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www.cldz.eu | LUSITANO DE ZURIQUE | NOVEMBRO 2019 | 27<br />
OPINIÃO<br />
Ideologia<br />
de<br />
género<br />
e anjos<br />
CARLOS MATOS GOMES<br />
Sou evolucionista. Para mim a espécie<br />
humana resulta da evolução dos primatas<br />
e estes de mamíferos e assim até lá<br />
atrás a uma amiba, ou menos ainda, a<br />
uma célula, a um núcleo que se divide e<br />
diferencia sexualmente.<br />
A minha luta contra os criacionistas começou<br />
na catequese, ao ouvir a história<br />
de um criador que fez o Universo em seis<br />
dias, esculpiu um homem a partir de um<br />
bocado de barro, soprou-lhe, saiu macho,<br />
tirou-lhe umas costelas e com elas<br />
engendrou uma fêmea. Aos seis anos<br />
não acreditei num criador oleiro nem cirurgião.<br />
Os criacionistas acreditam e a<br />
sua última versão do Génesis é a ideologia<br />
de género.<br />
A diferença entre os criacionistas bíblicos<br />
e os ideólogos de género reside apenas<br />
no pormenor de, para estes últimos,<br />
o criador ter argamassado uma criatura<br />
que escolhe o que quer ser sexualmente.<br />
Para os criacionistas da ideologia de<br />
género Adão pode ser Eva, basta gostar<br />
mais de serpentes do que de maçãs!<br />
Darwin desconfiou desta história da<br />
ideologia de género. Elaborou uma teoria<br />
que desmontava a fantasia bíblica, a que<br />
deu o título de “A Origem das Espécies”.<br />
Ao longo dos tempos tenho sido confrontado<br />
com criacionistas que me batem à<br />
porta a informar-me que não sou fruto da<br />
evolução das espécies, mas um produto<br />
saído da caixa pronto a funcionar. Tipo<br />
brinquedo made in China. Basta ter fé e<br />
serei o que o ambiente fizer de mim. Esta<br />
velha querela entre o inato e o adquirido<br />
foi desmontada com o mito do bom selvagem.<br />
O menino criado como lobo não<br />
se transformou em lobo, adaptou as estratégias<br />
dos lobos para sobreviver.<br />
Não escolhemos ser, nem somos o que<br />
queremos. Transportamos uma memória<br />
em cada célula, capacidades, limitações<br />
e definições. Não podemos ser homem<br />
ou mulher por escolha. Seria muito interessante<br />
que cada ser humano pudesse<br />
ser outra coisa, mas na natureza não é<br />
assim que as coisas se passam. A natureza<br />
impõe ónus. Um deles é o género. E<br />
não é uma questão de hermafroditismo,<br />
nem de representação de papéis sociais.<br />
O género não é uma representação social,<br />
nem de identidade, é um dado a partir<br />
do qual se definem papéis sociais. As<br />
diferenças de género resultaram de milhões<br />
de anos de adaptação para a nossa<br />
espécie sobreviver. Nem o pavão macho<br />
nem o pavão fêmea escolheram as<br />
cores das penas. Outra coisa é a divisão<br />
sexual do trabalho em cada sociedade e<br />
em cada cultura. A ideologia de género<br />
é reaccionária em termos biológicos, sociais<br />
e políticos.<br />
A versão hight tech do criacionismo sob<br />
o rótulo de ideologia de género é uma<br />
velharia ideológica renomeada: a ideologia<br />
do determinismo imposto pelo meio e<br />
pelas circunstâncias.<br />
A ideologia de género assenta no princípio<br />
religioso de que os seres humanos<br />
não estão sujeitos às leis da natureza,<br />
são um fruto exótico entre as espécies,<br />
reproduções de deuses com imperfeições<br />
e prazo de validade, o único ser<br />
sexual e socialmente auto-determinado!<br />
O feminino e o masculino são produtos<br />
histórico-culturais e não biológicos O<br />
criador substituiu nos humanos a condição<br />
de mamíferos, o sexo biológico, e<br />
inculcou-lhes uma alma pós-moderna,<br />
multi-funcional!<br />
Os neo-criacionistas da ideologia de género<br />
nasceram nos ninhos electrónicos<br />
das classes médias das sociedades urbanas<br />
da civilização tecnológica ocidental,<br />
são pastores de “tablete” e IPad em<br />
punho e Google na ponta da língua que<br />
ressuscitam como novidades o cagar de<br />
cócoras, passe o calão, ou a posição do<br />
missionário para as relações sexuais.<br />
São irmãos gémeos dos neo-liberais,<br />
para quem o indivíduo pode escolher ser<br />
rico ou pobre, basta ter vontade e ser<br />
empreendedor.<br />
Na realidade, esses seres assexuados,<br />
sem género, ou com o género que determinam<br />
ter, são personagens ficcionais<br />
dos livros fundadores da ideologia<br />
da opressão e do conflito das civilizações<br />
agrícolas, que a Bíblia e o Corão<br />
propagam há milhares de anos. Os anjos,<br />
arcanjos, serafins são seres fruto da<br />
ideologia de género há séculos. Assim<br />
como os gimm (djins), os génios do Corão.<br />
A ideologia de género é, em resumo,<br />
uma variante urbanizada do fanatismo<br />
religioso. Uma variante do totalitarismo,<br />
da estratificação social com milénios de<br />
existência!<br />
A ideologia de género é uma versão pós-<br />
-moderna da angelologia que tem servido<br />
para justificar a obediência a um<br />
criador, a um senhor. É um produto do<br />
neoconservadorismo que surgiu como<br />
ideologia dominante neste início de século.<br />
Como já acontecera no século passado,<br />
com os resultados conhecidos do<br />
fascismo e do nazismo.<br />
Além da proibição da carne, aguardo<br />
a proibição de comer maçãs para podermos<br />
reentrar no paraíso, agora sem<br />
parras a cobrir-nos as partes pudendas,<br />
como se dizia, porque afinal debaixo delas<br />
está o que quisermos.