Etcetera – primavera 2020
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P
elas ruas sinuosas da periferia de São Paulo, o caminho
entre dois pontos raramente passa por vias retas e
desimpedidas. Assim foi a trajetória da advogada, empresária
e ativista pelos direitos das mulheres negras Eliane
Dias, que nasceu e cresceu no Capão Redondo, na região
sudoeste da capital paulista. É também ali que mora com a
família e comanda a Boogie Naipe, produtora que fundou ao
lado do marido, o rapper Mano Brown, dos Racionais MC’s.
Mas que ninguém se atreva a chamá-la de ‘A mina do Mano
Brown’: “A mulher não tem que ser de alguém. Se ela só existe
sendo de alguém, o que acontece se esse relacionamento
acabar? Eu não sou a mina do Mano, eu sou a Eliane Dias,
muito prazer”.
Essa mulher determinada e independente é filha de Maria
Aparecida Dias, que aos 16 anos engravidou e foi expulsa de
casa porque se recusou a fazer um aborto. O pai biológico de
Eliane, que à época era noivo de outra mulher em Campinas,
no interior de São Paulo, não quis assumir a criança. Abandonada
à própria sorte, Maria foi acolhida temporariamente por
uma conhecida em seu barraco, e foi lá que Eliane nasceu.
Sem ter onde morar, mãe e recém-nascida viveram na rua
por oito meses, até serem resgatadas por uma tia de Eliane.
“Minha mãe é uma mulher mais seca. Ela não me beija, não é
carinhosa, mas eu a amo e sei que ela me ama também. Sou
quem eu sou por causa dela”, diz.
Enquanto a mãe trabalhava, Eliane e os três irmãos – todos
de pais diferentes e que abandonaram os filhos – passaram a
infância vivendo na casa de outras famílias. Mas ela enxerga
o lado positivo desse período conturbado: “Todo esse tempo
em que passei na casa de outras pessoas, sendo cuidada por
outras famílias, nunca fui abusada. Eu poderia ter tido uma
história pior. Todos os dias crianças sofrem com a violência
sexual dentro de casa. É triste dizer isso, mas a verdade é que
eu tive muita sorte mesmo”.
Em um dos lares temporários, a casa da dona Maria e do seu
Juca, Eliane encontrou um tesouro no meio do lixo: o livro
Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus. Àquela altura,
ela já sabia ler, mas ainda não conseguia compreender e assimilar
o relato contundente da catadora de papel narrado na
obra. “Eles disseram que advogados conseguiriam entender,
e desde então coloquei na cabeça que ia ser advogada”, diz.
A primeira casa da família foi construída quando ela tinha 9
anos, mas o minúsculo barraco de madeira não era suficiente
para abrigar a todos. Quando Maria ia para casa nos fins de
semana – ela era empregada doméstica e, durante a semana,
passava as noites no trabalho –, precisava dormir do lado de
fora, à porta do barraco.
Relação com a religião
Antes de ir viver com a mãe e os irmãos, Eliane passou uma temporada em um internato de freiras. Curiosa e prestativa, se
interessou pela vida das religiosas e ajudava nas tarefas da cozinha, lavando louça em troca de uma colher de mel – um dos
poucos momentos de felicidade daquele período, marcado por lembranças ruins: “Minha mãe era uma mulher preta, solteira,
com quatro filhos, em uma época conturbada. Trabalhava como doméstica e não conseguia ir visitar a gente. Eu e minha irmã
ficávamos prontas, esperando que ela descesse do trem, mas ela não vinha. Aquela sensação de espera é horrível”, conta.
A admiração pelas freiras estimulou o estudo de religiões. Eliane frequentou a Congregação Cristã no Brasil e já pensou em ser
freira, mas não gostava de ter de usar véu e abrir mão da maquiagem. “Não que eu gostasse de me maquiar, nunca gostei, mas
quero ter a opção”, afirma. Também aderiu ao Seicho-No-Ie, que “exigia uma disciplina que eu não tenho”, e chegou a frequentar
um centro de umbanda, mas foi no candomblé que se encontrou de verdade. “Eu sou filha do vento”, afirma.
Foto: Tomas Neves
EDIÇÃO DE ESTREIA • PÁG. 34