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REBOSTEIO 4

Revista REBOSTEIO DIGITAL número quatro - entrevistas, arte, cultura, poesia, literatura, comportamento, cinema, fotografia, artes plásticas.

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Tem esta inquietação que ocorre vez por<br />

outra. Vem não sei de onde e apenas escrevo. Nunca<br />

fui boa em verbalizar emoções, gosto do concreto,<br />

geometria era meu forte. Penso no dia em que<br />

alguém vai perceber que não escrevo, nunca escrevi.<br />

Conto histórias como se assistisse a um filme. Até os<br />

poemas, eles dançam na minha frente, fazem<br />

mesuras e eu apenas descrevo a cena. Espero o dia<br />

em que vão me dizer que eu não faço sentido.<br />

Houve um tempo em que falar me sangrava<br />

a garganta. Se eu cantasse uma música inteira o gosto<br />

do sangue me vinha na língua e logo em seguida o<br />

cheiro ferroso às narinas. Apaixonava, discutia,<br />

odiava, tudo em silêncio. Se fosse um escultor eu<br />

saberia exatamente como seria a forma do que<br />

sentia, podia talhar o sentimento até mesmo em<br />

uma dura aroeira, mas falar sobre isto era impossível.<br />

Tinha infecções na garganta, voz de pato,<br />

placas fétidas soltavam de minhas amígdalas. Foi na<br />

virada do século, depois de quase trinta anos de<br />

mudez que descobri a cura para minha faringite<br />

eterna. Escrever.<br />

Compreendi que não era culpa de minha<br />

boca ou de minha língua que eu não pudesse falar<br />

sem chorar, expor um argumento contrário sem<br />

gritar. As ideias me vinham em bolos, tinham três<br />

dimensões, se emparelhavam, entravam umas<br />

debaixo das saias das outras.<br />

1<br />

Ismália vez por outra me aparecia e eu era<br />

do tipo que preferia acreditar que ela não era louca,<br />

que não tinha se espatifado nas pedras lá embaixo,<br />

que podia e alcançou a lua. Ismália era um chamado<br />

à escrita, fugi dela por pensar que me chamava para<br />

2<br />

o abismo. Leminski , ao contrário, veio como viria se<br />

fosse vivo e me encontrou por acaso.<br />

Despretensioso no meio de uma coletânea de versos<br />

igualmente provocadores e cheios de revolução e<br />

amor.<br />

Quando li o primeiro Leminski disse em voz<br />

alta: - Filho de uma puta! Ele via, sabia que as<br />

palavras tinham personalidade, que podiam se<br />

fantasiar e assumir identidades que não eram as suas<br />

e ainda assim se fazer entender. Ele tinha decifrado a<br />

dança das palavras, suas artimanhas. Sabia que elas,<br />

ao interpretarem pensamentos subversivos, também<br />

se rebelavam. Era o que me faltava.<br />

A partir daí eu comecei a escrever.<br />

Reticências, rimas mendigas, gerúndios, amor e dor,<br />

comecei de gatinhas, quase rastejando. Escrevi<br />

copiosamente e era tão intensa esta descoberta para<br />

mim que pensei ser uma enviada divina, alguém que<br />

iria descobrir a pólvora, inventar a roda da literatura.<br />

Tive um ou dois amigos honestos que disseram que<br />

havia algum conteúdo no meio daquele rio de erres<br />

das minhas rimas de verbos no infinitivo. Não<br />

escreva para ninguém. Foi o melhor conselho que<br />

recebi em toda a minha vida.<br />

Larguei as rimas, deixei as reticências, pus<br />

para fora e desenhei com palavras aqueles sapos<br />

engolidos que por tanto tempo arranharam minha<br />

goela, os argumentos deixados para trás, minhas<br />

justificativas, as coisas belas que eu era capaz. Esta<br />

coisa que dita o que tenho de escrever, minha<br />

consciência ou inconsciência, sei lá, não está nem aí<br />

com minha reputação de escritora, de filha, de mãe<br />

de família, ela simplesmente não liga. Se eu tento<br />

não escrever ou dar uma versão mais comportada do<br />

que estou vendo ela ri da minha cara. Faz com que<br />

eu me core e me sinta uma fraude.<br />

Uma vez sonhei com um poema. Enorme,<br />

em quadras perfeitas, algo medieval como uma<br />

canção de amor shakeasperiana. No sonho eu sentia<br />

orgulho por ser um poema clássico, belíssimo, lindas<br />

rimas, linda história e eu o declamava, uma dezena e<br />

pouco de estrofes que tentava decorar para anotar<br />

quando acordasse. Quando acordei não lembrei<br />

nenhuma palavra, o mote, nada que me fizesse<br />

lembrar daquele que seria o poema pelo qual seria<br />

lembrada pelo resto da minha vida e morte. Acredito<br />

que foi para me botar no meu devido lugar. Foi como<br />

se me dissesse, sim, eu sei escrever, mas você não<br />

está aqui para isto.<br />

Manter minha submissão, deixar com que<br />

apenas o necessário seja escrito, não deixar com que<br />

eu seja clara o suficiente, que eu não tenha um estilo<br />

único é a maneira de cumprir este papel. Creio que<br />

não seja assim para todos, que uns escrevam para<br />

dar sentido à história de outros, alguns para que sua<br />

história não seja esquecida, outros para que os<br />

comuns sonhem. Não sei se o que escrevo é bom,<br />

mas tenho absoluta certeza de que é verdadeiro.

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