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imaginar um público que coma sempre a mesma comida? A pessoa que imaginou a<br />
Caras descobriu a comida que, sendo sempre a mesma, é comida sempre, com<br />
prazer. Pois todas as Caras, sem exceção, tratam de um único assunto: sorrisos de<br />
socialites. Cada revista é um caleidoscópio de sorrisos. Aí propus-me um jogo:<br />
contar quantos sorrisos estavam publicados na revista que eu tinha nas mãos. Fui<br />
rigoroso. Sorrisinho de boca fechada não valia. Só valia sorriso mostrando os<br />
dentes. Comecei a contar. No princípio foi fácil: um, dois, três. Mas quando cheguei<br />
aos cem ficou complicado: cento e sessenta e quatro. A língua começou a tropeçar.<br />
Tive de ir mais devagar. Lamentei que o meu instrumental de pesquisa não me<br />
permitisse distinguir sorrisos de dentes naturais dos sorrisos de dentadura. Como já<br />
informei, nas primeiras dentaduras, os dentes eram arrancados dos escravos.<br />
Escravo banguela, senhor sorridente... Quando o dentista me chamou, eu já havia<br />
contado todos os sorrisos dentais de metade da revista, muito grossa: trezentos e<br />
setenta e cinco. Abandonei a revista com tristeza. A pergunta continua a me<br />
atormentar: quantos sorrisos? Sugiro que vocês que leem a Caras façam a mesma<br />
brincadeira e me enviem o resultado das suas pesquisas. Contar sorrisos é uma<br />
atividade muito educativa, terapêutica, mesmo. Ao final, vocês também estarão<br />
não sorrindo, mas rindo. Sorrisos fotográficos têm sempre uma pitada de ridículo,<br />
por serem todos produzidos automaticamente quando o fotógrafo diz “cheese”.<br />
Compreendi, então, as razões para o fracasso da revista Bundas, criação de Ziraldo<br />
e companhia. É que bundas não sabem sorrir, não têm dentes a exibir, muito<br />
embora o Drummond, no seu livro O amor natural, tenha escrito, página 25: “A<br />
bunda, que engraçada. Está sempre sorrindo. Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz na<br />
carícia de ser e balançar...”.<br />
Linguagem dos mudos<br />
Quando eu era menino, com os meus colegas de escola aprendemos, por conta<br />
própria, a linguagem dos surdos-mudos, e assim conversávamos entre nós. Lição<br />
aos pedagogos: criança, quando quer, aprende, especialmente se a coisa não for<br />
lição de casa. Ainda hoje me lembro. Consigo falar com as mãos. Coisas simples.<br />
Ler é mais difícil. É preciso que a conversa seja vagarosa. Pois visitando o Instituto<br />
Metodista de Lins, um grupo de adolescentes me apresentou um colega surdomudo.<br />
Eu o saudei na linguagem dos surdos-mudos. O sorriso dele foi maravilhoso!<br />
Ficamos amigos sem um único som. O mesmo aconteceu, faz poucos dias, no caixa<br />
do Pão de Açúcar. Fiz uma brincadeira com o jovem que estava pondo minhas<br />
compras nos sacos plásticos e ele não disse nada. Aí a caixa explicou: “É surdomudo...”.<br />
Falei com ele em linguagem dos surdos-mudos. De novo, foi aquela<br />
alegria! Não seria legal se as crianças e adolescentes, por puro prazer,