concepção gráfica: Thiago Carvalheiro
Travessia... pensei. pensei demais. Pensei muito em como começar este texto. sabia da necessidade de começar. qualquer texto é um parafuso carente do primeiro aperto. começar é tudo. no começo está contido o fim, e o texto é este ato de atravessar e as reticências que sobram, onde pára. Poema é ritmo fotografado. O Poema nada contra a brutalidade do tempo e atravessa verticalmente a Angústia, suspendendoa. mas começar este texto com a palavra que guimarães termina suas Veredas, não foi um ato consciente, e o foi. precisava começar. comecei. palavra pescada. foi uma jogada de puro oportunismo e brincadeira, mas, neste exato instante, a Travessia é todo o sentido. pesquei-me, fui pescado. a Pescaria é uma via de mão dupla, uma hora se é o pescador, noutra, o próprio peixe. brincadeira de água. o Poeta tem a linhada, mas não tem a isca. o Poema é uma criança que ri de nós o tempo todo: é o bullying que engenhamos para nos caçoarmos eternamente e lembrarmos que esta brincadeira de lágrimas é só uma brincadeira. os poemas estão prontos. nós não estamos prontos. há os fisgados por completo: um peixe com cabeça, guelra e mil camadas escamadas. há os que pego pelo rabo, quase por acaso. toda pescaria é Acaso. há, ainda, os que vem em pedaços, estes costumam nadar ou morrer em blocos de notas espalhados no celular, no pc, perdidos na carteira. não sou de bajular o poema. às vezes, pela preciosidade da cauda, imagina-se o tamanho da pesca. mas não bajulo o poema. o pior pescador é aquele que lança o anzol no meio do cardume: o peixe, como você, respira melhor se desafiado. muito tem se falado do Poema. palavras soltas. Poema é o que sobra da Poesia. Poesia é tudo o que se move, tudo o que nos move, e nada do que se tenha encontrado. Poesia é o que nos resta, e até diria que é somente o fruto de um mecanismo mental, racional, que ela é o resultado do trabalho e da técnica apurada, mas não: este é o poema, não a Poesia. livros e livros eu poderia escrever para tentar defini-la, e ainda não dizer nada. posso falar do Poeta, deste inquilino que me aluga, de graça, e me tem por usucapião. mas deste, eu deixo que o poema que lá se vai, fale mais. posso falar, então, da relação que estabeleço com tudo isso. talvez seja o justo. talvez seja mesmo o que leitor espera e o melhor a se extrair desta desconstrução anunciada. cada Poeta tem seu código de barras, como todo Ser o seu código genético. eis aqui uma palavra que me fisga: Código. decodificar a Poesia é pescar seu mecanismo e transformá-la em mais um código, o linguístico: esta apertada e flexível camisa-de-vênus do poema. não sei, sinceramente, se a Poesia serve para a humanidade. sei que a humaniza, como toda obra de arte. ser Humano é nossa maior utopia, e a Poesia me serve como armadura, potência, máscara, e realização deste Humano que persigo. Ademais, tem a função social e política que também me dou a ela, sendo ela tão somente meu instrumento de crítica e denúncia. ela é minha. ela é de todos. basta nascer para ser Poeta. não sei das plantas nem dos bichos. as pedras carregam em si o silêncio poético. a Poesia é solidária e serve para qualquer coisa que queira usá-la: engodo de amor, panfleto ideológico, palavra cruzada. há, por fim, o Encantamento: aquilo que atribuo a ela e que só me diz respeito. ela é o Discurso, existencialmente elaborado, que construo contra todas as intempéries do mundo de fora. neste sentido restrito, ela cumpre uma função que, ora amuleto, ora armadura, me protege da solidão de mim mesmo, aumentando a libido e meu campo de ação: é minha zona de desconforto, o espelho refletido no vazio do meu vazio e, por significar-me, tudo o que tenho abraçado com unhas e dentes para tocar toda essa Merda em frente e, mais que viver, para além de viver, sentir que estou vivo.