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Etcetera – primavera 2020

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SETEMBRO 2020 • EDIÇÃO 1

Et cetera

Gente

com Bossa

Cinco personagens da cultura brasileira

contam sua trajetória cheia de reviravoltas até

alcançarem o sucesso

• Nelson Motta, o jornalista cuja vida se

mistura com a história da música brasileira

• Eliane Dias, a empresária que

quebrou o racismo

• Deborah Colker, a coreógrafa que

sonha em achar a cura do neto

• Rodrigo Oliveira, o chef estrelado

da periferia de São Paulo

• Sandra Benites, a antropóloga indígena que

vai expor a arte de seu povo na cidade

A Era do

Edutainment

Conheça o conceito que mistura

educação com entretenimento e que

promete revolucionar a forma como

adquirimos conhecimento

“Nunca lutei nem por

poder nem por dinheiro.

Sempre lutei por

independência”

Nelson Motta

Jornalista e produtor cultural

Distribuição gratuita


Expediente


Diretora Editorial: Tatiana Sendin | Edição: Daniela Macedo e Tatiana Sendin | Textos: Angelica Mari, Christiana Albuquerque,

Daniel Motta, Daniela Macedo, Mariana Amaro, Sérgio Martins e Tatiana Sendin | Diretora de Arte: Alessandra Lotufo

Diagramação: Alessandra Lotufo e Gabriel Junqueira (assistente) | Produção: Patricia Castilho | Revisão: Ronaldo Barbosa

Fotografia: Dede Fedrizzi | Gráfica: Elyon


Sumário

O que pensamos sobre a edição?

06 08

As adversidades da vida criam as oportunidades para a

inovação, a reinvenção e a adaptação. No meio da pandemia,

nasceu a Et Cetera, cuja proposta mistura a

educação com o entretenimento. Em seu número 1, ela

traz histórias de gente que passou por muitos desafios e

mudanças até chegar aonde merece estar

O manifesto do edutainment

12 24

Conheça o conceito que mistura educação com entretenimento,

e que promete mudar a forma como

adquirimos e expandimos o conhecimento, principalmente

após a pandemia. Neste manifesto, apresentamos

a filosofia, o método e a tecnologia que

permeiam o trabalho da Bossa.etc

Foto Lucas Tomas Neves

Foto Rodrigo Avelar

Eliane Dias

32 38

Ela nasceu e cresceu na periferia de São Paulo,

mas hackeou o sistema dominado pelo racismo

estrutural, como costuma dizer, para cursar faculdade

de direito. Deu certo. A ativista se tornou

empresária e a estrategista por trás do grupo de

rap Racionais MC’s

Sandra Benites

50 56

A guarani que deixou os filhos na aldeia para

estudar se tornou a primeira curadora indígena

de um museu de arte do Brasil. No Museu de

Arte de São Paulo, a antropóloga quer usar a

arte para expressar o protagonismo de seu povo

58


Roteiro

Quer ocupar seu escasso tempo livre com informação

e entretenimento de qualidade? A Et Cetera

elabora uma relação imperdível com sugestões de

séries, filmes, livros, peças de teatro e muito mais.

É só escolher!

Gente com Bossa

Cinco personagens marcantes da cultura brasileira:

um jornalista e escritor renomado, uma empresária

que quebrou o racismo, uma coreógrafa premiada

internacionalmente, um chef estrelado da periferia

de São Paulo e uma antropóloga indígena que vai

expressar a arte de seu povo em exposições. Saiba

o que essas histórias têm em comum

26

Nelson Motta

A biografia do escritor, jornalista e produtor cultural

confunde-se com a história da música brasileira. O

neto de um ex-ministro do Supremo Tribunal Federal

participou de movimentos importantes como a

bossa nova e a tropicália

Foto Leo Aversa

Deborah Colker

A inquieta coreógrafa brasileira acumula na bagagem

espetáculos de dança premiados, Jogos Olímpicos,

Cirque du Soleil e Carnaval do Rio de Janeiro.

Nem a pandemia conseguiu parar esse fenômeno

da dança contemporânea

Uma palavra

Este trecho do livro Desumanização, do escritor português

Valter Hugo Mãe, define o que é a beleza. “A beleza

é sempre alguém, no sentido em que ela se concretiza

apenas pela expectativa da reunião com o outro”

Foto Cafi

44

57

Rodrigo Oliveira

Filho de migrantes pernambucanos, o chef criador

dos dadinhos de tapioca reescreveu a história

da culinária sertaneja. Transformou o botequim

do pai em um dos mais prestigiados – e inclusivos

– restaurantes da capital paulista: o Mocotó

Um sabor

Tanta gente começou a fazer pão em casa durante

a quarentena que a moda acabou dando origem ao

termo “pãodemia”. E aí, já tentou fazer o seu? A

Et Cetera tem uma receita de pão caseiro bem fácil

(e deliciosa) pra te ensinar

Foto Dede Fredrizzi

Uma imagem

A paulista Tarsila do Amaral é a pintora da obra

de artista brasileiro mais cara já vendida. Quer

entender por que A Lua, exposta no Museu de

Arte Moderna (MoMA) de Nova York, é tão especial?

Et Cetera explica


O que

pensamos

sobre a edição?

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 6

A cantora Paula Lima, outra personagem marcante da cultura

brasileira, abriu a temporada edutainment da Bossa com um show

exclusivo. Confira os melhores momentos em bossa.etc


D

iz o velho ditado popular: “Deus

escreve certo por linhas tortas”.

Se substituirmos a palavra Deus

por vida – ou caminho, trajetória –, teremos

um belo resumo do que ocorre

conosco. Inúmeras vezes fazemos planos,

traçamos rotas e visualizamos um

jeito de chegar aonde queremos. Mas

situações inesperadas acontecem – e

as linhas se embaralham. Desviamos

do rumo, andamos por estradas tortuosas

e pegamos a curva mais longa do

percurso. No meio da jornada, nos sentimos

perdidos. O objetivo final parece

distante; o sonho, impossível.

de quase todos eles à sua versão mais

jovem: não desista, siga em frente; estude,

observe e continue.

Nessas linhas tortas, aprendemos a

nos adaptar. Um espetáculo, um restaurante

ou uma carreira imaginada de

uma maneira pode sofrer uma grande

transformação na vida real. Que o diga

o chef Rodrigo Oliveira, que teve de fechar

um restaurante quatro meses depois

da inauguração. Como resumiu a

coreógrafa Deborah Colker, “às vezes,

uma ideia que parece incrível na cabeça

se revela uma porcaria na prática”.

Foto: Rogerio Mesquita

Nessas adversidades, aprendemos a

ter resiliência, a respirar fundo e a intensificar

nossas forças para alcançar

um ponto mais próximo da última

milha. No esforço, empurramos nosso

limite um pouco para a frente e aumentamos

nossa resistência. Ganhamos

conhecimento e elasticidade para o trecho

seguinte, pelo menos até surgir um

novo imprevisto – quando teremos de

recomeçar o processo outra vez. Nesse

movimento constante de avançar,

estagnar, retroceder, desviar e repensar,

construímos nosso jeito de ser,

de responder ao mundo à nossa volta.

Quando olhamos para trás, o conjunto

faz sentido. E, por mais dura que tenha

sido a trajetória, percebemos que ela

era a única possível para nos levar até

ali – até o nosso sonho.

É isso o que mostra a história dos cinco

personagens retratados nesta primeira

edição da Et Cetera. Todos eles, na juventude,

imaginavam que seriam algo.

Contudo, as curvas da vida trataram de

lapidar esse propósito. E só após inúmeras

adversidades eles chegaram ao

ponto em que podem – e merecem –

estar. “Fico com uma sensação de que

a gente tem de passar por algumas situações

na vida antes de alcançar uma

meta”, afirmou Eliane Dias, que trabalhou

como doméstica na adolescência e

virou advogada e empresária do grupo

de rap mais famoso do Brasil. A dificuldade

do caminho fica clara no recado

Charles Darwin ensinou que as espécies

que melhor se adaptavam ao ambiente

à sua volta tinham mais chance

de sobreviver. O mundo moderno tem

chamado essa capacidade de “adaptabilidade”,

a arte de acompanhar, com

sanidade, as mudanças constantes,

complexas e incertas – intensificadas

pela tecnologia – da vida atual. Não

há exemplo melhor para isso do que o

que vivemos hoje. No meio da pandemia,

que pela primeira vez na história

manteve dentro de casa boa parte

das pessoas do planeta, aprendemos

a nos reinventar. No meio da dor, do

medo, da morte, nasceram projetos,

ideias e conexões. Surgiu a Et Cetera

– desenhada, produzida e finalizada

em três semanas.

A Et Cetera segue a proposta de sua

empresa-mãe, Bossa.etc, cujo manifesto

defende o aprendizado ao longo

da vida, por experiências marcantes e

individuais, unindo o conhecimento de

diversas fontes e disciplinas, do artigo

científico à letra de música. Do acadêmico

ao gingado.

Que muitas conexões possam ser feitas

por estas páginas. Que elas sejam um

ponto de acolhimento num caminho às

vezes planejado, outras vezes rabiscado.

Boa leitura e bom divertimento!

Tatiana Sendin

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 7


R O T E I R O

Séries, filmes etc.

I May Destroy You

Onde ver: HBO

Duração: 12 episódios

Nasce uma estrela

Se ainda não conhece, grave este

nome: Michaela Coel, a escritora, poeta,

cantora e atriz de 32 anos, britânica

descendente de ganeses. Ela é criadora,

roteirista, codiretora e protagonista

da aclamada I May Destroy You, série

produzida em uma parceria entre a

BBC e a HBO que aborda um tema áspero

e atemporal: o estupro. Na trama,

após uma noitada em um bar de Londres,

a escritora Arabella acorda com

as memórias confusas sobre os eventos

passados e começa a ter flashbacks até

descobrir que foi drogada e estuprada.

Ao longo dos 12 episódios, a série discute

ainda o feminismo e a influência das

redes sociais. A história é baseada na

experiência pessoal de Michaela, que

revelou ter sofrido abuso semelhante

enquanto escrevia e estrelava a hilária

série Chewing Gum, em 2015, que lhe

rendeu um Bafta de melhor atriz de

comédia. A discussão de temas polêmicos

é necessária, e I May Destroy You

levanta o debate com a força da escrita

de Coel, sem abrir mão do humor sempre

presente nas criações da britânica.

Narciso em Férias

Onde ver: Glob play

Duração: três temporadas

54 dias na prisão

O documentário Narciso em Férias,

produzido por Paula Lavigne, esposa

de Caetano Veloso, mostra um longo

depoimento do artista baiano sobre

sua prisão pelos militares, no fim de

1968, pouco depois da promulgação do

Ato Institucional nº 5, o AI-5. Escrito

e dirigido por Renato Terra e Ricardo

Calil, o longa-metragem estreou recentemente

na plataforma de strea-

ming Globoplay e fez parte da mostra

do Festival de Cinema de Veneza. O título

vem de um dos capítulos do livro

Verdade Tropical, de Caetano, e se refere

ao fato de o artista ter passado quase

dois meses sem se olhar no espelho.

Em um testemunho íntimo e emocionante,

Caetano Veloso, de 78 anos, fala

sobre seus 54 dias de prisão e canta

músicas que marcaram o momento doloroso

de sua vida. Em uma das cenas,

o artista relê a transcrição do interrogatório

feito pela polícia quando de sua

prisão, recentemente encontrada no

arquivo da instituição.

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 8


R O T E I R O

Babylon Berlin

Onde ver: Globoplay

Duração: três temporadas

Suspense em Berlim

Uma Berlim cosmopolita, moderna e

vibrante, mas também cheia de corrupção,

criminalidade, pornografia, com o

choque ruidoso de diversas correntes

político-sociais, às vésperas da ascensão

nazista. Esse é o pano de fundo da

série noir Babylon Berlin, adaptada

por Tom Tykwer, que dirigiu, entre

outras coisas, o filme Corra Lola, Corra.

Um conflituoso inspetor de polícia, Gereon

Rath (Volker Bruch), chega a Berlim

com a incumbência de desvendar

uma rede de prostituição e chantagens

envolvendo políticos importantes. Em

sua jornada, o policial conta com a ajuda

de Charlotte Ritter (Liv Lisa Fries),

uma jovem misteriosa. Babylon Berlin,

cuja terceira temporada estreou em

2020, é baseada nos best-sellers de

mesmo título escritos por Volker Kuschner.

É também uma das mais caras

produções audiovisuais recentes da

Alemanha. No Brasil, as três temporadas

estão disponíveis no serviço de

streaming Globoplay.

Mulan

Duração: 1 hora e 55 minuto

Onde ver: Disney+

Valor: 29,90 dólares

O resgate de Mulan

Diferentemente da Mulan de 1998, a

versão de 2020 é vivida por uma atriz

de carne e osso, a sino-americana Yifei

Liu. Ela não canta, como na história animada,

nem tem um dragão de estimação,

mas o roteiro é conhecido: fingindo

ser homem, uma garota vai para a

guerra no lugar do pai, idoso, para lutar

pelo imperador da China. A diretora do

live-action Niki Caro e sua equipe analisaram

diversas referências de Mulan

(uma delas, o poema A Balada de Mulan,

de mais de 1.500 anos). No fundo, o

novo filme da Disney aborda a questão

de gênero com inteligência. Quando os

outros guerreiros descobrem a verdadeira

identidade de Mulan, a personagem

diz: “Quando lebres correm lado

a lado, quem pode distinguir macho e

fêmea?”, em uma referência a Balada

de Mulan. O filme está disponível para

assinantes da plataforma de streaming

da Disney, o Disney+. Nos países onde

o serviço ainda não chegou, como o

Brasil, o título deve estrear no cinema,

mas ainda sem data definida.

A era dos dados

Duração: 6 episódios

Onde ver: Netflix

Conexões divertidas

O título original – Connected (Conectado)

– revela mais sobre esta série

documental de seis episódios disponível

na Netflix do que sugere a versão

em português A Era dos Dados.

O jornalista Latif Nasser, Ph.D. em

história da ciência pela Universidade

Harvard, viaja pelo mundo para

mostrar que estamos todos conecta-

dos, e dos mais surpreendentes pontos

do planeta saem conexões inusitadas

e intrigantes. Nasser explica o que os

dispositivos de GPS que monitoram a

migração dos pássaros têm a ver com

o aplicativo de relacionamentos Tinder.

Ou como a poeira do Deserto do Saara

consegue impedir que alguns furacões

cheguem com força total à costa leste

dos Estados Unidos. Enquanto educa,

Nasser também diverte. Suas tiradas

bem-humoradas – ele chama a Amazônia

de “maior pote de salada do planeta”

– e a linguagem acessível tornam

A Era dos Dados uma série cativante do

primeiro ao último episódio.

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 9


R O T E I R O

Para aprender

Do network aos certificados online

Muitos profissionais usam o LinkedIn como plataforma de networking e vitrine de

suas conquistas profissionais, mas a rede social corporativa tem um potencial educativo

a ser explorado. O LinkedIn Learning não é exatamente uma ferramenta

nova, mas está em constante evolução. A base dessa área de ensino online é a Lynda.com,

empresa adquirida pelo LinkedIn em 2015, um ano antes de a rede social

ser comprada pela Microsoft. O espaço conta hoje com mais de 16 mil cursos virtuais

criados por especialistas em diversas disciplinas. Há aulas para aprimoramento

de competências sobre liderança, comunicação, negócios, inteligência emocional,

marketing e finanças, além de opções mais técnicas em diferentes níveis, do Excel

para iniciantes a vídeos complexos sobre machine learning. Vários cursos oferecem

certificação. A plataforma tem planos de assinatura mensal e anual, e garante

acesso gratuito aos usuários com conta Premium.

Leitura moderna

Quem não quebrou a promessa de colocar

a leitura em dia durante a pandemia

que atire a primeira pedra. As

plataformas de resumos de livros

que podem ser lidos em até 20 minutos

ganharam espaço com vastos acervos

de obras de não ficção, incluindo

best-sellers de negócios e de autoajuda,

como Pai Rico Pai Pobre e A Sutil Arte de

Ligar o F*da-se. Aplicativos como Esens,

getAbstract e 12Min prometem ‘enxugar’

os excessos para oferecer o conceito

dos livros de forma mais objetiva.

O popular Blinkist, com 15 milhões de

usuários, traz no acervo milhares de

versões resumidas de títulos em inglês.

Esses aplicativos disponibilizam

os resumos tanto em formato de texto

quanto no modelo audiobook, que

podem ser baixados para consumo

offline. Há opções de planos gratuitos

a assinaturas anuais, com acesso ilimitado

ao acervo da plataforma. A experiência

pode servir como aperitivo

quando um amigo comenta o livro de

cabeceira antes de comprá-lo. Para os

títulos de ficção, a Et Cetera recomenda

o prazer do método tradicional, com

a leitura integral da obra. Disponíveis

para sistemas Android e iOS.

Para ler

408 páginas

Harvard Business Review Press

166,10 reais

Burocracia

desconstruída

“Como você se sentiria no emprego se

tivesse o direito de desenhar seu próprio

trabalho? Se seu time fosse livre

para estabelecer suas próprias metas

e definir seus próprios métodos?” Com

essas perguntas, Gary Hamel, um dos

maiores gurus de negócios da atualidade,

e Michele Zanini, seu sócio na

consultoria Management Lab, iniciam

Humanocracy, obra na qual questionam

a burocracia exagerada nas

empresas. Segundo Gary, que é professor

da London Business School há

mais de 30 anos e autor de best-sellers

como O Futuro da Administração e O Que

Importa Agora, o comando (ainda) de

cima para baixo, a estrutura pesada e

os processos lentos ficaram ainda mais

evidentes durante a pandemia. “Quando

você está enfrentando uma ameaça

que é nova, dinâmica e complexa,

burocracias pesadas e tímidas são um

risco. Igualmente perigosos são os líderes

que desconsideram os fatos em

uma vã tentativa de preservar a ilusão

de sua onipotência”, disse o autor em

uma recente entrevista à Forbes. Humanocracy

sugere uma gestão inspirada

nas pessoas, com profissionais empoderados

e livres para criar seu próprio

jeito de trabalhar.

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 10


R O T E I R O

108 páginas

Companhia de Bolso

31,41 reais

Coletânea racional

Em 2015, o renomado neurocientista

Sidarta Ribeiro e professor titular da

Universidade Federal do Rio Grande do

Norte (UFRN) lançou Limiar, uma coletânea

com seus melhores textos publicados

em veículos como a revista Mente

e Cérebro e os jornais Folha de S.Paulo e

Estadão. Agora, a Companhia de Bolso,

divisão da Companhia das Letras,

traz uma edição revisada reunindo 56

artigos, com novos textos e introdução

inédita, em versão papel e e-book. Com

pouco mais de 100 páginas, a obra passeia

por temas como sonhos, drogas,

cultura popular, meio ambiente, religião

e política, embasada em décadas

de pesquisa científica, mas com linguagem

acessível que estimula a reflexão.

O pesquisador e também vice-diretor

do Instituto do Cérebro, entidade ligada

à UFRN, não usa meias-palavras ao

defender a ciência e o investimento em

pesquisas. Já disse, por exemplo, que o

Brasil vive “uma crise aguda de burrice”,

mas não desiste de lutar para reverter

a situação.

No palco

Teatro em casa

Foto: divulgação

O projeto Teatro Já, idealizado pela

atriz Ana Beatriz Nogueira e pelo gestor

do Teatro Petra Gold, André Junqueira,

nasceu da preocupação da dupla

com a sobrevivência do segmento

cultural durante a pandemia. A parceria

resultou em uma programação de

eventos online que pretende dar uma

nova cara ao tradicional teatro. E o melhor:

inclusivo, graças aos preços populares

e ao acesso a quem vive fora do

circuito Rio-São Paulo. Dentro do projeto,

a atriz Lilia Cabral estreou a peça

A Lista, em temporada exclusivamente

online, transmitida ao vivo, em que

atua ao lado da filha, a atriz Giulia Bertolli.

A sessão remota da comédia dramática,

com texto de Gustavo Pinheiro

e direção de Guilherme Piva, acontece

às quintas e sextas de setembro, às

17h. Em outubro, no mesmo projeto,

será transmitida a peça Obituário Ideal,

também ao vivo e online, com Ana Beatriz

Nogueira e o ator Paulo Vilhena.

Todos os domingos de outubro, às 17h.

A programação completa e a venda de

ingressos estão disponíveis no site do

teatro fluminense: https://www.teatropetragold.com.br/

Cinema virtual

Para driblar os efeitos da pandemia, o

Inffinito Film Festival, realizado há

24 anos em cidades como Miami, Nova

York, Londres, Roma e Madri, teve que

se reinventar. O circuito é considerado

pioneiro na promoção e difusão do

cinema brasileiro no mercado internacional.

Este ano, o evento migrou para a

web. A programação online reúne longas

de ficção e documentários produzidos

e lançados em 2019/2020, além de

curtas-metragens e mostras de filmes

de realizadores indígenas e negros.

Serão mais de 100 títulos exibidos,

de 26 de setembro a 25 de outubro,

por meio da plataforma de streaming

www.inff.online. Os únicos eventos

presenciais do Circuito Inffinito ocorrerão

em Miami, com uma sessão de

drive-in no dia 26 de setembro, e em

Nova York, com exibições ao ar livre

nos dias 24 e 25 de outubro. No Brasil,

o público poderá assistir a uma seleção

especial de filmes, incluindo produções

do homenageado do festival, o diretor

Daniel Filho.

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 11


O X DA BOSSA

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 12


O manifesto

edutainment

por Daniel Augusto Motta – Senior Tupinambá Maverick da Bossa

Quando a abundância nos inunda,

apenas o nexo nos mantém à tona

H

ouve uma época, na segunda metade do século pas

sado, em que as crianças ainda aprendiam por méto

dos monásticos, os adultos transitavam entre pílulas

normativas de saber e estudos de casos no retrovisor, e os

idosos contentavam-se com palavras cruzadas em jornais

impressos. Tempos interessantes. Existia um acúmulo enor

me de conhecimento produzido pela humanidade, que cora

josamente caminhava para o protagonismo antropocêntrico

e aos poucos se libertava dos dogmas limitantes da moral e

da religião. Mas faltavam conexões – e sobravam barreiras.

Muitos de nós fomos educados assim: copiando enciclopé

dias em folhas de papel almaço, datilografando resumos dos

clássicos da literatura na máquina de escrever. Mas será que

dessa forma aprendemos as coisas mais importantes da vida

em sociedade? Não. A tecnologia, como o papel e a máqui

na de escrever, é neutra em sua essência. Sua conotação, no

fundo, depende da sua aplicação. Foi o que ocorreu depois

com o advento da internet, no fim do século passado, e com

a explosão digital, no primeiro quarto do século XXI. Com

a inovação, a sociedade se transforma, avançando rumo ao

desconhecido, sem espaços para nostalgia.

Entretanto, ainda que o universo, tanto o sideral como o da

mente, se expanda, ele também vivencia ciclos – uns mais

curtos, outros quase eternos. A moda ilustra a condição efê

mera desse fenômeno, basta olhar os jovens de hoje ves

tindo estampas e formas típicas de nossos avós. Já a natu

reza demonstra sua dinâmica espiral em sua força bruta,

silenciosa e lenta. Um exemplo seria a trajetória do Pangeia

(supercontinente hipotético que teria existido no Paleozoi

co, concentrando toda a crosta terrestre) para o Novopan

geia (um possível futuro supercontinente, com a expansão

do Oceano Pacífico), imaginada para daqui a 400 milhões de

anos. É essa capacidade intrínseca à natureza – de evoluir

pelo acaso em busca do equilíbrio sistêmico dinâmico – que

assegura a sobrevivência da humanidade. A estabilidade

pode ser útil em laboratórios, mas seria fatal no ecossistema.

Talvez o divino se encontre no imponderável.

Parte da biosfera, a humanidade também evolui no aleató

rio, apesar de sua capacidade ímpar de sistematizar dados e

processos em larga escala. Nesse mundo volátil, intensificado

pelo avanço da tecnologia, as experiências são mais relevan

tes do que as pilhas de papéis amarelados pelo tempo quando

se trata de somar conhecimento.

A atual revolução digital é a automação das mecânicas cogni

tivas. Tudo que for passível de ser repetido à exaustão, com

precisão, será absorvido por máquinas inteligentes – nem

todas com características antropomórficas. Caberá ao huma

no o papel lúdico, relacionado a manifestações prazerosas,

vivido no nobre espaço da abstração, do improviso, da emo

ção. Nos aproximamos do momento em que nanossensores

(dispositivos eletrônicos minúsculos) poderão ser instalados

em nossa mente, trazendo, quem sabe, uma coleção inimagi

nável de informações. Não sobrará tempo para ditados sobre

ditongos nem para decorebas sobre amebas. Depois da abo

lição da palmatória, esse será o fim do “espartilho do saber”.

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 13


O X DA BOSSA

edu

tain

ment

é...

No dicionário

A palavra edutainment já

ganhou verbete. No Merriam-

Webster ela aparece como:

edutainment | ed·u·tain·ment:

entretenimento (como por

jogos, filmes ou programas)

que é projetado para ser

educacional [em tradução livre]

Fotos: Getty Images

“O saber a gente

aprende com

os mestres

e os livros; a

sabedoria se

aprende é

com a vida”

– Cora Coralina

Foto: Getty Images

Liberdade ao saber

Esse contexto nos leva a refletir sobre aprendizagem. Uma vez que tudo que pode ser

sistematizado pode ser robotizado, nosso desafio mora em atuar sobre a evolução mecânica

(inclusive ética). Isso significa dar conta da conjuntura complexa que se constrói

a partir de camadas organizadas do saber, conectadas por meio de nexos. No centro

dos nexos, está o X: o X da experiência.

O impacto da experiência no fenômeno da aprendizagem não é novo. Há milhares de

anos, sacerdotes das mais diversas crenças – dos Vedas ao Torá, do Tao Te Ching à Bíblia

– criaram rituais e símbolos justamente para assegurar vivências capazes de doutrinar

seguidores de seus manuscritos. A religião tem sido uma das mais lúdicas fantasias da

humanidade, tornando-se importante força de coesão social ao longo de milênios. Mas

há ainda outras maneiras de ganhar conhecimento, das artes às fofocas. Sim, o diz que

me diz foi um dos maiores instrumentos evolutivos da humanidade, além de ser uma

das formas mais orgânicas de entretenimento e educação na vida cotidiana.

Dessa mistura do aprender com lazer nasce o conceito de edutainment, uma expressão

em inglês resultante da combinação das palavras educação e entretenimento.

Estudos científicos contemporâneos comprovam a eficiência dessa abordagem. No artigo

acadêmico Volatility Facilitates Value Updating in the Prefrontal Cortex (A volatilidade

facilita a atualização de valor no córtex pré-frontal, em tradução livre), publicado no

jornal Neuron, os neurocientistas Bart Massi, Christopher H. Donahue e Daeyeol Lee

demonstram como a retenção do conhecimento é estimulada em um contexto incerto.

“O saber a gente aprende com os mestres e os livros; a sabedoria se aprende é com a

vida”, já dizia a poetisa e escritora brasileira Cora Coralina. Um exemplo pessoal: minha

experiência como empresário é mais resultado dos anos de infância no balcão da mercearia

do meu avô do que das minhas formações como doutor e mestre.

Partiu dessa reflexão a criação da Bossa.etc, que vai trazer ao mercado um novo jeito

de ensinar, usando os princípios do edutainment. A bossa – o talento cultivado, a

mestria – se constrói pelo encontro entre o batuque, a pipeta e o pincel; entre o passo

e o abraço; entre o imaginar e o sublimar. Aqui, o X do nexo está em cada esquina,

cada esgrima, cada rima. Nesse sentido, o Manifesto Bossa não se propõe a ser

pretensiosamente inédito na inspiração, mas, sim, ousado no contexto visionário e na

forma concreta de aplicação.

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 14


É justamente essa capacidade intrínseca à

natureza – de evoluir pelo acaso em busca do

equilíbrio sistêmico dinâmico – que assegura

a sobrevivência da humanidade

Prazer,

eu sou o

X!

A seguir, a metodologia de trabalho da Bossa.etc, dividida

em três aspectos: a filosofia da tríade de aprendizagem, o

método de impacto e a tecnologia exclusiva. Isso mesmo.

A Bossa tem filosofia em sua personalidade, método em

sua expressão e tecnologia em sua execução.

A filosofia

A filosofia da Bossa.etc se

constrói na tríade micromomentos

(micromoments),

personalização inteligente

(smart for you) e curadoria

de sinapses (connection is

premium). Cada uma tem um

papel importante na formação

e na retenção do conhecimento

por experiências

– algumas nem sempre vistas

como fontes de estudo.

Foto: Getty Images


O X DA BOSSA

1.

Micromomentos

O conhecimento ganho no dia a dia

A trajetória contínua de aprendizagem, denominada life long

learning, requer um conjunto de experiências distribuídas

em valiosos micromomentos. A aprendizagem é um processo

pessoal inserido no contexto social, no qual competências,

comportamentos, habilidades, conhecimentos e valores são

adquiridos ou transformados por meio de vivências, observações,

estudos e raciocínio crítico.

O psicólogo e biólogo suíço Jean Piaget, um dos maiores pensadores

do século XX, definiu o processo como: o ato contínuo

de desenvolvimento individual, intercalando equilíbrios e

desequilíbrios. A pessoa assimila intelectualmente uma nova

experiência, formando ou modificando um esquema antes

vigente, à medida que compreende o novo conhecimento e se

apropria dele. Então, a pessoa volta a se equilibrar, considerando

o atual esquema como normal.

A aprendizagem ocorre na interação entre sujeito e objeto,

em que o indivíduo possui autonomia do processo – uma

contraposição às ideias de condicionamento comportamental

do behaviorismo inaugurado pelo fisiologista russo Ivan Pavlov.

O protagonismo individual é também uma perspectiva

humanista, na qual as pessoas têm liberdade de ação e pensamento,

mantêm o controle de suas direções e compreendem

o real valor de suas experiências.

Jean Piaget propõe que a linguagem e o ato de conhecer são

estruturas cognitivas desenvolvidas pela interação do indivíduo

com seu contexto. Somos “metamorfoses ambulantes”,

como cantaria o bom Raul Seixas, e não peças de engrenagens

sociais, como defendeu o filósofo americano Noam

Chomsky ao acreditar que a cognição era geneticamente determinada

como estrutura mental inata.

A batalha entre conteúdos e habilidades como foco primordial

da aprendizagem não é algo criado no século XXI, mas

remonta aos conflitos travados no início do século XIX pelos

defensores da Escola Progressista. Seu maior representante

foi o psicólogo americano John Dewey, cujos princípios, descritos

em sua obra-prima Democracy and Education, de 1916,

englobavam a ênfase no aprender fazendo, os currículos integrados

em unidades temáticas, a resolução de problemas, a

colaboração em projetos compartilhados e a individualização

máxima do ensino, entre outros.

O novo milênio traz a sensação do tempo acelerado pela tecnologia

digital, mudando realidades sociais, econômicas, empresariais,

políticas e naturais. Curiosamente, é esse mundo

que tem resgatado os princípios educacionais propostos pela

Escola Progressista, de um século atrás. Assim, a aprendizagem

se distancia do modelo de acúmulo temporal de conhecimento,

associado a objetivos estáticos e sujeito a incrementos

pontuais. Afasta-se também de paradigmas inquestionáveis

apresentados por autoridades institucionais.

Hoje, a aprendizagem ocorre nos momentos importantes que

formam as experiências do aprendiz, em um ambiente continuamente

dinâmico. O conhecimento cada vez mais integra

diferentes áreas do saber, aplicadas ao cotidiano prático do

indivíduo em simbiose, com infinitas possibilidades de tecnologias

digitais. A educação também se volta para o indivíduo,

marcando uma busca por autoconhecimento, capaz de

construir fortalezas diante de um contexto externo exigente

social e emocionalmente. A aprendizagem desenvolve-se assim

no corriqueiro da vida, na arte da dialética, na genuína

curiosidade intelectual.

Atualizando a Escola Progressista

O avanço tecnológico inclui três fatores importantes no aprendizado

• Social Emotional Learning (SEL): a aprendizagem socioemocional tornou-se aspecto central da vida

cotidiana de crianças e adultos diante das pressões do mundo digital e do consequente aumento de

doenças associadas a ansiedade e depressão.

• Adaptability Quotient (AQ): o quociente de adaptabilidade tem sido cada vez mais decisivo diante das

mudanças frequentes que desafiam o indivíduo a lidar com novas habilidades, novas possibilidades,

interações e problemáticas.

• Artificial Intelligence (AI): a inteligência artificial amplia os processos cognitivos além das sinapses

neurais biológicas do humano para uma simbiose ampliada com as máquinas, com base em

algoritmos digitais.

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 16


2.

Personalização inteligente

Com a ajuda das máquinas, é possível

melhorar a experiência de ensino

Além de automatizar processos e atividades repetitivas,

como fizeram as invenções mecânicas das revoluções industriais

dos séculos XVIII e XIX, e muito além da otimização das

atividades sociais, como fez a revolução computacional do

século XX, a atual revolução inteligente (denominada a 4ª Revolução

Industrial pelo Fórum Econômico Mundial) apresenta

profundos potenciais impactos na jornada da humanidade.

À primeira vista, a própria expressão “inteligência artificial”

parece disparatada. Afinal, o que ganhamos em utilidade e o

que perdemos em humanidade, quando a referência deixa de

ser tecnologia e se torna inteligência artificial?

A inteligência humana difere muito da artificial. O intrínseco,

o idiossincrático e o inusitado são exclusivos da natureza,

evoluída no âmbito biológico durante milhões de anos. Capacidades

como abstração, autoconsciência e decisão são ainda

– e provavelmente continuarão sendo – humanas. Nem humanoides

(robôs com feições de homens e mulheres), e nem

algoritmos calculados no poder da computação quântica serão

capazes de desempenhar essas funções no mesmo nível

de sofisticação do ser de carne e osso.

Por outro lado, a singularidade (momento no qual o armazenamento

em formato digital superará os códigos e informações

da pré-história à era analógica) poderá resultar em uma

espiral de crescimento tecnológico desenfreada em prol da

superinteligência artificial, com mudanças irreversíveis e imprevisíveis

na civilização.

Diante do desconhecido, humanos tendem a supervalorizar

riscos e menosprezar benefícios – um típico processamento

mental em prol da sobrevivência. Mas é preciso lembrar

que a inteligência artificial também pode trazer benefícios. A

grande questão está na capacidade da sociedade de articular

os princípios éticos adequados no uso da tecnologia – aliás,

esse tem sido o histórico campo de batalha diante de diversos

avanços dos últimos séculos.

Um ensino para

chamar de seu

A recente onda de personalização

vista do varejo à medicina também

se aplica à educação. A tecnologia

tem sido uma aliada para

reforçar três princípios do aprendizado

individualizado. São eles:

• Análise densa de dados: requer algoritmos capazes

de metrificar o processo de aprendizagem

e também de colocar as análises sob perspectiva

dos contextos vivenciados. Esse uso inteligente

de dados pode sustentar o desenvolvimento de

experiências de ensino aderentes às reais necessidades

e motivações do indivíduo.

• Mapa de comportamentos e sentimentos:

é uma das mais avançadas fronteiras dos algoritmos

de inteligência artificial, trazendo até

mesmo empatia para as experiências digitais. O

mapa comportamental permite o design de vivências

de aprendizagem mais alinhadas com as

reais motivações e ações de cada pessoa.

A questão crucial está no uso correto da tecnologia pela humanidade.

E uma das arenas mais promissoras para o avanço

da inteligência artificial está na ampliação da própria sabedoria

humana. Em tempos de panaceia ao redor do transumanismo

como novo patamar possível para a humanidade,

vale destacar algo singelo: como o uso intenso de inteligência

artificial acelera e amplia o processo de aprendizagem

de adultos e crianças.

A massificação da inteligência artificial tem sustentado trajetórias

de aprendizagem personalizada, integrando diferentes

tecnologias e metodologias. É esse fenômeno que chamamos

de smart for you.

• Construção de jornadas em ecossistemas:

a tecnologia tem possibilitado a criação de alternativas

às tradicionais ofertas de desenvolvimento

por nível hierárquico e função. As jornadas

temáticas são construídas em arquitetura

aberta, conectando ecossistemas de soluções, invariavelmente

com algum formato inspirado em

experiências realistas relevantes ao aprendiz.

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 17


O X DA BOSSA

3.

Curadoria

de sinapses

Num mundo

transbordando

de informações,

a inteligência

artificial

aparece para

nos resgatar

A história da humanidade nos ensina

a olhar o passado para compreender

o futuro. Ao estudar o século XXI, ganhamos

uma perspectiva temporal:

nada é tão inédito assim. Existe certa

lógica na sequência de fatos, sorrateiramente

desarranjada por eventos imprevisíveis

(atualmente, chamados de

“cisnes negros”). Assim, num mundo

soterrado por informações, o valor não

está apenas no acesso, mas na curadoria

do conhecimento.

No passado está a base dessa visão

futurista sobre o saber. Há 100 anos,

o Tratado de Versalhes foi o grande

marco de 1919, encerrando a Primeira

Guerra Mundial e inaugurando os esperançosos

anos 1920, em torno da recém-criada

Liga das Nações. Naquela

época, o acesso a informações limitava-se

a jornais impressos e ao uso incipiente

do telégrafo. A popularização

do rádio e da televisão ocorreria uma

década depois, nos anos 1930 e 1950,

respectivamente.

Restrito, o acesso à informação era

valioso. A computação era ainda algo

teórico, com os cartões perfurados de

Herman Hollerith sendo sua expressão

mais contemporânea e inovadora.

O primeiro computador digital, conhecido

como Electronic Numerical Integrator

and Computer (Eniac), surgiria

em 1946, com capacidade de processamento

equivalente a 5 mil operações

por segundo, com o uso de 17.500

válvulas. Apenas 30 anos depois, em

1975, o MITS Altair 8800 se tornaria

o pioneiro computador pessoal, com

somente 256 bytes de memória. A revolução

computacional se intensificou

desde então.

Atualmente, o maior supercomputador

do mundo é o Summit: uma máquina

de 200 petaflops com uma capacidade

de processamento de 20 quatrilhões

de cálculos por segundo. Um ser humano

precisaria de 63 bilhões de anos

para conseguir calcular o que o Summit

é capaz de fazer em um segundo.

A quantidade de informações no mundo

apenas aumenta. Atualmente, já

são mais de 60 bilhões de páginas de

internet em todo o planeta. Aproximadamente

200 milhões de e-mails foram

enviados a cada minuto em 2019. Também

a cada 60 segundos, 670 mil horas

de vídeos foram assistidos na Netflix,

4,5 milhões de vídeos foram visualizados

no YouTube, 350 mil páginas do

Instagram foram acessadas e 1 milhão

de dólares foram gastos em compras

online. Estamos caminhando para a

singularidade. O volume de informações

digitais armazenadas é tão extraordinário

que cientistas começam a

utilizar estruturas de DNA como armazéns

digitais: a Memória de Ácido Nucleico

(MAN). Nesse novo mundo, 215

petabytes de informações podem ser

guardados em apenas 1 grama de DNA.

Qual o desafio dessa realidade turbinada

por informações e computadores?

Também não é um desafio novo. Trata-

-se justamente da capacidade limitada

de processamento biológico de informações.

Há 100 anos, podíamos nos

orgulhar de ser a maior capacidade cerebral

na Terra. Atualmente, podemos

comemorar o fato de termos criado os

supercomputadores capazes de processar

os dados em uma escala inimaginável

para a humanidade. Resolvidas

as questões de armazenamento e tráfego,

a realidade digital será cada vez

mais inalcançável para cérebros humanos.

A revolução digital é tamanha

que a própria definição de ser humano

parece estar em xeque. O artigo Biotechnologies

Nibbling at the Legal Human,

de Bartha Maria Knoppers e Henry T.

Greely, publicado em 2019 na revista

Science, avalia os limites para a definição

do humano no arcabouço legal.

Na verdade, a trajetória de aprendizagem

do homem modifica-se diante do

digital. Num cenário que muda o tempo

todo, em vez do acúmulo de informações

em arquivos organizados, as conexões

são cada vez mais requeridas.

O conhecimento extrapola as sinapses

cerebrais para serem cada vez mais integradas

com algoritmos computacionais

em redes complexas. A resolução

de problemas práticos e a própria reflexão

filosófica sobre questões morais

passam a considerar não só a sabedoria

humana acumulada ao longo de milênios

como também as possibilidades

de previsão e inferência com infinitos

cenários construídas pelos simuladores

computacionais.

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 18


O método

A aprendizagem é um processo individual, dentro de um

contexto coletivo. Não há espaço para determinismos sociais,

que pregam que o ambiente define os limites de cada pessoa

nele inserido. Também não parece razoável esperar que cada

um se desenvolva à margem da circunstância vivenciada.

Animais aprendem por meio de interações, sempre com espaço

para a livre arbitrariedade das trajetórias pessoais.

O processo de aprender também é contínuo, à medida que

a expansão do conhecimento amplia a consciência sobre as

fronteiras desconhecidas do saber. Importante reconhecer

que o conhecimento é infinito e, assim, o saber pleno é algo

inalcançável. Diante da ansiedade de muitos por aquilo que

se sabe existir além de sua zona de conforto, nada melhor

do que a bênção da ignorância. De qualquer forma, a evolução

ocorre no espaço desconfortável do desconhecido. A humanidade

evolui, as sociedades avançam e as organizações

progridem justamente pela capacidade de aprendizagem

contínua das pessoas, ampliando as fronteiras da vanguarda,

mesmo que à revelia de paradigmas morais ou religiosos.

Se a aprendizagem é o imperativo planetário e universal, a

educação básica é um direito do ser humano. Sua privação

na tenra idade se mostra uma das maiores violências sociais

ao determinar em grande parte as restrições de um cidadão

na vida adulta. A educação superior é, acima de tudo, uma

expansão das faculdades cognitivas, uma maturidade intelectual

e uma oportunidade para novos impulsos sinápticos.

Filosofia e artes sempre foram, e sempre serão, tão relevantes

quanto matemática, linguagem e história.

Inseridos na vida social adulta, indivíduos aprendem em sua

prática cotidiana e/ou em sua sonhada ambição. Abordagens

conteudistas e mecanicistas são ineficazes justamente pela

falha em ativar tais gatilhos emocionais e racionais para o

novo conhecimento. A mente madura continua se expandindo

em sua neuroplasticidade potencial, desde que estimulada,

de modos diferentes, ao longo do tempo. A melhor forma

de reter conhecimento requer diferentes formatos, mídias,

conteúdos e experiências.

Partindo desse princípio, não é possível assumir a construção

de uma solução única para todos. Então, o que é relevante

na aprendizagem corporativa?

Indo além dos modismos e nos afastando da pseudociência

inerente a determinadas metodologias, consolidamos uma

ampla expertise técnica na metodologia autoral Impact © ,

o acrônimo formado pelas dimensões Insight, Motivation,

Practice, Awareness, Connect e Transfer.

Com a missão de sempre encontrar o nexo no universo da

aprendizagem, o método Impact © reconhece os princípios

clássicos de andragogia (a metodologia de ensino a adultos)

e da aprendizagem ativa, bem como incorpora os contemporâneos

princípios de social learning, adaptive learning e lifelong

learning. É importante destacar que esses três últimos não

são necessariamente novos, mas também estão alcançando

patamares inéditos em função da tecnologia. É fato que a socialização

instantânea do saber, a individualização plena do

aprender e a crescente espiral de conhecimento encontraram

contextos inéditos no século XXI. Ciência e tecnologia sempre

realizam maravilhas na trajetória humana.

O Impact © propõe conceitualmente como a aprendizagem

deve ser modelada no contexto individual e social. E define

como isso deve ser operacionalizado para de fato ocorrer sob

a ótica do aprendiz inserido no contexto social peculiar. O

método consolida os melhores princípios de aprendizagem

em sua arquitetura para então implementar cada uma das

etapas com consistência e efetividade, dentro de uma lógica

robusta, engajadora, inesquecível e duradoura.

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 19

Foto: Getty Images


O X DA BOSSA

Passo a passo

do Impact ©

Conheça a metodologia própria

desenvolvida pela Bossa.etc

Tudo começa com o INSIGHT.

Todos precisamos desses “cliques

mentais” para introjetar

uma descoberta em nossa memória.

Esse repertório será

utilizado em nossas conexões

neurais para influenciar pensamentos,

sentimentos, julgamentos,

percepções e ações. Não há

aprendizagem sem produção

de momentos AHA!, EUREKA!,

PUTZ!, VIXE!, NOOOSSA!, alguns

UAU!, e também MEEU! e

aquele “SINIXXTRO!”

Ação requer motivação (MO-

TIVATION). Todo movimento,

mesmo o caminhar até a geladeira,

consome energia. O consumo

de energia é um esforço para o

organismo, que continuamente

avalia as relações de custo-benefício

das ações. Movimentos

efetivos ocorrem direcionados

pela motivação. Com a educação,

não é diferente. Indivíduos

precisam ter despertada sua

motivação para aprender. E isso

ocorre quando o conhecimento é

relevante para sua vida, atual ou

futura. Por exemplo, o aprimoramento

de competências para

um melhor impacto na organização

hoje ou o desenvolvimento

de habilidades para um futuro

papel com maior complexidade.

A excelência está na prática.

PRACTICE é justamente a ativação

do aprendizado (active

learning) por meio de experiências

realistas, dispostas em

uma lógica fluida e integradora

de diferentes elementos, conteúdos,

signos, ações e reflexões.

O Practice assegura que o processo

de aprendizagem trate o

aprendiz como protagonista colaborativo

de sua vivência e de

suas interações sociais. O nexo

pode ocorrer de modo orgânico,

às vezes despretensioso, ao longo

da prática do saber.

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 20


Há uma nobreza na arte de ensinar:

o despertar e a expansão da

mente. Compreender aquilo que

se sabe, desvendar o que não se

sabe. AWARENESS refere-se

ao potencial de ampliação da

consciência individual e coletiva

ao longo de um processo de

aprendizagem. A socialização

daqueles que sabem com outros

que não sabem constrói um novo

saber, explícito em vez de tácito.

O autoconhecimento e a empatia

são os pilares de Awareness.

A individualização da aprendizagem

é a base para o CONNECT,

que reúne as possibilidades de

conexão do saber com outras

múltiplas avenidas a serem percorridas.

Algoritmos inteligentes,

ecossistemas abertos com

objetos rastreáveis e looping de

interações sociais são veículos

relevantes para mecanismos de

curadoria de experiências, pessoas,

ideias e conexões. Connect

integra os saberes desestruturados

em vivências significativas,

memoráveis e efetivas em uma

verdadeira rede de hiperlinks.

Compartilhar, implementar e

transferir novos conhecimentos

estão em TRANSFER. No ciclo

de aprendizagem, como os heróis

nas jornadas do monomito

descritas pelo escritor americano

Joseph Campbell, é preciso

retornar às origens transformado,

renomado e amadurecido

após as aventuras no desconhecido.

Compartilhar o que foi

aprendido, implementar o que

foi incorporado ao portfólio de

competências, mapas mentais e

princípios norteadores, e transferir

sabedoria às pessoas ao

redor fazem parte dessa expedição.

Transfer cria mecanismos

diversos para assegurar a aplicação

contínua da aprendizagem

no mundo vivenciado pelos

aprendizes e seus stakeholders.

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 21


O X DA BOSSA

A tecnologia

O Manifesto

Bossa não tem

a pretensão do

ineditismo, mas

se entrega ao

desafio de ousar

no contexto

visionário e na

forma concreta

de aplicação

etc.

Enquanto o filósofo e pedagogo John

Dewey nos ofereceu o lastro conceitual

para a aprendizagem baseada em experiências,

Walt Disney nos apresentou

sua magia. Afinal, a Disneyworld

é o maior experimento global de edutainment

do século XX.

Os princípios de edutainment fazem

parte da essência da evolução humana,

mas foi Walt Disney quem imaginou

e realizou um ecossistema de mídias

e personagens capaz de implementar

tamanhas possibilidades em escala jamais

vista. Mickey Mouse tornou-se

ícone da cultura pop americana, enquanto

entreteve e educou crianças e

adultos em torno de importantes temáticas

da sociedade no último século.

Aliás, em todo o século passado,

Hollywood influenciou mais a opinião

pública e os costumes americanos do

que a Universidade Harvard, assim

como a Central Globo de Produção foi

mais determinante para a opinião pública

e para os costumes brasileiros do

que a Universidade de São Paulo.

A evolução das práticas contemporâneas

de edutainment tem sido a materialização

do Democracy and Education,

como bem ilustram os conceitos

dos pesquisadores Retta Guy e Gerald

Marquis em seu artigo The Flipped

Classroom: A Comparison of Student Performance

Using Instructional Videos and

Podcasts Versus the Lecture-Based Model

of Instruction, publicado em 2016 no Informing

Science and Information Technology.

O X da bossa não poderia se

distanciar desse encontro improvável

entre Dewey e Disney. Além da filosofia

e do método, também desenvolvemos

tecnologia proprietária aderente

aos melhores princípios de edutainment.

A Bossa.etc nasce como uma

verdadeira content tech company.

Após dez meses de pesquisa, criamos o

Vintage Digital Edutainment © (VDE © ),

nome da tecnologia exclusiva que

integra a inteligência artificial Arya,

nossa mentora virtual. Desenvolvemos

ainda o ecossistema de aplicativos etcetera,

as séries exclusivas Sparks, as

jornadas de aprendizagem Plug&Play

e os game-based assessments Mobi.

Vale salientar que a inesquecível pandemia

de 2020 rompeu com os resquícios

dogmáticos sobre tempo e espaço

no universo da aprendizagem. A

sinapse nunca obedeceu a limites espaciais

e temporais e, não obstante, o

mainstream da educação corporativa

ainda está lastreado em conjuntos de

eventos presenciais formais de treinamento,

acreditando-se que treinamento

on the job acontece sem intenção,

sem conexão e sem orquestração.

Até algumas décadas atrás, o paradigma

tecnológico vigente tornava financeiramente

inviável o aumento das

experiências significativas de aprendizagem.

Resignados, vivenciamos o

contexto possível no qual aprendizagem,

diversão e trabalho se desenvolveram

em mundos paralelos com pouca

intersecção. A educação ocupando

espasmos temporais e espaciais, invariavelmente

com conteúdos padronizados

e metodologias ineficazes, ambos

desassociados das questões relevantes

do trabalho e das motivações inerentes

ao indivíduo.

Felizmente, a evolução tecnológica está

nos direcionando para um clímax da

aprendizagem por meio de experiências

significativas: o edutainment tem

agora a real oportunidade de se tornar

o ponto central na vida de organizações

e indivíduos. A aprendizagem se torna

orgânica, intuitiva, tempestiva. Realizada

de modo contínuo, fora da zona

de conforto passivo da sala de aula, no

cotidiano imperceptível das ações e das

reflexões, nas sinapses inconscientes,

nas memórias indeléveis, nas decisões

relevantes, nas conexões inspiradoras.

É essa a nossa bossa.

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Foto: Getty Images

Uma curiosidade

No Vintage Digital Edutainment usamos o termo “vintage” como paradoxo

para o nível de sofisticação tecnológica desse novo arcabouço digital.

Existe uma razão especial para isso. No mundo hiperconectado, com suas

hipérboles efêmeras, precisamos das raízes que nos preservam como

humanos. Tal nostalgia nos remete a radionovelas, cartoons, jogos de

tabuleiro. Estamos navegando na fronteira do edutainment, integrando

entretenimento, treinamento e comunicação. Daí o nome deste jornal:

Et Cetera é a possibilidade infinita que existe após o campo já delimitado

pelo que foi apresentado.

VDE ©

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Gente

com Bossa

Dedicação, gratidão, resiliência: as

lições que podemos tirar de cinco

histórias de sucesso, da gastronomia

ao mundo dos espetáculos

Cada indivíduo tem sua malha de trilhas pessoais para percorrer até alcan

çar o sucesso. E é também singular o destino para o qual esses caminhos

podem levar. Para um chef de cozinha, por exemplo, o triunfo está no menu

exclusivo da gastronomia requintada ou no restaurante inclusivo, que reúne

em suas mesas banqueiros e moradores da periferia? Uma vez compreen

dido o propósito, a rota deve ser encarada como parte importante da jorna

da, pois é ela que define como chegaremos ao destino final. Em sua edição

de estreia, a Et Cetera traz a história de cinco personalidades de destaque

em suas áreas para desvendar o que as trajetórias têm em comum e como

podemos nos inspirar com elas. As lições que aprendemos com a primeira

curadora indígena de um grande museu de arte do país, a empresária que

driblou o racismo e o machismo, a coreógrafa premiada internacionalmente,

o respeitado jornalista e produtor cultural e o chef estrelado da periferia de

São Paulo passam por dedicação aos estudos, gratidão, coragem, empatia e

até certa dose de sorte. Mas, principalmente, resiliência para encarar os per

calços que nem o mais elaborado planejamento é capaz de evitar.

A antropóloga Sandra Benites teve de deixar os filhos na aldeia para con

tinuar os estudos. Atualmente, ela é curadora em um dos mais renomados

museus do país, o MASP, e quer mostrar ao mundo, por meio da arte, a im

portância e o protagonismo do povo indígena. Assim como Sandra, a em

presária Eliane Dias aprendeu desde cedo a lutar contra o sistema. Filha de

empregada doméstica, ela passou parte da infância em internato de freiras

e sob os cuidados temporários de diferentes famílias, mas não desistiu do

sonho de se formar em direito. Hoje, é a poderosa chefona dos Racionais

MC’s, grupo de rap mais famoso do Brasil. Da periferia de São Paulo também

saiu o cozinheiro Rodrigo Oliveira, que transformou o botequim da família

na Vila Medeiros em um dos mais premiados restaurantes da capital, sem

abandonar suas origens. A coreógrafa carioca Deborah Colker nunca se es

quivou dos desafios, e já levou o ecletismo de seus movimentos ao circo, ao

sambódromo da Marquês de Sapucaí, aos Jogos Olímpicos e até a um pro

grama de televisão infantil. E, finalmente, nosso personagem de capa desta

edição, o produtor cultural e jornalista Nelson Motta, cuja biografia se funde

com a história da música brasileira nas últimas décadas. Cinco histórias de

vida inspiradoras, com seus altos e baixos, erros e acertos, derrotas e vitó

rias. Cinco histórias que comprovam o poder da adaptação.

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EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 25


A enciclopédia viva

da música

brasileira

Por Sérgio Martins

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Nome: Nelson Motta

Idade: 75 anos (completa

76 em 29 de outubro)

Profissão: jornalista,

escritor e produtor cultural

Cidade onde

nasceu: São Paulo

A tentativa frustrada

de aprender violão

não impediu que

Nelson Motta se

tornasse um dos

maiores especialistas

e entusiastas da

música no país

Foto: Leo Aversa

E

m maio de 2020, o jornalista e

produtor cultural Nelson Motta

admitiu que não estava escutando

música durante o período da

quarentena. No máximo, se limitava

a organizar playlists para a namorada,

que mora em Brasília – ele vive no

Rio de Janeiro. O abandono temporário

dessa arte, que pautou um período

significativo de seus 75 anos de vida,

tem lá seus bons motivos. Motta dá os

retoques finais no livro De Cu pra Lua

– Dramas, Comédias e Mistérios de um

Rapaz de Sorte, que será lançado em

outubro pela Estação Brasil/ Sextante.

Ele classifica a obra como uma autobiografia,

mas também a enxerga como

um estudo sobre a sorte. “É um fenômeno

inexplicável pela ciência, aleatório,

sem regras, sem méritos e sem

justiça. O livro é uma espécie de ‘ética

da sorte’ e o que fazer com ela”, explica

ele à Et Cetera. “De Cu pra Lua focaliza

a sorte na vida do personagem. E mais

não posso dizer.”

A sorte muitas vezes sorriu para Nelson

Motta. Mas não da maneira que

seus detratores gostam de enxergar:

costumam compará-lo a Forrest Gump,

personagem interpretado pelo ator

americano Tom Hanks que acidentalmente

participa de grandes feitos da

história dos Estados Unidos. Seus críticos

ainda questionam seus conhecimentos

musicais. “Eu quero colocá-lo

de frente ao piano e perguntar a ele

onde fica a nota dó”, ironizou, certa

vez, o maestro Diogo Pacheco. Contudo,

desde o berço Motta esteve preparado

para o universo artístico. Ele é

descendente de uma família amante

das artes. O avô Cândido Motta Filho,

além de presidente do Tribunal Superior

Eleitoral (TSE) e ministro do Supremo

Tribunal Federal (STF), aderiu

ao movimento modernista de 1922 e se

tornou imortal da Academia Brasileira

de Letras. Seu pai, Nelson Cândido

Motta, mais conhecido como Nelsão,

foi um dos maiores anfitriões do Rio.

“A casa deles na Gávea era o ponto de

encontro de músicos e intelectuais”, diz

João Marcello Bôscoli, que frequentou

algumas dessas reuniões e escutou relatos

a respeito de seu pai, o jornalista

e compositor Ronaldo Bôscoli. Nelsão,

morto em 2014, aos 92 anos, foi ainda

um escritor tardio: tinha 83 anos

quando lançou Vovô Viu a Bruxa, compilação

de contos infantis que relatava

aos netos. O advogado tinha ainda o

espírito agregador, herdado pelo filho.

“Eu nunca lutei nem por poder nem

por dinheiro. Sinceramente, nunca foi

a minha onda. Sempre lutei por independência”,

diz o produtor cultural.

Nelson Motta tinha 14 anos quando

João Gilberto lançou Chega de Saudade

(1958), dando início a um dos períodos

mais férteis da cultura brasileira. Ainda

hoje é apaixonado pela obra do cantor

e violonista baiano, a quem considera

o maior artista que conheceu na vida

(aliás, Motta tentou tocar violão, sem

sucesso). “Minhas filhas foram criadas

ao som de João Gilberto”, emociona-se.

“Durante toda a sua vida, ele só levou

a delicadeza, coisas novas e leves.” O

jornalismo entrou em sua vida por acaso.

Estudante de design, se apaixonou

pelas aulas de comunicação e linguagem

ministradas pelo repórter e escritor

Zuenir Ventura. Motta foi trabalhar

como estagiário do Jornal do Brasil e,

em três meses, largou os estudos para

se tornar colunista de cultura. Pouco

tempo depois, ganhou uma coluna no

Última Hora, matutino comandado por

Samuel Wainer.

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Carreira de compositor

Em um depoimento para a revista

Época, Motta confessa que a profissão

de expert em cultura foi a maneira que

encontrou para dar vazão à sua paixão

não correspondida pela música.

Um desses recursos foi se tornar letrista.

Em 1966, a canção Saveiros, sua

parceria com Dori Caymmi, se tornou

vencedora do Festival Internacional da

Canção. Foi o ponto de partida de mais

de 300 parcerias, com compositores e

cantores como Lulu Santos, Rita Lee,

Ed Motta, Guilherme Arantes e João

Donato. Um dos poucos períodos em

que não desempenhou sua função com

tanto afinco foi de 1969 a 1977, tempos

em que havia uma repressão forte

do governo militar. “A ditadura me

deixou pouco à vontade para compor.

Felizmente outros seguiram escrevendo

naquele período”, declarou ao jornal

Correio Braziliense. O recesso lírico coincide

também com o período no qual foi

recrutado pela gravadora Philips (hoje

Universal) para trabalhar como produtor

de discos de artistas da categoria

de Elis Regina e Maria Bethânia. Mas o

retorno à pena se deu de maneira espetacular

– com Dancin’ Days, das Frenéticas,

canção que marcou o auge da era

disco no Brasil.

Ao longo de sua carreira como jornalista,

Motta optou por manter de lado

sua relação pessoal com os músicos,

embora soubesse que sua proximidade

com as fontes lhe renderia notícias exclusivas.

Em outras palavras, ele sempre

preferiu perder a notícia a perder

o amigo. “Se não tratasse bem minhas

fontes, quantas coisas eu não saberia?

O Vinicius de Moraes, por exemplo,

seus romances secretos, bebedeiras,

vexames. Imagina se eu contasse isso...

Sempre tive do Vinicius as melhores

notícias antes de todo mundo. E, assim

como ele, de muitos outros. Porque

eu respeitava a privacidade de coisas

que sabia serem sensíveis”, comentou

numa entrevista. O comportamento

rendeu um bom quinhão de notícias

exclusivas e uma sobrevivência fora

do comum dentro da imprensa musical

brasileira. Ele acompanhou, como

poucos, as principais movimentações

do showbiz das últimas décadas – bossa

nova, tropicália, soul e disco e rock

nacional... todos foram devidamente

registrados pelas colunas de Motta. Foi

um influencer de seu tempo, deu espaço

a Jards Macalé e Luiz Melodia, artistas

cujo epíteto de “maldito” os afastou

das multidões. “Meu objetivo como

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 28

jornalista foi jogar luz sobre coisas bacanas

que estavam obscuras, trazê-las

ao público”, diz.

Mas Nelson Motta não é bonzinho:

quando acha necessário, sabe espinafrar

até mesmo os amigos. “Uma vez eu

o vi chamar um cantor de chato, ainda

que reconhecesse o talento desse artista”,

confessa Marcello Bôscoli. O próprio

Motta faz questão de dissipar essa

visão cândida que se possa ter dele.

“Não sou santo, não sou bom moço, não

ofereço a outra face, não sou nada disso.

Eu fico puto com as coisas”, explica.

E ele não esquece. Certa vez, Motta

se indignou com o tratamento dado ao

cantor Cazuza em uma matéria de capa

de uma conhecida revista semanal

brasileira. A desforra, que veio muitos

anos depois, foi batizar o personagem

de marido traído de um de seus romances

com o nome do diretor de redação

da revista: Mario Sergio. “Vingança é

um prato que se come frio” , diz um velho

ditado klingon (fãs de Quentin Tarantino

e Star Trek entenderão).

“Meu objetivo

como jornalista

foi jogar luz sobre

coisas bacanas que

estavam obscuras,

trazê-las ao público”

Foto: Daniel Pinheiro


Incursão na TV

O jornalismo foi, por um bom tempo,

sua carreira principal. Motta foi colunista

de O Globo e da Folha de S.Paulo,

além de fazer reportagens esporádicas

para a TV. Enquanto isso, acumulava

outras funções. Na televisão, formatou

programas inovadores e ousados. É o

caso do clássico Armação Ilimitada, seriado

de 1985 no qual dois dublês, Juba

e Lula (interpretados por Kadu Moliterno

e André de Biasi), viviam uma relação

amorosa harmoniosa e divertida

com a mesma mulher, a jornalista Zelda

Scott (uma Andréa Beltrão estalando

de talento e beleza). Outra aposta foi

unir Chico Buarque e Caetano Veloso

em Chico & Caetano, um programa musical

que trazia, além da dupla principal,

algumas atrações heterogêneas:

do tango de Astor Piazzolla ao axé de

Luiz Caldas, da soul music de Tim Maia

ao rock de protesto da Legião Urbana.

Como produtor de eventos, Motta organizou

em 1976 um festival de rock em

Saquarema, famosa praia do Rio, que

reuniu alguns dos nomes mais interessante

no cenário daquele período, como

Erasmo Carlos, Rita Lee e Raul Seixas.

O que seria uma espécie de Woodstock

caboclo virou um fracasso de proporções

monumentais, com tempestade

inviabilizando as performances dos artistas

e o público invadindo o local das

apresentações. Só que... alguém falou

em sorte? O evento chamou a atenção

de uma imobiliária, dona do Shopping

da Gávea, que lhe ofereceu o local para

fazer “o que quisesse com aquilo”. Surgia

então a Dancin’ Days, boate que

antecipou a era das discotecas no país.

“Virei empresário da noite. Eu queria

ser produtor de festivais de rock, mas

isso era perigosíssimo no Brasil da ditadura.

Dancin’ Days era uma ilha de

liberdade no meio de um clima péssimo

em volta.”

No ano de 1970, Nelson Motta produziu

Em Pleno Verão, de Elis Regina. O

álbum trazia compositores que faziam

parte do repertório da intérprete gaúcha

mesclados a autores identificados

com o universo pop ou artistas iniciantes.

Elis cantou Baden Powell e Paulo

César Pinheiro (Vou Deitar e Rolar) e a

dupla Tom Jobim e Vinicius de Moraes

(Frevo), mas também se rendeu à modernidade

da dupla Erasmo e Roberto

Carlos – que era execrada pelo alto

escalão da MPB – em As Curvas da Estrada

de Santos e ao então iniciante Tim

Maia em These are the Songs. É um de

seus grandes trunfos como produtor:

ele tira o artista de sua zona de conforto.

Sandra (1990), da cantora carioca

Sandra de Sá, mais conhecida pelas

canções românticas, trazia composições

do soulman Cassiano, do roqueiro

Roberto Frejat e uma versão de Charles

Anjo 45, de Jorge Ben Jor, tocada ao

lado do grupo de samba reggae Olodum.

Cinco anos depois, faria o mesmo

com Patrícia Marx. Quero Mais (1995)

é um trabalho de pop adulto, algo que

Patrícia pleiteava em sua antiga gravadora,

a RCA. O álbum foi lançado pelo

LUX, selo de propriedade do jornalista.

“Sempre fui novidadeiro, moderno, sintonizado

com o som do tempo sobre a

minha base sólida de música brasileira

e jazz, e depois de black music”, explica.

O trabalho com intérpretes que podem

ser consideradas divas, como Gal

Costa e Daniela Mercury, lhe rendeu a

fama de especialista em domar egos gigantescos.

“Fui casado com uma atriz,

a Marília Pêra, sei bem o que é ego e sei

dominar essa situação”, brinca.

“Sempre fui

novidadeiro,

moderno,

sintonizado

com o som do

tempo sobre

a minha base

sólida de música

brasileira e jazz,

e depois de black

music”

Nelson com a filha mais velha, Joana Motta, e os netos, (da esquerda para a direita) Marina, Antônia e Joaquim

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 29


“Ano passado fui ver o Tim Bernardes

e encontrei Caetano Veloso lá. Éramos

os dois únicos ‘cabeça branca’ da

plateia. Show e artista excepcionais,

grande compositor, original. Na

saída, Caetano comentou: ‘E a gente

pensando que tudo já foi feito’”

Novas estrelas

Outro grande momento de sua carreira como produtor se deu

com o lançamento de Marisa Monte. Em 1987, ele tinha acabado

de voltar de uma temporada na Itália quando conheceu

a cantora carioca. “Usei tudo o que tinha aprendido como crítico

musical e produtor de discos e fiz tudo o que achava que

deveria ser feito, mas que nunca tinha sido usado em gravadoras”,

declarou em depoimento para a revista Época. “Foi

uma virada na minha carreira e principalmente na carreira

de Marisa.” O repertório pouco ortodoxo, no qual o compositor

italiano Pino Danielle (de Bem Que Se Quis) dialogava com

o rock dos Titãs (Comida) e o jazz de George Gershwin (Bess,

You Is My Woman Now) se unia ao grupo Mutantes (Ando Meio

Desligado). O advento Marisa trouxe uma nova geração de admiradores

da MPB e ela iniciou uma escola de canto – atualmente

há inúmeras discípulas de mrs. Monte, que imitam até

sua falta de jeito. Por outro lado, o sucesso de Marisa Monte

fez com que cada companhia de discos tivesse sua cantora

“eclética”. Cássia Eller, Adriana Calcanhotto e Zélia Duncan

foram alguns nomes que caíram no estratagema de “nova

Marisa”. A sorte é que as três tinham atributos suficientes

para trilhar o próprio caminho.

Motta diz que não quer convencer as pessoas a nada. Mas

sua excitação com determinados artistas ou estilos musicais

é contagiante. Ele se empolga pelo que acha verdadeiro, seja

vindo da MPB mais tradicional, seja do pop desavergonhado.

Nos últimos anos, encantou-se com a música produzida pelo

estado do Pará – a cantora Gaby Amarantos, os guitarristas

Felipe Cordeiro e Pio Lobato. Por vezes, sua empolgação não

é assimilada pelos leitores. Certa feita, caiu na ira dos frequentadores

de sua coluna em O Globo ao elogiar a cantora

Anitta. Foi ameaçado de cancelamento, para usarmos um

termo da moda, e de insinuações sobre ter recebido dinheiro

para exaltar a intérprete de Bang. “Foi tragicômico e mostrou

a tolice humana”, diverte-se. Embora não traga o entusiasmo

de outrora, ele ainda se permite conferir o que existe de novo.

“Ano passado fui ver o Tim Bernardes e encontrei Caetano

Veloso lá. Éramos os dois únicos ‘cabeça-branca’ da plateia.

Show e artista excepcionais, grande compositor, original.

Na saída, Caetano comentou: ‘E a gente pensando que

tudo já foi feito’.”

Colunista de O Globo, ele nunca deixou de expressar suas opiniões

políticas, ainda que elas possam desagradar tanto a esquerda

quanto a direita. “Na era Lula, a novidade foi a introdução

de uma nova categoria moral, o roubo pela causa, que

se justifica pela nobreza de seus adjetivos e faz de seus autores

guerreiros do povo brasileiro”, escreveu em 2015. Recentemente,

fez a seguinte colocação: “Figueiredo seria um

estadista educado ao lado de Bolsonaro. Não dá para ter saudade

da ditadura, mas mesmo seus piores governos foram

melhores que o de Bolsonaro em eficiência e compostura.”

Nelson Motta trocou o Brasil por Nova York na década de

1990. Participou do Manhattan Connection, programa de debates

que trazia também Lucas Mendes, Paulo Francis e

Caio Blinder, além de descobrir um grupo gospel, o Mount

Moriah. Motta fez tanta propaganda das cerimônias que elas

passaram a ser acompanhadas por uma horda de brasileiros.

“Até o mendigo que fica na porta da igreja sabe umas

palavras em português”, disse no programa de Jô Soares. A

ida para os Estados Unidos teve um motivo: sua desilusão

com os rumos do Brasil à época. Naquela ocasião, acusou a

música sertaneja de ser a trilha sonora do governo de Fernando

Collor de Mello e via com bons olhos a ascensão de

Daniela Mercury e a axé music entre o público popular. E

hoje, pode-se escolher um determinado estilo para enfrentar

a pandemia e tempos políticos sombrios? “Sertanejo universitário

(que é chato), feminejo (boa novidade). Funk e hip

hop, que têm coisas ótimas, alegres e sensuais. Uma trilha

sonora polifônica para tempos caóticos. E os velhos mestres

continuam produzindo!”, sugere.

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 30


Ícone dos

documentários

Uma das piadas do grupo humorístico

Casseta & Planeta era dizer que um

filme brasileiro só poderia ser considerado

como tal se trouxesse no elenco o

ator Wilson Grey (um carioca magro

que se especializou em papéis de suburbano).

Pois um documentário de

música brasileira só pode ganhar essa

classificação se trouxer depoimento de

Nelson Motta. Ele foi tão onipresente

que André Miranda, crítico de cinema

de O Globo, sapecou-lhe a alcunha de

“ator de documentário em maior atividade

no país”. Mas seu talento nato

como contador de histórias não podia

ser deixado de lado. Em 2019, o canal

por assinatura GloboNews criou

o programa Em Casa com Nelson Motta.

Dirigido e roteirizado por Cristina Aragão,

ele apresenta o jornalista em seu

apartamento no bairro de Ipanema, no

Rio, narrando suas aventuras ao lado

de nomes como Tim Maia, Lulu Santos

e Rita Lee ou dando suas impressões

sobre artistas da importância de Maria

Callas e Leonard Bernstein e até do

cineasta Federico Fellini. É um complemento

e tanto à sua coluna de todas as

sextas-feiras no Jornal da Globo, onde

dá outros exemplos de seu vasto conhecimento

musical.

Nos últimos tempos, ele também se

aventurou pela indústria dos musicais.

Motta criou os roteiros de Tim Maia

– Vale Tudo, o Musical, Elis, o Musical, e

S’imbora, o Musical: A História de Wilson

Simonal. E 2019 foi a vez de O Frenético

Dancin’ Days, que retrata a lendária boate

que ele criou nos anos 1970. Os espetáculos

foram escritos em coautoria

com Patricia Andrade e são pródigos

em revelar novos talentos desse universo

– Tiago Abravanel e Laila Garin,

que interpretaram respectivamente

Tim e Elis. Para o futuro, Motta pretende

se unir à filha Joanna para remodelar

o espetáculo de Tim Maia.

A temporada em Nova York também

rendeu suas primeiras experiências

como escritor. Incentivado pelo jornalista

Zuenir Ventura, Motta criou um

guia da cidade americana. Em 2000,

foi a vez de Noites Tropicais, seu maior

sucesso literário, que trazia histórias

dele com diversos personagens do

showbiz brasileiro. O capítulo sobre

Wilson Simonal, cantor que foi acusado

injustamente de ser informante dos

órgãos de repressão (o que acabou por

encerrar precocemente sua carreira),

inspirou Claudio Manoel, do Casseta

& Planeta, a fazer um documentário

sobre o intérprete carioca – que, claro,

contou com depoimento do Wilson

Grey da música nacional. Motta escreveu

ainda uma elogiada biografia

de Tim Maia, e quatro livros de ficção.

De Cu pra a Lua une esses dois mundos,

uma autobiografia disfarçada de estudo

sobre a sorte. O título, por mais estranho

que possa parecer, até que faz

sentido nesse universo particular de

Nelson Motta. “Nada mais a propósito.

Completamente a visão de mundo dele.

É uma pessoa que acredita no acaso e

na permanência. O que no fundo, no

fundo, é física quântica. O princípio

da incerteza de Heisenberg”, decreta o

amigo e parceiro Lulu Santos.

Dica para o jovem

Nelson Motta:

“A mesma

recomendação que

Nelson Rodrigues

deu aos jovens:

‘Envelheça logo’”

Foto: Daniel Pinheiro

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 31


A dona

do show

Por Mariana Amaro

A empresária, ativista e

advogada Eliane Dias comanda

a Boogie Naipe, produtora

responsável pela carreira

do grupo Racionais MC’s

Nome: Eliane Dias

Idade: não divulga

Profissão: empresária

Cidade onde

nasceu: São Paulo

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 32


Foto: Tomas Neves

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 33


P

elas ruas sinuosas da periferia de São Paulo, o caminho

entre dois pontos raramente passa por vias retas e

desimpedidas. Assim foi a trajetória da advogada, empresária

e ativista pelos direitos das mulheres negras Eliane

Dias, que nasceu e cresceu no Capão Redondo, na região

sudoeste da capital paulista. É também ali que mora com a

família e comanda a Boogie Naipe, produtora que fundou ao

lado do marido, o rapper Mano Brown, dos Racionais MC’s.

Mas que ninguém se atreva a chamá-la de ‘A mina do Mano

Brown’: “A mulher não tem que ser de alguém. Se ela só existe

sendo de alguém, o que acontece se esse relacionamento

acabar? Eu não sou a mina do Mano, eu sou a Eliane Dias,

muito prazer”.

Essa mulher determinada e independente é filha de Maria

Aparecida Dias, que aos 16 anos engravidou e foi expulsa de

casa porque se recusou a fazer um aborto. O pai biológico de

Eliane, que à época era noivo de outra mulher em Campinas,

no interior de São Paulo, não quis assumir a criança. Abandonada

à própria sorte, Maria foi acolhida temporariamente por

uma conhecida em seu barraco, e foi lá que Eliane nasceu.

Sem ter onde morar, mãe e recém-nascida viveram na rua

por oito meses, até serem resgatadas por uma tia de Eliane.

“Minha mãe é uma mulher mais seca. Ela não me beija, não é

carinhosa, mas eu a amo e sei que ela me ama também. Sou

quem eu sou por causa dela”, diz.

Enquanto a mãe trabalhava, Eliane e os três irmãos – todos

de pais diferentes e que abandonaram os filhos – passaram a

infância vivendo na casa de outras famílias. Mas ela enxerga

o lado positivo desse período conturbado: “Todo esse tempo

em que passei na casa de outras pessoas, sendo cuidada por

outras famílias, nunca fui abusada. Eu poderia ter tido uma

história pior. Todos os dias crianças sofrem com a violência

sexual dentro de casa. É triste dizer isso, mas a verdade é que

eu tive muita sorte mesmo”.

Em um dos lares temporários, a casa da dona Maria e do seu

Juca, Eliane encontrou um tesouro no meio do lixo: o livro

Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus. Àquela altura,

ela já sabia ler, mas ainda não conseguia compreender e assimilar

o relato contundente da catadora de papel narrado na

obra. “Eles disseram que advogados conseguiriam entender,

e desde então coloquei na cabeça que ia ser advogada”, diz.

A primeira casa da família foi construída quando ela tinha 9

anos, mas o minúsculo barraco de madeira não era suficiente

para abrigar a todos. Quando Maria ia para casa nos fins de

semana – ela era empregada doméstica e, durante a semana,

passava as noites no trabalho –, precisava dormir do lado de

fora, à porta do barraco.

Relação com a religião

Antes de ir viver com a mãe e os irmãos, Eliane passou uma temporada em um internato de freiras. Curiosa e prestativa, se

interessou pela vida das religiosas e ajudava nas tarefas da cozinha, lavando louça em troca de uma colher de mel – um dos

poucos momentos de felicidade daquele período, marcado por lembranças ruins: “Minha mãe era uma mulher preta, solteira,

com quatro filhos, em uma época conturbada. Trabalhava como doméstica e não conseguia ir visitar a gente. Eu e minha irmã

ficávamos prontas, esperando que ela descesse do trem, mas ela não vinha. Aquela sensação de espera é horrível”, conta.

A admiração pelas freiras estimulou o estudo de religiões. Eliane frequentou a Congregação Cristã no Brasil e já pensou em ser

freira, mas não gostava de ter de usar véu e abrir mão da maquiagem. “Não que eu gostasse de me maquiar, nunca gostei, mas

quero ter a opção”, afirma. Também aderiu ao Seicho-No-Ie, que “exigia uma disciplina que eu não tenho”, e chegou a frequentar

um centro de umbanda, mas foi no candomblé que se encontrou de verdade. “Eu sou filha do vento”, afirma.

Foto: Tomas Neves

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 34


Amadurecimento

precoce

Eliane começou a trabalhar muito cedo.

Aos 11 anos, já era babá de gêmeos. Aos

14, quando era doméstica na casa da

psicanalista Maria Alice Rufino, namorada

do compositor Toquinho, Eliane

teve o primeiro vislumbre de independência

que faria nascer a militante feminista.

“Minha mãe é minha grande

referência de liberdade e de responsabilidade

ao assumir as consequências

das escolhas que você faz, mas Maria

Alice me mostrou que eu poderia ser

mais. Eu poderia ser uma mulher solteira

e morar sozinha e andar pelada

pela casa e ser independente.”

Nessa época, Eliane completou o ensino

fundamental, e sua mãe, que era

doméstica na casa do poeta Vinicius

de Moraes, a levou a uma loja para escolher

uma roupa e um sapato de salto

e lhe presenteou com o anel que recebeu

como remuneração de um trabalho.

“Ela me disse: ‘Eu vim com você

até aqui. Daqui para a frente, se quiser

continuar estudando, é por sua conta’.”

E assim aconteceu. Trabalhando

como babá, doméstica, distribuidora de

panfletos e qualquer outra função que

aparecesse, Eliane completou o curso

técnico em secretariado e seu sonho de

ser advogada para entender o livro que

havia encontrado no lixo ganhou outra

motivação: “Eu queria processar meu

pai e os pais dos meus irmãos. Obrigá-los

a pagar a pensão que nunca depositaram”,

lembra. Mas as curvas em

seu caminho mudaram seus planos.

Nos anos 1980 – por volta de 17 anos

–, Eliane foi abordada na rua por uma

caçadora de talentos de agência de

modelos. Fez campanha para algumas

grifes nacionais, como Hering e Guaraná

Brasil, mas abandonou a carreira

inconformada com o racismo e o machismo

na indústria da moda. “Participei

de vários processos seletivos que

acabavam com uma proposta indecente

tipo ‘Sai pra jantar comigo que você

vira modelo exclusiva da loja’ ou ‘Quem

dormir comigo leva essa vaga’”, conta.

Ela também se cansou de ficar sempre

no segundo lugar, diante da preferência

do mercado pelas modelos brancas.

A carreira de modelo pode não ter

sido longa, mas a levou para um caminho

importante de sua vida: quando

voltava de um trabalho como modelo,

em março de 1989, Eliane encontrou o

primo Paulo Eduardo Salvador e ele a

apresentou ao então office boy Pedro

Paulo. O interesse foi mútuo e eles começaram

a namorar. Oito anos depois

daquele encontro, os rappers Ice Blue

(Paulo Eduardo) e Mano Brown (Pedro

Paulo) ganharam fama nacional com o

lançamento do álbum Sobrevivendo no

Inferno, dos Racionais MC’s, que levou

o rap ao topo das paradas e vendeu

mais 1,5 milhão de cópias.

Retorno às salas de

aula

O desejo de voltar a estudar veio de um

momento inusitado: os Racionais MC’s

receberam um convite para se apresentar

na Alemanha, e Mano chamou

Eliane para acompanhá-los. Ela mandou

fazer o passaporte e já começava

a organizar as malas quando ouviu do

marido que os companheiros da viagem,

todos homens, decidiram que

mulheres não eram bem-vindas na

viagem. “Minha única reação foi dizer

‘ok’. Ele perguntou se eu estava brava,

se iria traí-lo. Eu neguei e disse que,

quando ele voltasse, estaria tudo melhor”,

conta. E estava mesmo. Quando

Mano retornou ao Brasil, Eliane estava

matriculada em um cursinho pré-vestibular.

“Resolvi que era a hora de realizar

o sonho de estudar direito, me

formar, ganhar meu dinheiro e pagar a

minha viagem para qualquer lugar que

eu quisesse”, afirma. Ela finalmente

poderia compreender as palavras que

havia lido no livro de Carolina Maria de

Jesus, que encontrou no lixo da casa da

família que a acolheu na infância.

Analisando o passado, Eliane entende

que, embora tivesse por volta de 30

anos, quase o dobro da idade dos colegas

de classe, aquele era o momento

certo para encarar uma universidade.

“Às vezes eu penso que, se tivesse

me esforçado mais, teria conseguido

ir para a faculdade com 18 anos. Mas

lembro da minha infância, quando trabalhava

e cuidava dos meus irmãos

mais novos e da casa. Fico com uma

sensação de que a gente tem que passar

por algumas situações na vida antes

de conseguir alcançar uma meta.

Posso não ter conseguido ir pra faculdade

mais cedo, mas sempre tentei

progredir, melhorar em alguma coisa”,

afirma. Essa consciência não evitou

o preconceito dos colegas do curso –

“Eles achavam estranho aquela mulher

mais velha ali no meio deles” –, mas ela

não desistiu. Dos 100 alunos iniciais,

apenas Eliane e outros 29 chegaram ao

final do curso.

A empresária quis passar para os filhos

essa determinação e, por isso, Kaire

Jorge (24 anos) e Ayomi Domenica (21)

não tiveram moleza em casa. Eliane os

acordava de manhã para que assistissem

ao jornal. Os dois tiveram aulas

de defesa pessoal. Quando a advogada

Eliane começou a trabalhar, Jorge, então

adolescente, entrou em uma fase

problemática: chegava muito tarde em

casa, não conversava mais com os pais

e andava com uma turma desconhecida.

Mais uma vez, sua vida viraria em

uma curva inesperada, e Eliane teve de

interromper a carreira para se dedicar

à família. “Eu sofro muita pressão por

ser “A mina do Mano”, mas com meus

filhos era pior. Kaire era desafiado o

tempo todo a fazer coisa errada. Então

tive que sair para cuidar dele”, afirma.

“Lembro de

mim criança,

trabalhando,

cuidando dos meus

irmãos mais novos

e da casa. Fico com

uma sensação de

que a gente tem

que passar por

algumas situações

na vida antes de

conseguir alcançar

uma meta”

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 35


Boogie Naipe

A ideia de gerenciar o grupo de rap do

marido surgiu ainda durante as aulas

de direito empresarial, na faculdade,

mas permaneceu na gaveta por vários

anos. Em 2013, ela e Mano Brown decidiram

abrir uma produtora, a Boogie

Naipe, que ficaria responsável por cuidar

apenas da carreira solo dele. Quando

veio o convite para assumir a gestão

dos Racionais, Eliane demorou seis meses

para dar a resposta. “Estava com

meu escritório de advocacia montado,

a vida organizada, feliz e pensando em

não aceitar. Mas alguém me falou que o

legado dos Racionais era a herança dos

meus filhos e percebi que precisava organizar

aquilo”, afirma. “Fui passional.

Coloquei a paixão pelos meus filhos à

frente da racionalidade de seguir a minha

carreira”, afirma. “Pensando na

minha carreira, não foi uma decisão inteligente

da minha parte, mas eu precisava

fazer aquilo e me dei um prazo de

três anos”, diz.

Quando finalmente assumiu o cargo,

percebeu o tamanho da treta. Os

Racionais tinham 25 anos de história

completamente desorganizada

e mais de 2 mil redes sociais falsas

usando o nome do grupo ou de seus

integrantes. Não havia produtos licenciados

oficiais, apenas pirateados. “A

bagunça favorecia todo mundo, menos

a banda”, informa.

Eliane chegou impondo respeito: trouxe

uma metodologia de trabalho, com

horários e cronogramas a serem obedecidos.

“Eles estavam acostumados a

ser livres e falavam que a palavra deles

já valia. Comigo não. Eu sou advogada.

Comigo, o que vale é o que está escrito

e assinado. A partir de então, eles

só iam para um show depois que todo

o cachê estivesse pago”, lembra. Pouco

depois de Eliane assumir a Boogie

Naipe, os Racionais lançaram um novo

disco depois de um hiato de 12 anos, o

Cores & Valores, que foi eleito o melhor

álbum nacional de 2014 pela revista

Rolling Stone Brasil.

À frente da Boogie Naipe, Eliane estabeleceu

uma meta ousada para o

grupo, e decidiu que a banda de rap se

apresentaria em uma grande casa de

shows. “O povo negro merecia cantar e

ir assistir a um show em um lugar onde

todo mundo é tratado com respeito.

Com segurança, banheiro limpo, acústica

e equipamento de primeira”, diz.

O grupo resistiu enquanto pôde, mas

a empresária conseguiu convencê-los

com o argumento de que o rap deu voz

a quem não tinha, e estava na hora de

levar essa voz para outros lugares. E

ela levou mesmo. Em 2019, os Racionais

estrearam no Credicard Hall, em

São Paulo, em três apresentações que

resultaram no DVD Três Décadas.

A mão de ferro e a visão de futuro de

Eliane prepararam a equipe para eventuais

emergências. E a emergência veio

este ano: o coronavírus, que paralisou

toda a indústria de entretenimento,

cancelou a agenda de shows do grupo

em 2020, mas, com as contas organizadas,

ninguém precisou passar aperto.

Hoje, além do grupo de rap mais famoso

do Brasil, Eliane gerencia a carreira

de outros cantores, entre eles a Liniker.

“Sinto muita saudade de trabalhar

como advogada, de ler, de ter aquele

papel de conciliadora, de cuidar. Mas

acho que faço isso de uma forma diferente

agora”, afirma.

“Todas as metas que coloquei no meu

caminho, eu cumpri. E essa é uma

lição que aprendi desde cedo: se você

estabelece uma meta e cumpre, então

você é bem-sucedida. Não importa

se a sua é fazer uma caminhada

ou uma faculdade”

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 36


Plano B, C, D...

Enquanto tenta, há dois meses, terminar

de ler A Arte da Guerra, de Sun

Tzu, e Olhos d’Água, de Conceição Evaristo

(“Sempre leio dois livros ao mesmo

tempo”), Eliane divide seu tempo

com outras carreiras: a de palestrante

– adaptada para entrevistas e lives no

período de isolamento social – e a de

investidora de uma marca de moda, a

Yebo, junto com sua filha, Domenica, e

outras mulheres. “Toda mulher deveria

ter um plano B. Vai chegar um momento

em que não vou mais querer ser produtora.

E aí? Vou ter que começar algo

do zero? Nada disso!”

Eliane se vê como um ponto fora da

curva. “Fui bem-sucedida em alguns

aspectos, porque o racismo estrutural

esperava que eu seguisse um caminho,

mas eu hackeei esse sistema”, diz. “Minha

mãe morou na rua, eu não tinha

casa, comida, tive que pagar meu próprio

estudo. Mas todas as metas que

coloquei no meu caminho, eu cumpri.

E essa é uma lição que aprendi desde

cedo: se você estabelece uma meta e

cumpre, então você é bem-sucedida.

Não importa se sua meta é fazer uma

caminhada ou uma faculdade. Mas

uma coisa importante: a meta tem que

ser possível, senão você só vai se frustrar”,

ensina. Sua meta para os próximos

cinco anos? Terminar o MBA que

ela teve de abandonar por causa das

viagens de trabalho, voltar a estudar

direito e, talvez, começar a lecionar.

Ao longo de sua carreira, uma habilidade

específica foi muito importante: a

empatia. “É muito difícil, mas muito necessário

se colocar no lugar do outro –

até do inimigo – e viajar na mente dele.

Em qualquer negociação, qualquer

situação. Se não consegue fazer isso

nunca, é game over”, afirma. A técnica

de “aprender a ouvir” foi algo que ela

adquiriu na faculdade de direito. “Mas,

como mulher preta e canceriana, todo

mundo sabe que sou firmeza, aquela

que cuida, protege. Só não me chama

pra cozinhar porque minha sopa fica

rosa, fica tudo sem gosto”, brinca.

Apesar de não se considerar vaidosa,

Eliane prefere não revelar a idade. “Eu

sou feminista e sei que isso não importa,

mas tenho as minhas limitações”,

diz. Ela também não costuma usar saias

curtas e decotes. “Vivi num mundo de

machos. Cresci tendo que ser uma menina

arisca para não cair em emboscada.

Já sofri muito assédio e preconceito

por causa da aparência. E sei que é um

ponto delicado pra mim”, afirma.

Ela também nunca se sentiu à vontade

com ostentação. “Sempre fui muito

racional com dinheiro. Queria ter

quatro, cinco filhos, mas não fiz isso

porque sempre pensei friamente: ‘Se

meu companheiro morrer, ficar doente,

for embora, como vou fazer?’.

Então tive dois, porque de dois eu dou

conta. Ser autônoma não é fácil”, afirma.

“Ser autônoma, mulher e negra é

mais difícil ainda.”

Dica para a jovem

Eliane Dias:

“Siga o sonho de ser

advogada. Continue

estudando e não

pare até conseguir”

“Fui bemsucedida

em

alguns aspectos,

porque o racismo

estrutural

esperava que

eu seguisse um

caminho, mas

eu hackeei esse

sistema”

Portas abertas na política

Em 2018, em meio ao conturbado cenário político brasileiro, Eliane recebeu o convite para concorrer como vice da então candidata

à Presidência Manuela D’Ávila pelo PCdoB. Ela recusou a oferta, mas isso não impediria um novo convite, desta vez para

encabeçar a chapa petista à prefeitura de São Paulo, tendo o vereador Eduardo Suplicy como vice. Mais uma vez, ela recusou.

Eliane acredita que nenhum partido político contempla as pautas que são importantes para ela, e, da forma como o jogo é feito

hoje, ela prefere não jogar. “Se eu fosse eleita para algum cargo, seria mais uma marionete. Se não tenho lugar de fala, prefiro

não participar. Não vou me transformar em uma vidraça e expor minha família a troco de nada”, diz. “Eu adoro política. Gosto

do peso da caneta e sei como é importante a representatividade. Como é importante ter alguém lá que olhe pelo povo, que saiba

o que o povo precisa. Mas estou muito decepcionada agora.”

Quando era jovem, Eliane fazia campanha para candidatos das chamadas “minorias”, mas conheceu esse jogo da política de perto

no período em que trabalhou na Assembleia Legislativa de São Paulo, como assessora parlamentar da deputada Leci Brandão

(PCdoB) e coordenadora do serviço de combate ao racismo SOS Racismo. Embora esteja desiludida com o mundo político,

ela se mantém confiante, e acredita que a política possa encontrar um equilíbrio quando o momento de extremismos passar.

Enquanto isso não acontece, segue como ativista, defendendo os direitos das mulheres negras. Ela afirma que uma das formas

de combater o racismo é ocupando os espaços. Por isso, procura dar espaço a mulheres negras na sua produtora e incentiva a

comunidade da maneira que pode. “Compre produtos feitos por negros, incentive e valorize os músicos negros. E se não te querem

no avião? Entra e senta”, diz. Mas reconhece que ainda falta representatividade entre as lideranças políticas. “Os homens

brancos de meia-idade vão ter que dividir esse espaço de poder aí”, sentencia. Em breve, pode ser ela a ocupar esse espaço.

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 37


Uma

dançarina

em busca

da cura

Por Christiana Albuquerque

A renomada coreógrafa brasileira

já tocou piano e jogou vôlei, mas foi

por meio da dança que ela driblou a

depressão e ganhou o mundo

Nome: Deborah Colker

Idade: 60 anos

Profissão: diretora e

coreógrafa

Cidade onde

nasceu: Rio de Janeiro

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 38


Foto: Cafi

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 39


P

ara quem vive de apresentações, o ano de 2020 tem

sido um interminável pesadelo. Por causa da pandemia

da Covid-19, a coreógrafa e diretora Deborah Colker

viu seus planos virarem do avesso. Mas nem o novo coronavírus

conseguiu parar por muito tempo essa carioca de 60

anos que carrega um currículo de peso: foi a primeira mulher

a dirigir um show do Cirque du Soleil, Ovo, de 2009; atuou

como diretora de movimento das cerimônias da Olimpíada

de 2016; soma 13 espetáculos produzidos pela companhia de

dança que leva seu nome; e contabiliza prêmios importantes

na carreira, como o Benois de la Danse, de melhor coreografia

por Cão sem Plumas, em 2018.

Na última virada de ano, embora tivesse acabado de perder

o patrocínio da Petrobras, a Companhia de Dança Deborah

Colker vislumbrava um 2020 promissor. “Eu estava fazendo

um trabalho muito legal para a Alemanha, para a celebração

dos 250 anos de nascimento de [Ludwig Van] Beethoven. O

show se chamaria No Mundo da Lua, em referência a Sonata

ao Luar, do compositor. Minha companhia também estava

migrando para um novo formato, e eu estava ensaiando outro

espetáculo com meu grupo de dança. Veio a pandemia e

créu!”, desabafa a diretora, que teve o projeto em parceria

com a Alemanha cancelado em decorrência do novo coronavírus.

A estreia da atração que a companhia apresentaria em

Londres, em janeiro de 2021, foi adiada.

Mas a pandemia não foi o primeiro obstáculo de Deborah

este ano. Em março, sua companhia enfrentou um surto de

sarampo – o Brasil havia erradicado a doença infectocontagiosa

em 2016, mas registrou quase 15 mil casos no ano passado.

Nove pessoas do grupo acabaram contaminadas, entre

elas Deborah. Por causa do sarampo, Deborah ficou quatro

dias internada. Quando deixou o hospital, a pandemia de

Covid-19 havia sido declarada pela Organização Mundial da

Saúde (OMS). “Comentei com Bonder [o rabino e escritor Nilton

Bonder], que está trabalhando comigo, quando saí do hospital:

‘Voltei ao mundo!’. Ele me respondeu, de forma bem-humorada:

‘Pena que o mundo acabou’”, lembra.

“Entendi que a cura que estou buscando é da natureza

humana. Que ser é esse que não entende que as

diferenças são positivas? E que a ignorância talvez

seja a maior tragédia humana?”

Espetáculo Cão sem Plumas. Foto: Cafi

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 40


A busca pela cura

A companhia ficou dois meses parada

por causa do isolamento social para

tentar conter a propagação do novo

coronavírus. Enquanto isso, a Covid-19

virou o assunto mais comentado no

planeta, mas outra enfermidade já provocava

impacto na vida da diretora. Seu

neto mais velho, Theo, de 11 anos, sofre

de epidermólise distrófica recessiva,

doença genética rara, ainda sem cura,

caracterizada pela formação de bolhas

na pele. Além da grande sensibilidade

cutânea, o paciente também enfrenta

o preconceito: em 2013, o menino, filho

de Clara, de 36 anos, quase foi retirado

de um voo depois que passageiros reclamaram

da possibilidade de a doença

ser contagiosa. Na ocasião, um médico

da Infraero teve de atestar que a doença

não é contagiosa para a companhia

aérea autorizar a decolagem.

Deborah, que também é mãe de Miguel,

de 33 anos, e avó de Alice (5) e Rafael

(1), foi transformada pela doença do

neto. “Desde que ele nasceu, prometi a

ele, à minha filha, a mim mesma e ao

mundo que eu ia encontrar a cura”,

conta. Deborah lida com uma grande

questão filosófica em relação ao tema

e pretende trazê-la aos palcos: como

buscar a cura do que não há cura? Foi

a partir desse questionamento que começou

a elaborar Cura, ainda na fase

de ensaios.

Imbuída desse sentimento, Deborah

retomou o plano, mais um da lista dos

que foram interrompidos em função

da pandemia. “Eu vinha trabalhando

nessa ideia, querendo fazer uma ponte

entre a fé e a ciência.” Deborah viveu

uma fase de altos e baixos no projeto.

Achou que todo o seu trabalho tinha

ido por água abaixo. Começou a se

questionar sobre o sentido do espetáculo.

“Vinha trabalhando nele havia

dois anos... O [compositor] Carlinhos

Brown estava montando a trilha, o [jornalista]

Luiz Fernando Vianna estava

fazendo a pesquisa, eu e o Bonder já

vínhamos conversando havia um bom

tempo. Cheguei a pensar que era uma

coincidência eu estar estudando a cura

e acontecer uma pandemia... Mas depois

entendi que a cura que estou buscando

é da natureza humana. Que ser

é esse que não entende que as diferenças

são positivas? E que a ignorância

talvez seja a maior tragédia humana?”,

reflete.

A partir desse momento, resolveu encarar

a adversidade e levar adiante seu

empreendimento, mesmo com todas

as incertezas. Desde então, segue confiante

de que irá estrear Cura de forma

presencial em março de 2021, agora no

Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

Atualmente, ensaia com seus dançarinos

apenas três vezes por semana durante

quatro horas ininterruptas para

seguir os protocolos de saúde – a própria

entrevista à Et Cetera foi fracionada

para não interferir na agenda de

encontros com os bailarinos. “Horário

de ensaio é precioso para mim.”

De volta às origens

Deborah Colker nasceu na cidade do

Rio de Janeiro, filha do casal de arquitetos

Adolpho e Anita Colker, ambos

descendentes de russos. Ela tem dois

irmãos: Flávio, que é fotógrafo, e Marcelo,

que atua no ramo de restaurantes.

“Apanhava dos meus irmãos mais velhos,

mas sempre fui a querida, a menina

da casa”, revela. O pai faleceu em

1998, e a mãe tem hoje 86 anos. “Aprendi

com ela a nunca desistir.” Para seu

novo projeto, recorreu às origens – é

neta de imigrantes judeus – e está atuando

em parceria com o rabino Bonder,

consultor que a ajuda a escolher as

palavras certas. “Em Cura, volto a trabalhar

com projeções, mas não queria

usar imagens. Na dança, por mais que

você queira, não pode dar uma aula de

genética, por exemplo. Eu vou falar de

DNA, de terapias genéticas. Como faço

para trazer as palavras, as histórias?”

Deborah adianta que o espetáculo terá

ainda referências ao mito africano de

Obaluaiê, orixá da doença e da cura, e

ao físico inglês Stephen Hawking, que

ela considera um ídolo, “um cientista

iluminado, um guerreiro”.

A coreógrafa se casou três vezes. O

primeiro relacionamento, com Cafi,

fotógrafo e pai de seus filhos, durou

cerca de dez anos. Seu segundo marido

é atualmente um grande amigo e

parceiro de trabalho, o empresário João

Elias, seu companheiro por 11 anos e

cofundador da companhia de dança.

É casada com o músico Toni Platão há

mais de uma década. “Minha vida pessoal

é muito misturada com a profissional.

Acho que a mãe, a avó, a mulher,

a diretora, uma invade a vida da outra.

Ser avó do Theo passou a ser uma missão,

um foco, um sim, um não, uma

linha reta, uma meta”, diz a premiada

dançarina, que gosta de cuidar de plantas

nas horas vagas.

Deborah tem espírito persistente, e

mostrou sua veia artística ainda criança.

Demonstrou cedo o interesse em

aprender a tocar piano. Como ainda era

muito pequena, os pais a matricularam

em aulas de musicalização. “Foi assim

que aprendi o método Carl Orff [compositor

alemão que desenvolveu uma metodologia

com atividades lúdicas para ensinar

música a crianças pequenas]. Eu tinha 6

anos. Só aos 8 comecei a estudar piano.”

Deborah revela um talento nato:

tem leitura à “primeira vista” de piano.

“Eu leio uma partitura de primeira e

saio tocando.”

A inquieta Deborah não conseguiu se

ater à música. “Desde aquela época,

eu já gostava e sentia necessidade de

praticar esportes. Aos 10 anos, comecei

a jogar vôlei. O esporte e a música

me cabiam perfeitamente, apesar de

a minha professora de piano reclamar

dos efeitos da bola em meus dedos”,

diverte-se. Ela também fez balé, dança

rítmica e ginástica. “Acredito que

o esporte veio como uma necessidade

de extravasar a energia do vulcão que

existe dentro de mim.”

A juventude, segundo ela, “foi hippie

e comunista”. Na adolescência, enfrentou

uma forte crise depressiva

e parou com todas as aulas. Para sair

da depressão, voltou ao balé e passou

também a frequentar aulas de dança

moderna e sapateado com o coreógrafo

tcheco radicado no Brasil Zdenek

Hampl. “Mergulhei intensa e obsessivamente

na dança. Acredito que

a dança uniu a energia do esporte e a

sensibilidade da música em mim.” Foram

três anos de aulas de dança moderna,

jazz, balé e sapateado, até que

conheceu Graciela Figueroa, uruguaia

fundadora do carioca Grupo Coringa,

onde permaneceu por oito anos “dando

aulas, enquanto cursava a faculdade de

psicologia na PUC”.

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 41


Nasce uma coreógrafa

No fim da década de 1980, sua vida deu uma guinada. Ou

melhor, uma pirueta. “Comecei a trabalhar como coreógrafa

e diretora de movimento em peças de teatro, clipes, publicidade,

TV. Junto, sempre tive minhas turmas de dança

contemporânea e fui construindo meu repertório, meu vocabulário,

experimentando o corpo e o movimento”, conta.

Seus trabalhos começaram a ganhar destaque, e ela passou

a ser chamada para atuar na preparação corporal de atores

em peças teatrais. “Inaugurei minha história no teatro com

a [atriz] Dina Sfat”, referindo-se à peça Irresistível Aventura,

dirigida por Domingos Oliveira em 1984, em que dava aulas

de expressão corporal à atriz, falecida em 1989. “Eu aprendi

muito com o teatro. Fiz cerca de 60 peças, clipes para

novelas, filmes publicitários.” Até programa infantil integra

a lista. Nos anos 1990, Deborah foi convidada para criar os

movimentos dos enormes cachorros bonecos da TV Colosso,

exibido na TV Globo.

Embora fosse conhecida no meio artístico, seu nome ainda

não havia alcançado o grande público. Naquela época, Deborah

participava de festivais, saraus e qualquer evento que

envolvia a dança. Em 1994, inscreveu-se no festival internacional

Carlton Dance e foi selecionada para representar o

Brasil. O evento foi cancelado, mas ela não desistiu do projeto

em que estava trabalhando. Naquele ano, estreou seu primeiro

show, Vulcão, na mostra Globo em Movimento. A então

recém-criada Companhia de Dança Deborah Colker se apresentou

pela primeira vez na mesma noite que o consagrado

grupo americano Momix. No ano seguinte, com Velox, em que

colocou bailarinos em uma parede de escalada, a companhia

chamou a atenção: atraiu 55 mil espectadores em seis meses

de apresentação.

E assim Deborah e sua companhia de dança foram construindo

uma trajetória no Brasil e no exterior. Em 2006, a

convite da Fifa, criou Maracanã para a Copa do Mundo de

2006 – mais tarde, o show foi incorporado ao repertório com

o nome de Dínamo. Em 26 anos, ela deu luz a 13 espetáculos

para a sua companhia: Vulcão (1994), Velox (1995), Mix (1996),

Rota (1997), Casa (1999), 4 POR 4 (2002), Nó (2005), Dínamo

(2006), Cruel (2008), Tatyana (2011), Belle (2014), Vero (2016)

e Cão sem Plumas (2017).

“Aprendi que, às vezes, uma ideia que parece incrível

na cabeça se revela uma porcaria na prática”

Dançando em novos

palcos

Deborah criou mais de uma dezena de

apresentações para o público tradicional

desse tipo de evento, mas também

deixou sua marca no maior show da

terra: “Criei três comissões de frente

para a Mangueira, três para a Viradouro

e duas para a Imperatriz Leopoldinense”,

contabiliza, lembrando-se das

atuações nas escolas de samba do grupo

especial do Rio de Janeiro, cidade

onde mora. “Eu adoro o Carnaval. É um

cortejo, um espetáculo em movimento.

O Carnaval é uma competição, é um estresse,

mas a bateria tocando… Aquilo é

muito sofisticado e elegante, o céu entra

em festa!”, relata.

Deborah acredita que sua expertise

como diretora ganhou um enorme upgrade

com a realização de Ovo (2009),

criado para o aclamado grupo Cirque

du Soleil. Colker foi a primeira mulher

a comandar um espetáculo da trupe,

que tem sede em Montreal, no Canadá.

Deborah recorda que, na época, já

tinha a expertise de 15 anos dirigindo

sua companhia, e isso foi fundamental

no processo. “Graças a esses anos de

experiência, consegui chegar ao fim

do trabalho. Conheço gente que não

conseguiu.” Ovo exigiu muitas idas a

Montreal, inúmeras e intermináveis

reuniões, tentativas e erros, workshops

e nove meses de ensaio. “Foi como um

mestrado, uma pós-graduação. Aprendi

muito no Cirque du soleil. Eu nunca

trabalhei com uma estrutura como

aquela, nem nas Olimpíadas”, avalia.

A diretora levou consigo esse aprendizado.

Mais precisamente para os

Jogos Olímpicos de 2016, em que foi a

diretora de movimento das cerimônias

olímpicas e na qual teve de lidar com

questões diferentes daquelas com as

quais estava acostumada. “Olimpíada

é o espetáculo mais televisionado

do mundo, com questões políticas, 5

mil voluntários, tendo que traduzir a

história de uma cidade. São muitas

questões diferentes, e tudo se passa ao

vivo”, recorda. “Fazer um espetáculo

para o Cirque e as Olimpíadas parece

ser algo semelhante porque são eventos

grandes, têm dimensão, não pode

ter erro. Mas nas Olimpíadas você só

tem uma chance. E tem que dar certo.”

Para dar certo, levou a expertise

do Cirque de criar workshops: experiências

com movimentos e cenários.

“Aprendi que, às vezes, uma ideia que

parece incrível na cabeça se revela

uma porcaria na prática.”

Misturar formas e estilos artísticos é

uma constante na carreira da diretora.

Muitas vezes, essa mistura não é bem

recebida. “Quando fiz Velox, diziam

que meu trabalho não era dança, era

esporte. Quando criei Rota, diziam que

meu trabalho não era dança, era circo.

Quando fiz Casa, também fui criticada.

Mas são técnicas que você pode trazer

para a sua dança, para o seu trabalho

autoral, original”, explica. “Fico me provocando.

São as minhas inquietações

que levo para os espetáculos.” Deborah

também conta que, durante o processo

de criação de Nó, projeto que fala de

desejo, ela e sua equipe tiveram aulas

de filosofia. “Vi que a gente tinha que

estudar os gregos, ver o que é virtude,

desejo. Eu queria entender o lugar desses

sentimentos no campo do estudo.

Tenho necessidade de aproximar conhecimentos

distintos.”

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 42


Filosofia Colker

A artista busca na dança uma forma

de resolver suas questões artísticas e

filosóficas. “A dança é minha maneira

de trazer para o mundo essas perguntas

que ficam me rondando. Às vezes,

preciso da ajuda da palavra, já precisei

do cinema, das artes plásticas.” As

críticas, muitas vezes, apontam para a

cobrança de fazer dança em um nível

mais purista, algo de que ela discorda.

“A arte é um lugar de subverter, de

quebrar tabus.” Atualmente, ela parece

não mais se importar tanto com

os rótulos. “Hoje em dia, se me dizem

que faço entretenimento, e não arte,

digo: que ótimo! Já não tenho mais essa

questão”, admite Deborah. Para chegar

a esse ponto, a coreógrafa precisou encarar

muitas experiências e aprimorar

seu processo criativo. “Fui me entendendo

mais como uma diretora do que

como uma coreógrafa. O significado

das coisas ficou mais essencial pra

mim. Quando começo a pensar nessas

questões, passo logo a experimentar

no corpo”, conta. Ela completa: “Brinco

que a dança começa no cotovelo. Porque

é o corpo que vai traduzir o pensamento.

O movimento são ideias que o

corpo produz. O corpo, fazendo movimento,

quer falar alguma coisa”.

A paixão pela dança tem levado Deborah

Colker longe. Para a Rússia, por

exemplo. Em 2018, no Teatro Bolshoi

de Moscou, a Companhia de Dança

Deborah Colker venceu o Benois de la

Danse, um dos prêmios mais importantes

do mundo, por Cão sem Plumas, baseado

na poesia de João Cabral de Melo

Neto. Quando tem que definir o que

significa a dança, Deborah não mede

palavras: “Dança é ação. É pensamento

em movimento, ela é reflexão, ela é

transformação. Ela é cura!” Envelhecer,

para ela, é uma transformação necessária

e válida. “Como tudo na vida,

tem coisas boas, ruins, positivas, negativas.

As dores aumentam, mas como

eu poderia ser avó sem ter envelhecido?

O importante é preservar a alegria

no meio de tanta dor”, filosofa.

Deborah Colker pode dizer que já tem

uma estrada e um nome de relevo na

dança brasileira contemporânea. Além

da companhia, ela comanda duas unidades

da escola Centro de Movimento

Deborah Colker, uma no bairro da Gávea,

outra na Glória, na zona sul do Rio

de Janeiro. “São meus orgulhos. Moro

numa cidade partida, cheia de contradições.

Mas, nas minhas escolas, tem

espaço para todo mundo. Eu quero todas

as culturas juntas e misturadas”,

afirma. Com ou sem pandemia, a “dínamo”

Deborah Colker não para.

“Brinco que a dança

começa no cotovelo.

Porque é o corpo que vai

traduzir o pensamento. O

movimento são ideias que

o corpo produz. O corpo,

fazendo movimento, quer

falar alguma coisa”

Dica para o jovem

Deborah Colker:

“Estude, experimente,

se desafie.

Subverta ordens e

procure caminhos

inexplorados,

sempre em busca

de conhecimento”

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 43

Olimpíadas Rio 2016. Foto: divulgação


O Indiana

Jones da

cozinha

sertaneja

Por Daniela Macedo

As aventuras e os aprendizados do

estrelado chef Rodrigo Oliveira, da sua

expedição pelo sertão nordestino ao projeto

que distribui marmitas à comunidade

carente da zona norte de São Paulo

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 44


Nome: Rodrigo Oliveira

Idade: 40 anos

Profissão: cozinheiro

Cidade onde

nasceu: São Paulo

Foto: Dede Fedrizzi

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 45


A

voz serena e o sorriso tímido de Rodrigo Oliveira contrastam com a rotina agitada de um chef de cozinha à frente de quatro

restaurantes na maior capital do país, entre eles o renomado Mocotó. E refletem traços marcantes de sua personalidade,

como humildade e gratidão, valores que o cozinheiro de 40 anos herdou dos pernambucanos Lourdes e José Almeida.

Quando uma pandemia fechou as portas dos restaurantes na capital paulista, Rodrigo passou a distribuir 200 marmitas por

dia a pessoas socialmente vulneráveis da Vila Medeiros, bairro da “quebrada” paulistana, como ele costuma dizer, onde fica o

Mocotó. Mas a história do responsável pelo restaurante de comida sertaneja reconhecido internacionalmente vem de longe e

merece ser saboreada sem pressa, como quem petisca os famosos dadinhos de tapioca acompanhados de uma boa cachaça no

número 1.100 da Avenida Nossa Senhora do Loreto.

José Almeida (ao lado, com o filho Rodrigo),

nasceu em Mulungu, um vilarejo

no sertão pernambucano a 200

quilômetros do Recife, em 1938. Na

década de 1960, a busca por uma vida

melhor impulsionou o corajoso rapaz

de 25 anos a pegar três peças de roupa

e um par de sapatos e a se enfiar

em um ônibus velho que demoraria

oito dias para chegar a São Paulo. Na

“cidade grande”, trabalhou em fábricas

e metalúrgicas até que, em 1973,

abriu um empório em sociedade com

dois irmãos. Foi na Vila Medeiros,

zona norte de São Paulo, que nasceu

a casa do norte Irmãos Almeida. Nesses

primeiros anos de trabalho duro,

durante uma visita aos parentes no

sertão pernambucano, José conheceu

a costureira Lourdes. O relacionamento

à moda antiga resistiu à distância e

às restrições de comunicação em um

tempo sem internet e de ligações interurbanas

raras e caríssimas. Foram 14

meses de namoro por troca de cartas

até o casamento, e logo vieram os dois

filhos: Patrícia e Rodrigo.

Quando o caçula, Rodrigo, nasceu, em

1980, o caldo de mocotó vendido na

casa do norte de seu Zé já havia ganhado

fama pelo bairro. O empório de

produtos nordestinos que servia o caldinho

em um pequeno balcão ganhou

dez mesas e virou um modesto botequim

com três funcionários. Foi nesse

ambiente que o garoto de 13 anos decidiu

que passaria seus fins de semana.

Contrariando o pai, que não via futuro

para o filho naquele local, Rodrigo passava

seus sábados e domingos a lavar

louça, picar legumes, servir mesas.

“Ele era meu herói e eu queria ficar ao

lado dele”, lembra Rodrigo.

Apesar da familiaridade com a rotina

na cozinha do botequim, seguir carreira

como chef estava fora de cogitação.

“Minha família não tinha o hábito de

frequentar restaurantes, e eu demorei

a ter contato com o universo da gastronomia”,

conta. Naquela época, o

amor pelos animais com os quais brincava

durante as férias na terra natal

Rodrigo Oliveira e seu Zé Almeida Foto: Lailson Santos

dos pais alimentava o sonho de ser veterinário. A ideia foi ganhando novos rumos

até que, “no fervor da luta pelo meio ambiente dos anos 1990”, como ele diz, Rodrigo

matriculou-se na faculdade de engenharia ambiental. “Eu queria ser o Indiana

Jones, mas com o tempo percebi que, em vez de ter uma vida aventureira, acabaria

trabalhando no escritório de uma das grandes corporações que queria derrubar”,

brinca. A segunda tentativa veio com o curso de gestão ambiental, “um lado mais

humano dessa carreira”, explica, mas o destino não deixaria Rodrigo se desviar da

cozinha. Uma amiga de faculdade lhe apresentou o irmão que estudava gastronomia,

então novidade nas universidades brasileiras, e Rodrigo ficou deslumbrado

com a descoberta do curso.

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 46


“Eu queria ser

o Indiana Jones,

mas com o tempo

percebi que, em

vez de ter uma

vida aventureira,

acabaria

trabalhando no

escritório de

uma das grandes

corporações que

queria derrubar”

Sob nova direção

Aos 21 anos, decidiu abandonar a carreira

na área do ambientalismo para se

dedicar à gastronomia. Matriculou-se

na faculdade e assumiu o comando do

restaurante Mocotó, disposto a fazer

uma grande reforma na casa. As ideias

inovadoras do jovem cheio de energia

e criatividade batiam de frente com o

temperamento conservador do pai. “A

cada mudança no restaurante, nós tínhamos

três brigas: quando eu apresentava

a ideia, durante a execução e

quando ficava pronto”, conta. Sua inexperiência

era o combustível para a resistência

de seu Zé às propostas de Rodrigo,

mesmo depois da graduação. Em

determinado momento, ele aprendeu a

trocar os três embates por um – passou

a tomar as decisões e executá-las

antes de falar com o pai –, mas uma

discussão séria em 2006 acabou resultando

em uma experiência marcante e

fundamental no amadurecimento profissional

e pessoal de Rodrigo. “Meu

pai disse algo como ‘Você não sabe de

nada; precisa aprender muita coisa antes

de fazer o que quer aqui’, e aquilo

mexeu comigo. Talvez ele estivesse

certo”, revela.

Disposto a aprender, rabiscou em uma

folha de caderno um roteiro em zigue-

-zague pelo Nordeste e, com um Guia

Quatro Rodas no porta-luvas de sua caminhonete,

pegou a estrada sozinho

com o objetivo de mergulhar na gastronomia

regional. Visitou inúmeros restaurantes,

mercados, feiras e produtores

locais. Conversou com cozinheiros

e donas de casa para conhecer as particularidades

que distinguem as culinárias

do sertão de Pernambuco, do

Ceará, da Bahia. Aprendeu como a cozinha

do sertão influenciou a culinária

do litoral, e vice-versa. Quando relembra

a experiência, Rodrigo se emociona:

“Eu adoraria repetir aquela viagem.

Seria impossível reviver tudo aquilo

porque muita coisa mudou, não só os

lugares, eu também mudei. Mas tenho

muita vontade de voltar porque ainda

há tanta coisa pra aprender no sertão”.

Uma sequência de problemas mecânicos

quase o fez abandonar o carro e

voltar de carona para casa. Mas a expedição

de 50 dias do Indiana Jones

da gastronomia em busca dos sabores

sertanejos terminou como toda boa

viagem acaba: com muitas lembranças

boas e conhecimento na bagagem.

O retorno foi marcado pela reconciliação

entre pai e filho. Mais confiante

em suas decisões e seguro da autenticidade

dos pratos que saíam de sua

cozinha, Rodrigo inseriu o Mocotó no

roteiro dos melhores restaurantes de

São Paulo. A carne-seca desfiada com

cebola roxa, o baião de dois, a carne de

sol na brasa e as outras iguarias preparadas

pelas mãos de Rodrigo e sua

equipe passaram a atrair frequentadores

do circuito de restaurantes badalados

da cidade. Os imbatíveis dadinhos

de tapioca, criação do filho de seu Zé,

caíram no gosto popular e hoje figuram

no cardápio de diversos restaurantes

pelo país. Se seguisse uma cartilha

pautada pela ambição, o passo seguinte

seria levar o Mocotó para um bairro

nobre, reduzir as generosas porções e

subir os preços de um menu ‘exclusivo’,

mas Rodrigo fez o caminho oposto:

apostou no conceito da ‘inclusividade’,

como ele gosta de dizer, para reunir

no mesmo salão da Vila Medeiros celebridades

e empresários endinheirados

com moradores da periferia. Deu certo,

e o Mocotó ganhou do prestigiado Guia

Michelin o selo Bib Gourmand, que distingue

as melhores relações qualidade-

-preço da gastronomia. Com tudo sob

controle, era hora de apostar em novas

aventuras e, em 2013, Rodrigo inaugurou

o Esquina Mocotó.

O chef define a abertura do Esquina

como “uma loucura”. Embora já comandasse

uma cozinha havia mais de

uma década, Rodrigo entregou-se ao

desafio de conceber e executar o projeto

de uma nova casa, um passo além de

quando assumiu o restaurante da família.

E na nova casa, vizinha do Mocotó,

tudo seria novidade. “A gente se propôs

a fazer algo que não sabia fazer. Queríamos

apresentar à ‘quebrada’ um restaurante

de excelência que pudesse ser

frequentado pela comunidade local”,

lembra. Cozinha autoral, carta de vinhos,

guardanapos de linho, decoração

elegante. Para os moradores do bairro,

aquilo de fato era uma novidade. A enxurrada

de prêmios como melhor restaurante

de cozinha brasileira começou

já no ano de estreia e, em 2016, veio a

estrela Michelin. Só um aspecto do projeto

não batia: a relação do restaurante

estrelado com a comunidade. Ainda

que os preços estivessem abaixo dos

praticados pelos concorrentes do mesmo

nível, o valor dos pratos não atraía

os residentes da Vila Medeiros.

Em 2018, Rodrigo decidiu fechar as

portas de um restaurante premiado

e bem-sucedido. “Descobrimos duas

coisas importantes nesse processo. A

primeira é que a Vila Medeiros pode

ter um restaurante estrelado. A segunda,

talvez mais importante, é que

a Vila Medeiros não precisa de um

restaurante estrelado”, resume. A maturidade

adquirida com a experiência

no Esquina ajudou na abertura de três

novas casas que ganharam o estômago

dos paulistanos desde o primeiro dia de

funcionamento: os dois Mocotó Café,

no Mercado de Pinheiros e no Shopping

D, e o Balaio IMS, inaugurado em

2017 no Instituto Moreira Salles. Localizado

na Avenida Paulista, coração de

São Paulo, o Balaio já marcou presença

na lista dos 50 Best Latin America da

revista inglesa The Restaurant Magazine,

ranking que também destacou o antigo

Esquina. E, assim como as casas da

franquia Mocotó, carrega a bandeira de

‘inclusividade’ defendida por Rodrigo.

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 47


Foto: Dede Fedrizzi

“Poucos gestos têm tanto impacto no mundo quanto

a escolha do seu almoço e do seu jantar. Ela gera um

impacto econômico, ambiental, social, familiar e até

religioso, dependendo da sua crença”

Mimo para entregadores

Além dos valores herdados dos pais, Rodrigo tem outra fonte

de inspiração dentro de casa. A esposa, Adriana Salay, é historiadora

e pesquisa a fome no Brasil. Em uma das primeiras

conversas, a pesquisadora ensinou ao chef seu verdadeiro

papel na sociedade. “Ela disse que o objetivo do restaurante é

fazer com que as pessoas saiam melhores do que entraram,

e aquilo foi um insight pra mim.” Rodrigo percebeu que, mais

que o baião de dois, o dadinho de tapioca ou a extensa carta

de cachaças, o carro-chefe do Mocotó é o relacionamento.

“Nossa função é acolher, promover uma restauração emocional

com boa comida, boa bebida e atendimento simpático”,

diz. E o investimento no bom relacionamento não fica restrito

à relação da equipe com os clientes que formam filas na porta

de seus estabelecimentos – que o digam os funcionários dos

fornecedores, recebidos com café, chá, água, biscoitos e bolinhos

nos dias de entrega.

Em suas palestras e entrevistas, Rodrigo salienta o papel do

cozinheiro na conscientização alimentar. “Poucos gestos têm

tanto impacto no mundo quanto a escolha do seu almoço e do

seu jantar. Ela gera um impacto econômico, ambiental, social,

familiar e até religioso, dependendo da sua crença. O modo

como a gente come acaba moldando o mundo”, resume. Pautada

por escolhas mais conscientes, a compra dos alimentos

preparados nas cozinhas de Rodrigo ganhou novos critérios

nos últimos anos. Ele privilegia produtores familiares e cooperativas

que vendem produtos orgânicos e aprendeu que

rastrear a origem de seus alimentos é um processo trabalhoso.

“Em um sistema convencional, basta uma única ligação

para encomendar tudo de que o restaurante precisa, de hortifrúti

a laticínios. Por outro lado, se optar por tomates orgânicos,

por exemplo, é preciso ligar para cinco, seis, até dez

fornecedores para garantir abastecimento regular porque

esses produtores familiares vendem pequenas quantidades.

E isso só para comprar tomates!”, explica. Na última reforma,

realizada há cinco anos, o Mocotó ganhou um pomar e

uma horta na laje. O espaço não é capaz de fornecer grandes

volumes, claro, mas dali saem direto para a cozinha alguns

ingredientes raros e usados em pequenas quantidades, como

ora-pro-nóbis, poejo e bertalha.

Sempre que fala de sua trajetória profissional, Rodrigo recorre

ao pronome ‘nós’ – “Restaurante é um esporte coletivo, não

individual; o chef pode até ser o protagonista, mas o projeto

envolve o trabalho de muitas pessoas”. Ele não abre mão de

oferecer remuneração acima da média e benefícios atraentes

como bolsas de estudo, mensalidade de academia e plano de

saúde de qualidade. E, para equilibrar os gastos sem sobretaxar

os pratos, Rodrigo faz manobras engenhosas que não

afetam a qualidade do cardápio. “Nós trabalhamos com carne

de Angus, certificada, de animais que foram bem cuidados,

mas, como não temos orçamento para comprar filé-mignon,

ancho ou picanha, usamos partes como coxão-mole, músculo

e coração, que não são piores, só têm características diferentes”,

revela. As escolhas inteligentes de um chef e equipe talentosos,

aliadas ao grande volume de vendas e um ambiente

despojado, sem ar-condicionado nem talheres de prata ou taças

de cristal, equilibram as contas no fim do mês.

O tempo ensinou Rodrigo a também buscar o equilíbrio entre

vida profissional e pessoal. Ele lamenta ter perdido momentos

importantes dos cinco filhos: Nina (11 anos), Flor (10), Pedro

(5), Cora (4) e Alice (3), frutos do primeiro casamento, com

a atriz Ligia Fonseca, e do atual, com Adriana Salay. “Perdi

alguns aniversários. Férias e fins de semana com eles eram

raros. Mas eu fiz o que era possível naquele momento, o que

os restaurantes exigiam de mim.” Agora, garante, consegue

balancear melhor essa relação casa-trabalho. Todos os dias, o

chef prepara o café da manhã da turma e, sempre que pode,

assume as panelas de casa depois que chega do trabalho.

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 48


“Restaurante

é um esporte

coletivo, não

individual; o chef

pode até ser o

protagonista, mas

o projeto envolve

o trabalho de

muitas pessoas”

Rodrigo Oliveira no Mocotó - Foto: Ricardo D’ Ângelo

Erros e acertos

Tanta dedicação não evitou que erros

temperassem a vida profissional de

Rodrigo. Em 2018, o sucesso da filial no

Mercado de Pinheiros inspirou a abertura

de um ponto da franquia de comida

sertaneja no movimentado Mercado

Municipal de São Paulo, ou simplesmente

Mercadão. Com a grande circulação

em um dos maiores mercados

públicos do país, o que poderia dar errado?

Pois bem, a casa encerrou as atividades

quatro meses após a inauguração,

e a resposta é simples: sanduíche

de mortadela, o prato típico daquele

ponto turístico paulistano. “Nós chamamos

esse restaurante de pop-up”,

diverte-se. “Tínhamos uma grande expectativa

em relação a essa casa, mas

11 em cada dez pessoas que encostavam

no nosso balcão perguntavam se a

gente vendia sanduíche de mortadela.”

A leitura equivocada do contexto, que

colocou no mesmo balaio dois mercados

públicos sem considerar as características

particulares de cada um, foi

um grande percalço, mas ele não tem

medo de errar. “Nosso mantra é errar

sempre erros novos”, diz. O grande

temor de Rodrigo é decepcionar a comunidade

da Vila Medeiros, que acolhe

a família há mais de quatro décadas

– ele mora a duas quadras do restaurante

–, e principalmente as pessoas

que trabalham com ele, “que dedicam

a vida ao Mocotó”, como ele faz questão

de ressaltar. Em agosto deste ano, a

equipe comemorou os 40 anos de casa

do funcionário Josafá, o bigode, que começou

a trabalhar ali quando seu atual

chefe tinha apenas 1 mês de vida. Aqui,

vale um parêntese: Rodrigo nunca se

refere aos membros da equipe como

funcionários. Durante uma palestra

realizada no ano passado, ele explicou

que “são pessoas. Funcionário é muito

redutivo, pressupõe uma função. O cozinheiro

cozinha, o lavador lava, o entregador

entrega. A gente acredita que

reuniu pessoas que lutam pela causa,

além da função”.

O nome do veterano Josafá, que chegou

a emprestar dinheiro ao restaurante

durante uma reforma, aparece

ao lado de figuras importantes na

vida de Rodrigo no texto de agradecimento

do livro Mocotó – O Pai, o Filho

e o Restaurante, publicado em 2017. A

homenagem a seu Zé conta a história

da família ilustrada com belas imagens

de arquivo pessoal e traz receitas

dos cobiçados pratos servidos no

restaurante. O livro transborda o amor

de Rodrigo pela cozinha. E essa paixão

sentiu um duro golpe em março,

quando o mundo parou em função da

pandemia da Covid-19.

Antes mesmo do decreto que obrigou

o fechamento de comércios e serviços

não essenciais para conter a propagação

do novo coronavírus, Rodrigo trocou

o serviço de mesa pelo delivery

e, junto com Adriana, criou o projeto

Quebrada Alimentada, que distribui

as quentinhas no bairro. “É uma falácia

dizer que estamos todos no mesmo

barco. Nós estamos no mesmo oceano,

mas, enquanto uns estão no seu iate,

muitos estão tentando sobreviver nadando”,

diz. Conseguiu remanejar parte

da equipe para o serviço de entregas,

que teve um boom na pandemia,

e evitou demissões.

Se o Mocotó se manteve firme, a quarentena

acertou em cheio o projeto

cultural que Rodrigo inaugurou uma

semana antes do lockdown. O espaço

multiúso instalado no antigo endereço

do Esquina abrigou uma única atividade

este ano: a oficina de tapiocas

promovida pelo próprio Rodrigo. Toda

a programação musical e as atividades

educativas previstas para o espaço,

que nem chegou a ser batizado, foram

suspensas. Agora, a próxima aventura

do Indiana Jones da Vila Medeiros será

por terras estrangeiras. A inauguração

do Mocotó em Los Angeles está prevista

para novembro deste ano, o que mostra

que nem uma pandemia consegue

parar esse desbravador das cozinhas.

Dica para o jovem

Rodrigo Oliveira:

“Go ahead! Sempre

em frente! Algo

como a mensagem

do filme Campo dos

Sonhos (1989): faça

e eles virão”

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 49


Mulher de

coragem

Por Angelica Mari

Primeira curadora indígena do Museu de

Arte de São Paulo, Sandra Benites usa a arte

como forma de expressar o protagonismo

de seu povo, provocar questionamentos e

estabelecer conexões com o mundo

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 50


Nome: Sandra Benites,

Ara Rete (guarani

nhandeva)

Idade: 45 anos

Profissão: curadora,

educadora e antropóloga

Cidade onde nasceu:

Aldeia Porto Lindo,

município de Japorã (MS)

Foto: Marco Brailko

A

resiliência e a habilidade de construir

pontes formam a tônica da

trajetória de Sandra Benites, primeira

curadora indígena de um museu

de arte no Brasil. Referência no movimento

em que museus se posicionam

como ambiente para discussões

culturais e políticas, Sandra assumiu

a curadoria do Museu de Arte de São

Paulo (MASP) em dezembro de 2019.

Atualmente, a educadora e antropóloga

trabalha na exposição Histórias Indígenas,

planejada pelo museu paulista para

2023, em que visa propor uma reflexão

sobre o imaginário indígena, incorporando

temas como a crise ambiental

e o desaparecimento da identidade desses

povos nas zonas urbanas.

Bagagem não falta para Sandra na

construção dessa narrativa. Além da

experiência acadêmica, a filha mais

velha de 11 irmãos da etnia guarani

nhandeva conta com suas vivências

pessoais. Com o nome de batismo Ara

Rete, Sandra nasceu pelas mãos da

avó em Porto Lindo, aldeia em Japorã

(MS), cidade próxima à fronteira com

o Paraguai. A matriarca era uma das

principais lideranças da aldeia: orientava

as gestantes e seus familiares de

acordo com os costumes e crenças do

povo guarani, além de ser responsável

pela educação das muitas crianças que,

assim como Sandra, a chamavam de xe

djaryi (vovó). “Minha avó juntava muita

gente em casa. Sempre havia ali muitas

crianças, seus pais, e também gente

da comunidade. Os encontros eram

algo muito forte do nosso costume. Era

o momento de conversar sobre o que

era importante, mas também de falar

sobre o que não era importante. Todos

tinham voz”, recorda.

Tendo começado a vida nesse contexto

de educação comunitária, Sandra

iniciou o ensino formal aos 7 anos de

idade, em uma escola mantida pela

Fundação Nacional do Índio (Funai).

O processo de alfabetização foi marcante

para a curadora de arte, que se

emociona ao se lembrar daquela época.

Sem compreender nem uma palavra

sequer da língua portuguesa, fazia um

esforço hercúleo para acompanhar as

aulas e tinha muito medo de falhar, experiências

que posteriormente fariam

parte de sua tese de mestrado “Viver

na língua guarani nhandeva (mulher

falando)”, em que aborda temas como

o processo de ensino-aprendizagem da

criança guarani nas escolas diferenciadas

e na comunidade guarani, bem

como a perspectiva indígena feminina.

“O que me dava forças para continuar

indo à escola era o fato de conviver com

as outras crianças, brincar, cantar. Mas

estar na sala de aula era aterrorizante,

pois eu não entendia nada do que era

falado e os professores exigiam muito

de nós”, conta Sandra, lembrando-se

do início da vida escolar. “Minha letra

até hoje é horrível por causa disso.”

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 51


Cestos feitos por mulheres Guarani da aldeia céu

Azul Itaipuaçu RJ. Foto: Marco Brailko

Apesar dos obstáculos logo no início de sua vida escolar, Sandra teve determinação

para continuar a estudar, e duas kunhangue (mulheres indígenas), que ela encontrou

em diferentes momentos no ensino fundamental, serviam de inspiração. Uma

dessas professoras, Gildinei, da etnia terena, acolhia alunos em processo de alfabetização

e, para dar as aulas, precisava trazer seus dois filhos. Essas mulheres se

tornaram uma referência: “As professoras indígenas me marcaram muito, e passei

a desejar realizar algo parecido com o que elas faziam”.

Aos 12 anos, em função da dificuldade para chegar à cidade vizinha, onde ficava

a escola frequentada por alunos de sua faixa etária, Sandra teve de abandonar os

estudos. Casou-se quatro anos depois, aos 16, e teve quatro filhos. A primeira filha

nasceu pelas mãos da avó, parteira da aldeia, que não chegou a ver a segunda neta.

Somada à perda de sua principal referência na vida, a morte da irmã mais nova,

em meio a uma onda de suicídios na aldeia, foi um duro golpe para Sandra. “Perdi a

esperança naquele momento”, lembra.

Em meio ao luto, começou a trabalhar como agente de saúde, mas sentia que precisava

sair de Porto Lindo. Surgiu, então, a oportunidade de ir morar com parentes

na Aldeia Nova Esperança, na cidade capixaba de Aracruz, uma ideia que inicialmente

não foi bem-aceita. “A família do meu ex-marido era muito apegada a ele e

a nossos filhos por causa dos costumes. Mesmo assim, eu disse que iria sem ele e

levaria as crianças. No fim, ele foi conosco, mas quem tomou a decisão fui eu”, conta.

Vendeu tudo o que tinha e, no ano de 2000, deixou sua aldeia natal, dando início

a uma vida marcada por mudanças e recomeços.

Resolução para

estudar

Em sua nova vida no Espírito Santo,

Sandra continuou seu trabalho como

agente de saúde, focando na população

da aldeia onde morava. Logo se destacou,

e as oportunidades não tardaram

a surgir. Sandra ganhou uma bolsa de

estudos para um curso técnico em enfermagem,

mas a falta do ensino médio

a impediu de se matricular. Abalada

pela frustração, ela sentiu que era o

momento de retomar os estudos. Encontrou

espaço na rotina já recheada

de trabalho e cuidados com os filhos

pequenos e passou a frequentar as

aulas do período noturno de um curso

de formação acelerada. “Muitas pessoas

desistiram, mas eu segui em frente.

Pensava: ‘Se não for possível fazer

enfermagem, vou estudar outra coisa’.

Guardei essa resolução só para mim: eu

nunca compartilhava essas coisas com

ninguém”, revela.

Pouco depois do reingresso de Sandra

na escola, em 2003, surgiu a chance de

fazer um curso de magistério especificamente

voltado para a sua etnia, o Protocolo

Guarani. Iniciativa do Ministério

da Educação em parceria com a Funai e

as secretarias de Educação de diversos

estados, o curso priorizava a territorialidade,

em respeito à mobilidade entre

as áreas onde os guaranis vivem no Rio

Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná,

Espírito Santo e Rio de Janeiro, o que

significava disponibilidade para viajar.

Essa oportunidade foi um divisor de

águas na vida de Ara Rete. Até então,

ela nunca havia se separado dos filhos,

mas seria impossível levá-los às aulas

nos outros estados. Depois de muitas

conversas com o cacique da aldeia e

com o marido à época, decidiu ir sozinha

para participar do curso, que era

realizado em módulos com duração de

um mês, três vezes ao ano. Ela lembra

que mulheres eram minoria, justamente

por não terem com quem deixar os

filhos. “A organização da iniciativa

proibia que levássemos as crianças,

mas esse era um impedimento do sistema,

e não da nossa comunidade, pois

não vemos problema em ter os filhos

presentes, no cuidado coletivo”, aponta.

O término do magistério era só o começo

da vida acadêmica de Sandra. Logo

ela deu início à graduação, na Licenciatura

Intercultural Indígena do Sul

da Mata Atlântica, um curso específico

para a comunidade, na Universidade

Federal de Santa Catarina (UFSC).

O processo do curso, que também era

oferecido em módulos distribuídos por

diversos estados, incluiu uma pausa

de dois anos, em que o programa ficou

suspenso, até a conclusão, em 2014.

O final da graduação coincidiu com o

fim de outros ciclos na vida de Sandra,

que se separou naquela época e decidiu

sair do Espírito Santo, mas também

trouxe novos projetos. Já como espe-

cialista em educação, começou a assessorar

escolas indígenas em Paraty

e em Maricá, no Rio de Janeiro. Nesse

período, deu os primeiros passos em

pesquisa acadêmica, analisando temas

como o desconhecimento da população

brasileira sobre a vida indígena, e

iniciou seu mestrado em antropologia

social pelo Museu Nacional da Universidade

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),

finalizado em 2018.

“O apagamento

da ancestralidade

é uma questão

em comum: a

cidade apaga

a percepção

anterior de

mundo, e a escola

é responsável por

isso também”

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 52


“O mundo ocidental ainda tem

essa visão de que o objeto, a arte,

é separado do corpo, da vida.

Nós, indígenas, não temos essa

percepção: nós consideramos o

conjunto, o próprio corpo, como

uma linha de encenação que

interage com várias coisas”

Obras da mostra Dja Guata Porã, Museu de Arte do Rio.

Fotos: Alexandre Araújo

Incursão na arte

A aproximação com a arte ocorreria

em meio à atuação no mundo acadêmico,

que se intensificou a partir da

mudança para o Rio de Janeiro. Suas

palestras sobre temas relacionados a

cultura e educação indígenas chamaram

a atenção do Museu de Arte do Rio

(MAR), que a convidou para assumir

a função de cocuradora da exposição

Dja Guata Porã – Rio de Janeiro Indígena,

que ocorreu em 2017. A exposição

buscou explorar diversas nuances da

história dos povos indígenas e apresentou

quatro grandes núcleos representativos

dos processos pelos quais

passam esses povos no estado do Rio.

Os guaranis, enquanto povo aldeado,

os pataxós, indígenas baseados em Paraty

que buscam demarcação da terra,

os puris, que estão em processo de ressurgência,

e os indígenas de diversas

etnias inseridos em contextos urbanos.

A mostra também incluiu uma linha do

tempo, que explorava a história dos povos

para além do estado.

O projeto foi uma experiência totalmente

inédita para Sandra, única indígena

na equipe de curadoria, que

incluía os pesquisadores José Ribamar

Bessa e Pablo Lafuente e a crítica de

arte Clarissa Diniz. “Foi um trabalho

muito desafiador, mas que, ao mesmo

tempo, me ensinou muito, além de

contemplar as demandas dos parentes

indígenas”, lembra ela, que se refere a

pessoas da mesma etnia como sua própria

família. A abordagem e o ineditismo

na curadoria da exposição atraíram

a atenção do MASP, que convidou o

MAR para uma palestra sobre as experiências

observadas durante o processo.

Sandra, em viagem de estreia a São

Paulo, ministrou a palestra, expondo os

pontos de vista da representante indígena

da equipe de curadoria. E foi assim

que os laços com o museu paulistano

foram se estreitando ao longo de

diversos eventos em que palestrou, até

que, no ano passado, recebeu o convite

de Adriano Pedrosa, diretor artístico

do MASP, para assumir o projeto de

curadoria de uma exposição focada em

história indígena.

Mais uma vez, Sandra respirou fundo

e encarou o desafio: “Precisei consultar

muitas pessoas antes de assumir algo

que ainda tenho um pouco de dificuldade

de compreender, não em termos

da forma, mas de como representar as

mais de 300 etnias aldeadas, no contexto

urbano, e as mais de 270 línguas,

no espaço”, conta. “Depois de conversar

com muitos amigos, parentes da

comunidade e não indígenas, concluí

que precisava, sim, ocupar esse espaço

para ter um lugar de fala e expressar

o protagonismo indígena através da

arte”, ressalta, acrescentando que essa

consulta revelou muito de sua própria

potência, expressa na frase que tem

como status em seu perfil no WhatsApp,

Xe kunhã py’a guasu (eu sou mulher

de coragem). “Quando paro para

pensar no quanto caminhei, desde que

comecei a estudar esses impactos [sofridos

pela comunidade indígena], a partir

das minhas experiências, vejo o quanto

eles me fortaleceram”, avalia a antropóloga.

“Hoje trato esses impactos não

como impedimentos, mas como formas

de criar novos caminhos.”

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 53


Provocações

necessárias

Ara Rete vê a história indígena sob

dois ângulos distintos: há a cosmovisão,

em que o indígena expressa o

modo como vê o mundo, e também um

outro lado, em que se narra o processo

de colonização e que inclui aspectos

como a violência sofrida por esses

povos desde então. “Embora soframos

com os vários impactos da colonização,

nós, indígenas, priorizamos contar

a história a partir da nossa percepção

de mundo, tendo em mente a

importância do respeito e da escuta da

natureza”, constata.

Atualmente em processo de construção

da abordagem da exposição, Sandra

prevê que o ponto de partida seja

a relação dos indígenas com o mundo,

passando por aspectos como a busca

pela preservação da ancestralidade, até

a perda da identidade de pessoas que

se transferiram para as cidades e que

se desvincularam de sua origem: “A

realidade é que as cidades foram construídas

sobre aldeias, e muitas são cemitérios

indígenas. Assim, as pessoas

que lá viviam precisaram se adaptar e

se transformar em outros corpos. Penso

que, para representar esse sujeito

confuso, que não tem mais ligação com

sua ancestralidade, a história precise

partir desse viés”, comenta.

A devastação do meio ambiente no

Brasil também deve ser abordada, com

base na percepção do povo indígena de

que o fim do mundo ocorre a partir da

falta de sabedoria e respeito com a própria

terra: “Temos uma relação e um

diálogo muito fortes com o espírito da

natureza, que se refletem nos rituais

de como usar [os recursos naturais], como

extrair. Os artistas indígenas falam

muito sobre a ancestralidade e o que

pode acontecer com o nosso entorno se

não tivermos cuidado”, frisa.

Sobre a necessidade de aproximação

do imaginário indígena por parte de

outras etnias, Sandra lembra que a exposição

do MAR trouxe uma mistura

de elementos que convidavam a essas

reflexões, o que deixou a audiência impactada,

porém um pouco perdida: “O

mundo ocidental ainda tem essa visão

de que o objeto, a arte, é separado do

corpo, da vida. Nós, indígenas, não temos

essa percepção: nós consideramos

o conjunto, o próprio corpo, como

uma linha de encenação que interage

com várias coisas, e isso ainda é muito

difícil de entender para quem não

é indígena”. A curadora entende que

seu desafio é provocar. “É bom que as

pessoas não compreendam, pois isso

dá margem a questionamentos. Mas

pretendo trazer ao MASP uma realidade

o mais próxima possível dos parentes,

e não o imaginário que todos

querem ver”, argumenta.

A atual discussão sobre o combate a

preconceitos estruturais que afetam a

população negra de muitas maneiras

também atinge o povo indígena, segundo

a antropóloga. Para ela, em muitos

momentos, problemas da comunidade

negra, como os povos quilombolas,

se encontram com os dos índios. “O

apagamento da ancestralidade é uma

questão em comum: a cidade apaga a

percepção anterior de mundo, e a escola

é responsável por isso também”, avalia.

“Na escola, se você não vai bem em

certas matérias, como física, química,

é como se você não soubesse nada, e

isso não é importante para os indígenas.

Para nós, educação de qualidade

é aquela que prepara uma pessoa para

lidar com o mundo, e, muitas vezes, nos

encontramos unidos com os irmãos negros

nessas percepções”, aponta.

Para além de seu trabalho como curadora,

Sandra tem uma série de outras

atividades em curso. Entre elas, está

o projeto de doutorado, também pelo

Museu Nacional da UFRJ, que deve focar

na luta das mulheres indígenas. As

considerações levadas em conta pela

antropóloga em seu trabalho de pesquisa

incluem os processos vivenciados

por mulheres indígenas em centros urbanos,

que, assim como ela, se encontram

em “lugar nenhum”. A percepção

da transitoriedade nas cidades e dos

diversos percalços vividos por mulheres

de diversas trajetórias fez brotar

um outro projeto, que Sandra espera

realizar em breve: um espaço físico

em uma grande capital, onde mulheres

possam encontrar acolhimento, diálogo

e cuidado. “Nosso mundo vai se curar a

partir da harmonia de diversos corpos,

em que cada um se fortalece da forma

que é, e segundo o que acredita, sem

inferiorizar ou desrespeitar o outro. A

população indígena aprende fazendo,

sentindo, vivendo, e eu acredito que,

através do encontro, da vivência, acontece

a real transformação.”

“Nosso mundo vai

se curar a partir

da harmonia de

diversos corpos,

em que cada um se

fortalece da forma

que é, e segundo o

que acredita, sem

inferiorizar ou

desrespeitar o outro”

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 54


Obra da mostra Dja Guata Porã, Museu de Arte do Rio. Foto: Alexandre Araújo

Avançando fronteiras

A trajetória de Sandra retrata uma mulher que consegue se

adaptar a situações, recursos e desafios da vida e transitar

em espaços que, à primeira vista, não teria chance de ocupar.

As experiências vividas também a dotaram de uma capacidade

de conexão e, ao mesmo tempo, de estabelecer limites:

“Aprendi a perpassar em vários corpos, mas isso não

me impede de compreender o que é do outro, as diferenças

e fronteiras: é preciso saber até onde você pode avançar e

até onde o outro pode avançar em direção a você”, aponta.

Não raro, a pesquisadora lida com um estranhamento em

sua comunidade, oriundo de seu status educacional e de

suas escolhas. Por outro lado, viver e se educar fora de seu

ambiente de origem possibilitou o desenvolvimento de um

outro olhar para as questões de seu povo: “Se eu tivesse

continuado na aldeia, veria muitas coisas como normais, ou

menos importantes. Hoje, a partir das provocações da universidade

e dos espaços que frequento, observo as coisas

de forma diferente”, avalia.

De certa forma, Sandra vivencia muitos dos desafios

que busca retratar em seu trabalho como curadora,

principalmente no que diz respeito à identidade, já

que se vê dividida entre a aldeia e a cidade. “Isso faz

com que eu olhe para mim mesma constantemente

para garantir meu próprio equilíbrio. É um contínuo

processo de aprendizado que nenhuma escola oferece,

mas sim uma trajetória de enfrentamento”, relata

a antropóloga, que hoje vive no Rio de Janeiro.

Esse processo de reconhecimento das próprias nuances,

combinado com a necessidade de estabelecer

diálogos, é o que a impulsiona, apesar dos solavancos

que o caminho muitas vezes apresenta. “É importante

conhecer as próprias origens e se ver como pessoa

que pode circular. Por mais que o outro, muitas

vezes, não entenda, eu me proponho a ir, a me expor:

isso é o que me impele e me leva a sonhar com

um mundo melhor”.

Dica para a jovem Sandra Benites: “Escute, observe, acompanhe, tenha

paciência. Eu sei que é difícil ser paciente, especialmente para quem enfrenta

muitos desafios. Cultive seus sonhos e a sabedoria da sua ancestralidade,

pois isso vai te fortalecer, mesmo com as várias dificuldades”.

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 55


Uma palavra

“Sobre a beleza o meu pai também

explicava: só existe a beleza que se diz.

Só existe a beleza se existir interlocutor.

A beleza da lagoa é sempre alguém.

Porque a beleza da lagoa só acontece

porque a posso partilhar.

Se não houver ninguém, nem a

necessidade de encontrar a beleza existe

nem a lagoa será bela.

A beleza é sempre alguém, no sentido

em que ela se concretiza apenas pela

expectativa da reunião com o outro.

Ele afirmava: o nome da lagoa é Halla, é

Sigridur. Ainda que as palavras sejam

débeis. As palavras são objetos magros

incapazes de conter o mundo.

Usamo-las por pura ilusão.

Deixámo-nos iludir assim para não

perecermos de imediato conscientes

da impossibilidade de comunicar

e, por isso, a impossibilidade da

beleza. Todas as lagoas do mundo

dependem de sermos ao menos dois.

Para que um veja e o outro ouça. Sem

um diálogo não há beleza e não há

lagoa. A esperança na humanidade,

talvez por ingénua convicção, está

na crença de que o indivíduo a

quem se pede que ouça o faça por

confiança. É o que todos almejamos.

Que acreditem em nós. Dizermos

algo que se toma como verdadeiro

porque o dizemos simplesmente.”

Trecho de A Desumanização

De Valter Hugo Mãe

Porto Editora

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 56


Um sabor

O pão, um dos alimentos mais antigos e populares do mundo,

ganhou status de celebridade nesta pandemia. O preparo

de receitas caseiras ficou tão em alta no período de

quarentena que acabou dando origem ao termo “pãodemia”.

Assim como boa parte das pessoas do planeta, Paula

Gribel, terapeuta integrativa com especialização em medicina

chinesa, aderiu à moda.

A também curadora do Festival de Vida Sustentável LivMundi

deu à Et Cetera uma receita de pão fácil para incentivar

quem ainda não brincou de padeiro.

Pão de erva

• 4 xícaras de farinha de trigo integral

• 1 colher de sopa de sal marinho

• 1 colher de sopa de fermento

biológico instantâneo

• 1 colher de sobremesa da erva de sua

preferência (Paula sugere alecrim)

• 1 xícara e 1/2 de água

• 1 colher de óleo vegetal

• 1 colher de sobremesa de gergelim

“O pão nos remete ao

símbolo da casa. Acho

que o ato de cozinhar e se

curar por meio da alquimia

culinária nos fez resgatar

essa arte tão primitiva”, diz.

Misture a farinha com o sal, o fermento

e a erva. Acrescente água aos poucos, até

a massa ter liga. Junte o óleo e amasse

bem com as duas mãos, como se estivesse

amassando barro, até a massa ficar

completamente macia e homogênea.

Em um recipiente untado com óleo, deixe

a massa descansar por duas horas (até

ela praticamente dobrar de tamanho).

Unte a fôrma de assar com óleo e salpique

o gergelim antes de colocar o pão.

Asse em forno médio por 40 minutos.

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 57


Uma imagem

A tela “A Lua” (1928), de Tarsila do Amaral - Reprodução

A Lua, de Tarsila do Amaral, é a obra de arte de um artista

brasileiro mais cara já vendida. Ela foi comprada pelo Museu

de Arte Moderna de Nova York (MoMA) em 2019 por 20 milhões

de dólares, o equivalente a 110 milhões de reais. O site

do MoMA (www.moma.org/artists/49158) descreve a pintora

paulista como “a mais importante modernista da primeira

geração”, colocando-a no panteão de artistas internacionais

renomados. A tela – um cacto cujo contorno confunde-se

com o desenho de um homem em frente a uma lua surrealista

– é considerada divisora de águas do trabalho de Tarsila.

Segundo críticos de arte, ela teria construído “magistralmente”

o casamento entre a vanguarda artística europeia e

a tradição brasileira. A Lua foi pintada em 1928, ano em que

Tarsila produziu o Abaporu, seu quadro mais famoso. Ele teria

inspirado seu marido, Oswald de Andrade, a escrever o

Manifesto Antropofágico, que desafiava a cultura brasileira a

repensar sua dependência estrangeira no período pós-colonial,

propondo uma arte nacional nascendo da “digestão

metafórica” de influências externas. Antes de A Lua, a obra

brasileira mais cara comercializada tinha sido a tela Vaso de

Flores, de Alberto da Veiga Guignard, comprada em 2015 em

um leilão, por 5,7 milhões de reais.

EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 58



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