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JULHO_AGOSTO-2019 - edição Nº 255

Lusitano de Zurique - edição Nº 255

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www.cldz.eu | LUSITANO DE ZURIQUE | <strong>JULHO</strong>/<strong>AGOSTO</strong> <strong>2019</strong> | 37<br />

LITERATURA<br />

Excerto de Obras de Alice Vieira<br />

Os olhos de Ana Marta<br />

Rosa, minha irmã Rosa<br />

Trocaram-me de mãe no hospital.<br />

Como nos filmes, sabes.<br />

Mandaram embora, de mãos a<br />

abanar, a que entrara na certeza<br />

de sair com um recém-nascido<br />

nos braços, e entregaram-me à<br />

que chegara naquela tarde de<br />

chuva à procura de remédio contra<br />

as dores de cabeça e contra o<br />

medo de enlouquecer.<br />

Juro-te: durante muitos anos foi<br />

isto que eu pensei.<br />

Não tinha outra explicação. Não<br />

podia ter.<br />

Só assim se entendia que ela<br />

nunca dissesse o meu nome,<br />

que repetisse tantas vezes que<br />

estava velha de mais para ser<br />

mãe fosse de quem fosse, e que<br />

os meus passos, por mais leves,<br />

lhe provocassem «crises», como<br />

dizia o meu pai.<br />

Durante muito tempo também<br />

pensei que «crises» era o termo<br />

científico para designar as dores<br />

de cabeça ou a loucura.<br />

- Um dia destes endoideço “ repetia<br />

ela.<br />

- São as tuas crises “ murmurava<br />

o pai.<br />

Só assim se entendia que eu<br />

passasse tantas horas debruçada<br />

sobre a mesa de mármore<br />

da cozinha, ouvindo as cantigas<br />

e as histórias de Leonor, e o bichanar<br />

das espanholas na Sala<br />

de Visitas, sem que ela se lembrasse<br />

de vir ter comigo, olhar<br />

uma vez que fosse para os meus<br />

cadernos, ralhar-me por ter letra<br />

feia ou elogiar-me, se a achasse<br />

bonita.<br />

Quando a minha irmã<br />

nasceu, o meu desapontamento<br />

foi tão evidente<br />

que a minha mãe,<br />

abafada entre lençóis e<br />

cobertores da cama do<br />

hospital, me disse:<br />

- Ela vai crescer num instante!<br />

Assim como se me pedisse<br />

desculpa nem ela<br />

saberia ao certo de quê.<br />

Num instante.<br />

Num instante?<br />

Num instante descia eu a<br />

rua para ir a casa da Rita<br />

trocar cromos («não te<br />

compro mais enquanto<br />

não colares na caderneta<br />

todos os que tens!», dizia<br />

a mãe tantas vezes), ou<br />

para lhe emprestar um<br />

livro, ou ela a mim.<br />

Num instante bebia eu o<br />

leite nos dias em que me<br />

atrasava, para apanhar a<br />

carrinha da escola, a voz<br />

de Margarida nos meus<br />

ouvidos: «olhe que por<br />

sua causa vamos chegar<br />

tarde!»<br />

Num instante ficava em<br />

água o gelo, em tempo<br />

de calor “ e o que eu e a<br />

Rita tínhamos rido no dia<br />

em que a Chica estava<br />

cheio de medo que os<br />

cubos de gelo entupissem<br />

a pia...<br />

Não, a minha irmã não ia<br />

crescer num instante.<br />

E eu não entendia por<br />

que razão a minha mãe<br />

tinha dito aquilo, se ela<br />

sabia, tão bem como eu,<br />

que não era verdade.<br />

Trisavó de pistola à cinta<br />

e outras histórias<br />

A avó do meu pai tem noventa<br />

anos e chama-se<br />

Benedita.<br />

A mãe do meu pai tem<br />

sessenta e quatro anos e<br />

chama-se Benedita.<br />

A irmã mais velha do meu<br />

pai há mais de dez anos<br />

que tem vinte e nove, e<br />

chama-se Benedita.<br />

Eu vou nos quinze e também<br />

me chamo Benedita.<br />

Tudo isto " conforme o<br />

meu pai não se cansa de<br />

repetir " por causa de uma<br />

antepassada chamada<br />

Benedita, que um dia meteu<br />

duas pistolas à cintura<br />

e veio por aí a baixo à cata<br />

de franceses.<br />

A história passou-se há<br />

uma data de anos, no tempo<br />

de Napoleão, quando<br />

Portugal aguentou com<br />

três invasões francesas e<br />

andava o povo todo a fugir<br />

dos soldados estrangeiros<br />

que roubavam, matavam,<br />

saqueavam e destruíam<br />

tudo por onde passavam.<br />

A minha professora de<br />

História gaba sempre muito<br />

os meus conhecimentos<br />

deste «período conturbado<br />

da nossa existência».<br />

Se ela vivesse em minha<br />

casa, ao lado do meu pai,<br />

iria rapidamente perceber<br />

que só um surdo não ficaria<br />

a conhecer toda esta<br />

história que o meu pai repete<br />

dia sim, dia não. Mas<br />

eu faço um ar superior e<br />

prefiro deixá-la pensar<br />

que é tudo interesse meu.<br />

Adiante.<br />

Ao que parece, a minha<br />

antepassada não era para<br />

graças e, antes que os<br />

franceses chegassem à<br />

sua porta, resolveu ser<br />

ela a ir ao encontro deles<br />

e meter-lhes uns bons<br />

chumbos na barriga.<br />

E é por causa deste feito<br />

heróico que, na família do<br />

lado do meu pai, todas as<br />

filhas mais velhas carregam<br />

com o seu nome.

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