edição de 31 de outubro de 2016
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STORYTELLER<br />
Filipe Birck<br />
O colecionador<br />
Quem tem passado, quem quer<br />
ter futuro e quem tem emoção<br />
pelo que fez, guarda coisas<br />
LuLa Vieira<br />
Sou um dos maiores quinquilheiros que<br />
conheço. Um juntador compulsivo. Os<br />
psicanalistas po<strong>de</strong>rão achar que trata-se<br />
<strong>de</strong> uma fixação infantil, mas não consigo<br />
<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> colecionar coisas completamente<br />
inúteis. Tenho centenas <strong>de</strong> misturadores<br />
<strong>de</strong> bebidas, <strong>de</strong> plaquinhas <strong>de</strong> “não perturbe”<br />
<strong>de</strong> hotéis do mundo inteiro, coleção <strong>de</strong><br />
canetas, <strong>de</strong> lápis promocionais e caixinhas<br />
<strong>de</strong> fósforo.<br />
Meu escritório em casa é um verda<strong>de</strong>iro<br />
supermercado com vitrines abarrotadas <strong>de</strong><br />
Estampas Eucalol (alguém lembra o que é<br />
isso?), relógios antigos, brin<strong>de</strong>s <strong>de</strong> companhias<br />
<strong>de</strong> aviação (eu tenho quase tudo que<br />
a falecida Panair distribuía para os passageiros,<br />
presente da filha <strong>de</strong> um comandante<br />
<strong>de</strong> Constelation, inclusive uma maquete<br />
<strong>de</strong>sse que foi o mais bonito avião jamais<br />
construído).<br />
Uma vez contratei uma estagiária para<br />
organizar meus documentos pessoais, pois<br />
precisava preparar um histórico profissional<br />
para uma universida<strong>de</strong>. Em conluio<br />
com minha secretária (facada nas costas,<br />
facada nas costas!), as duas propuseram jogar<br />
antigos menus <strong>de</strong> restaurantes, contas<br />
<strong>de</strong> hotéis na Europa, bilhetes <strong>de</strong> amigos e<br />
cartas <strong>de</strong> amor (poucas, confesso).<br />
A i<strong>de</strong>ia era diminuir a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> coisas<br />
guardadas. Por muito pouco não joguei<br />
fora as duas. A pergunta que não calava,<br />
mas que me dava vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> matar era<br />
sempre em tom <strong>de</strong> <strong>de</strong>boche: “para que você<br />
quer isso?” Certas coisas não se respon<strong>de</strong>,<br />
pois, se a pessoa não enten<strong>de</strong>, não adianta<br />
explicar.<br />
Tenho mais: tenho o maior arquivo <strong>de</strong><br />
rádio existente hoje no Brasil, simplesmente<br />
porque todo mundo acha que as coisas<br />
existem para serem usadas e jogadas fora.<br />
Tenho uma coleção <strong>de</strong> clássicos <strong>de</strong> cinema<br />
<strong>de</strong> fazer inveja a muita cinemateca e alguns<br />
milhares <strong>de</strong> livros. Isso me obriga a manter<br />
uma sala no centro da cida<strong>de</strong>, o escritório<br />
<strong>de</strong> casa e ainda vou construir um <strong>de</strong>pósito<br />
no meu jardim. Sim, <strong>de</strong>vo estar ficando<br />
louco, mas não conheço nenhum grupo <strong>de</strong><br />
Colecionadores Anônimos ao qual eu possa<br />
recorrer.<br />
Um grupo que se reunisse uma vez por<br />
semana e seus integrantes ficassem jurando<br />
que passariam um dia, apenas um dia,<br />
sem juntar coisa alguma. E receberiam medalinhas<br />
por cada dia <strong>de</strong> resistência. E juntariam<br />
as medalinhas. E trocariam medalinhas<br />
raras: “Esta é do Mauro Salles, que<br />
se livrou da mania <strong>de</strong> colecionar carros!”;<br />
“esta é do Fábio Júnior, que parou <strong>de</strong> colecionar<br />
casamentos”, e assim por diante.<br />
A mais rara e mais cobiçada seria a medalha<br />
do Luiz Macedo, quando abandonou o<br />
vício <strong>de</strong> ganhar todas as contas <strong>de</strong> propaganda<br />
do Brasil. Ou seja, os colecionadores<br />
anônimos terminariam por <strong>de</strong>scobrir uma<br />
fórmula <strong>de</strong> continuar fazendo coleções, só<br />
para provar que esse mal é incurável.<br />
O problema mais complicado com colecionadores,<br />
quinquilheiros e juntadores<br />
em geral é que a mania se expan<strong>de</strong> para a<br />
própria vida pessoal, os escritórios <strong>de</strong> trabalho,<br />
a sala e o quarto dos mais doentes<br />
começam a ficar entulhadas <strong>de</strong> diplomas,<br />
troféus, porta-retratos e outras coisas totalmente<br />
<strong>de</strong>snecessárias, cuja graça e importância<br />
só eles conhecem.<br />
Eu tenho uma teoria já estabelecida para<br />
me livrar <strong>de</strong> críticas mais contun<strong>de</strong>ntes.<br />
Eu acho, com o apoio do Chico Gouveia e<br />
<strong>de</strong> outros <strong>de</strong>coradores importantes, que a<br />
<strong>de</strong>coração <strong>de</strong>spojada, chamada <strong>de</strong> clean, é<br />
o atestado <strong>de</strong> falta <strong>de</strong> história. Casa clean<br />
é casa <strong>de</strong> operador <strong>de</strong> mercado <strong>de</strong> capitais,<br />
gente que só coleciona dinheiro na conta<br />
bancária. Quem tem passado, quem quer<br />
ter futuro, quem tem emoção pelo que fez,<br />
guarda coisas. Não posso garantir que é<br />
verda<strong>de</strong>, mas esta constatação me consola.<br />
Faz parte <strong>de</strong> uma coleção <strong>de</strong> frases que<br />
estou fazendo, embora nesse quesito o colecionador<br />
mais famoso é o Roberto Duailibi.<br />
Como se vê, nesta minha doença tenho<br />
parceiros ilustres.<br />
Lula Vieira é publicitário, diretor da<br />
Mesa Consultoria <strong>de</strong> Comunicação,<br />
radialista, escritor, editor e professor<br />
lulavieira@grupomesa.com.br<br />
26 <strong>31</strong> <strong>de</strong> <strong>outubro</strong> <strong>de</strong> <strong>2016</strong> - jornal propmark