Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
qual poderia discutir de igual pra igual, de filosofia a física quântica. Nasceu<br />
em Bucareste, morou cinco anos em Moscou, preso em campo de concentração<br />
na Polônia, conseguindo fugir pra Viena, Hamburgo, Antuérpia, de onde<br />
escapou pro Chile, via Canal do Panamá e, por fim, Rio de Janeiro. Precisa<br />
nem dizer que, nessa odisseia, lá se foram os anéis e outros bens de família.<br />
Com isso, acrescentou russo, espanhol e português (sem sotaque) ao seu<br />
repertório de línguas, que incluía romeno, latim, italiano, francês, alemão e<br />
inglês. Sua enciclopédia de referência era a alemã, sem dispensar a britânica.<br />
Um dia o encontrei na praia com dois jornais pra ler: Le Monde e Deustche<br />
Zeitung. Este assim se define: Nachrichten aus Politik, Kultur, Wirtschaft und<br />
Sport. Entendeu, leitor? E escrevia em cirílico, o alfabeto russo, com a facilidade<br />
que digito estas mal traçadas. Por certo, conhecia também hebraico, contudo,<br />
nesse quesito, aquele povo é muito fechado e, como disse o inglês A. J.<br />
P. Taylor, na questão judaica, ser contra ou a favor dá encrenca.<br />
Frequentávamos o mesmo bar e uma noite, todas as mesas cheias, ele<br />
me acenou convidando a compartilhar a que dividia com um diplomata e<br />
Jayme Maurício, crítico de arte que apresentou o concretismo a Manuel Bandeira.<br />
O assunto era ópera, em pleno Carnaval. Como já conhecia algumas,<br />
fiquei à vontade e amigo dele, um prazer renovado a cada opinião sua sobre<br />
letras e artes, coisas e loisas. Um dia senti que seu astral não parecia bom e<br />
perguntei se estava nervoso. ‘Nervoso, não, estou belicoso’ – foi a resposta.<br />
Vinha da casa de um amigo onde amigos se reuniam aos sábados, como<br />
fazia Plínio Doyle. Reclamava daqueles escritores que só escreviam livros<br />
‘pra eles mesmos lerem’, um deles, Marcos Konder Reis. De carona, o cineasta<br />
Paulo Cezar Saraceni, com quem falei em Cataguais sobre a falta que<br />
Manfredo faz, morto no começo dos anos 90, enquanto amarrava o sapato.<br />
O chauffeur por certo ficou a esperar na rua, a fim de conduzi-lo ao City<br />
Bank, onde trabalhava como economista, até chegar a empregada, que o encontrou<br />
no chão, chamou a ambulância etc. e tal. E assim ‘uma biblioteca se<br />
incendeia’, pra lembrar a bela metáfora de um escritor africano dirigida a Lygia<br />
Fagundes Telles, em caso de morte de todo idoso naquele continente cuja<br />
cultura é basicamente oral. Manfredo também nada deixou escrito.<br />
Vivia bem, degustando o seu caviar, roupas compradas nas férias anuais<br />
na Europa, voltando por Nova Iorque. O apartamento, porém, um quarto e sala<br />
que nem o meu, paredes forradas de livros e discos de música erudita. Num<br />
gavetão, dezenas de relógios de pulso, puro ouro, talvez pra compensar o ouro<br />
perdido em negociações com os nazistas. Amigo pra não se esquecer e, quase<br />
trinta anos post mortem, lembro-me dele toda manhã. Ao calçar os sapatos.