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Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

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isto é, passou nos exames. O que é prova cabal de que o conhecimento das leis<br />

não é garantia da sabedoria do juiz. Como dizia um homem sábio, na cidade onde<br />

nasci, “duas são as coisas em que não se pode confiar: bunda de criança e cabeça<br />

de juiz...”. Se ele deu entrada nessa ação, imagino, é que deve haver dispositivos<br />

legais para obrigar as pessoas ao tratamento devido, meritíssimo, magnífico,<br />

reverendíssimo, ilustríssimo, excelentíssimo, doutor. Pergunto aos conhecedores da<br />

lei se não haverá dispositivos legais que punam pessoas que usam títulos sem<br />

possuí-los. Um bacharel pode colocar placa de doutor? Engenheiro é doutor?<br />

Lembro-me de um homem, também lá em Minas, que queria ser doutor a qualquer<br />

preço. Para ele, ser doutor era ter diploma de engenheiro agrônomo. Tirou o<br />

diploma. Mas o tiro saiu pela culatra. De caçoada, deram-lhe o apelido de Zé<br />

Doutor. Quando vejo escrito na capa de um livro, como autor, Doutor Fulano de<br />

Tal, não consigo esconder o riso. É uma pena que a lei não tenha provisões para<br />

punir a estupidez e a presunção.<br />

Desembarcar<br />

Bernardo Soares escreveu que nosso problema está em nossa incapacidade de<br />

desembarcar de nós mesmos. É inútil ir até a China se não saímos da bolha onde<br />

vivemos. Tudo o que virmos e pensarmos nessa viagem será uma repetição da<br />

nossa mesmice. Isso vale para viagens. E vale também para a leitura. Porque toda<br />

leitura é uma viagem por um mundo desconhecido. Não, isso que escrevi não está<br />

certo. Há livros que não nos levam a viajar por mundos desconhecidos. Eles apenas<br />

repetem a nossa mesmice. Por isso são de leitura fácil. Há alguns anos, quando<br />

estive preso numa cadeira por causa de uma operação de hérnia de disco, pus-me<br />

a ler uma série de livros que tinham estado à espera, numa prateleira. Mas eles<br />

davam canseira na cabeça de um homem que estava doente. Quem está doente<br />

não quer viajar. Mudei-me então para os policiais da Agatha Christie. Leitura para<br />

passar o tempo, porque não era preciso pensar. Todos eles são iguais. E eu ficava<br />

no meu mundinho. Para se entender um livro de outro mundo, a primeira condição<br />

é sair do nosso mundo. Isso exige uma decisão preliminar: “Vou, provisoriamente,<br />

num jogo de faz de conta, parar de ter minhas ideias. Vou desembarcar do meu<br />

mundo. Vou entrar no mundo do autor. Vou aprender a sua língua...”. Se eu não<br />

fizer isso não terei condições de entendê-lo, se for o caso, ainda que para discordar<br />

dele honestamente. Se eu parto do pressuposto de que o autor só diz besteiras eu<br />

só lerei besteiras – as que estavam dentro de mim. Lembro-me dos meus tempos<br />

de universidade: se alguém ia ler Max Weber, ia sabendo que ele era o “ideólogo<br />

da burguesia”. Se se ia ler Durkheim, sabia-se de antemão que ele era um<br />

“funcionalista conservador”. Para se ler Nietzsche é preciso antes ficar nu e tomar

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