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Janeiro 2017 - Edição 225

Edição 225 do Lusitano de Zurique

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20 Lusitano<br />

ACTUALIDADE<br />

Desde o primeiro dia do novo ano que António Guterres ocupa o cargo de secretário-geral<br />

da Organização das Nações Unidas. Há, porém, muito tempo<br />

que se vai disseminando a ideia de que a ONU se encontra desajustada aos<br />

dias em que vivemos. Alguns analistas alertam mesmo para os riscos de implosão<br />

do organismo, e para os perigos inerentes a uma situação de vazio mundial no<br />

que toca ao palco onde se cuida do concerto das nações.<br />

CARLOS ADEMAR<br />

É escritor e exerceu a actividade de investigador<br />

criminal na Secção de Homicídios. Actualmente é<br />

Professor na Escola de Polícia Judiciária.<br />

Em@il: cademar@gmail.com<br />

E AGORA<br />

ANTÓNIO<br />

GUTERRES?<br />

NÃO É ERGUENDO<br />

MUROS NAS LINHAS DE<br />

FRONTEIRA DOS PAÍSES<br />

DESENVOLVIDOS QUE SE<br />

ACABA COM A SAGA<br />

DOS REFUGIADOS, MAS<br />

CRIANDO NOS PAÍSES<br />

DE ORIGEM CONDIÇÕES<br />

PARA QUE ALI POSSAM<br />

CONSTRUIR UMA VIDA<br />

TRANQUILA, QUE LHES<br />

PERMITA SONHAR COM<br />

UM FUTURO DIGNO.<br />

Há verdades que devem ser repetidas uma e outra vez. É o caso da fragilidade da ONU<br />

face aos donos do mundo. A Organização das Nações Unidas nasceu após a Segunda<br />

Guerra Mundial, tentando recuperar os ideais da extinta Sociedade das Nações. Nasceu<br />

numa altura em que os impérios de séculos estavam ainda pujantes. Como exemplo, referimos<br />

o continente africano, que por essa altura era quase totalmente colonizado pelas<br />

potências europeias. Também no Médio Oriente, Índia e sudeste asiático a situação não<br />

era muito diferente. Portanto, de um contexto mundial que não ultrapassava as dezenas<br />

de países, chegámos a uma realidade que já entrou nas duas centenas.<br />

Por outro lado a ONU nasceu e tem-se mantido assente num pilar que é o Conselho de<br />

Segurança (CS), ou melhor, o núcleo de países que o integram de forma permanente. São<br />

estes que impõem a sua vontade ao mundo, porque nada pode ser aprovado sem ter a<br />

sua concordância, por força do direito de veto que apenas a esse restrito clube de cinco<br />

países (China, Rússia, EUA, França e Reino Unido) foi concedido. É de tal forma verdade<br />

que no recente processo de selecção do secretário-geral, a decisão coube a estes países.<br />

Quando eles se entenderam, apresentaram António Guterres à Assembleia Geral como<br />

o nome que esta deveria ratificar, e apenas com essa finalidade.<br />

É um mero exemplo que visa demonstrar o quanto a ONU está desajustada aos tempos<br />

que correm – cinco escolhem por duzentos. Não por acaso, este organismo, que devia ser<br />

uma espécie de governo do mundo para as grandes questões que a toda a Humanidade<br />

respeita, está a cada dia mais desacreditado. Tem um peso muito marginal nas grandes<br />

decisões, transitando estas para as potências. São elas que verdadeiramente ditam o que<br />

mais (lhes) interessa. Desde a presidência de Jimmy Carter, nos anos setenta do século<br />

XX, que não havia no CS uma condenação de Israel pela sua persistência em fazer alastrar<br />

os colonatos, abrindo espaço para mais ódio com os vizinhos muçulmanos. Os EUA<br />

usaram sempre o direito de veto para o impedir e só na despedida, Obama ousou desafiar<br />

os interesses da poderosa comunidade judaica local.<br />

E é neste registo que nos mantemos há dezenas de anos e devido a ele, as grandes<br />

questões que a todos dizem respeito não são resolvidas, não obstante os discursos plenos<br />

de boas intenções que alguns dos senhores do mundo vão espalhando aos quatro<br />

ventos. E se a situação já não era favorável a António Guterres, a entrada em cena de<br />

Donald Trump veio fragilizar ainda mais a ONU, atendendo às suas tiradas sobre o assunto,<br />

por manifestarem um profundo desprezo pelo organismo e por quem lá trabalha. É o<br />

discurso fácil, além de que dá mais proventos eleitorais. Obviamente que não é a existência<br />

da ONU que se questiona nesta crónica, mas o real desempenho das suas estruturas<br />

no mundo actual.<br />

A verdade é que os insucessos da ONU acumularam-se ao longo dos anos. Desde logo<br />

a incapacidade de fazer implementar políticas ambientais, não obstante os perigos para<br />

o futuro da Humanidade. Não consegue impor o Tribunal Penal Internacional, que devia<br />

servir de facto como elemento dissuasor aos tiranos ou candidatos a tiranos deste mundo,<br />

nas suas atitudes de matança maciça e selectiva. Não por acaso, a fome no mundo<br />

continua a ser uma tragédia que raia o obsceno, porque são bem conhecidos os excedentes<br />

alimentares que proliferam e se desperdiçam em muitos países do Ocidente. Há<br />

verdades que devem ser repetidas uma e outra vez.<br />

Continuamos a não querer enfrentar o problema pela raiz. Não é erguendo muros nas<br />

linhas de fronteira dos países desenvolvidos que se acaba com a saga dos refugiados, mas<br />

criando nos países de origem condições para que ali possam construir uma vida tranquila,<br />

que lhes permita sonhar com um futuro digno. A ONU tem de ter uma palavra a dizer e<br />

essa palavra tem que ser ouvida. A verdade é que a fome ou a perspectiva dela acontecer<br />

existe e até prolifera em certas regiões, levando milhões de pessoas a partirem em busca<br />

do ideal de não viverem na incerteza de conseguirem a próxima refeição. Ainda que o<br />

desespero as empurre muitas vezes para situações tão difíceis como as que viviam, e<br />

quantas vezes mesmo para a morte.<br />

Bem sabemos que muitos casos de fome decorrem de conflitos bélicos que se desenvolvem<br />

nesses países, quantas vezes fomentados exactamente pelos países que pertencem<br />

ao tal grupo de eleitos, por integrarem o CS como membros irremovíveis. Basta que

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