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Revista LiteraLivre

Revista Literária que une textos de autores do Brasil e do mundo com textos de todos os estilos escritos em Língua Portuguesa. Acesse nosso site e participe também: http://cultissimo.wixsite.com/revistaliteralivre/comoparticipar

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<strong>LiteraLivre</strong> nº 1<br />

Fabulosa Paixão<br />

Luciane Couto - Contagem/MG<br />

Assim que desceu da moto e começou a caminhar pela praça, eu sabia que seria ele. A<br />

tarde era fria, e eu esperava entediada sob um rasgo de sol que me alcançava. Àquela<br />

hora, grande parte dos amigos que iniciaram o dia na praça comigo já tinham ido embora,<br />

acompanhados; alguns felizes, outros apenas resignados. Não era a primeira vez que eu<br />

ali estava e já estava perdendo as esperanças de que seria a última, até avistar o homem<br />

de testa franzida, pronunciada sob as frestas da franja comprida do negro cabelo que<br />

quase escondia seu olhar gentil. A barba por fazer revelava um homem pouco vaidoso, no<br />

entanto certo de sua beleza máscula, mesmo que os lábios finos remetessem a um quê<br />

pueril. As pernas longas, ornadas pelo jeans surrado, o traziam em firmes passadas em<br />

minha direção, e daí não relutei em ser clichê: alinhei minha espinha, deixei minhas<br />

ancas se pronunciarem num ângulo favorável, conferi discretamente se ainda tinha em<br />

mim o aroma cítrico do sabonete do último banho tomado (a contragosto, confesso) e<br />

busquei estampar meu olhar de Capitu. E permaneci em espera, repetindo mentalmente<br />

meu gasto mantra: “que ele não prefira as clarinhas que aqui estão, que ele não prefira as<br />

clarinhas...” (sim, eu não sou portadora de uma autoestima elevada, resultado da<br />

constatação diária do olhar do outro sobre mim, onde eu lia que minha negritude não<br />

remetia à fortuna. E pelo fato de viver há tempos num lar provisório, cedido a mim e a<br />

alguns outros como um favor, desde que deixei a proteção das asas de minha mãe -<br />

talvez asas não retratem bem o que eu tinha junto a minha mãe, mas ainda assim a<br />

lembrança materna era algo que me remetia à sensação de aconchego, agora tão<br />

distante e nebulosa. Além disso, eu também tinha plena consciência que a ampulheta do<br />

tempo já levava minhas formas Lolita, o que dificultaria ainda mais o encontro com<br />

alguém para eu chamar de meu). Na praça, eu continuava naquela fatigante espera,<br />

agora sustentada pela falsa autoconfiança onde me empertiguei, enquanto ele andava e<br />

observava todas as outras que também e ainda aguardavam na tarde outonal. De<br />

repente, ele parou à minha frente e me encarou, ensaiando um sorriso. Então eu<br />

vislumbrei que ele também ali soube, naquele segundo crucial onde nossos olhares se<br />

cruzaram, que seria eu. Depois de alguns protocolos cumpridos, me conduziu, decidido e<br />

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