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Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

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Velho<br />

No dia do meu aniversário escrevi uma crônica com o título “Fiquei velho...”. Estava<br />

feliz quando escrevi. Mas minha crônica provocou cartas de protesto. Muitos velhos<br />

não gostam de ser chamados de “velhos”. Querem ser chamados de “idosos”. Não<br />

gostaram do título da crônica. Pediram que eu trocasse o “velho” por “idoso”. Mas a<br />

palavra “idoso” é boba. Não se presta para a poesia. “Idoso” é palavra que a gente<br />

encontra em guichês de supermercado e banco: fila dos idosos, atendimento<br />

preferencial. Recuso-me a ser definido por supermercados e bancos. “Velho”, ao<br />

contrário, é palavra poética, literária. Já imaginaram se o Hemingway tivesse dado<br />

ao seu livro o título de O idoso e o mar? Eu não compraria. E o poema das árvores,<br />

do Olavo Bilac: “Veja essas velhas árvores...”. Que tal “Veja essas árvores<br />

idosas...”? É ridículo. Eu jamais diria de uma casa que ela é “idosa”. A palavra<br />

“idosa” só diz que faz muitos anos que a casa foi construída. Mas a palavra “velha”<br />

nos transporta para o mundo da fantasia. O velho sobradão do meu avô, onde vivi<br />

minha infância. Meus livros velhos, folhas soltas de tanto uso. Estão assim porque<br />

viveram muito, fiz amor com eles, tão frequentemente e tantas vezes que se<br />

gastaram. O Chico tem uma linda canção com o título: “O velho”. É triste. Se o<br />

título fosse “O idoso” seria ridícula. Já imaginaram? O casal vai fazer bodas de<br />

ouro: cabeças brancas. Eles se abraçam, se beijam, e ele diz para ela,<br />

carinhosamente: “Minha idosa” – ao que ela responde com um sorriso: “Meu idoso”.<br />

Não é nada disso. É “minha velha” e “meu velho”...<br />

Meu pai<br />

Do meu pai fica o seu retrato de olhar perdido, olhando o espaço vazio, cachimbo<br />

na boca, a fumaça dissolvendo os contornos. Eu disse “espaço vazio”. Só para<br />

quem não o conhecia. Porque era ali que moravam seus sonhos. Já velho, pôs-se a<br />

criar galinhas, o que foi um desastre comercial, pois não permitia que fossem<br />

mortas, cada uma com o seu nome próprio e o seu prazer era vê-las, ao cair da<br />

noite, buscando os poleiros onde dormir. Foi muito rico, perdeu tudo, ficou pobre,<br />

mas acho que nunca lamentou. Nunca se acostumou com a civilização e tenho a<br />

impressão de que sempre teve saudades das casas de adobe e dos quintais de<br />

jabuticabeiras onde passara sua infância. Dizem que ficou esclerosado. Perdeu<br />

contato com a realidade. Talvez a verdade seja outra: voltou para a sua verdade, o<br />

“ignoto lar” a que se refere o Álvaro de Campos, inacessível a todos nós, do lado de<br />

cá. Entrou em sua canoa e remou para a terceira margem do rio, como no conto do<br />

Guimarães Rosa.

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