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REBOSTEIO 4

Revista REBOSTEIO DIGITAL número quatro - entrevistas, arte, cultura, poesia, literatura, comportamento, cinema, fotografia, artes plásticas.

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[Há mais ou menos 4 anos, incentivada por<br />

amigos, cometi o primeiro poema.<br />

A sensação foi estranha.<br />

A construção exigiu que da idéia inicial eu<br />

fosse retirando tudo o que era supérfluo, não<br />

essencial, até chegar numa estrutura ritmica,<br />

elegante, e ainda contendo o germe desse<br />

algo que eu tinha a dizer. E sempre fui muito<br />

prolixa...<br />

A dificuldade me encantou. A reflexão<br />

necessária me encantou.<br />

Fiquei fascinada com o processo todo, pois<br />

havia algo de muito racional naquilo que antes<br />

eu via como pura inspiração ou enlevo dos<br />

poetas.<br />

Havia mão de obra bruta, havia trabalho<br />

artesanal e algumas vezes frustrante.<br />

Claro que a “inspiração” inicial ainda estava<br />

lá, mas não era só isso.<br />

Redigir este texto para a presente edição da<br />

Rebosteio é um desafio na medida em que,<br />

não sendo poeta, devo de alguma forma<br />

encontrar em mim as razões da poesia.<br />

É simples: não há razões. Pelo menos não há<br />

razões conscientes que me direcionem no<br />

sentido de escrever visando algum objetivo ou<br />

satisfação de uma necessidade íntima.<br />

Mas as mais íntimas necessidades não são<br />

conscientes - rio de mim.<br />

É verdade que ao longo destes poucos anos fui<br />

aprimorando meus rabiscos iniciais de modo<br />

que hoje pude promovê-los ao que chamo em<br />

meu blog de ‘poemas descartáveis para<br />

superfícies ordinárias’.<br />

De qualquer forma, a poesia é um meio de<br />

expressão que permite tantas leituras quantos<br />

são os leitores: ela é maravilhosa porque não<br />

entrega tudo, pois “tudo” é mais do que<br />

qualquer um pode suportar.<br />

Talvez isto seja uma boa razão enfim: a<br />

liberdade de se desprender do “criador”<br />

(entre aspas sim, pois autoria é algo discutível,<br />

ainda mais em tempos cibernéticos... as idéias<br />

estão no ar comum a todos, prontas para<br />

serem laçadas).<br />

Há uma outra coisa que descobri durante esse<br />

tempo, e que não necessariamente ocorre<br />

com outras pessoas, mas que se resume no<br />

fato de que um poema só é concebido no<br />

holocausto de si mesmo, legitimado pelo<br />

vácuo que a racionalização da palavra deixa<br />

como rastro atrás de si. Morto para o poeta,<br />

passa a viver no leitor. E uma vez dito –<br />

bendito – morreu.<br />

Depreenda-se daí que meu maior insight em<br />

relação à poesia é de que ela nasce morta, no<br />

sentido de que durante a sua feitura, sua<br />

elaboração, ela esgota qualquer tipo de<br />

sensação que a possa ter originado<br />

primariamente.<br />

Esse efeito colateral não deixa de ser<br />

terapêutico, mas poesia não tem que servir<br />

para nada. Não tem nem mesmo que ser<br />

respeitável, posto que quanto menos respeito<br />

à norma culta, mais criativa ela se torna, a<br />

meu ver.<br />

Fascina-me a idéia da irreverência dos grandes<br />

“inventores” citados por Ezra Pound, que<br />

subverteram o status quo da linguagem<br />

literária de seu tempo.<br />

O poder encantatório da palavra sempre<br />

estará no que ficou por dizer, ou no que ficou<br />

mal dito... vivas aos poetas malditos!<br />

É surfar em signos.<br />

É o quanto poderei desalojar a poesia do seu<br />

pedestal virtuoso e lançá-la nas mãos e nos<br />

olhos de quem só tem compromisso com o<br />

lúdico pensar. Asas a ele, e pé na tábua.<br />

E mãos à obra, que tudo é barro: quanto a<br />

você, leitor, aproprie-se, faça do poema um<br />

móbile em sua cabeça. Esqueça o que dele<br />

pensa. Consinta a germinação por dentro.<br />

Exprima, esprema, enxugue a rima. Possibilite<br />

apenas a livre expansão pelo soma. Coma o<br />

poema: e regurgite, agite, revolva, empreste a<br />

saliva e a seiva. Sue sua prerrogativa - abrace,<br />

trema, dance o poema. Transe o ritmo e a<br />

palavra. Goze até perder a pose. E por fim<br />

repouse, tragando um fonema.

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