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Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

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Os apaixonados vivem num mundo maravilhoso de fantasia amorosa. Concordam<br />

com o Tom Jobim: “O nosso amor vai ser assim, eu pra você, você pra mim...”. Eles<br />

acreditam firme e honestamente que o casamento será a realização da sua paixão<br />

em toda a pureza da fantasia. Mas todo mundo sabe, menos os apaixonados, que<br />

na vida não acontece assim. As rotinas do dia a dia não combinam com fantasias<br />

amorosas. Casados os apaixonados na casinha pequenina, eles terão agora de lidar<br />

com uma porção de coisas banais e irritantes. Por exemplo, o pingo de xixi na<br />

tampa da privada... Alguém me contou que, na Alemanha, encontrou nos banheiros<br />

cartazes proibindo que os homens fizessem xixi da maneira clássica, macha, de pé.<br />

A ordem é fazer xixi assentado, como as mulheres. <strong>Faz</strong>er xixi assentado pode ser<br />

um golpe na autoimagem machista dos homens mas, sem dúvida, é uma solução<br />

para as tampas de privada molhadas com xixi. Milan Kundera, no seu livro Os<br />

testamentos traídos, faz um comentário sobre Madame Bovary, de Flaubert,<br />

indicando que naquele livro o autor fez uma descoberta “por assim dizer,<br />

ontológica: a descoberta da estrutura do momento presente”, que é feito pela<br />

“coexistência perpétua do banal e do dramático sobre o qual nossas vidas estão<br />

fundamentadas”. Muitos momentos terríveis nascem de coisas absolutamente<br />

banais, como uma tampa de privada respingada de xixi... Uma tampa de privada<br />

respingada de urina é um golpe definitivo na imagem do príncipe encantado pela<br />

qual a esposa estava apaixonada...<br />

Quer ser amado? Alugue os seus ouvidos<br />

A delícia dos livros está em que eles, repentinamente, nos abrem os olhos, e<br />

vemos então coisas que nunca havíamos visto. A diferença entre os textos<br />

científicos e os textos literários está em que, enquanto os textos científicos nos<br />

colocam diante da mesa metálica onde se dissecam os cadáveres, os textos<br />

literários nos colocam bem no centro da vida. Quando se lê literatura vive-se a vida<br />

de outras pessoas, em outros tempos, em outros lugares. Vidas que não existiram.<br />

Acabei de ler O livro do riso e do esquecimento, de Milan Kundera. Uma simples<br />

frase me deu um choque: “Nós escrevemos porque nossos filhos se<br />

desinteressaram de nós”. Sim, escrevemos porque somos seres solitários à procura<br />

de outros filhos. Ele conta a estória de uma jovem que trabalhava como garçonete<br />

num bar. Seu nome era Tamina. Tamina “fica sentada no bar, num tamborete, e<br />

quase sempre há alguém que quer conversar com ela. Todo mundo gosta de<br />

Tamina. Porque ela sabe ouvir o que lhe contam. Mas será que ela ouve mesmo?<br />

Ou não faz outra coisa senão olhar, muito atenta, muito calada? O que conta é que<br />

ela não interrompe a fala. Vocês sabem o que acontece quando duas pessoas<br />

conversam. Uma fala e a outra lhe corta a palavra: ‘é exatamente como eu, eu...’ e

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