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Revista LiteraLivre

Revista Literária que une textos de autores do Brasil e do mundo com textos de todos os estilos escritos em Língua Portuguesa. Acesse nosso site e participe também: http://cultissimo.wixsite.com/revistaliteralivre/comoparticipar

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<strong>LiteraLivre</strong> nº 1<br />

TEXTO E TEXTURA: OU TESSITURA INFERNAL<br />

“SCHLEIDEN” NUNES PIMENTA<br />

CAMPO BELO, MG<br />

Era uma sexta-feira. Fazia três meses e eu podia ouvi-lo outra vez. Um som<br />

metálico, esse grunhido seco, a me lembrar uma gangorra enferrujada senão algum<br />

letreiro quebrado ao vento da madrugada. Não me atrevi, nunca me atrevi, a conferir os<br />

ponteiros do relógio; as horas, acaso fossem coincidentes, terminariam por me furtar o<br />

restante do sono. Esperava o barulho cessar, a insônia acabar, até que um dia decidi<br />

conferir. Inclusive ri da minha loucura; o caçador de pesadelos, o que vai atrás do barulho<br />

não sabido. Retirei o pijama, optei pelas botas, pela jaqueta e por um boné comprido.<br />

Não há uma pessoa, uma só pessoa, que afirme verdadeiramente jamais ter<br />

cogitado, por um segundo que seja em toda a sua vida, o advento do sobrenatural. Por<br />

mais realista ou cético, além do ateísmo que me conforta, e que me valha meu<br />

nascimento na décima casa zodiacal... qual é!: não há pelo quê se envergonhar; a<br />

incompreensão gera esse medo, apreensão, ou dúvida, que seja. Estágio em que reina o<br />

dissabor da vida, em que o temor de tudo e de todos acaba por gerar uma falta de pelo<br />

quê viver. Uma fraqueza psíquica ou espiritual tamanha que um susto ínfimo poderia nos<br />

fazer virar pó ou derreter.<br />

Também há uma sensação, um sonho, acho que todos têm, que visita meu sono<br />

vez e outra; demora voltar, mas volta, e quando volta simboliza a dúvida de perpetuá-la<br />

para compreendê-la ou de ligar a televisão para matá-la. Se for possível, que essa pessoa<br />

seja sortuda o suficiente para ter um outro alguém com quem conversar e se aliviar.<br />

Porque é inexplicável, é indescritível, é isto! É a sensação de que... dentre tudo, é a única<br />

sensação que não consegui e não consigo ainda descrever. Uma perda de energia tão<br />

abismal que poderia talvez ter sido sugada propositalmente. Controla-se a perda ou... eis<br />

o surto! O curioso é que, às vezes, o surto aparenta ser tão seduzente... tal qual aquele<br />

som de gangorra a arrepiar os dentes! O sobrenatural que parece flertar com a mente,<br />

com a gente.<br />

Estava lá. Minha rua em reforma, aos postes mal-iluminados, aos bueiros meio<br />

abertos, às calçadas barrentas pois chuviscara. Mas, daquele dia, não passaria. Pela<br />

fresta da janela, da persiana, vi o centro da cidade do alto do quarto andar. Escuridão e<br />

noite, medo e imprevisão, além daquele som. À confiança da luz de um celular é que<br />

desci pelo elevador. O porteiro dormia, ou outra coisa; apertei eu mesmo o botão do<br />

portão externo e saí.<br />

A brisa cortava. Pude ver minha própria expressão refletida nos vidros de um<br />

caminhão; esforçava-me para manter o mesmo semblante dos protagonistas de filmes de<br />

suspense ou de terror que, embora não saibam, não morrerão. Na esquina do quarteirão<br />

que dava para a praça avistei o parque público infantil. Havia alguma coisa, ou alguém,<br />

que se camuflava por entre as árvores e pelas barricadas de construção. Hesitei. Podia<br />

ser qualquer coisa, simplesmente. O som, razão da minha saída insana, já não existia; em<br />

algum momento parou, ou a minha apreensão o submeteu, mas definitivamente não sei<br />

em que instante deixei de ouvi-lo. Poderia estar ainda lá, zunindo apesar de não o<br />

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