LOCKE-Segundo_tratado_Sobre_O_Governo
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| CLUBE DO LIVRO LIBERAL<br />
176. O agressor que se coloca em estado de guerra com outro homem, injustamente invadindo o direito<br />
deste, jamais extrairá de uma guerra injusta nenhum direito sobre sua conquista. Facilmente concordarão com<br />
isso todos os homens que não acham que os ladrões e os piratas têm um direito de soberania sobre quem quer<br />
que seja que tenham dominado pela força; ou que os homens sejam obrigados por promessas que o uso ilegal da<br />
força lhes extorquiu. Se um ladrão invadir minha casa e, com um punhal em minha garganta, me obrigar a<br />
escrever um documento cedendo-lhe os meus bens, isto lhe dá qualquer direito? É justamente um direito deste<br />
gênero que possui o conquistador injusto que força a minha submissão com o poder da espada. A injúria e o crime<br />
são iguais, sejam eles cometidos por uma cabeça coroada ou por algum pequeno vilão. Nem o título do ofensor<br />
nem o número de seus seguidores fazem diferença na infração, a menos que seja para agravá-la. A única diferença<br />
é que os grandes ladrões punem os pequenos para mantê-los em sua obediência; enquanto os grandes são<br />
recompensados com lauréis e triunfos, por serem grandes demais para as mãos frágeis da justiça deste mundo, e<br />
são eles que têm nas mãos o poder que poderia punir os ofensores. Que recurso posso ter contra um ladrão que<br />
invadiu a minha casa? Apelar para a lei para obter justiça. Mas talvez a justiça seja negada ou eu esteja ferido,<br />
incapaz de me mover; roubado e sem os meios para poder agir. Se Deus retirou todos os meios de buscar<br />
recursos, só resta a paciência. Mas meu filho, quando for capaz, pode buscar o amparo da lei, que me foi negado;<br />
ele ou seu filho podem renovar seu apelo, até que ele recupere seu direito. Mas o conquistado, ou seus filhos, não<br />
têm tribunal ou árbitro na terra a quem apelar. Então podem apelar ao céu, como fez Jefté, e repetir seu apelo até<br />
recuperarem o direito nativo de seus ancestrais, ou seja, o direito de colocar sobre eles um poder legislativo que a<br />
maioria aprove e aceite livremente. Poderá ser objetado que isso provocaria um tumulto sem fim, mas eu digo que<br />
bastaria que a justiça estivesse acessível a todos que apelam para ela. Aquele que perturba, sem motivo, o repouso<br />
do seu vizinho, é punido pelo tribunal a que este se dirige. Aquele que apela ao céu deve estar certo de que tem o<br />
direito do seu lado; e um direito também que vale o trabalho e o custo do processo, pois ele vai responder diante<br />
de um tribunal que não pode ser enganado e sempre punirá cada um segundo os danos que tenham causado aos<br />
seus semelhantes, ou seja, uma parte qualquer da humanidade. De onde se conclui, evidentemente, que aquele<br />
que conquista em uma guerra injusta não pode desse modo ter direito à submissão e à obediência do conquistado.<br />
177. Mas supondo-se que a vitória favoreça o lado certo, consideremos o conquistador em uma guerra<br />
legal e vejamos que poder ele adquire, e sobre quem.<br />
Primeiro: É evidente que por sua conquista ele não adquire poder sobre aqueles que conquistaram junto<br />
com ele. Aqueles que lutaram a seu lado não podem sofrer pela conquista, mas devem,<br />
no mínimo, continuar homens tão livres quanto eram antes. Muito freqüentemente, eles servem sob contrato<br />
e com a condição de dividir com seu chefe a fim de desfrutar de uma parcela do saque e outras vantagens que<br />
acompanham a espada vencedora; ou, pelo menos, ver atribuída a ele uma parte do país subjugado. E espero que<br />
o povo vitorioso não se torne escravo da conquista e use seus lauréis apenas para mostrar que são sacrifícios ao<br />
triunfo de seu líder. Aqueles que fundamentam a monarquia absoluta sobre o direito da espada transformam seus<br />
heróis, que são os fundadores de tais monarquias, em valentões consumados, e se esquecem que eles tiveram<br />
oficiais e soldados que combateram a seu lado nas batalhas que venceram, ou os auxiliaram na conquista ou<br />
repartiram a posse dos países que dominaram. Alguns nos dizem que a monarquia inglesa deriva da conquista<br />
normanda, e que nossos príncipes adquiriram dessa forma um direito à dominação absoluta; o que, se for verdade<br />
(o que a história desmente), e se Guilherme tinha justa causa de fazer guerra à nossa ilha, sua dominação pela<br />
conquista só poderia se estender aos saxões e aos bretões que eram então os habitantes deste país. Os normandos<br />
que vieram com ele e o ajudaram na conquista são, juntamente com todos os seus descendentes, homens livres, e<br />
não súditos conquistados, seja qual for o gênero de soberania que tenha resultado. E se eu ou qualquer outro<br />
indivíduo reivindicarmos nossa liberdade, argumentando que a derivamos deles, será muito difícil provar o<br />
contrário. É evidente que as leis, que não estabelecem nenhuma distinção entre estas categorias de indivíduos,<br />
não têm por objetivo instituir qualquer discriminação em sua liberdade e privilégios.<br />
178. Mas suponhamos, o que raramente ocorre, que os conquistadores e os conquistados nunca se<br />
associaram formando um povo, sob as mesmas leis e liberdade. Vamos ver agora que poder um conquistador legal<br />
tem sobre aqueles que conquistou: eu digo que este poder é puramente despótico. Ele tem um poder absoluto