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LOCKE-Segundo_tratado_Sobre_O_Governo

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<strong>Segundo</strong> Tratado <strong>Sobre</strong> o <strong>Governo</strong> Civil 27<br />

16. Vejamos como ele concilia sua “criação” e sua “designação”. “Em virtude da designação divina”, diz Sir<br />

Robert, “desde que Adão foi criado, ele se tornou rei do mundo, mesmo que não tivesse ainda súditos; é verdade<br />

que não podia existir governo efetivo enquanto não houvesse súditos, mas Adão extraía da lei da natureza o<br />

direito de governar sua posteridade; Adão era então rei desde o momento de sua criação, em potência, mas não<br />

em ato”. Lamento que o autor não nos diga o que ele entende por “designação divina”. Pode-se explicar por uma<br />

“designação divina” tudo o que a Providência determina, tudo o que prescreve a lei da natureza, ou tudo o que<br />

ensina a revelação direta; mas suponho que não se saberia tratar-se aqui do primeiro sentido, ou seja, da<br />

determinação da Providência; pois isso equivaleria a dizer que Adão exerceu uma realeza “de fato desde que foi<br />

criado”, porque “a lei da natureza” lhe “concedia o direito de governar sua posteridade”. A Providência não<br />

podia lhe conferir uma realeza “de fato” sobre o mundo, em uma época em que não existia nem governo nem<br />

súditos para serem governados, o que nosso autor reconhece aqui. Ele chega até a dar à expressão “monarca do<br />

mundo” um sentido diferente, pois entende às vezes por isso um indivíduo que seria proprietário da totalidade do<br />

mundo, com exceção do resto da humanidade, como o faz em seu Prefácio, à página que já citei; ele diz: “uma vez<br />

que Adão recebeu a ordem de multiplicar sua raça, de povoar a terra e dela tornar-se senhor, e recebeu a<br />

soberania sobre todas as criaturas, tornou-se, por isso mesmo, o monarca do mundo inteiro; desde então, nenhum<br />

de seus descendentes pode ter o direito de possuir o que quer que seja, a menos que tenha dele este direito, por<br />

meio de uma concessão, uma permissão ou uma sucessão”.<br />

Suponhamos então que ele deixe de entender, por “monarca”, o proprietário “do mundo” e, por<br />

“designação”, uma verdadeira doação divina e uma cessão especial efetuada em prol de Adão sob a forma de uma<br />

revelação (Gn 1,28); são as definições que o próprio Sir Robert sustenta na passagem que eu comento; neste caso,<br />

seu argumento se apresenta da seguinte maneira; “desde que Adão foi criado, tornou-se proprietário do mundo,<br />

porque a lei da natureza lhe concedia o direito de governar sua posteridade”. Este raciocínio encerra dois erros<br />

claros. Primeiro, é falso que Deus tenha efetuado esta cessão em favor de Adão<br />

logo após tê-lo criado; na verdade, ainda que o texto que a isso se refere venha imediatamente em seguida àquele<br />

que relata a sua criação, é evidente que Deus não podia se dirigir a Adão nestes termos antes de ter feito Eva e de<br />

tê-la conduzido para junto dele; pergunta-se como ele podia ser “rei em virtude de uma designação especial desde<br />

o momento de sua criação”; mais ainda porque o texto, se não me engano, qualifica de “concessão original do<br />

governo” as palavras que Deus pronuncia, dirigindo-se a Eva, na passagem Gn 3,16; este acontecimento é<br />

posterior à queda; quando ocorreu, algum tempo havia decorrido desde a “criação” de Adão e a situação deste<br />

havia mudado muito; não percebo então como nosso autor pode dizer neste sentido que Adão “tornou-se rei do<br />

mundo em virtude de uma designação especial desde o momento de sua criação”. Em segundo lugar, se era<br />

verdade que foi uma doação divina que constituiu “a designação especial de Adão como monarca do mundo desde<br />

o momento de sua criação”, a razão que se enuncia aqui não bastaria para prová-lo; seria sempre a sustentação de<br />

um raciocínio falso, pois se Deus “designou Adão como monarca do mundo” por meio de uma doação especial, “é<br />

porque a lei da natureza concedia a Adão o direito de governar sua posteridade”; na verdade, se Deus já havia<br />

concedido a Adão o direito de governar em virtude da natureza, não teria por que fazer-lhe uma doação especial,<br />

ou, pelo menos, a primeira dádiva não poderia constituir prova da segunda.<br />

17. Por outro lado, isto não resolve muito se, por “designação divina”, entendemos a lei da natureza (ainda<br />

que seja uma maneira muito dura de designá-la neste contexto), e por “monarca do mundo”, o chefe político<br />

soberano do mundo; pois, neste caso, a frase que examinamos se apresenta sob a seguinte forma: “em virtude da<br />

lei da natureza, desde o momento de sua criação, Adão foi encarregado de governar sua posteridade”; o que<br />

equivale dizer que ele “governava em virtude da lei da natureza, porque governava em virtude da lei da natureza”.<br />

Mesmo que se suponha que concedêssemos que o homem seja “naturalmente encarregado de governar” seus<br />

filhos, isso não poderia provar que Adão tenha se tornado “monarca desde o momento de sua criação”; na<br />

verdade, se o homem é naturalmente encarregado em virtude de sua qualidade de pai, acredito que é difícil<br />

conceber como Adão podia ser “naturalmente encarregado de governar” antes de ser pai, ele que não podia<br />

extrair o direito de governar senão de sua qualidade de pai; ou então, é preciso sustentar que ele era pai antes<br />

de ser pai, ou que possuía um direito antes de possuí-lo.<br />

18. A esta objeção, fácil de prever, nosso autor responde, com muita lógica, que Adão “foi encarregado do<br />

governo em potência, mas não em ato”; eis um meio bem elegante de governar sem governo, de ser pai sem filhos<br />

e de ser rei sem súditos. Da mesma maneira, Sir Robert era autor antes de ter escrito seu livro; não “em ato”, é

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