava quieto. No fim, como<br />

os votos assegurassem a condenação, ficou satisfeito,<br />

disse que seria um ato de fraqueza, ou coisa pior,<br />

a absolvição que lhe déssemos. Um dos jurados, certamente<br />

o que votara pela negativa, — proferiu algumas<br />

palavras de defesa do moço. O ruivo, — chamava-se<br />

Lopes, — replicou com aborrecimento:<br />

— Como, senhor? Mas o crime do réu está mais que<br />

provado.<br />

— Deixemos de debate, disse eu, e todos concordaram<br />

comigo.<br />

— Não estou debatendo, estou defendendo o meu<br />

voto, continuou Lopes. O crime está mais que provado.<br />

O sujeito nega, porque todo o réu nega, mas o<br />

certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade!<br />

Tudo por uma miséria, duzentos mil-réis!<br />

Suje-se gordo! Quer sujar-se? Suje-se gordo!<br />

"Suje-se gordo!" Confesso-lhe que fiquei de boca<br />

aberta, não que entendesse a frase, ao contrário;<br />

nem a entendi nem a achei limpa, e foi por isso mesmo<br />

que fiquei de boca aberta. Afinal caminhei e bati<br />

à porta, abriram-nos, fui à mesa do juiz, dei as respostas<br />

do Conselho e o réu saiu condenado. O advogado<br />

apelou; se a sentença foi confirmada ou a apelação<br />

aceita, não sei; perdi o negócio de vista.<br />

36


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Quando saí do tribunal, vim pensando na frase do<br />

Lopes, e pareceu-me entende-la. "Suje-se gordo!"<br />

era como se dissesse que o condenado era mais que<br />

ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada.<br />

Achei esta explicação na esquina da Rua de São Pedro;<br />

vinha ainda pela dos Ourives. Cheguei a desandar<br />

um pouco, a ver se descobria o Lopes para lhe<br />

apertar a mão; nem sombra de Lopes. No dia seguinte,<br />

lendo nos jornais os nossos nomes, dei com<br />

o nome todo dele; não valia a pena procura-lo, nem<br />

me ficou de cor. Assim são as páginas da vida, como<br />

dizia meu filho quando fazia versos, e acrescentava<br />

que as páginas vão passando umas sobre outras, esquecidas<br />

apenas lidas. Rimava assim, mas não me<br />

lembra a forma dos versos.<br />

Em prosa disse-me ele, muito tempo depois, que eu<br />

não devia faltar ao júri, para o qual acabava de ser<br />

designado. Respondi-lhe que não compareceria, e<br />

citei o preceito evangélico; ele teimou, dizendo ser<br />

um dever de cidadão, um serviço gratuito, que ninguém<br />

que se prezasse podia negar ao seu país. Fui e<br />

julguei três processos.<br />

Um destes era de um empregado do Banco do Trabalho<br />

Honrado, o caixa, acusado de um desvio de<br />

dinheiro. Ouvira falar no caso, que os jornais deram<br />

sem grande minúcia, e aliás eu lia pouco as notícias<br />

de crimes. O acusado apareceu e foi sentar-se no famoso<br />

banco dos réus, Era um homem magro e ruivo.<br />

Fitei-o bem, e estremeci; pareceu-me ver o meu<br />

colega daquele julgamento de anos antes. Não poderia<br />

reconhece-lo logo por estar agora magro, mas era<br />

a mesma cor dos cabelos e das barbas, o mesmo ar,<br />

e por fim a mesma voz e o mesmo nome: Lopes.<br />

— Como se chama? perguntou o presidente.<br />

— Antônio do Carmo Ribeiro Lopes.<br />

Já me não lembravam os três primeiros nomes, o<br />

quarto era o mesmo, e os outros sinais vieram confirmando<br />

as reminiscências; não me tardou reconhecer<br />

a pessoa exata daquele dia remoto. Digo-lhe<br />

aqui com verdade que todas essas circunstâncias me<br />

impediram de acompanhar atentamente o interrogatório,<br />

e muitas coisas me escaparam. Quando me<br />

dispus a ouvi-lo bem, estava quase no fim. Lopes negava<br />

com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou<br />

respondia de maneira que trazia uma complicação<br />

ao processo. Circulava os olhos sem medo nem ansiedade;<br />

não sei até se com uma pontinha de riso nos<br />

cantos da boca.<br />

Seguiu-se a leitura do processo. Era uma falsidade e<br />

um desvio de cento e dez contos de réis. Não lhe digo<br />

como se descobriu o crime nem o criminoso, por<br />

já ser tarde; a orquestra está afinando os instrumentos.<br />

O que lhe digo com certeza é que a leitura dos<br />

autos me impressionou muito, o inquérito, os documentos,<br />

a tentativa de fuga do caixa e uma série de<br />

circunstâncias agravantes; por fim o depoimento das<br />

testemunhas. Eu ouvia ler ou falar e olhava para o<br />

Lopes. Também ele ouvia, mas com o rosto alto, mirando<br />

o escrivão, o presidente, o teto e as pessoas<br />

que o iam julgar; entre elas eu. Quando olhou para<br />

mim não me reconheceu; fitou-me algum tempo e<br />

sorriu, como fazia aos outros.<br />

Todos esses gestos do homem serviram à acusação e<br />

à defesa, tal como serviram, tempos antes, os gestos<br />

contrários do outro acusado. O promotor achou neles<br />

a revelação clara do cinismo, o advogado mostrou<br />

que só a inocência e a certeza da absolvição podiam<br />

trazer aquela paz de espírito.<br />

Enquanto os dois oradores falavam, vim pensando<br />

na fatalidade de estar ali, no mesmo banco do outro,<br />

este homem que votara a condenação dele, e naturalmente<br />

repeti comigo o texto evangélico: "Não queirais<br />

julgar, para que não sejais julgados". Confessolhe<br />

que mais de uma vez me senti frio. Não é que eu<br />

mesmo viesse a cometer algum desvio de dinheiro,<br />

mas podia, em ocasião de raiva, matar alguém ou ser<br />

caluniado de desfalque. Aquele que julgava outrora,<br />

era agora julgado também.<br />

Ao pé da palavra bíblica lembrou-me de repente a do<br />

mesmo Lopes: "Suje-se gordo!" Não imagina o sacudimento<br />

que me deu esta lembrança. Evoquei tudo<br />

o que contei agora, o discursinho que lhe ouvi na<br />

sala secreta, até àquelas palavras: "Suje-se gordo!"<br />

Vi que não era um ladrão reles, um ladrão de nada,<br />

sim de grande valor. O verbo é que definia duramente<br />

a ação. "Suje-se gordo!" Queria dizer que o<br />

homem não se devia levar a um ato daquela espécie<br />

sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se<br />

por quatro patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo!<br />

Idéias e palavras iam assim rolando na minha cabeça,<br />

sem eu dar pelo resumo dos debates que o presidente<br />

do tribunal fazia. Tinha acabado, leu os quesitos<br />

e recolhemo-nos à sala secreta. Posso dizer-lhe<br />

aqui em particular que votei afirmativamente, tão<br />

certo me pareceu o desvio dos cento e dez contos.<br />

Havia, entre outros documentos, uma carta de Lopes<br />

que fazia evidente o crime. Mas parece que nem<br />

todos leram com os mesmos olhos que eu. Votaram<br />

comigo dois jurados. Nove negaram a criminalidade<br />

do Lopes, a sentença de absolvição foi lavrada e lida,<br />

e o acusado saiu para a rua. A diferença da votação<br />

era tamanha, que cheguei a duvidar comigo se teria<br />

acertado. Podia ser que não. Agora mesmo sinto uns<br />

repelões de consciência. Felizmente, se o Lopes não<br />

cometeu deveras o crime, não recebeu a pena do<br />

meu voto, e esta consideração acaba por me consolar<br />

do erro, mas os repelões voltam. O melhor de tudo é<br />

não julgar ninguém para não vir a ser julgado. Sujese<br />

gordo! Suje-se magro! Suje-se como lhe parecer! o<br />

mais seguro é não julgar ninguém...<br />

Acabou a música, vamos para as nossas cadeiras.<br />

Extraí do de http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000249.pdf<br />

37


<strong>Chicos</strong> 44<br />

Antônio Jaime Soares<br />

Nasceu em Cataguases MG, lá na Chave.<br />

Já foi redator de publicidade. Poeta e cronista publicou Pedra que não<br />

quebra (2011)<br />

€uroporaí<br />

Parte 1: Espanha; Parte 2: Itália; Parte 3: Inglaterra e França<br />

Entusiasmei-me como um imbecil.<br />

Jean-Paul Sartre<br />

Entrei em Paris a pé. Se alguém duvidar, que aguarde a terceira parte deste diário de um passageiro<br />

de primeira viagem (maio-junho/1985). Bem sei que é jeca falar de lugar onde só se esteve uma vez, entanto,<br />

José Antonio Pereira quis veicular na <strong>Chicos</strong>, e justificou: “Acho legal publicar o teu relato. Tem a sinceridade<br />

e a honestidade da primeira viagem, não arrota sabedoria”. Foram apenas dez cidades, em quatro países<br />

e aquilo é muito mais do que digo e pode não ser bem assim, mas é por aí. Europoraí. Há uma possibilidade<br />

de voltar lá e isso também é jeca, no entender de pessoas que vão à hora que bem entendem. Não obstante, dizem<br />

que a primeira impressão é a que fica. Fique o registro.<br />

Antônio Jaime Soares<br />

38


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

R o m a e VATICANO<br />

Badulaques da atualidade, chafariz Renascença e escultura do tempo dos Césares.<br />

No aeroporto de Barcelona, uma mulher<br />

com cara de árabe, roupa desengonçada, falando<br />

francês, compra uma joia e diz para a vendedora<br />

ficar com o troco. Esta alega que ali é proibido<br />

aceitar gorjeta, a outra insiste e saio de perto para<br />

que pegue o dindim, sem alguma testemunha por<br />

perto.<br />

Avião vazio, duas brasileirinhas civilizadas<br />

no banco de trás e o Mediterrâneo, verde que te<br />

quero verde, lá embaixo. Sobrevoando a Córsega,<br />

lembro que Napoleão nasceu lá e Edney Silvestre,<br />

quando foi meu chefe, antes de ser escritor premiado,<br />

disse que se tivesse que morrer de acidente<br />

aéreo gostaria que fosse nesta rota. Frescura dele,<br />

mas isto é hora de ficar pensando em acidente,<br />

Antônio Jaime Soares? A seguir, o litoral da Itália,<br />

allea jacta est.<br />

Em Roma, tudo lembra o cinema italiano e a<br />

estrada para a cidade é a mesma pela qual chegou<br />

Anita Ekberg, em A doce vida. No filme, a pista é<br />

invadida por um rebanho de ovelhas, mas isso já<br />

é invencionice da cabeça de Fellini, inspirado por<br />

aquela carneirona sueca de todo tamanho. Reconheço<br />

a igreja de San Paolo Fuori le Mura, vista<br />

perto do fim de La strada, do mesmo Fellini, a pequena<br />

pirâmide ao lado do portal de entrada de<br />

Roma, que vi em La luna, de Bertolucci. Salto do<br />

ônibus na Stazione Termini, também título de filme.<br />

Táxi para o hotel. Toca ópera na portaria e<br />

sou atendido por due belle signorine em vestidos<br />

de seda, mangas compridas, um charme. Feinho<br />

é o garoto que me conduz ao quarto. Dou-lhe<br />

dois dólares e digo que tenho um calo duro no pé,<br />

preciso de um calista. Mostro e ele faz um escândalo:<br />

‘Un gallo duro! Infelice, prego, Santa Madonna!’.<br />

Deve ser da roça, pois fala ‘galo’, quando<br />

o certo é calo mesmo, em italiano. Chama a camareira,<br />

que fala a galope de um calista aqui perto,<br />

nada entendo e vou à luta. Na Piazza del Cinquecento,<br />

uma feira vende bolsas, cintos e outros objetos<br />

de couro, mas sandália, não tem. Só havaianas<br />

muito enfeitadas, recuso. E livros, um deles,<br />

de Glauber Rocha.<br />

Descubro uma tavola calda (self service) e<br />

almoço médio e barato. Carne, legumes, mais rigatoni<br />

e jarra de vinho. A mulher do caixa pergunta:<br />

‘Non và un dolce, un formaggio, una frutta?’.<br />

Parece música. Depois, tomo um espresso,<br />

num bar. ‘In balcone o in terrazza?’, pergunta o<br />

dono. In balcone, de pé, porque in terrazza é mais<br />

caro, embora eu possa ficar horas sentado lá, por<br />

conta de um café, lendo um livro ou jornal. Café à<br />

italiana é o melhor do mundo.<br />

Piazza della Repubblica, Via Venetto, tão<br />

dolce vita décadas atrás, hoje pouco badalada. E<br />

Piazza Barberini e Via del Tritone, tudo muito demais.<br />

A cor dos prédios de Roma, um ocre que só<br />

eles sabem como conseguir, puta que pariu! E Piazza<br />

Navona, uma súmula de Roma, toda aquela<br />

cor e chafarizes e esculturas de Bernini. Sigo até o<br />

Tevere (Tibre, em português), verde como outros<br />

rios e lagos da Itália, nesta época. Lembro Janus<br />

Vitalis:<br />

Só resta, indício do que já foi Roma, o Tibre:<br />

corrente rápida que corre ao mar.<br />

Assim age a fortuna: o que há de firme passa<br />

e o que sempre se move permanece.<br />

E Fontana di Trevi, uma sinfonia em água e<br />

pedra, não há outra definição. Penso, claro, em<br />

Anita e Marcello naquela famosa cena de A doce<br />

vida. Jogo uma moeda, para ter a ventura de voltar<br />

aqui um dia. Mais incrível, já na Piazza Rotonda,<br />

é o Pantheon, templo de todos os deuses,<br />

‘convertido’ ao catolicismo. O mais preservado<br />

prédio da Roma antiga, imagine o resto, se.<br />

39


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Só o óculo, no topo da cúpula, oito metros de<br />

diâmetro. Fico abobado com a abóbada,<br />

‘cimentada’ com lava do Vesúvio e gordura de baleia,<br />

coisa de 2100 anos, e inteirinha. Este, sim, é o<br />

maior espetáculo da Terra. No chão, túmulos de<br />

Rafael, Vittorio Emmanuelle, o unificador da Itália,<br />

rainha Margherita e outros. Perto, a igreja de<br />

San Luigi dei Francesi, que possui uns belos quadros<br />

de Caravaggio, e Fontana delle Tartarughe,<br />

tudo cor de ferrugem, o mármore como que imitando<br />

o interior do casco delas, os prédios em volta,<br />

vou acabar ficando doido. Entardece, o jeito é<br />

procurar um bar e descansar os meus ossos.<br />

Próximo ao hotel, vejo noiva negra e familiares<br />

indo à igreja próxima, pro casório. Cortejo<br />

nupcial a pé, só vi na roça, mas entende-se: negros,<br />

aqui, devem viver mal, ainda que, por certo,<br />

melhor do que na África. Entro numa trattoria<br />

e me encharco de vinho, minestrone, bife de porco<br />

grelhado, ao limão, gorgonzola, tudo bom.<br />

Elogio o limão e o velho garçom diz, orgulhoso:<br />

‘Si, naturalmente, è italiano!’. Limão casca grossa,<br />

amarelo, suculento, azedocicado, já elogiado<br />

por Goethe (e hoje vendido em mercado de Cataguais).<br />

O pão também é melhor, como na Espanha,<br />

farinha pura. E mais um vinho e outro.<br />

Dia seguinte, vou conhecer as principais<br />

ruínas. Quase me dou mal ao cortar caminho para<br />

o Coliseu, descendo por uma escadaria em que<br />

umas dez ciganas me cercam, pedindo un denaro<br />

per mangiare. Desço correndo e elas me xingando,<br />

não sei em que língua. Neste lugar deserto<br />

poderiam depenar-me com facilidade, porca miseria!<br />

O Coliseu, coitado, tão depredado pelos<br />

bárbaros, servindo seus mármores também para<br />

ornamentar igrejas, até o altar do papa. Contudo,<br />

imponente como ele só. Ao lado, o Arco de<br />

Constantino, em bom estado, ainda que ‘in restauro’,<br />

como quase tudo, na Itália, sinal de prosperidade.<br />

O Fórum Romano: era daqui que comandavam<br />

o império. Subo a colina palatina e descubro<br />

que não gosto de ruínas, fico angustiado,<br />

muito pouco para os olhos e muito demais para a<br />

imaginação. Gosto de coisas inteiras, como o Pan<br />

­theon. Ruínas eram tidas como lugares malassombrados<br />

até que Petrarca lhes deu valor, já<br />

no fim da Idade Média. Foi também o primeiro a<br />

valorizar as paisagens, ao escalar uma montanha<br />

em Avignon, na França.<br />

40


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

As roseiras trepam pelos muros e as rosas são<br />

enormes. Insetos minúsculos, vermelhos, que penso<br />

serem formigas e, de perto, constato que são aranhas.<br />

Que as antigas romanas engoliam vivas, pensando<br />

que ajudavam a digerir o que comiam em excesso,<br />

diminuindo-lhes a obesidade. Aqui e ali um<br />

pinheiro, o ‘pinus italicus’, árvore típica de Roma,<br />

bonita pra chuchu. Também muitos ciprestes. Araújo<br />

Neto, correspondente do Jornal do Brasil, disse<br />

que italiano não gosta de árvore, mas sou de outra<br />

opinião: nas cidades, as árvores escondem a beleza<br />

dos prédios. E prédio bonito é o que mais tem na<br />

Itália.<br />

E os fóruns de César, Augusto, Nerva,<br />

Trajano, Adriano, este com a bela coluna contando<br />

suas façanhas, considerada a primeira<br />

história em quadrinhos. A Piazza e o Palazzo<br />

Venezia (de onde Mussolini arrotava sua prepotência)<br />

e aquela impostura, o monumento a<br />

Vittorio Emmanuelle, pela unificação da Itália,<br />

ocorrida em 1860 (antes eram vários reinos). Até<br />

bonito, embora imite o estilo romano clássico e<br />

não deveria estar aqui, não combina com as ruínas,<br />

ao contrário do Campidoglio, em que Michelangelo<br />

imprimiu o estilo de sua época e<br />

não tentou imitar ninguém. Vide adiante.<br />

À esquerda, o ‘vittoriano’, depois, uma igreja medieval e o Campidoglio.<br />

Numa esquina, bomba de gasolina do começo do<br />

século 20. Tudo que funciona, europeu deixa no lugar,<br />

basta dizer que aqui na Itália quase não tem su<br />

­permercados, mas aquelas vendinhas, negócios de<br />

famiglia, per omnia sæculæ. E manilhas conduzindo<br />

merda de gente desde o Império Romano. Vou<br />

pela Via del Corso, lojas elegantes, aqueles palazzi<br />

de cinema, jardins internos, estátuas, chafarizes,<br />

plantas. A Piazza Collona, onde pontifica a coluna<br />

de Marco Aurélio, feito a de Adriano. Marco Aurélio,<br />

o imperador-filósofo, do qual guardei esta frase:<br />

‘Cumpre ser direito, não desentortado’. Vou em<br />

frente, até a Via Antonio Canova, onde o ateliêmuseu<br />

dele. Escultor neoclássico, não me faz a cabeça.<br />

O ateliê, sim, com esculturas incrustadas nas<br />

paredes, velho costume romano.<br />

Volto à Corso e saio na Piazza del Poppolo, bonitona,<br />

pra variar. Via del Babuino até Piazza di Spagna,<br />

um desbunde. À direita da escadaria, casamuseu<br />

em que moraram Keats e Shelley, dois putas<br />

poetas ingleses. Desço pela Via dei Condotti,<br />

onde se exibem as grandes grifes da moda. E o Caffè<br />

Greco, mais do meu gosto, contudo, lugar de milionário<br />

não é pro meu bico. E chega a hora de encontrar<br />

Moura e Marilene, como combinado. Emocionados,<br />

tomamos um uísque e vamos ver uma exposição<br />

de impressionistas dos museus soviéticos.<br />

Vale lembrar que Francisco Inácio Peixoto escreveu<br />

que, até o impressionismo, as autoridades de lá<br />

permitiam expor; os posteriores eram comprados,<br />

mas escondidos – ‘arte degenerada’, sentenciou<br />

Stalin –, incluindo o ‘comunista’ Picasso.<br />

41


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Os Moura vão para Spoletto, cidade dos festivais de<br />

ópera, morro de inveja, mas tenho coisas melhores pela<br />

frente. Dedico o domingo a rever lugares imperdíveis<br />

e encho a cara num bar no alto da escadaria de<br />

um prédio de 1900, ontem mesmo, em termos de Europa.<br />

Segunda-feira, ao Vaticano, sem o alvoroço de<br />

domingo, dia da bênção do papa, que vi no Rio e fiquei<br />

impressionado com a quantidade de mulheres<br />

desmaiando à sua chegada. Êxtase místico, disse a<br />

Igreja. Majestático é o único adjetivo cabível diante<br />

da praça e da basílica de São Pedro. Dentro, logo à direita,<br />

a Pietà, de Michelangelo, maravilha. Tudo muitíssimo<br />

belo demais, forrado pelo mais fino mármore,<br />

a igreja católica é luxo só.<br />

No subsolo, vejo túmulos dos papas. Na superfície,<br />

tomo ônibus para os museus do Vaticano. O<br />

que consigo ver é tudo que se pode desejar em<br />

termos de arte sacra, que em geral é muito repetitiva,<br />

assim como retratos. Prefiro a arte profana.<br />

Isso aqui tem de tudo, como o Laocoonte constrangido<br />

pela serpente, escultura grega, e muito<br />

mais. Disse ‘o que consigo ver’, porque são 18<br />

museus e 25 quilômetros de corredores, haja perna.<br />

Na cantina, peço água mineral, não tem e a<br />

atendente diz: ‘Bevette della fontana’. É que, nos<br />

‘países’, como diz Moura, bebe-se água direto das<br />

fontes e torneiras. A Cappella Sistina, soleníssima,<br />

sendo restaurada com patrocínio da TV<br />

japonesa. O mundo deveria adotar a Itália.<br />

Táxi para a Villa Borghese. ‘Il Museo Paolina?’ –<br />

pergunta o motorista, quase cantando. É por ter<br />

sido habitado por Paolina Bonaparte, irmã de Napoleão,<br />

vivida no cinema por Gina Lollobrigida.<br />

Fechado por alguma razão, mas dispenso o motorista,<br />

a fim de curtir um pouco o parque maior de<br />

Roma. Atravesso-o a pé, passo pela escola de arte,<br />

na capital da própria, e não longe daqui tem um<br />

quarteirão chamado ‘quartiere degli artisti’, não<br />

muito longe também da Via Margutta, onde moram<br />

Fellini e Giulietta, entre outros. Calçadas e<br />

escadas ornadas com desenhos dos alunos, em<br />

giz, e vou até o museu de Villa Giulia, arte etrusca.<br />

Contemporâneos dos gregos, os etruscos eram<br />

bastante evoluídos, deixaram obra escrita, mas<br />

ainda não decifrada. A escultura deles, porém, de<br />

muito bom gosto, dispensa explicações.<br />

Vaticano, jardim da Villa Borguese, músico de rua.<br />

De ônibus até o Trastevere, o bairro mais romano<br />

de Roma, também o mais perigoso, e só o vejo de<br />

passagem. Mais ônibus ao passar pela Isola Tiberina,<br />

Teatro di Marcelo, até, de novo e de dentro,<br />

San Paolo Fuori le Mura. Bom conhecer um suburbiozinho,<br />

casas simples, todas fechadas, ninguém<br />

nas ruas. No pós-guerra, estaria cheio de<br />

crianças descalças, feito nos filmes neorrealistas,<br />

hoje todas na escola, em tempo integral. Passo pelo<br />

Circo Massimo, agora um descampado, pensando<br />

que foi aqui que Ben-Hur ‘travou’ aquela luta<br />

de vida ou morte com seu rival Massala,<br />

42


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

De ônibus até o Trastevere, o bairro mais romano<br />

de Roma, também o mais perigoso, e só o vejo<br />

de passagem. Mais ônibus ao passar pela Isola<br />

Tibe­rina, Teatro di Marcelo, até, de novo e de<br />

dentro, San Paolo Fuori le Mura. Bom conhecer<br />

um suburbiozinho, casas simples, todas fechadas,<br />

ninguém nas ruas. No pós-guerra, estaria<br />

cheio de crianças descalças, feito nos filmes neorrealistas,<br />

hoje todas na escola, em tempo integral.<br />

Passo pelo Circo Massimo, agora um descampado,<br />

pensando que foi aqui que Ben-Hur<br />

‘travou’ aquela luta de vida ou morte com seu<br />

rival Massala, naquela corrida de bigas. E só<br />

uma vez pego metrô, muito profundo, para não<br />

danificar os monumentos. Na verdade, quanto<br />

mais cavam, mais encontram tesouros soterrados,<br />

o que exige muito cuidado.<br />

Na terça-feira, volto ao Campidoglio, a ver<br />

as estátuas greco-romanas. E mais uma igreja<br />

monumental, Santa Maria Maggiore, e revejo o<br />

que posso, inclusive o Vaticano, do qual posso<br />

dizer que é o único país que visitei duas vezes.<br />

Volto a pé, passo pelo Castel Sant’Angelo e a<br />

Ponte dos Anjos, coisa de arrepiar. E me embrenho<br />

de novo pelas ruas centrais, a pé até o<br />

hotel, me despedindo. Publicitário, por dever de<br />

ofício não posso deixar de admirar uma campanha<br />

veiculada em pequenos banners pelos postes.<br />

Mostram dois pares de sapatos de menino e<br />

de menina, com títulos como Dante & Beatrice,<br />

Giulietta & Romeu, Ginger & Fred. Formidável.<br />

Só resta cantar: Arrivederci Roma...<br />

F l o r e n ç a e S i e n a<br />

Saindo de trem, mais ruínas, depois, só<br />

campo. Cidades importantes no caminho, mas<br />

passa-se ao largo, melhor alugar um carro e penetrar<br />

em todas elas, o que não é o meu caso. Vez<br />

em quando um velho, ou velha, chapéu e bicicleta,<br />

espiando seu roçado, de trigo, suponho. Os<br />

jovens estudam em cidades maiores ou em países<br />

mais ricos, e com isso perdem a identidade<br />

regional, lamentava Pasolini. Também lamentava<br />

os agrotóxicos, que expulsaram os vagalumes.<br />

Hotel no centrão da cidade e vou direto à<br />

Via Dante Alighieri, onde a casa-museu dedicada<br />

a ele, que não visitarei, nem o museu da ciência,<br />

em que Galileu pontifica. Museu tem que ter<br />

escultura e pintura, objetos pessoais, manuscritos,<br />

não bastam, quero arte. No rio Arno, debruço<br />

-me na amurada da ponte e, sinceramente, choro,<br />

bonito demais. A cidade ora invadida por hordas<br />

de jovens louros, como os bárbaros d’outrora,<br />

só que de países mais endinheirados. E japoneses.<br />

A ponte, no caso, é Ponte Vecchio, cheia<br />

de lojas onde, em algum ponto longínquo da<br />

Idade Média, inventaram os bancos. O útero do<br />

capitalismo.<br />

43


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Loggia, Pontevecchio e Palazzo Vecchio.<br />

Na Piazza della Signoria, a Loggia, um varandão<br />

de esculturas famosas. O Palazzo Vecchio, salões,<br />

pinturas, esculturas e, no último andar, enorme<br />

tapete sendo restaurado, um trabalho de anos, utilizando<br />

pós, ervas e outros produtos bem primitivos<br />

para reaver o aspecto original. De cima uma<br />

filmagem, cuja ação passa-se na belle époque, ontem<br />

mesmo; o cenário está pronto há séculos, basta<br />

vestir os atores (produção inglesa, chamado no<br />

Brasil Uma janela para o amor). Na catedral tem<br />

outra Pietà de Michelangelo, mais dramática que<br />

a de Roma. Ele dizia que a obra de arte está dentro<br />

da pedra, artista é quem sabe tirá-la de lá.<br />

David de Donatello, a Pietà florentina e o David, de Michelangelo.<br />

Vejo/ouço um conjunto brasileiro tocantando<br />

a música Boato e um italiano, de passagem,<br />

grita: ‘Sannnba-aa!’. Africanos em trajes típicos<br />

vendendo elefantinhos de madeira, iguais aos de<br />

Madri, serão os mesmos? Moura me encontra<br />

lendo a inscrição no círculo que marca o local onde<br />

Savonarolla foi queimado, pegamos Marilene<br />

no hotel e vamos jantar, todos muito contentes,<br />

pra variar.<br />

Dia seguinte, vamos a Siena, que escolhi<br />

por causa de uma cor de tinta chamada terra de<br />

Siena. Uma república independente, como tantas<br />

outras por aqui, na Idade Média, quando foi um<br />

importante centro financeiro. Cidade pequena,<br />

numa colina, cercada por muros de pedra, feito<br />

Toledo. Vemos a catedral, depois almoçamos<br />

muito bem, destaque para uns cogumelos frescos,<br />

pois é época deles. E de cerejas, das quais<br />

Marilene compra um saquinho e nos sentamos<br />

no chão da Piazza del Campo, para saborear:<br />

chão de tijolos e prédios de mil ou mais anos,<br />

lindíssimos. Rondamos mais e Marilene se lembra<br />

de que esqueceu as cerejas, pelo que voltamos<br />

e reencontramos o saquinho lá, intocado.<br />

Interior do Palazzo e Piazza del Campo.Tem bares, mas também se senta no chão.<br />

44


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Moura vai procurar uísque e ficamos curtindo<br />

uns velhinhos (chapéu tirolês), enchendo a<br />

cara nos bares. Vi isso num filme, em que um cara<br />

é reconhecido pelo chapéu, ‘sequestrado’ pelos<br />

confrades, não consegue consumar sua lua de<br />

mel. De volta a Florença, Carlim encontra uísque<br />

num empório onde casais elegantes provam nova<br />

safra de vinho. Quer coisa mais elegante? Uísque,<br />

na Europa, é barato e não dispenso minha<br />

garrafinha na sacola. Depois, o povo aplaude um<br />

velhinho, ‘Il presidente della Repubblica!’<br />

(brada um italiano, com euforia). Sandro<br />

Pertini, o próprio, que veio de Roma apoiar seu<br />

candidato a prefeito.<br />

‘A anunciação’, de Leonardo da Vinci, na Uffizzi.<br />

Galleria degli Uffizzi, uma fartura de pintores<br />

renascentistas, até porque a Renascença é<br />

cria florentina, assim como óculos, bancos, entre<br />

outras conquistas humanas. Depois, vamos à<br />

Cappella Medici, onde jazem os túmulos da família,<br />

retratada em esculturas de Michelangelo,<br />

em bronze, feições normais. Já outras imagens, a<br />

lembrar que somos mortais, mulheres de peitos<br />

caídos, homens meio cadavéricos, alegorias como<br />

a dizer que vida é coisa que dá e passa.<br />

‘Anjo músico’, de Rosso Fiorentino e ‘O nascimento de Vênus’, de Botticelli.<br />

<strong>45</strong>


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Mais dois dias nesse dolce far niente e mais<br />

dois museus: o Bargello, de esculturas, onde fica<br />

o famoso David, de Donatello e, a seguir, na Accademia,<br />

o outro David, de Michelangelo, que só<br />

tem rival na Grécia. E ainda o Palazzo Pitti e descubro<br />

que também não morro de amores por palácios,<br />

luxo demais. Em suma, sou um chato. Luxo<br />

maior é uma sandália de couro, discreta e confortável,<br />

que compro numa feira. Volto à telefônica,<br />

ligar para a família, dizer que a viagem está saindo<br />

melhor do que a encomenda. Curioso observar,<br />

num grupo de soldados jovens, um deles dizer<br />

que está vindo de Barcelona, onde viu e gostou<br />

das mesmas coisas que eu. Soldado aqui recebe<br />

melhor soldo, presumo.<br />

No hotel, acertando a conta, outro funcionário<br />

se desmancha em agrados. Diz que estava de<br />

férias e gostaria de ter voltado antes, para ter o<br />

prazer de me servir. Ou seja, uma bicha pintosa,<br />

segundo assédio sexual de que sou vítima na Europa;<br />

o primeiro foi com a Dolores Sierra, num<br />

bar de Barcelona.<br />

M i l ã<br />

o<br />

Meus amigos estão em Bolonha e só temos<br />

encontro marcado na segunda à noite, em Veneza.<br />

Resolvo passar o domingo em Milão. Ao meu<br />

lado, no trem, uma mulher, satisfeita, dá uma<br />

conferida nuns livros de arte que foi comprar em<br />

Florença e salta logo depois. Atravesso uma região<br />

montanhosa, florestal, cachoeiras e cascatas<br />

sobre pedrinhas brancas. Passo por Bolonha com<br />

vontade de saltar e, com sorte, encontrar aqueles<br />

dois e, quiçá, seu morador mais ilustre, Umberto<br />

Eco. Por outra, todo mundo fala muito bem da<br />

cidade, mas Milão é a ‘capital’ da Itália mais rica,<br />

custa nada dar uma espiada. E vou bebendo uísque<br />

e espiando e fotografando a Toscana, a Emilia-Romagna,<br />

a Lombardia.<br />

Chego a Milão perto de dez da tarde, com<br />

sol. A estação (mui bonita) é aquela em que o industrial<br />

do filme Teorema, de Pasolini, ficou nu,<br />

depois de doar a fábrica aos empregados. Também<br />

aqui chegou Mastroianni, o anarquista de<br />

Os companheiros, de Mario Monicelli. E a família<br />

Parondi, de Rocco e seus irmãos, de Visconti.<br />

Sem falar de Milagre em Milão, de Vittorio de Sica,<br />

que não vi, são coisas que nenhum cinéfilo<br />

esquece, também de Jeanne Moreau, em A noite,<br />

de Antonioni, vagando pelas ruas da Milão moderna<br />

e deserta, que nem eu. Ela, com problemas<br />

existenciais, eu, à procura de hotel.<br />

Encontro um, correto e sem luxo, tomo o<br />

metrô e salto no coração da metrópole. Milão<br />

surpreende por ser moderníssima e, ao mesmo<br />

tempo, tem um centro histórico de tirar o chapéu,<br />

com sua catedral ‘gótico reluzente’, obra autorizada<br />

por um Visconti do século 14, ancestral do<br />

cineasta. Família poderosíssima no passado, basta<br />

dizer que seu brasão é também o da cidade.<br />

46


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Ao lado, a Galleria Vittorio Emmanuelle,<br />

dedicada ao comércio de primeiríssimo mundo.<br />

Adiante, Teatro alla Scala, que está levando ópera<br />

de Verdi (tinha que ser) e vejo a burguesia engravatada<br />

saindo do espetáculo. Contra ela, sem<br />

querer querendo, uma horda de punks, de butique,<br />

feito os de São Paulo, ‘a Milão brasileira’ –<br />

diziam os jecas, os mesmos que chamavam Ouro<br />

Preto de ‘a Florença tupiniquim’. Também comparam<br />

Ponte Vecchio à ponte velha, lá de Cataguais,<br />

sem o menor discernimento. A esses, dedico<br />

o troféu Jeca Tatu.<br />

Galleria Vittorio Emmanuelle, um shopping Center belle époque.<br />

Por falta de tempo, não vou a museus, mas uns<br />

paralelepípedos enormes, de uma pedra avermelhada<br />

(em Blumenau, Santa Catarina, tentaram fazer<br />

igual, sem o mesmo efeito) já são obra de arte. A catedral,<br />

um gótico diferente, tem a peculiaridade de<br />

ser encimada por milhares de ‘agulhas’ de pedra.<br />

Tem aqui também um ‘central park’, com zoológico<br />

e museu de história natural. O leão ruge andando lá<br />

e cá, enquanto a leoa, oculta, emite urros de dor. Enquanto<br />

isso, um macaquinho manda ver na macaquinha,<br />

para deleite da criançada.<br />

Hora de descansar os ossos num bar, em frente<br />

à catedral. Uns 300 orientais raquíticos, simplórios<br />

(vietnamitas?), segregados num canto da praça, feito<br />

nordestinos no Rio. Para continuar no clima oriental,<br />

janto num chinês. No hotel, confirmo o que Millôr<br />

Fernandes observou: no hemisfério norte a água entra<br />

pelo cano em sentido contrário ao do sul. Lá é na<br />

direção dos ponteiros do relógio.<br />

V e n e z<br />

a<br />

De trem, vou espiando os Alpes, do outro lado<br />

do Lago de Garda. Algu­mas cidades se mostram,<br />

bem longe: Verona, Pádua, Vicenza, Mestre<br />

e, fi­nal­mente (que se há de fazer?), Veneza.<br />

O trem chega por uma ponte enorme e, por cima,<br />

uma autopista. Já na estação ouço o schlapschlap<br />

das ondas e dos remos. Cidade dentro<br />

d´água é difícil entender, puro cinema, mesmo.<br />

E o va­poretto vai-me exibindo esse filme. Salto<br />

na Piazza di San Marco, que mal olho agora,<br />

preo­cupado em encontrar o hotel, o que não é<br />

fácil. Todos esses canais, pontezinhas encurvadas,<br />

ruas de um metro de largura, um sufoco. O<br />

que me ajuda é que o hotel fica perto do Teatro<br />

La Fenice, por demais conhecido.<br />

47


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

O banheiro do hotel tem, se muito, um metro<br />

quadrado, em fibra de vidro branca. O vaso,<br />

também bidê, é dobrável, assim como a pia, para<br />

dar espaço ao banho. Boa solução para adaptar<br />

prédios históricos às necessidades atuais,<br />

pois os antigos jogavam sua sujeira pela janela.<br />

Na parede, um pernilongo, que mato. E volto à<br />

San Marco. Num quarteirão a rua é tão estreita<br />

que espero passar uma fila de japoneses, armados<br />

de filmadoras, como sempre. Em outro, sou<br />

obrigado a ouvir o tempo todo um cara à minha<br />

frente assoviando uma música que, em português,<br />

é aquela ‘Se algum dia, à minha terra eu<br />

voltar...’ (cantada por Agnaldo Timóteo), por<br />

não poder ultrapassá-lo. Deve ser alguma canção<br />

italiana.<br />

San Marco é indescritível, portanto, não<br />

ousarei descrever. Almoço e faço uma longa caminhada<br />

por uma região quase vazia de gente,<br />

volto e procuro a Sestiere di San Marco, uma<br />

pracinha que turista não frequenta e onde a garotada<br />

local se reúne. Uns príncipes e princesas,<br />

a gente italiana é bonita demais. A ‘passegiatta’<br />

deles demora pouco e logo desaparecem, ao<br />

contrário dos espanhóis, que varam a noite nas<br />

ruas. Volto à San Marco e tomo um vinho, ouvindo<br />

as orquestras que tocam nos bares. Clássicos<br />

ligeiros, jazz, world music, MPB, por aí.<br />

Aquarela do Brasil, Garota de Ipanema e Manhã<br />

de carnaval tocam a toda hora. Esperando<br />

os Moura, que chegam e vamos jantar e colocar<br />

as abobrinhas em dia, eles encantados com Bolonha,<br />

eu, não menos, com Milão, eta ferro!<br />

Ir para o hotel é sempre um desafio, parece<br />

que na nossa ausência eles mudam os quarteirões<br />

de lugar. Da cama, ouço o schlap-schlap na<br />

água e o cantor que se acompanha ao acordeon,<br />

numa gôndola. E é noite de lua cheia. Pela manhã,<br />

vou de vaporetto ao Lido, ilha sem canais,<br />

que tem automóveis. Bairro chiquérrimo, casas<br />

ajardinadas, sem muros, dá vontade de morar<br />

aqui. De volta, vejo o Palácio Ducal por dentro,<br />

passo pela Ponte dos Suspiros e vejo um forno<br />

aceso para a fabricação de cristais. Prefiro a Accademia,<br />

diante de Mantegna, Bellini, Carpaccio,<br />

Veronese, Giorgione, Canaletto, Tintoretto<br />

e o capeta a quatro. A chamada Escola de Veneza<br />

não chega à de Florença, mas é duca.<br />

Ponte dos Suspiros e Salão do Palácio Ducal.<br />

48


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Reencontro os Moura, que descobriram<br />

uma tavola calda muito boa, tem até alcachofra<br />

no cardápio. E vamos sassaricar por outro lado<br />

da cidade. Tipo casas com barcos estacionados à<br />

porta, em vez de automóvel e uma cena cômica:<br />

um velhinho acabou de pintar uma porta veneziana<br />

de branco e fica ‘lambendo a cria’ quando<br />

passa um cachorro e dá uma mijadinha na porta.<br />

O velho fica uma fera, bronca de italiano é mais<br />

feroz, como se sabe. Numa feira, no Rialto, senhoras<br />

elegantes vendem frutas e legumes que<br />

brilham porque lustradas com uma flanela. Velhos,<br />

senhoras elegantes, aqui todos trabalham.<br />

Vi entregadores de mercadorias que, no Rio, poderiam<br />

tirar onda de garotos de Ipanema.<br />

Vamos ao Museu Peggy Guggenheim, casa<br />

cheia de obras de arte e frequentada, na época,<br />

pelos artistas em exposição, amigos dela como<br />

Picasso, Dalí, Man Ray, Max Ernst, Giacometti,<br />

Pollock e uma caralhada de outros mais. Ernst<br />

foi seu amante nº 3.8l2 e Picasso a esnobou, não<br />

obstante ser ela mecenas de respeito e quem introduziu<br />

o modernismo nos Estados Unidos<br />

(Guggenheim virou uma grife). Vemos também<br />

o Cà d´Oro, museu de esculturas, um dos inúmeros<br />

palazzi, todo inclinado, meio como a torre de<br />

Pisa. Tem muitos aqui assim.<br />

Sala e quadros (Picasso e Kandinsky) do acervo de miss Guggenheim.<br />

O casal vai cochilar no hotel e fico de bobeira.<br />

Vejo a catedral por dentro e duas mulheres<br />

entram pela saída, no que são advertidas pelo<br />

porteiro. Uma delas o manda tomar naquele lugar,<br />

em francês, e ele devolve na mesma língua:<br />

‘Vais tu et toute la France!’. Sento no chão da piazzetta,<br />

onde um me­nino monta um leão de pedra.<br />

Um velhinho, ignorando que o garoto é estrangeiro,<br />

diz em português que o leão vai morder<br />

nele. Coisa de brasileiro. É ex-pracinha e está<br />

com um grupo de colegas visitando a Itália depois<br />

de 40 anos. Encantado com tudo aqui, um<br />

país que viu despedaçado, hoje, tão próspero.<br />

Carmen Miranda em capa de revista, lembrando<br />

os 30 anos de sua morte. No Brasil, alguém<br />

lembrou? E fitas das que torcedor amarra<br />

na testa com nomes de Zico, Falcão e Cerezzo.<br />

Música e futebol, nossa imagem mais positiva.<br />

Os Moura voltam com dois casais de Além Paraíba<br />

que encontraram por acaso e viram zanzando<br />

por aqui Caetano Veloso e sua Dedé. Veneza tá<br />

assim de brasileiro, até tiramos retrato com uns<br />

que nunca vimos e jamais veremos. Subimos à<br />

torre da piazza e, lá de cima, tudo nos trinques,<br />

mas, melhor mesmo é curtir as cidades europeias<br />

por dentro. Vamos jantar e, ao final, Carlim pergunta<br />

ao garçom, em português, se não tem uma<br />

jalapa. Jalapa é como ele chama café fraco e o<br />

mais incrível é que o garçom entende. Marilene e<br />

eu caímos na risada.<br />

49


<strong>Chicos</strong> <strong>45</strong><br />

Tomamos uns chopes no Florian, bar de<br />

1720, frequentado no passado por gente do naipe<br />

de Casanova, Goethe, Balzac, Dickens, Wagner,<br />

Proust, Hemingway, Scott Fitzgerald, essa gentinha.<br />

E rebatemos no ‘bar dos garçons’, que fica<br />

aberto até mais tarde e eles vêm beber aqui.<br />

Mesmo para Marilene, que pouco bebe, foi difícil<br />

encontrar o hotel. No outro só tinha vaga para<br />

dois dias e me mudei para o deles, onde morou<br />

um famoso pintor, o que não é novidade, pois<br />

em todo prédio da Europa morou gente famosa.<br />

E com tantas comidas e bebidas regurgitando no<br />

organismo, Moura e eu não conseguimos conter<br />

a flatulência, repreendidos pela ‘patroa’, que diz<br />

que o pessoal está reparando. Tranquilizo-a, dizendo<br />

que estamos peidando em português, eles<br />

não entendem.<br />

Chapadaço, preciso nem dizer, digo ao<br />

porteiro do hotel para me chamar às seis da manhã,<br />

porque vou tomar avião para Londres. Nestes<br />

termos: ‘Per fa-vore, me chiama domani, ora<br />

sei, è serio, io và per Londra’. E o cara: ‘Si và per<br />

Londra, non è serio’. E desmaio na cama, nem dá<br />

para ouvir os gondoleiros.<br />

Uma vez por ano, o mar toma conta de Veneza<br />

50


<strong>Chicos</strong> 44<br />

Clips<br />

Corpos Furtivos<br />

Chico Lopes.<br />

Véspera de Lua<br />

Rosângela Vieira Rocha<br />

“Este livro, para o leitor mais<br />

atento, não é somente a história<br />

de uma mulher , que sobrevive<br />

às custas de pequenas<br />

lascas de felicidade. Que não<br />

se completa e lateja entre desejos<br />

desperdiçados. Ele desnuda<br />

a miséria masculina em<br />

homens infiéis, infelizes e solitários.<br />

...”<br />

Silvana Guimaraes<br />

“Essa narrativa vencedora<br />

do Prêmio Nacional<br />

de Literatura—<br />

UFMG (1988) era, então,<br />

ousada, inovadora, revolucionária<br />

para a maneira<br />

com que a sociedade<br />

brasileira vê o erotismo,<br />

a homossexualidade,<br />

as relações amorosas.<br />

Daí o choque leve e<br />

suave a que vamos sendo<br />

submetidos a cada palavra, como neste trecho: “Já é de<br />

madrugada e não pregou o olho, lentamente retirando da<br />

memória as cenas eróticas de que foi protagonista. Acha<br />

que se fizer um esforço muito grande conseguirá montar o<br />

filme que condensa todas as experiências sensuais de sua<br />

vida. (...) Contudo, não encontra nada: está oca, seca, ser<br />

vivente, assexuado.”<br />

João Bosco Bezerra Bonfim<br />

Doutor em Linguística e escritor<br />

Confesso estar vivendo<br />

Leo Barbosa<br />

Confesso estar vivendo. Sei que<br />

a vida me trará muitos acidentes,<br />

mas a minha busca é pelo<br />

essencial. Tudo é muito rápido<br />

e creio ter apenas oportunidade.<br />

Não quero perder tempo com<br />

pouca coisa. Não quero ser menos<br />

do que posso ser. Não quero<br />

fazer do outro apenas instrumento<br />

da minha vontade. Meu<br />

amor é o meu amor. Preciso me<br />

ouvir, então escrevo. Só não<br />

quero que, na ânsia de percorrer<br />

distâncias, eu me distancie de mim. Confesso estar vivendo...<br />

Um Pouco de Conto<br />

Coletânea dos Contos<br />

classificados no 5°<br />

Concurso Viçosense<br />

de Literatura promovido<br />

pela UFV.<br />

O Cataguasense José<br />

Vecchi, colaborador<br />

desta e-zine, participa<br />

com dois contos premiados<br />

na publicação.<br />

Gervásio e A Janela<br />

são os seus contos.<br />

51


52

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!